Friday, September 18, 2020

Contracapa para Jimi Hendrix

Capa do Band of Gypsies (1970)
 

Jimi Hendrix é um cara que eu lembro quando eu era piá e via na televisão imagens que depois descobri que eram do Festival de Woodstock. Ele tocava o hino norte-americano na guitarra. Para mim, ele era sempre aquele cara na guitarra. Não tinha a mínima idéia do que era rock, o que era Woodstock, o que era festival. Ele era aquele cara. Ele cantava? Quando comecei a ouvir rock, o gênero para mim era algo bem comportado, de artistas de terno e gravata cantando em duetos ou em trios. O Jimi Hendrix era aquele cara lá que eu fui associar ao rock mas achava que ele só tocava instrumental e usava uns trajes meio estranhos. Depois me disseram que ele morreu de drogas. Também me diziam que ele vivia drogado, estava sempre dopado. Eu, que gostava dos Beatles da época do iê iê iê jamais sonhava que eles tomassem drogas. Um dia, me contaram que eles usaram maconha quando receberam a medalha da rainha. 

Caí das nuvens. Odiei para sempre a pessoa que me disse isso.  Eu tinha aquela visão idílica do rock e os meus heróis da música eram limpos. Mais tarde, notei que havia o pessoal do rock comportado e o pessoal cabeludo e barulhento. Tinha até um que comia morcego. Eu não podia aceitar mas era como se o rock fosse um território. Havia o meu território e havia o outro. Os Beatles tiveram aquela fase hippie e tal, e eu aceitava isso deles. Mas os outros? O rock para mim era os Beatles no iê iê iê e os Stones da fase do Brian Jones. Depois eu vi o Jimi Hendrix. Na tevê de novo. Na verdade, quando eu era guri, não havia internet e isso só aparecia na tevê. Ele tocava fogo na guitarra e tocava as cordas dela com a língua. Eu me perguntava: o que esse cara tem? Qual é o objetivo disso? Não bastava apenas tocar a guitarra? 

Pensei comigo: cara, não pode isso, eu não (não lembro as música, apenas da cena) tenho como ouvir isso. Um dia eu ganhei uma leva de elepês, já tinha uma coleção enorme de discos em casa. Entre eles, havia dois dos Doors, o Sticky Fingers dos Stones e a trilha do Sem Destino. Esses discos foram muito importantes para mim porque, a partir de então, eu comecei a ir além daquele território do rock onde eu habitava. Foi a partir dali que eu comecei a ouvir o resto da discografia dos Stones, ouvir Stepenwolf, Byrds e toda aquela turma do country-rock. Ali eu já era adulto o suficiente para entender o rock. Mas, naqueles tempos, ainda antes da internet, havia muita coisa que existia mas você não tinha acesso. 

Discos estavam fora de catálogo, gravadoras aqui não se interessavam em lançar catálogo antigo, ainda mais de gente dos anos 60, que parecia interessar apenas a velhos. Kinks por exemplo. Existiu uma coletânea brasileira, lançada nos anos 80, que era simplória mas, dado ao fato de que ela saiu apenas uma edição aqui, era item de colecionador. Você via o álbum uma vez nos sebos. Em geral, discos raros já chegavam nas lojas reservados -  você nem via ele na estante.  Rock antigo era assim: era preciso ter grana e ir todo dia bater perna nas lojas para garimpar. Esses discos que eu ganhei, por exemplo, foram cair no meu colo por obra do acaso – até porque, na verdade, eu não iria sequer disputá-los. Mas quis o destino que eu os ouvisse. Enfim, eu passei a desbravar o lado escuro do que era o rock para mim a partir de então. 

O disco do Easy Rider, por exemplo, fez com que eu fosse tentar descobrir qual era a original de “I’m Only Bleeding” e descobri que era do Bob Dylan. Foi quando eu comprei o meu primeiro disco dele. E havia naturalmente “The Weight”, quando descobri a The Band, além dos Byrds (era a primeira vez que eu tinha um disco com uma faixa dos Byrds). E o Experience. Lembro de um amigo que era parceiro de garimpagem em sebos da cidade. Ele detestava Hendrix. Ele era da minha turma do rock dos tempos do iê iê iê. Ele corneteava o Hendrix e esse lence dele estar sempre drogado. O dono da loja tinha um pôster gigantesco com o Jimi tomando chá numa mesa (daquela última sessão de fotos dele, em 1970) e ria, dizendo que tinha fita ou coisa parecida naquela xícara de chá. Sempre havia aquele estigma de ligar Hendrix às drogas – como se todo mundo no mundo artístico não usasse drogas – mas, justamente porque ele morreu viveu e morreu por causa delas, há exatos 50 anos.  

