Thursday, April 29, 2021

Música Inacabada

 

A capa do disco


Aconteceu de eu reouvir o primeiro disco solo da Plastic Ono Band e a Apple lançar o Box (muito bom por sinal) com demos, outtakes e mixagens alternativas do álbum, lançado em dezembro de 1970.

Eu tive esse disco em vinil quando comecei a escutar Beatles. A verdade é que eu nunca gostei muito desse disco no começo. Achava cru demais, achava essa negação dos Beatles algo que ia contra os meus princípios beatlemaníacos na época, além do fato de que eu era contra toda qualquer produção deles. Diferente dos fãs que acham que suas carreiras solo são os Beatles separados, para mim já não são os Beatles. É outra coisa. Quem ouve os discos sente que falta algo que nunca vai ser preenchido.

É melhor pensar que cada produção solo tem vida própria. Por isso que eu desconsidero esses projetos tipo o Hot As Sun, que é uma invenção apócrifa que, a partir do que seriam as melhores músicas solo pós-Beatles, seria possível pensar um álbum pós-Abbey Road. Acho que isso pode ficar por conta do imaginário dos fãs dos Beatles, mas não faz sentido.

Esse disco da Plastic Ono Band, por exemplo. Ele é único e intransferível. Eu acho que não tem como imaginá-lo hipoteticamente como parte de algo que poderia ser associado ao trabalho dos quatro ou colocado como parte do que seria algo tributário do mundo dos Beatles.

Eles se separaram justamente porque esse tipo de produção, como o Plastic Ono Band, não cabe nos Beatles. E, no fim, cada um tinha tanta coisa a dizer além dos Beatles e eram obrigados, no fim das contas, a se tornaram uma espécie de franquia deles mesmos, fazendo música Beatles pret-a-porter para os fãs. E acho que a pior coisa que poderia acontecer com eles era viraram covers deles mesmos. E é isso o que o John fala naquela entrevista ao Jenn Wenner*. Ele sabia que suas novas canções desse disco eram fortes e, talvez, mais fortes e lúcidas do que muita coisa que ele escreveu ou compôs com Paul nos Beatles. Ele naturalmente não renegava de todo os Beatles mas é possível notar a distância entre alguém que virou funcionário de uma franquia para agradar os admiradores dos Beatles que não viveram aquele tempo. Provavelmente chega uma hora que isso não faz o menor sentido. E se desvincular da franquia era algo imperioso naquele momento.

Claro que eu, na figura de fã, não entendia isso. E o Plastic Ono Band, e o McCartney I sempre me soaram como uma grande traição dos dois. E o George, que eu já comentei aqui, é outro, com o All Things Must Pass, que eu só fui me converter depois de velho. Mas me converti no sentido de saber separar o momento deles pós-Beatles como uma grande demanda pessoal de cada um deles, e que não é traição aos Beatles nem aos fãs deles.

Por fim, acho que o Plastic... é um disco duro de ouvir. Muito já se falou sobre as sessões de terapia com o Janov que o John Passou. Lendo o livro do Hunter Davies** e a rejeição do John à biografia oficial dos Beatles, acho que ficou claro – pelo menos para mim – que ele rejeitou a forma como a infância foi retratada no livro, como se não existisse a menor sombra de trauma com o desaparecimento do pai e a morte prematura da mãe, que também o rejeitou, e a imagem de infância idílica apresentada por Mimi.

Depois disso, John entrou de cabeça na carreira com os demais Beatles e não parou. Foram dez anos imerso no sonho, que terminou em outro trauma, separação, além da paixão por Yoko que, de certa forma, foi um retorno ao eterno feminino da mãe perdida mas que, na vida real, encontrou o rechaço de fãs e dos próprios parceiros. Para culminar, a forma como a banda acabou e, por fim, a terapia.

Acho que pensando nesses termos, é possível entender perfeitamente o contexto do disco. As canções são uma espécie de catarse e, ao mesmo tempo, uma repaginação nas perspectivas de vida, a forma de lidar com isso segundo ele foi expondo todas as feridas e toda a dor e todos os traumas que vieram à tona naquele momento extremo, catalisado pelo fim dos Beatles.

É possível ver que, como ele diz na entrevista da Rolling Stone, ele é ele mesmo ali. A metáfora do “I was the walrus but now I‘m John” pode ser explicada (além da explicação que ele dá na entrevista) como essa liberação da “franquia” dos Beatles: John não queria mais escrever coisas que eram basicamente novelity songs, como “Dig a Pony”, “Mean Mr. Mustard” ou “Hey Buldog”. Nos últimos discos dos Beatles é possível vislumbrar esse coração duplo de John, o que faz as músicas ele mesmo e o heterônimo “beatle John”, que faz canções para a franquia. E isso ele fala bem no começo da entrevista ao Wenner. Porém, ele vai nesse desvelamento do eu às últimas conseqüências, e talvez seja por isso que o Plastic Ono Band seja um disco tão único e tão difícil de ouvir.

E como um disco de transição, ao escutar o box, é possível ver toda a genética da produção do álbum, todos os caminhos que ele escolheu para a mixagem da cada faixa. Algumas parecem melhores nas mixagens ou outtakes alternativos. Pessoalmente eu acho que os takes definitivos são quase sempre melhores, mas é sempre interessante ver os caminhos escolhidos por John.

O primeiro é usar apenas três músicos. O segundo é alternar canções do acústico para o piano, como “Mother” ou “Remember”. Ou exemplos no Box onde John tentou usar double tracking (coisa que ele fazia extensivamente nos discos dos Beatles) mas, no fim, querendo dar um caráter mais cru ao disco, acabou dispensando esse expediente. O disco ficou cru apesar de tudo, era a forma de relacionar o conteúdo das letras com a produção.

