Tuesday, December 24, 2019

Surf Music: uma parábola


O poente em Venice Beach, Los Angeles


Esses dias eu estava olhando no Youtube o vídeoclipe de “Errol” (Australian Crawl, 1981) e lembrei que por anos eu tive aquela coletânea deles, o Crawl File. A gente sempre teve bandas australianas como essa como referência de surf music, mesmo que seu repertório não tematizasse necessariamente temas integrados ao imaginário do gênero.  Ao mesmo tempo, fiquei pensando que existe um gênero que, quem sabe pela primeira vez na história do que poderíamos chamar de música massiva, está vinculado à um espaço (a praia) e a um período do ano (o verão). Se hoje existem vários tipos de música que possuem essa relação, seria possível dizer que tudo começou com a surf music?

Seria possível creditar o surgimento desse estilo a uma só pessoa? Se sim, ela seria Dick Dale. Inspirado por instrumentistas como Duane Eddy e fazendo uso de efeitos de guitarra, ele conseguiu estabelecer uma imagem e sucesso locais, em salões de baile em Balboa, no sul da Califórnia. Logo, junto com sua banda, os Del-Tones, uma cena seria criada. Outros conjuntos de rock instrumental seguiriam a trilha aberta por Dale, como Eddie and the Showmen e The Bel-Airs.

No entanto, a surf music como gênero seria um fenômeno local por muito tempo, até que os Chantays chegassem às paradas de sucesso nacionais com “Pipeline” e os surfaris com “Wipe Out” (depois popularizada pelos Ventures) em 1963. O sucesso e a visibilidade nacional provocou a eclosão de um exército de outras bandas, muitas delas milhas aquém das praias da Califórnia, como os Rivieras (“California Sun”) e os Thashmen (“Surfin’ Bird”). Importante salientar que, já nessa fase (1961/2), a surf music formava um “braço” australiano, com bandas como Joy Boys, The Atlantics e Denvermen, e que também influenciariam as co-irmãs ianques.

Uma segunda vertente da surf music se daria em dois momentos: o primeiro, com a exploração do gênero pelo cinema, com séries de filmes temáticos (e tão ingênuos quanto descartáveis), produzidos pela International Picriures (AIP), estrelando teen idols como a ex-disney-girl Anette Funiccello e Frankie Avalon; o segundo, com o surgimento dos Beach Boys que, inspirados por grupos de doo wop e de barbershop singers, popularizam a surf music como canção.

A nova onda perpretada pela banda de Brian Wilson e Mike Love divide a crítica dede então: qual é a verdadeira surf music, a instrumental, de Dick Dale, ou a dos Beach Boys, Jean e Dean e outros? Para alguns, a verdadeira surf music é a instrumental, enquanto os Beach Boys acrescentaram outros elementos que seriam estranhos ao gênero, como riffs a la Chuck Berry e outros elementos de raiz afro-americana, além de introduzirem temáticas diversas em suas letras, ao falarem,  por exemplo, de carros, ou hot rods (“409”, “Little Deuce Coupé”). Ao mesmo tempo, Brian tentava se desvincular do rótulo surf à medida em que explorava temas mais reflexivos, em músicas como “In My Room” ou “The Warmith of the Sun”, muito embora capitalizasse bastante a surf music em canções como “Surfin’ Safari” ou “Catch a Wave”.

A grande questão é que, embora bandas como a de Dick Dale tenham dado o pontapé inicial no gênero, foi com os Beach Boys e com o cinema (que também explorava o formato canção em sua trilha sonora) que a surf music virou fenômeno nacional (e internacional), ainda muito antes dos Beatles e da chamada “Invasão Britânica”, a partir de meados de 1964. 

Em termos de periodização, é possível entender esse fenômeno como uma das derradeiras manias musicais (junto com o twist) estadunidenses antes do advento da beatlemania – fenômeno que influenciaria a própria produção dos Beach Boys a partir de então. Outra questão é a que a surf music, enquanto moda, foi fartamente enquadrada e explorada por produtores na Costa Leste; duos como os citados Jean e Dean, além de Rip Chords e os Daytonas eram invariavelmente artistas que dividiam os mesmos A&R, produtores e músicos de estúdio (o Wrecking Crew, de Los Angeles, que também trabalhava para os Beach Boys), o que mostra que, embora tenha nascido de forma espontânea, a surf music logo se tornaria um mero produto da indústria cultural. Aliás, falando nisso, ela mesma iria reorientar a produção e consumo de música depois dos Beatles: com a influência do merseybeat, bandas americanas abraçam o folk rock e, posteriormente a psicodelia; na Califórnia, a cena musical sobe a costa rumo a San Francisco, primeiro com os Beau Brumells e, depois, com grupos como Jefferson Airplane, Buffalo Springfield, Grateful Dead.

Enquanto isso, em 1965, os Del-Tones deixam os temas instrumentais e passam para o rock-canção (como é possível ouvir em seu álbum ao vivo no Ciro’s), os Beach Boys se encapsulam no estúdio, seguindo a moda dos conjuntos da época, focando seu trabalho na elaboração de discos conceituais, como Beach Boys Today! (1965) e Pet Sounds (1966). No entanto, devido a brigas internas, eles perdem o bonde da história quando declinam de participar de human be-ins e festivais como Monterey (1967) que, àquela altura, era a “vanguarda” do rock. O grupo, sem Brian Wilson, iria tentar retornar aos temas praieiros, com “Do it Again”,em 1968. Contudo, a onda da surf music entrou em franca decadência, de tal arte que até mesmo a AIP substitui a temática em favor de filmes de motos (Wild Angels, 1966) ou surfou na onda da psicodelia (The Trip,1967).