Isso também me afastou bastante dele, por preconceito de associá-lo, ele e sua música, apenas às drogas. Assim, Hendrix sempre foi aquele cara que eu não ouvi e não gostei. E, como se não bastasse isso, como me reportei antes, ele estava no rol de artistas do disco que estavam esgotados nas lojas de discos ou na mira dos colecionadores mais fanáticos. Mesmo que você quisesse ouvi-lo, não achava os discos. Até pedir no rádio para tocar era difícil porque, assim como os discos estavam fora de catálogo, em geral, as emissoras ou não tinham o disco ou estava quebrado ou extraviado ou riscado e não podia ser tocado no ar. O que podia acontecer era que um colecionador colaborasse num programa de alguma rádio alternativa e rolasse um especial com Hendrix, ou Who, ou Kinks, enfim, aquelas bandas que não tocavam no rádio e, em tempos pré-internet, inexistiam no imaginário da galera por causa da seca de discos na praça. 

Essa é a verdade: muita gente não ouvia Jimi porque não tinha como. Quando eu ganhei a trilha do Sem Destino, eu tive a experiência (como diria ele) de colocar o elepê no prato da minha eletrola e ouvir aqueles quatro minutos surreais de “If Six Was Nine”. Aquele meu amigo tinha também o disco, achava maravilhoso, mas dizia: “tirando “If Six Was Nine”. E imitava o Hendrix cantando. Eu ria e achava aquilo um absurdo mesmo mas, depois de tanto ouvir, eu fiquei com a pulga na orelha. Então o cara aquele de roupa cherokee ou coisa parecida e de bandana na tevê canta. Achei que ele só tocava e incendiava a coitada da guitarra. Mas acho que todo esse estranhamento e essa torcida contra o Jimi fez com que eu pensasse em catar de qualquer jeito um disco dele. 

Um dia, eu gravei quase duas horas de programa no rádio, acho que era na Cultura: lá por 1997, tinham relançado os discos do Hendrix em CD. Na época, CDs eram caros e eu levei um ano ouvindo a fitinha até finalmente ganhar o disco, uma coletânea do Hendrix. Eu pus aquilo pra tocar e era no tempo dos players de mesa ainda. Eu fiquei de rédeas caídas com o “All Along the Watchtower”. Fiquei apaixonado, meses furando aquele disco pensando, bicho é o paroxismo do rock, é o futuro. Eu me sentia uma pessoa melhor. Era aquela paixão avassaladora que você deixa de lado todos os outros discos da sua coleção para só ouvir aquilo. 

Parece que o destino conspirava para que, desde quando eu vi o Jimi naquela cena sem áudio na tevê até aquele disco existisse uma conexão lógica dos fatos que me levassem, como se algo me dissesse ou eu dissesse para mim mesmo: um dia eu vou ouvir isso, não sei por quais caminhos a vida nos leva para cá ou para lá mas aquele momento vai existir, e então eu descobri o Jimi Hendrix. Esse momento da descoberta, de você escutar um disco com os ouvidos atentos, aquela audição especial, que não é da música no rádio, e você e o disco, esse é o verdadeiro contrato de audição. É quando você pode dizer que teve a experiência. “Are you experienced?”, alguém pode me perguntar. “Yes, I have”.