O que me pareceu interessante é que, depois de todos os experimentalismos, desde os Beatles até o primeiros trabalhos fonográficos associados à Yoko Ono, como Revolution 9 ou os discos Unfinished Music, John sempre foi tributário do apojo do rock dos anos 50. Isso é possível ver nos demos nas sessões de gravação. Quando ele improvisa com Ringo “Send Me Some Lovin” é possível tanto vislumbrar aquele disco de oldies que eles iriam (iriam?) fazer nas sessões Get Back quanto o começo do álbum Rock’n Roll. A verdade é o John, a despeito de todos os modismos, sempre foi roqueiro, sempre detestou o resto – principalmente o jazz, por razões explicáveis tanto na biografia do Hunter Davies quanto na entrevista da Rolling Stone. Tanto que, na sua fase solo, atavismos dessa primeira influência sempre reaparecem em seus trabalhos, desde os covers do  Live Peace in Toronto, em “Come Togheter” (emulando Chuck Berry) quanto em “(Just Like) Starting Over”, que mistura Lloyd Price com o do wop típico dos anos 50.

Outras curiosidades da caixa: versões primitivas de "Love" ainda acústicas, e de "Look at Me" sem o dedilhado que ele usa em várias faixas do Álbum Branco. E outras descobertas, como o arranjo de "God" (cuja demo foi popularizada originalmente nos programas da rádio Westwood e nos bootlegs Lost Lennon Tapes mas agora aparecem em versão remasterizada) , na verdade, é totalmente inspirado na versão de Ketty Lester para "Love Letters" - versão que Elvis Presley praticamente copiou para a sua versão, tempos depois. Infelizmente as jams roqueiras do Plastic Ono Band não desaguaram num álbum paralelo (que seria o Rock’n Roll) embora mostram evidências desse atavismo no rock, e que foi uma constante em seu trabalho). Aliás, pela primeira vez, as conhecidas jams - com covers de clássicos do rock dos anos 50 aparecem remasterizados pela primeira vez neste box: alguns eram conhecidos, como as de "Honey Don't", "Hound Dog" e "Don't Be Cruel" (embora apenas no âmbito dos bootleggers, por causa dos Lost Lennon Tapes também). Porém, o mais interessante no box de Plastic Ono Band é poder experimentar, disco a disco, todo o processo de criação de John, desde os demos até a construção do disco, faixa a faixa. 

* John Lennon Remembers. Rolling Stone, 1970. 

** A Vida dos Beatles, Hunter Davies, 1968. 


Wednesday, April 28, 2021

Os Deuses Malditos

Edição da Istoé sobre o BRock

Esses dias resolvi ler o livro do politicamente correto do rock, do Lobão*. Uma coisa que me chamou a atenção é que ele afirma, entre outras coisas, que a MPB pós tropicalista é, de certa forma, uma “conspiração” onde seus “aiatolás” fazem de tudo para estabeleceram-se como os luminares e guardiões da música no Brasil. Eu não entro no mérito de discorrer sobre a opinião dele. O que eu entendo é que essa opinião é corrente.

Outra teoria que me veio à mente foi a do Paulo César Araújo, no livro Eu não sou cachorro não**. O livro, na verdade uma tese universitária, abrange o período entre o fim dos anos 60 e dos anos 70 para inventariar a produção da música popular (na época chamada de cafonália). O trabalho é parte resgate dos principais cantores e compositores daquele gênero, posteriormente rotulado de brega, e a defesa (quase apaixonada) de que etnomusicólogos, musicólogos e jornalistas em geral consideram essa produção menor no reino dos céus. Araújo salienta que esses artistas também sofreram perseguição e censura durante o regime militar, foram escanteados pelo que seria aquela elite musical – constituída pela nata da MPB, e cita o exemplo do episódio da Phono 73, quando Odair José foi vaiado em meio a apresentação com Caetano Veloso. Existe enfim uma enorme distância entre MPB e a cafonália que, de certa forma, é provocada pelo público, por gostos de classe. A verdade é que nesse período, esse segmento cresceu à medida em que a própria relação de consumo e produção no circuito da indústria fonográfica mostra que esse gênero musical atendeu a uma enorme demanda por parte esse gênero musical atendeu a uma enorme demanda por parte de um novo e considerável público ouvinte. A música brega cresceu na medida em que houve uma demanda proporcional. 

O problema é quando essa discussão escorre para a questão escorre para a questão de gosto. Até certo ponto, essa questão está posta na vara do senso comum: ouvintes de MPB e cafonália constituem-se em identidades distintas. O problema, seguindo Araújo, e quando a música brega é desconsiderada como objeto de pesquisa na área da canção. E com o livro-tese, o autor quer reparar uma enorme injustiça a um grande segmento da indústria fonográfica que, como até mesmo gente como André Midani explicou***, sustenta o lucro das grandes gravadoras. A Odeon nos anos 50 pôde lançar discos como os do João Gilberto – dizia Midani, porque cantores como Orlando Dias e Anísio Silva vendiam milhares de cópias de seus discos. E os próprios compositores de sucessos que venderam outros milhões de compactos e álbuns, como Jair Amorim ou Adelino Moreira não são considerados... “cancionistas”, usando a expressão popularizada por Luiz Tatit****. A crítica de Paulo César Araújo vai, pois, no sentido de que tanto jornalismo musical quando musicólogos têm resistência e ranço em abordar qualquer coisa que não gire em torno de Arys, Caymmis, bossas novas e tropicalismos. E, até pouco tempo, não havia uma bibliografia que desse conta do samba-canção como objeto – coisa que mudou há alguns anos, com trabalhos de Ruy Castro***** e de Zuza Homem de Mello****** sobre o tema.