O ‘som da Califórnia’ porém subsiste no imaginário, como uma espécie de atualização das origens e evasão da condição humana: ao se desenvolver a partir de um segmento da experiência humana dada no tempo e no espaço, esse conteúdo temático não apenas resiste como um mito, o “mito californiano” quanto se espalhou pelo mundo afora. Por exemplo, quando voltamos ao começo destas conjecturas, expostas neste texto: se essa associação entre música e lugar e época do ano se sustenta, por exemplo, a partir do culto a um gênero musical, poderíamos lançar a hipótese de que tudo teria começado a partir do “California Sound”, reencarnando de ouras formas em outras partes do planeta, seja como uma atualização desses mitos, seja como uma “evasão da condição humana” (como uma idade do ouro, associada à eterna juventude ou uma mera utopia atualizada a cada verão).

Isso explicaria fenômenos temporões como o sucesso do filme American Grafitti em 1973, numa época de perda de referências e de declínio de valores positivos na sociedade norte-americana, principalmente na política, com o caso Watergate. Ou, por exemplo, no eterno retorno ao trabalho dos Beach Boys fora do tempo (como em seu retorno, em 1988, na trilha do filme Cocktail), mas sempre associado ao mito californiano: praia, juventude, etc.

Os Beach Boys no auge do sucesso,  no Ed Sullivan Show, em 1965.


Esse retorno naturalmente não é gratuito, porquanto é um retorno reconfortante a valores positivos, a um mundo utópico onde os dias são curtos e as noites são longas (como na letra de “California Sun”), prenhe de mensagens otimistas e que remetem a um tempo e um lugar imaginários onde pode-se encontrar sempre uma eterna era de inocência, sempre jovem e pleno de otimismo. Nesse sentido, uma banda como os Beach Boys desempenharam um papel na caracterização e no mapeamento desse mito de tal arte que eles sequer pudessem conceber, embora para eles, naquele momento, fosse algo incontornável. 

Em seus primeiros discos, a banda de Brian Wilson escreveu a teogonia do mito californiano, falando de um modo de vida, de uma paisagem e de um estado de espírito que, ao mesmo tempo, pertence a um tempo e a um lugar e, em outro, busca a universalidade. Isso explica tanto a sua permanência quanto a sua difusão e recriação, em diversas reencarnações, em outros tempos e outros lugares.  Mas a despeito de seus predecessores e imitadores, a mitologia da surf music está plasmada nas canções de Brian, como  “Surfer Girl”, “I Get Around”, “All Summer Long”, “Fun, Fun, Fun”, “Surfin’ U.S.A”, “California Girls”, entre outras. 

E esse mito é tão devastadoramente forte que persiste além das mudanças de trajeto, como nas canções de Pet Sounds, por exemplo, uma espécie de digressão dentro da sólida e fértil mitologia criada dos Beach Boys – um mundo idílico de diversão, de rachas de automóvel, demúsica, de dança, de surfe, de sol, de areia e de mar. Mesmo quando eles viraram adultos e partiram para outras praias, aquele mundo já estava estabelecido. 

Ele transcendeu as expectativas comerciais específicas (quanto à sua validade), as restrições geográficas e de gênero de nicho.  Quando vislumbra-se uma outra dentição da surf music, como na Austrália, no final dos anos 1970 e começo da década seguinte, podemos dizer que há ali uma atualização daquele mito, embora dentro de um contexto específico. Porém, essa mitificação música-praia-juventude é tão forte que transcendeu inclusive o tempo daquela cena musical – de mais de dez anos depois, quando ela foi ressignificada nas praias brasileiras, quando Ricardo Chantilly relançou a moda no Australian Connection (também foi responsável pelo lançamento de coletâneas de bandas australianas aqui, como o Electric Soup, dos Hoodoo Gurus), nos estertores da Fluminense FM, no começo dos anos 1990. O surf australiano estourou curiosamente como subgênero no Rio e chegou até o Rio Grande do Sul, quando rádios alternativas passaram a tocar Hoodoo Gurus, Australian Crawl e outras bandas que, por sinal, já haviam encerrado suas atividades há anos, e foram obrigadas a voltar, quando viram a grana dos direitos autorais voltarem a pingar (até o Men ar Work voltou).

Seria possível dizer que o próprio ressurgimento do reggae como “música de praia” (já bastante descontextualizado do ponto-de-vista político, religioso e descolonialista dos anos 1970), de certa forma, acompanhou esse movimento, pelo menos no Brasil – depois da década de 1980 que, por seu turno, parece ter feito de tudo para enterrar o reggae de raiz (no livro A Onda Maldita, Luiz Antônio Mello, o criador da “maldita” Fl uminense, fala que seus ouvintes detestavam música jamaicana com todas as forças), ele voltou com tudo anos depois e, ao que parece, para ficar. E pensar que tudo isso começou há quase 60 anos, no sul da Califórnia. O mito californiano seguiu firme, mesmo em suas variações, quando mudou-se para Los Angeles (com a geração Laurel Canyon) com freaks, hippies e luminares da contracultura em San Francisco, mesmo com seus detratores ou com aqueles que retomaram o sonho (e o pesadelo?) californiano, de Hunter Thompson até os Red Hot Chili Peppers.



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