Na mesma época, por causa desses relançamentos, os colecionadores passaram a desovar os antigos álbuns de suas respectivas coleções nos sebos. Foi quando eu pus as mãos, pela primeira e única vez, no Are You Experienced brasileiro. Era mono mas aquele pequeno prazer do disco na sua vitrola, a capa do lado, aquelas músicas lá, “I Don’t Live Today”, "Red House" ou "Maniac Depresson" e a bateria expressionista a la Elvin Jones do Mitch Mitchell, alma gêmea do Hendrix, era a trilha dos tempos do curso de jornalismo, onde a gente já estava experimentando outras coisas mais loucas, como diagramar, redigir laudas de rádio e fumar maconha em cima das árvores escondido dos guardas no campus da PUC. Hoje eu não ouço mais Hendrix como eu ouvia naquele tempo. E nem tenho mais a minha coleção de discos. Eu tive aquele Band of Gypsies americano mesmo, capa dupla, uma das capas mais lindas de rock de todos os tempos. Tive quase todos os discos do Jimi. 

Tudo se foi. De vez em quando eu rodo algum vídeo no You Tube. E, veja você, os discos dele estão todos aí, a um clique de distância. Se a internet tem alguma coisa de útil, entre tanta porcaria, essa coisa é isso. Os ouvintes do futuro não vão viver a seca do tempo do vinil. E esse é mais um motivo para que se ouça Hendrix, hoje, de preferência, no volume máximo.


Friday, September 11, 2020

O francês no telhado

 

Darius Milhaud


O pintor Paul Gauguin amou a luz da Baía de Guanabara, o compositor Cole Porter adorou as luzes na noite dela e um certo Darius Milhaud certamente também quando chegou ao Rio em pleno Carnaval de 1917.  Milhaud, um dos maiores compositores eruditos do século passado, membro dos pândegos Les Six, aluno de Vincent d’Indy e professor de Dave Bruebeck, Burt Bacharach e tantos outros, quando pisou nas pedras fatigadas do cais Pharoux, era assistente do embaixador Paul Claudel.

Darius já estava acostumado com o bulício do dia-a-dia de uma grande cidade portuária: afinal, ele nascera em Marselha, em 1892. Mas o que ele encontrou aqui foi algo diferente. Afinal de contas, era o Carnaval de 1917! Enquanto fazia o trajeto do Centro até o Flamengo, tropeçou em centenas de foliões, que coloriam o caminho com seus confetes e suas buchas de alguma substância líquida a jogar nos transeuntes.

O Carnaval de 1917, como lembra Ruy Castro, foi um tríduo momesco histórico. Aquele foi o Carnaval de “Pelo Telefone”, o grande sucesso do ano. O samba, gravado no ano anterior, por Baiano, difundiu-se pelas ruas na base do boca a boca (ainda não existia rádio no Brasil). Até então, segundo ele, os festejos eram mais tocados do que cantados. Pela primeira vez, uma música era literalmente o carro-chefe das comemorações daquele fevereiro.

Ele, um compositor erudito, logo encantou-se com a alma encantadora das ruas, como diria João do Rio, mas também com seus cafés cantantes e teatros. Darius também conheceu o tango brasileiro e o maxixe nos serões do Odeon, apenas para ver Ernesto Nazareth executando suas pequenas peças que, a um só tempo, pareciam miniaturizar toda aquela brasilidade da música carioca nas 78 teclas carcomidas do piano do cinema, que seria eternizado com um chorinho de Nazareth.

Milhaud também descobriu a efervescência cultural da música clássica no Rio, das apresentações no Municipal, o Teatro Lyrico e o Liceu Francês até a Praça Tiradentes com suas revistas e as casas de partituras. O futuro autor de Saudades do Brasil transitou entre a música de rua e a erudita. E, pálido de espanto – como o soneto de Bilac, não conseguia entender por que aquela brasilidade latente na cidade não interessava aos compositores clássicos do país.  Enquanto a Europa já havia exaltado suas raízes nativas em música e despertado suas paixões nas nacionalidades musicais, como os russos, Smetana, Grieg e tantos outros, o Brasil não havia descoberto o Brasil.

Aliás, Milhaud deve ter percebido, nos dois anos em que morou no Rio de Janeiro, que no seu campo de atuação musical, havia ainda um excesso de reverência à música européia do século 19, uma música que o próprio velho continente já havia deixado para trás. Mais: no Brasil, ainda se fazia música de inspiração italiana. Os compositores brasileiros compunham em europeu italiano. Até mesmo Wagner, que os franceses como ele, chegaram a conhecer bem e rejeitar idem, parecia um desconhecido em terras brasileiras.  Enquanto a brasilidade sacolejava em maxixes furibundos nas ruas, a naftalina dos teatros ainda cheiravam às óperas de Verdi e Rossini.