Ao ler o livro do Lobão, o que me veio à cabeça foi justamente essas coisas que eu escrevi acima. Existe um descaso em analisar certos gêneros musicais no Brasil ao passo que existe também desde um apagamento ou desinteresse ou preconceito mesmo. Preconceito que pode ser explicado na perspectiva do senso comum, mas não da parte de quem pesquisa. No caso do opúsculo do Lobão, ele expõe outro preconceito, que é a forma como a geração dos anos 80, ou a associada ao BRock via os anos 70. Não era algo restrito à cena musical carioca ou paulistana mas, de fato, talvez por conta da repressão e das oportunidades perdidas nos anos 70, resolveu-se colocar toda aquela MPB que floresceu na década no banco dos réus, como se aquilo houvesse se transformado num rebote paquidérmico e maneirista que devia ser expurgado. E, de fato, é possível vislumbrar, no livro do Lobão, como essa geração BRock se fez identitariamente como o avesso de tudo o que a MPB representava. E a única forma de fazer isso era atacando aqueles “medalhões” do campo musical, considerados como jurássicos. Mas é possível ir mais além. Por exemplo, no artigo Veja: a invenção do rock nos anos 80, Fernando Muratori Costa******* demonstra, ou aponta subsídios para demonstrar que esse agendamento do rock em detrimento da MPB – que, de fato, por parte de muitos dos seus intérpretes, estavam tentando se recolocar naquele novo cenário – foi capitaneado pela imprensa. No caso, ele pega o exemplo da Veja: como a revista, ao desvelar o que seria a nova geração da música, passando em desfile desde a repaginada Rita Lee até grupos como Barão Vermelho e Blitz, fez o elogio a nova geração como forma de também se recolocar dentro do campo jornalístico. Ou seja, muito além da qualidade de compositores e intérpretes ou das canções, o que importa, segundo Muratori, é que existe aqui uma homologia entre campo artístico e jornalístico onde ao incensar aquele, este faz o mesmo consigo. 

Claro que não se trata aqui de conspiração ou da descoberta de uma farsa mas, sim, de entender essa representação e o seu contexto. O que vale é ressaltar a importância que a imprensa e a mídia em geral tem no sucesso desses artistas ainda longe de serem hegemônicos nos seus respectivos campos. Em resumo, o sucesso não se faz sozinho. E, como diz Muratori, a exaltação dessa nova geração também se fez, na demanda de uma identidade nova, em contraposição à velha geração, ou seja, a “paquidérmica” MPB. A própria imprensa ou, mais especificamente, a Veja exaltou os jovens artistas do rock nacional como uma resposta ao estado das coisas da música até então, como se a MPB como estado da arte naquele começo dos anos 80 tivesse chegado a uma aporia estética. O que Muratori explica em seu artigo, também tomando por base o livro de André Barcinski******** sobre a MPB nos anos 70, é que, em seu começo, naquilo que se convencionou chamar de pós-tropicalismo, MPB e rock nacional andavam juntos. Basta lembrar das colaborações dos Brasões com Macalé, Gal Costa e a Bolha ou Clube da Esquina e Som Imaginário, Barca do Sol e Olivia Byngton, entre outros encontros ocorridos naquele tempo. O curioso é notar que, passada a década perdida em que o rock brasileiro praticamente voou um vôo de galinha, quando chega nos anos 80, parece querer renegar essa relação. A MPB então, se “ataca” numa frente, em outra ela é atacada. Ou é heróica em seu papel como resistência cultural ou então é a vilã decrépita e paquidérmica que devora os seus filhos e não deixa a jovem e nova geração nascer.

O que eu acho que esses assuntos rendem muito. Seria imprescindível ir além nessas relações entre campo jornalístico e musical na formação do rock nacional nos anos 70 e 80 ao mesmo tempo em que pesquisas sobre outros gêneros musicais – e que não se restrinjam apenas ao tropicalismo ou Ary e Caymmi são também muito bem vindos. Mas, como se pode ver, essa fração de preconceito e de gosto musical em geral têm limitado sobremaneira o horizonte desse tipo de pesquisa no Brasil. 

 

Referências

* Guia politicamente incorreto dos anos 80 pelo rock, Leya, 2017.  

** Eu não sou cachorro não, Record, 2002. 

*** Música Ídolos e Poder: do vinil ao download, Nova Fronteira, 2008.

**** O século da canção. Ateliê, 2004. 

***** A noite do meu bem, Cia das Letras, 2014. 

****** Copacabana, Editora 34, 2018.

******* Veja: a invenção do rock nacional brasileiro nos anos 80. Disponível em http://www.encontro2016.sp.anpuh.org/resources/anais/48/1462300944_ARQUIVO_Artigo-ANPUH.pdf

******** Pavões Misteriosos: 1974-1983: a explosão da música pop no Brasil, Três Estrelas, 2014. 

Sunday, April 04, 2021

Lafayette e a revolução da Jovem Guarda


Lafayette


"Vocês querem tocar órgão em rock? Em música jovem?". Esse era Benil Santos, produtor da RGE. Erasmo Carlos  ia gravar o compacto “Terror dos Namorados” e convidou Lafayette para tocar piano. Ao chegar no estúdio, ele viu um Hammond igual ao que Ed Lincoln usava nos seus discos. Viu o teclado e resolveu improvisar alguma coisa. Erasmo ouviu e teve um estalo: “por que você não usa o Hammond no disco?”. O Hammond B3, que era conhecido pelos discos de Lincoln, era o preferido nos bailes de antes, porém ainda associado ao samba-jazz instrumental pop, um estilo popularizado por Waldir Calmon e outros. Aliás, o som de Ed Lincoln estava mais associado ao de Calmon do que do hard bossa de grupos como Menescal e seu Conjunto ou Eumir Deodato e os Catedráticos.  

Ninguém tinha pensado nisso. Erasmo deu corda na pipa e Lafayette topou. Até então, era o piano o teclado do rock – e, mesmo assim, associado de forma bastante incomum, como foi no caso de Jerry Lee Lewis e Little Richard. E, naquele tempo, o órgão era um instrumento que estava entrando no rock pela janela. Ainda em novembro de 1962, os Cascades lançaram “Rhythm of the rain”, disco que chegou ao terceiro lugar da Billboard no ano seguinte. Em 1965, a versão dos Animals  para “House of the rising Sun” era uma das músicas mais tocadas no Brasil em 1965, chegando ao terceiro lugar entre os compactos mais vendidos segundo o IBOPE. No ano anterior, Ed Lincoln fez grande sucesso com o disco A Volta, que chegou aos primeiros lugares nas paradas segundo o IBOPE.

Mas até chegar na gravação de “Terror dos Namorados”, é preciso retroceder um pouco. O rock brasileiro, como diz Paulo César Araújo, na biografia de Roberto Carlos, ainda era muito tributário do sax tenor. Ao mesmo tempo, a maioria dos intérpretes do gênero no Brasil cantava contando apenas e tão somente com músicos de estúdio. Até ai tudo bem, o problema é que eram geralmente músicos tarimbados e que tocavam qualquer coisa, menos rock. Na CBS, então Columbia, no tempo do Roberto Corte Real, cantores jovens, como Sérgio Murilo, gravavam com esses artistas.

Seria impensável, por exemplo, uma banda de garotos gravando em estúdio. Contudo, as coisas começaram a mudar justamente com a saída de Murilo da gravadora. Ao mesmo tempo em que Sérgio era defenestrado (ele tentou processar o selo por pendengas de direito autoral, perdeu e depois ficou mau visto pelas outras gravadoras).  Em seguida, Corte Real deixa a Columbia. Evandro Ribeiro, que era responsável pelo comercial, acabou acumulando a parte de A &R. Mesmo que música popular não fosse o seu forte – ele preferia o bel canto ao samba-canção – Evandro soube cercar-se de gente que o ajudou a apurar o faro para polir o cast de artistas com vistas a investir em música jovem naquele momento, como Edy Silva e Jairo Pires. Ele iria contratar gente para divulgar seus lançamentos em São Paulo, onde o dinheiro corria e onde a música poderia conquistar o Brasil. Como foi no caso da Bossa Nova. O Rio pariu a Bossa e, como diria Nelson Rodrigues, voltou a babar na gravata. Ela só iria virar sucesso em São Paulo nas lojas de departamentos de lá e através de comunicadores como Walter Silva. Ele é, certamente, o maior responsável pela sobrevida da Bossa Nova até o advento do Fino da Bossa e a Era dos Festivais.

Para isso, Ribeiro contratou Edy Silva, que foi quem “lançou” o novo Roberto Carlos para esse mercado. Edy foi tão importante em alavancar a carreira do cantor que, depois de desligar-se da CBS, ela iria integrar o time de Roberto a partir de então. Já Pires era vizinho de Evandro na Urca. Como roqueiro, Ribeiro viu nele alguém que soubesse trabalhar na triagem dos suplementos que a CBS mandava dos Estados Unidos para o Brasil. Logo ele se tornaria um dos grandes operadores da gravadora, junto com Eugênio de Carvalho. Juntos, eles seriam responsáveis pelo “novo som” do selo nos anos seguintes.

Para gravar “Splish, Splash”, Roberto conseguiu convencer Evandro a dispensar os “velhinhos da CBS”, ou seja, os músicos de estúdio, e pôr na gravação um grupo de rock da Piedade, chamado Renato e seus Blue Caps. No princípio, o diretor achou que era desperdício de dinheiro se a gravadora tinha gente na folha de pagamento para matar tudo no primeiro take. O cantor então convenceu Ribeiro, resumindo, que eles não sabiam tocar rock, etc, etc. Ele topou e o registro foi feito com os  rapazes, muito embora Paulo César, o baixista, tenha sido obrigado a tocar contrabaixo (não havia baixo elétrico à disposição). A gravação foi considerada satisfatória, e os Blue Caps foram prontamente contratados com Renato e tudo. Foi a primeira batalha.

Para gravar É Proibido Fumar, no entanto, Roberto usou os Youngsters, outra banda que integraria o cast da CBS. Ao contrário dos Blue Caps, observa Araújo, eles ainda emulavam o rock anterior, como o de Luizinho e seus Dinamites, que soava como a surf music dos Ventures. A partir de “Parei na Contramão”, Roberto montaria sua própria banda – era o golpe de morte nos “velhinhos da CBS”. Depois dos Youngsters, que ainda gravariam o Canta Para a Juventude, entrariam Bruno Paschoal no baixo (agora elétrico) e Anderson Marques, o Dedé, na bateria. Aliás, foi a partir daí que a gravadora iria adotar de fato o baixo elétrico: “E, a partir do LP É Proibido Fumar, o baixo elétrico foi deixando de ser tabu nas gravações da CBS - até que em 1966 a gravadora adquiriu os amplificadores Fender, que já permitiam gravar direto, através de linha”, diz Araújo. Essa foi a segunda batalha.

Paulo César Araújo observa que, naquele tempo, cabia ousar porque, com efeito, nenhuma gravadora no Brasil sabia gravar rock.

Roberto Carlos teve que ousar no estúdio, experimentar, e pôde fazer isto porque na época não tinha nenhuma autoridade em gravação de rock na CBS - nem em nenhuma outra gravadora do Brasil. O produtor Evandro Ribeiro não sabia gravar rock, assim como os músicos e os técnicos da CBS. Enfim, todos tiveram que aprender juntos como fazer aquele som jovem que estava surgindo no Brasil. Com isso, conseguiram avançar na experimentação, testar novos instrumentos, novas equalizações de som.

O elemento que faltava nessa receita de vatapá roqueiro  era o órgão de Lafayette. Tijucano, ele nasceu Lafayette Coelho Vargas Limp. Aos onze anos, já tinha experiência no Conservatório Nacional de Música. Porém, optou pela música popular, mais especificamente o rock, que era a coqueluche da gurizada do seu bairro. Ele era fã de Ed Lincoln, tinha seus discos mas, diferente do organista cearense, sua paixão era o novo som estrangeiro. 