Mal sabia ele que se houve compositores que iniciaram esse longo e tortuoso caminho da música nacional. Podemos lembrar de Brasílio Itiberê, com sua Sertaneja. Quem começou a mudar esse estado de coisas fora Alberto Nepomuceno.  Em 1895, apresentou uma série de canções cantadas em Português. O evento foi alvo de críticas. Muitos não aceitavam o canto lírico na língua do vate Luís Vaz de Camões. Também incentivaria o jovem Heitor Villa-Lobos em seus primeiros vôos condoreiros. Porém, estávamos em 1917 e o Brasil ainda cantava ópera em italiano.

Essa era a idéia que Darius tinha dos compositores daqui. Em seu julgamento, gente como Villa, Nepomuceno e Henrique Oswald formalmente ainda estavam na última água do Romantismo europeu.  É possível que ele não tenha tido acesso à toda a produção de Alberto Nepomuceno, da mesma forma que Milhaud pensava que aquela sonoridade das ruas do Rio era o mais puro e autêntico folclore. A verdade é que nem o autor de O Garatuja era tão romântico, e nem tudo o que ele escutava nos mafuás tratava-se, com efeito, de música folclórica, por sinal, uma classificação bastante problemática.

Até se pensarmos que a citada “Pelo Telefone” estava na fronteira entre a música de criação coletiva e a autoral. Ela, a um só tempo, podia ser as duas coisas. Milhaud chegou num momento histórico importante: o Carnaval de 1917 foi o momento em que a própria música popular se profissionalizava, aparecia a primeira sociedade de direito autoral para a produção de teatro, a SBAT, fundada por Chiquinha Gonzaga como um apelo dos compositores para o registro do que já possuía valor comercial.

Ruy Castro questiona, por exemplo, se Darius chegou a meter a mão na graxa, ou, numa perspectiva antropológica, foi a campo – ou apenas viu a banda passar, como testemunha ocular da história.  Ao que parece, em suas memórias, o compositor francês parece não ter tido contato com os ranchos carnavalescos da época – protótipos do que seriam as escolas de samba, a partir da década de 1930 ou até mesmo as famosas casas de baianas na Praça Onze, berço de “Pelo Telefone”. A questão é que, de acordo com seus relatos, Milhaud possa ter perdido de ter feito uma verdadeira etnografia. Claro que não devemos culpá-lo; ele não veio aqui para isso. Mas, em dois anos, ele não chegou a ver um João da Baiana tocando o seu prato-e-faca nos fundos da casa da Tia Ciata ou coisa parecida? Ao travar contato com Nazareth, quis conhecer de perto a sua produção musical? Ou a sua “etnografia” foi algo estilo Debret, só voyeurizou a coisa toda?

O que parece é que Darius levou do Brasil, além das recordações e saudades, algumas partituras e discos do que ele ajuntou aqui e a impressão de que aquilo que ele entendia como a paisagem musical carioca seria algo como uma amostragem do vasto folclore autóctone. E que, salvo algumas pouquíssimas exceções, existia uma distância de várias baías da Guanabara entre a produção erudita e popular e, mais do que isso, um descaso ou desinteresse da primeira pela segunda, a matéria-prima do que se poderia chamar de brasilidade. E isso iria decerto continuar por muito tempo.  Caberia a uma geração nossa equivalente à dele, Milhaud, mudar essa situação, nem que fosse à força. É o caso de Francisco Mignone. Instigado por Mário de Andrade, deixou as italianices verdianas de lado e passou a compor “em brasileiro”. E Villa-Lobos, que ele certamente viu florescer nas décadas seguintes como a figura de proa desse projeto.

 Já em Paris, Darius pegou aquelas lembranças e transformou tudo num vatapá musical, chamado Le Boeuf sur Le toit, ou O Boi no Telhado. A inspiração veio de um dobrado, gravado em disco em 1918, e de autoria de José Monteiro. Junto com esse tema, Milhaud criou uma suíte com aquelas canções e maxixes que ouviu aqui. A peça, hoje bastante conhecida, pode impressionar muitos na primeira audição, pensando tratar-se de uma peça de autoria brasileira. Mas não: ele misturou desde “Apanhei-te, Cavaquinho”, de Ernesto Nazareth até o “Corta-Jaca”, de Chiquinha Gonzaga, que fez grande sucesso na Europa e foi, como se soube depois, largamente plagiada.