Recrutado por Erasmo, ambos foram para o estúdio daq Victor no Rio, já que a RGE só tinha estúdio em São Paulo. Foi essa situação que acabou aproximando Lafayette do órgão, já que foi na Victor que ele experimentou o Hammond. Quando viu o instrumento, tirou a capa preta do instrumento e pôs-se a improvisar alguns temas religiosos e natalinos, coisas típicas de órgão.

Aquele som chamou a atenção de Erasmo Carlos, um cara que a turma reconhecia como de idéias avançadas e originais. "Puxa, Lafayette, que som legal." Enquanto ouvia Lafayette tocar mais um pouco, Erasmo teve um estalo. "Bicho, que tal a gente fazer um negócio diferente? Em vez de tocar piano, você tocar órgão na minha música?".

Contudo, Paulo César Araújo entende que essa experiência poderia ter morrido ali se não por causa de Roberto Carlos. Em janeiro de 1965, ele convidou Lafayette para gravar “A História de um homem Mau” e “Aquele Beijo que te Dei”. O estúdio da CBS tinha o Hammond que, por sinal, era usado apenas para discos instrumentais. Aquele foi o momento em que o instrumento entrou no rock brasileiro – a partir do disco Canta Para a Juventude.

O órgão Hammond-B3 do estúdio da CBS era semelhante ao que havia na RCA e em outras gravadoras, mas o som que Lafayette criou ali foi diferente de todos porque, além de seu talento de músico, contou com muita pesquisa, trabalho e colaboração dos técnicos de som Jairo Pires e Eugênio de Carvalho. Lafayette ficava com eles até altas horas no estúdio experimentando diversos sons e equalizações para o instrumento. "Eu devo muito daquele som do órgão ao Jairo e ao Eugênio. Eles melhoraram bastante o som do instrumento. Os técnicos faziam uma equalização muito boa e ajudaram a criar aquele som com um timbre legal, diferente", afirma Lafayette.

De acordo com Araújo, “Na época, o órgão se tornou um instrumento tão frequenteo rock que várias bandas tinham um organista na sua formação. Além do já citado The Animais, esse foi o caso, por exemplo, de bandas como The Doors, Rascais, Zombies, Procol Harum e Brooker T. Mg's. A sonoridade do órgão marcou o moderno rock dos anos 60. Até os Beatles usaram órgão, especialmente na fase final, quando convidaram o organista Billy Preston para tocar em faixas como Let it be e I me mine. Mas, antes disso, a banda já tinha usado aquele instrumento em canções como Don't pass me by (do Álbum Branco) e Mister Moonlight (LP Beatles for sale) -esta última como se fosse tocada pelo próprio Lafayette. O fato é que, ao incorporar o som do órgão à sua música, Roberto Carlos caminhava na mesma batida do moderno rock dos anos 60 - e sem que fosse preciso ele ter ouvido bandas internacionais para adotar essa sonoridade”.  No entanto, ele observa que o som Jovem Guarda que saiu dessa síntese foi também parte de uma revolução na própria produção: entra aqui numa nova geração de engenheiros de som jovens e que sabiam dialogar com essa nova geração do cast – também jovem, ligada ao novo som da juventude e muito distante do tempo dos “velhinhos da CBS”;

O órgão Hammond-B3 do estúdio da CBS era semelhante ao que havia na RCA e em outras gravadoras, mas o som que Lafayette criou ali foi diferente de todos porque, além de seu talento de músico, contou com muita pesquisa, trabalho e colaboração dos técnicos de som Jairo Pires e Eugênio de Carvalho. Lafayette ficava com eles até altas horas no estúdio experimentando diversos sons e equalizações para o instrumento. "Eu devo muito daquele som do órgão ao Jairo e ao Eugênio. Eles melhoraram bastante o som do instrumento. Os técnicos faziam uma equalização muito boa e ajudaram a criar aquele som com um timbre legal, diferente", afirma Lafayette. E foi mesmo depois de muita experimentação que os técnicos encontraram o eco ideal para realçar aquelas puxadas ou chicotadas (o nome é glissando) que Lafayette fazia no órgão - efeito que marcaria o seu som definitivamente a partir do toque de abertura em Quero que vá tudo pro inferno. Aquela introdução marcou muito e ficou como uma espécie de toque registrado de Lafayette. Evandro Ribeiro sempre pedia para ele fazer aquela chicotada em algum momento das gravações de Roberto Carlos. Às vezes Lafayette fazia no primeiro toque da introdução, outras, fazia no meio, como em Tempo de amar (do álbum Roberto Carlos em ritmo de aventura), ou no fim da introdução, como em Esqueça (do álbum de 1966).

Quando Lafayette chegou ao rock, mais precisamente no rock brasileiro, ele faria parte de uma revolução no ramo de produção musical – e de performance que pavimentaria o caminho para a Jovem Guarda, naquele mesmo ano. Se ela tem um arquiteto, quem pôs a cumeeira nessa construção foi Lafayette.


Referências

ARAÚJO, Paulo César. Roberto Carlos em Detalhes. Planeta, 2006. 


Saturday, April 03, 2021

No tempo da Educadora

 


Herb Alpert & Tijuana Brass é uma lembrança interessante para mim, porque é mais do que a própria música em si. Os temas me recordam da minha curta porém significativa passagem pela Educadora 1340, lá nos anos 90. Eu primeiramente fiz o curso de operação. Depois, ao longo do ano de 1994, fiquei como uma espécie de freelancer trabalhando na sonoplastia dos programas que eram produzidos e gravados no estúdio da Educadora no castelinho da av. Ipiranga (que hoje é a SAMU). Eu fiquei ali gravando terças e quartas até mais ou menos outubro ou começo de novembro: naquele tempo eu já havia passado no vestibular para Jornalismo na Famecos e acabei me desinteressando em seguir carreira como operador – o que foi besteira, pois poderia começar trabalhando de fato na 1340 no primeiro horário da manhã, que era o mais calmo, já que não tinha nada ao vivo.

Digo que eu lembro do Herb Alpert e Tijuana Brass porque ali no estúdio da Ipiranga existia uma discoteca pequena mas bem interessante. Tinha umas raridades, como aquele elepê do Luiz Eça e Cordas, original, da época, e que eu ouvi pela primeira vez ali. Sabia da existência do álbum pelo livro do Ruy Castro sobre Bossa Nova mas, naquele tempo, esses discos estavam esgotados. Havia o do Caymmi no Zum Zum, selo Elenco. Muita coisa da RGE – que, naquele tempo, era a gravadora do Raça Negra e Eliana de Lima, que fazia então muito sucesso, era o auge do pagode anos 90. Esse material da RGE abundava porque um dos professores de locução era divulgador. Havia uma coleção grande de música regionalista e muitos promos, aqueles discos-singles prensados especialmente para as rádios. E tava começando o CD.

Mesmo assim, quando eu fiz o curso de operação, nós ainda tínhamos naturalmente que aprender a mixar discos como DJ, abrir e fechar microfones, emendar com cartucheira, praparar a faixa no cue, na ponta da agulha, e pôr tudo no ar. Pelo menos era uma escola tranqüila, já que a gente aprendia fazendo gravações, então, não havia risco de cometer algum erro no ar – nem nós, nem os locutores, que também estavam fazendo o curso deles.

E tinha alguns discos da Tijuana Brass. Esses discos, aliás, eram daquela parte da discoteca que eram utilizados para trilhas de programas. Então, como era e como é até hoje em algumas rádios AM ou do interior, ainda utiliza-se esse tipo de trilha. Muitas vivem até hoje na memória de ouvintes, que associam alguma faixa a abertura ou cortina de determinado programa do passado. Por exemplo,  “Route 101” eu recordo do Nelson Marconi na madrugada da Farroupilha. “Mae” foi a trilha do Clube dos Namorados da antiga Itaí. Essa faixa depois foi usada em vários programas do tipo, em outras emissoras. A citada Farroupilha continuava usando nesses programas tipo “Dona da Noite” – aqueles programas noturnos com leitura de cartas, de poemas, e que tocavam apenas canções melosas. Essas trilhas em geral os ouvintes conhecem elas muito bem, embora não saibam o nome. Lembro da trilha do programa Bolsa de Empregos da Itaí, que era “The Girl From Paramaribo”, que, nos anos 70, ganhou dezenas de versões, de Erlon Chaves até Lafayette. Essa a gente tinha numa cartucheira lá no estúdio da Educadora, que alguém teria gravado nos estúdios da Guaíba.

A Educadora dava traço em matéria de audiência mas a gente não se importava. O pessoal gravava os programas do Estágio 1340 em fitas cassete – muitas delas reaproveitadas ao extremo, e quase sempre ficar velhas, tipo Scotch de uma hora. A gente não usava rolo. E depois eles anunciavam para amigos sintonizarem ou aos sábados à noite ou domingos de manhã a transmissão dos nossos programas. Algumas eu guardei depois mas, nessa vida de mudanças, eu botei fora todos os meus cassetes, e fiz isso naturalmente me arrependendo.

Digo isso porque esse contato com o pessoal indo e vindo na rádio, pessoal passando e a gente sempre aprendia algo ou tirava alguma lição de alguma coisa. Por exemplo, a discoteca do estúdio de gravações da Educadora não tinha nada que eu ouvia ou gostava na época. E eram coisas de repente que eu fui ouvir ou depois ou a partir dali. Então a maioria dos programas, que era informação e música, eram montados de forma temática – informação do campo, programa tipo popular, tipo romântico, notícias, e tudo entremeado com música. Mas era locução, música, locução música, não tenha intervalo, eram programetes de meia hora para cada locutor. Era simples de produzir mas cada locutor vinha com um tipo de música, pop rock, sertanejo, popular, gauchesco, etc.

Digo isso porque eu tenho uma tendência a ouvir o que os outros estão ouvindo. E acho que o pessoal de rádio, por exemplo, é aquele tipo de gente que ta tão acostumada com montar playlist disso e daquilo, apresentar de repente rádio popular e, mais tarde, FM jovem e vice versa que, exceto entre quatro paredes, eles estão acostumados com todo tipo de música. Acho que você perde os preconceitos quando trabalha em rádio musical. Um dia, monta uma seleção gauchesca, no outro, de sertanejo pop anos 80 e 90, no outro uma seleção rock. Essa é uma boa pargunta para fazer para todo locutor de rádio. Acho que em praças como o Rio de Janeiro, essa dança das cadeiras (do AM para o FM e de um segmento para outro) é algo comum. Então, a pessoa com o tempo perde essa barreira de gosto de “eu só gosto disso e é eu e meu gosto contra o mundo”. De tanta seleção que eu tive que fazer, rock gaúcho, sertanejo, MPB, na Educadora (fora o que os locutores estudantes levavam de casa para tocar), acho que você é direcionado a isso. De repente, a última coisa que eu queria ouvir na operação era o que eu gostava. E lembro de histórias, como um locutor que sempre montava a sua seleção, sempre com rock, coisas que não eram a minha praia na época ou que, ali pior 1994, estavam fora de moda. Por exemplo, Oingo Boingo, que ele tocava. Era uma coisa tipo, que tinha ficado nas discotecas dos anos 1980. Ou TNT: não havia nada mais démodé em 94 do que rock gaúcho dos anos 1980. Claro, hoje isso tudo voltou. Mas, naquela época, era tipo andar na rua com camisdeta da Ocean Pacific ou Lightining Bolt. Era fora de moda.