O curioso é que, em seu amálgama de motivos brasileiros, Darius misturou maxixeiros “de rua”, como José Monteiro e Eduardo Souto, até peças de gosto popular criadas por pares seus, como “Galhofeira”, de Napomuceno e “Tango Brasileiro”, de Alexandre Levy. Ou seja Milhaud, em Le Boeuf sur Le toit, foi testemunha desse momento singular: a profisisonalização da música de rua, o começo do brasilianismo no campo erudito, a partir de então.

Existe a história de que Villa-Lobos teria levado Darius a um terreiro ou coisa parecida. A verdade é que o autor do Trenzinho do Caipira fez isso com Ronald de Carvalho. Quem Villa iria levar para os mafuás da Lapa e arredores seria outro estrangeiro – Leopold Stokovski. Mas esse, como se sabe, já vinha com segundas intenções. Mas essa é outra história.


Referência:

Ruy Castro. Metrópole à beira-mar: o rio moderno dos anos 20. Cia das Letras, 2019.  



Wednesday, September 02, 2020

Sopa jamaicana

 

Capa do Goat Heads Soup, que será relançado dia 4



Os Rolling Stones planejam comemorar a passagem do lançamento original do álbum Goat Head Soup (31 de agosto de 1973) com um box com material inédito no próximo dia 4. A estratégia de reedições de discos recheados de memorabilia e sobras de estúdio, além de ser uma boa oportunidade para colecionadores e fãs, serve para revalidar os direitos autorais desse material, enquanto hoje, em tempos de música digital, torna-se uma alternativa para recolocar o antigo acervo em catálogo. Acervo esse que, se olharmos em retrospectiva, tanto no caso da banda quanto de outros artistas, também serve para renovar seus respectivos públicos. É provavel que eles jamais imaginassem, na época da produção, que seus discos continuassem despertando a curiosidade de novos ouvintes quase meio século depois. O digital em tempos de streaming acabou servindo para que o antigo se transformasse em novo.

O relançamento poderia servir para que seja possível olhar para a discografia dos Stones nos anos 70 de forma diferente da maneira como era feita antes. Falo por experiência própria: quando comecei muinha coleção do grupo, dizia-se que a grande fase deles fora a com Brian Jones. A despeito da morte trágica, que o mitificou através dos tempos, e também por causa disso, não é preciso dizer que existe, por parte dos fãs, um carinho todo especial quanto ao primeiro capítulo dos Stones. Foi ali que a banda se fez. Porém, essa construção se fez, de certa forma, em detrimento do resto da produção do quinteto (agora quarteto). O que eu quero dizer é que é notório que existe uma má vontade com a maior parte da discografia dos Stones: a título de periodização, eu poderia resumir a coisa. Primeira fase (1963-1968); segunda fase (1968-1972); terceira fase (1973-1981); quarta fase (anos 80) e, vá lá, quinta fase (de 1994 em diante). É uma pediodização arbitrária, mas está aqui apenas como artifício didático.

Assim, as duas primeiras fases seriam o zênite: pega o começo e a fase áurea, entre o Beggars Banquet e o Exile on Main Street. E o resto? O rsesto seria o resto, ou, por outra, poderia ser resumida a coletâneas, algumas muito boas (e os Stones são mestres em atolar os fãs com isso), com a Jump Back ou a Fourty Licks. Outras hoje superadas, como a Made in the Shade.

Disse tudo isso não porque eu gostaria que as pessoas tivessem mais paciência com o resto da obra da banda de Mick e Keith. Mas, sim, porque eu acho que o grande momento dos Stones está depois da fase considerada clássica. Óbvio que a segunda ou terceira ou quarta não existiria sem a primeira. E nem vou fazer história contrafactual de imaginar como teria sido o quinteto levando Brian nas costas pelo resto da vida, fazendo quem sabe muito menos que o Ian Stewart fez vivo ou morto pelos Rolling Stones. Maluco, eu? Dizer que Stu foi mais importante que o Brian no cômputo geral é uma tese que eu abraço. Acho, inclusive, que toda aquela multi-instrumentalidade do Brian nos Stones poderia facilmente ser suprida em qualquer esquina de Los Angeles nos anos 60. Se não fosse o Brian, poderia ser o Barney Kassel ou o Leon Russell ou qualquer reserva da turma do Wrecking Crew. Mas também não é isso o que eu queria dizer.  