O que não saia de moda era música regionalista. Havia uma locutora que tinha um programete que era tipo dicas de cultura do campo, frutas do mês, aquela coisa meio Almanaque Correio do Povo. E a trilha musical era obviamente o Herb Alpert. A seleção era sempre gauchesco. A única coisa que a gente era proibido de tocar era o “Tango do Meretrício”, do João de Almeida Neto. Era a única “censura”. Havia o CD lá, a gente morria de rir ouvindo mas ficava só nas brincadeiras com as gravações. Tinha na discoteca um promo dos Engenheiros, “Somos quem podemos ser”. Eu usava ele para os treinamentos com os locutores. E, da mesa, havia uma janela com vista para o Morro da Embratel. Então, hoje, sempre que eu ouço essa música aleatoriamente eu me lembro daqueles tempos do Estágio 1340. A gente da operação praticava pela tarde – quem quisesse ficar para aprender, ficava, como era o meu caso. E, à noite, das seis em diante, eram as gravações, geralmente terças e quartas.

Depois, muito depois, que eu pude saber da história da Tijuana Brass. O Herb Alpert, que era compositor e produtor, havia trabalhado com várias pessoas, o Sam Cooke, por exemplo, um dia inventou de fazer uma banda pop que emulasse o som de regionais de mariachi, mais ou menos na visão ligeiramente colonizada do que eram os grupos de mariachi para os americanos e para americano ouvir. Só que a tal Tijuana Brass era, na verdade, uma invenção do Alpert, que fez algo parecido com o que existia aqui no Brasil com os Velhinhos Transviados, que eram músicos de estúdio que faziam versões de músicas de sucesso em formato álbum, num pop, e que virou uma moda em reuniões-dançantes. A Tijuana Brass era para ser um grupo de estúdio, como os nossos Velhinhos. O problema foi que o sucesso foi tão grande que eles foram obrigados a montar um regional e excusionar pelo mundo como banda de verdade. Aqui, no Brasil, calhou de ser um tipo de tendência de música para discotecas que trabalhavam com som mecânico, algo que estava se transformando em mania nos anos 60. A própria idéia hoje parece uma fraude, algo como forçado. Mas é importante salientar que, entre o final dos anos 50 e começo dos 60, a música instrumental vendia muito e maestros como Bert Kampfert, Acker Bilk ou Ray Conniff chegavam ao topo das paradas com música instrumental. Enfim, foi uma época em que música instrumental possuía um apelo comercial irresistível, algo que hoje é impossível de imaginar.

Para as cortinas dos programas, a gente usava aquela coletânea do Herb Alpert  com ele de chapéu na capa. Aquele disco a gente deveria ter passado ele para cartucheiras. Ele era muito utilizado para trilhas, que eram preparadas nas picapes, e esse uso contínuo detonava o disco. Tanto que a faixa mais utilizada, “A Taste of Honey”, chispava no momento daquela marcação do bumbo quando vem a escalada da bateria e entra o trumpete, era ali que entrava a faixa e depois ia à BG (ficava de fundo). Outro que era muito hipersuperutilizado era o “Milonga para as Missões”, do Renato Borghetti. De tanto uso, aqueles elepês estavam em petição de miséria. Antes do ponto que a trilha era  usada, o disco chiava inapelavalmente, tamanha a quantidade de usos. E tanto que alguém na rádio teve que comprar outra cópia num sebo. Depois eu achei alguns discos da Tijuana Brass originais, selo Fermata, inclusive o Going Places, que tem “Mae”, a faixa do Clube dos Namorados da Itaí – e que foi trilha de tantos outros programas de rádio por aí até hoje.

Lembro de uma histórias engraçadas. Tipo um senhor que apareceu para o curso de locução. Ele tinha boa pinta e uma baita voz, você ouvia ele no microfone e era locutor. Só que ele tinha um problema: o cara simplesmente não conseguia pronunciar nada em inglês, nem na embromação, se embarafustava na hora de falar "Someday We'll Gonna Met Again". No fim, ele acabou rodando. E outro, um locutor que fazia um programa de música sertaneja tipo Farroupilha, "fulano dedica para beltrana", aí um dia ele encheu o saco. Disse que não gostava de sertanejo e que aquilo o noso produtor é que havia imposto o estilo para ele. E depois disse que era afimzão da diretor-geral do curso, eu achei engraçado ele confessar isso pra mim. No fim, ele também não terminou o curso. 

Nem parece que eu estou falando de mais de duas décadas atrás. Depois eu me desliguei do pessoal da Educadora e a Fundação perdeu o castelinho, perderam a concessão da 1340, que voltou para a RBS, que hoje transmite a CBN porém fazendo de tudo para que ela não interfira na supermacia da sua coirmã, Gaúcha. A própria Educadora como rádio fechou: ficava numa casa, que existe até hoje (onde atualmente funciona uma geriatria) na rua Bastian, quase na esquina da Praia de Belas. Uma pena.  


  


Friday, April 02, 2021

Conto de Outono


Aquele parecia ser mais um dia normal para o motorista de táxi Wanderlei Gaudino, prefixo 83-88. Ele estava no ponto da Sete quando apareceu três pessoas para uma corrida. Uma mulher ligeiramente jovem e de vestido florido, com uma criança vestida como um adulto, de terninho. Os acompanhava um homem espadaúdo e bonachão, que ele achou que fosse parecido com um soviético, com a cara do Yuri Gagárin. O detalhe é que ele estava vestido (fantasiado?) como um escafandrista.

O taxista do 83-88 percebeu também que eles pareciam falar línguas diferentes. Quando se dirigiam a ele, falavam com um sotaque estranho. O motorista de praça, que só entendia o Português, não soube identificar a origem de nenhum deles. Mas achou curioso que a moça, a única que se dirigia a ele, falava com um sotaque meio germânico, algo como o Professor Ludovico.

Eles tinham bastante dinheiro, e pediram para que ele tirasse o dia para conduzi-los a conhecer Porto Alegre. Eles subiram a Bento, e o taxista explicou que a praça era um dos lugares mais antigos da cidade. Apontou para a Catedral, e falou: “essa é a Catedral”. Apontou o Palácio do Governo: “esse é o Palácio do Governo”, falou. Eles perguntaram o que era aquele solar cor-de-rosa ao lado. O taxista coçou a cabeça e arriscou: “É a continuação do Palácio do Governo. Eles se admiraram do monumento no meio da praça. Quiseram saber do que se tratava. “Foi um governador daqui de muito tempo atrás. Ele morava naquele solar lá (apontou com o dedo) do outro lado da praça. “É habitado?”, quis saber a moça. “Não, hoje é um museu, mas eu me lembro que visitei ele quando eu era muito jovem, no tempo do colégio. Tem uns canhões e umas estátuas e não sei o que mais, não lembro bem...Mas acho que ele ainda está funcionando...Entraram no Museu Júlio de Castilhos, e conheceram a motoca e a bota do gigante. Depois desceram a Duque, e o homem do táxi explicou que aquele viaduto foi construído no meio do morro de pedra do centro, e que ele passou a ligar a zona sul da cidade com o centro, diminuindo o tempo do trajeto entre as regiões mais distantes com a região do Mercado, que depois eles conheceram.

Como um vaqueano do asfalto, o taxista mostrou o Mercado para eles. Os três viram os peixes, os vinhos da banca 46, o bacalhau com azeite na banca 26, tomaram um sundae na banca 40, viram os artigos de umbanda, a de sorvete caseiro, o bar da Parobé, que vende peixe frito mas não deixa beber sem pedir lanche,  a banca de revistas, a do café moido na hora, a feirinha de discos usados, o restaurante que tinha uma cadeira dependurada no teto mas que o senhor do prefixo 83-88 não sabia ou lembrava muito bem a história daquela cadeira. Na saída, apontou para a marca onde o rio da cidade chegou quando houve uma enchente, há muito tempo atrás, quando ele nem era nascido mas sempre ouviu essa história de seu avô.

Foram até o Chalé da Praça XV ao lado. Entraram, tomaram várias canecas de chope enquanto o motorista dizia que aquele chalé era antigo mas ele não sabia quando ele foi construído. Eles repararam que havia um pequeno palco escondido quase no teto, à guisa de mezanino. O taxista explicou que há muito tempo atrás bandinhas alemãs se apresentavam ali. De volta ao táxi, eles foram até o Shopping do bairro Praia de Belas. Entraram em livrarias, lojas de roupas, de eletrodomésticos, tomaram sorvete no fast food. Pessoas que os viam ficavam espantados com o homem do escafandro, principalmente as crianças, que paravam para tirar foto com ele. Depois que dispensaram aquele povo, ainda assistiram a uma sessão de cinema, depois deram mais uma caminhada aproveitando o ar-condicionado (era um daqueles dias insuportáveis de fim de maio em Porto Alegre) do lugar. Saíram do shopping felizes e carregados de compras.

 Ao cair da tarde, eles falaram que queriam ir à um lugar chamado Tramandaí. “Avenida Tramandaí, vocês querem dizer? Fica na zona sul, é bem longe daqui, mas eu conheço um caminho bem rápido, e...”. “Não”, disse a moça. “É uma cidade, que fica ao lado de um rio que dá para o mar. Não é isso? Não é perto daqui? O senhor já foi lá. Ele coçou a cabeça. “Bem, na verdade, é uma viagem. Vocês não querem que eu os deixa na rodoviária, vocês podem pegar o próximo ônibus para lá”.  “Não”, atalhou a moça. “Nós simpatizamos com o senhor e com a sua cortesia. Sempre disseram que as pessoas daqui eram bastante cordiais, e eu vejo que é verdade”. Sem esboçar reação, o perplexo taxista tentava responder algo. Estava meio espantado, nunca tinha visto ninguém como eles, isso o assustava mas, ao mesmo tempo, estava gostando dos três.

 “Olha, moço”, continuou a moça, com sotaque do Professor Ludovico. “Não se preocupe com dinheiro, se é isso o que lhe preocupa. Nós temos dinheiro. Pago para o senhor agora todo o passeio e o senhor pode calcular o preço, a gente paga agora o valor, quanto foi preciso para o trajeto da sua volta e então partimos para lá”. Entraram no carro e rumaram para Tramandaí. Já era noite alta quando eles passaram por Osório, ficaram admirados com os morros contra o céu. O taxista estava meio perplexo: sentia um certo alívio porque sua missão como vaqueano do asfalto estava terminando. Ao mesmo tempo, sentia uma pequena tristeza por deixá-los. Já tinha feito corridas meio exóticas mas nunca tinha visto nada igual, nunca tinha vivenciado uma situação tão surrealista.

Quando chegaram à Tramandaí, eles o orientaram a seguir até a orla. Numa área bem retirada da beira do mar (já era madrugada), o motorista parou no local indicado pela moça. O homem com roupa de escafandro então desceu, pulou um pequeno cômoro e caminhou, sob a luz dos faróis, até a franja das ondas. Parado, ele puxou do bolso uma grande lanterna. Olhou para as estrelas e mirou a lanterna para o céu. Numa progressão fulminante, o motorista percebeu uma grande claridade vinda do alto.  Desce um enorme disco voador, que pousa numa tremenda velocidade. O sr. Wanderlei Gaudino gelou. Achava que era o seu fim. Da espaçonave, apareceram dois astronautas, com uma farda semelhante ao homem do escafandro. Então o casal finalmente se despediu do perplexo taxista, pagou o que devia, entraram no disco voador e foram embora. Sua última lembrança era a dos três, abanando para ele enquanto a porta fechava.