Eu poderia dizer que, em matéria de periodicidade, poderia ser dividido de outra forma: a fase de palco e a fase de estúdio. Como é isso? Acho que tem uma fase dos Stones, a do Andrew Oldham e a do Jimmy Miller, onde eles estavam do lado de fora da sala de controle. Eles provavelmente trabalhavam em grupo os arranjos das novas músicas autorais, mas a mixagem, produção e masterização era coisa da turma da mesa. Até mesmo ouvindo os primeiros elepês, a impressão que se tem é que eles reproduziam nos microfones aquilo que eles faziam ao vivo. Os três ou quatro primeiros discos são eles ao vivo. Quando eles começaram a gravar 100% material próprio, a coisa ficou diferente. As músicas nasciam em estúdio. Isso foi um problema, primeiro porque os Stones não metiam a mão na cumbuca e segundo porque Andrew não era o George Martin nem o Phil Spector.

A produção do Aftermath é praticamente do dave Hassinger e da turma da RCA. Quando veio o Between the Buttons, deu pra sentir, pelo menos, nas palavras de Mick Jagger, que a mixagem final não ficou a contento. O disco no estéreo parece mal enfeixado e o álbum não parece redondinho como o Aftermath. O primeiro momento onde eles põem as mãos na graxa é do Satanic Majesties, mas aí não valeu. O começo do aprendizado veio com a fase Jimmy Miller – é a onde aparecem os grandes discos, como o Let it Bleed, e cujo paroxismo é o Exile. Note que, nesse meio tempo, os Stones começaram arrumando a casa nas canções, depois mudaram de casa, fundaram um selo, passaram a administrar os direitos autorais, assumiram editora, gravadora, esquema de excursões, faltava apenas uma coisa: a banda passar a produzir os próprios discos. E isso se deu justamente na meca dos produtores mais quentes dos anos 70, você sabe, na Jamaica.

Coincidência ou não – afinal, os Stones estavam atirando para todo o lado, como piratas, fugindo do fisco britãnico como o nosferatu da luz do dia. Nos anos 70, eles e mais uma pá de gente, de escritores a atores, produtores e músicos, promoveram uma verdadeira diáspora para não pagar imposto a Sua Majestade Britânica. Foi um negócio do tipo o último a sair apaga a luz do aeroporto. Os Stones viraram corsários, ora morando na Suíça, ora nos Estados Unidos, ora gravando em Munique, ora na França, até que, depois de não conseguirem visas nos Estados Unidos, foram parar numa ex-colônia, a Jamaica de Coxone Dodd, dos Waillers, do rocksteady, dos sound systems, Duke Reid, e isso justamente numa época em que o caribe estava gamhando visibilidade em toda a parte. Os jamaicanos passaram por 68 (Keith teve lá no ano seguinte), presenciaram o nascimento da consciência negra e o crescimento do rastafarismo com suas lembranças da África, como disse Stuart Hall. As coisas haviam mudado, mas a música, não. Pelo contrário, foi ficando cada vez melhor à medida em que ganhava o mundo. Foi nesse contexto que os Stones aterrisaram lá.

Se a troupe que ficou em Nelicôte acabou resumindo-se às experimentações musicais entre paredes nas gravações do Exile, segundo Keith, na Jamaica, a integração com músicos de lá foi total: Richards fez quase uma pseudoetnografia de sua passagem lá, e que renderia certamente um livro sobre sua relação com a música jamaicana e a produção do Goat Head Soup, que é um dos meus discos preferidos deles, se não o meu preferido. Em alguma entrevista, Mick fala que não gostou tanto do resultado do Exile. Disse que o álbum, em alguns momentos, ficou fora de foco, e que ele não gostou de muita coisa que gravou ali. E, de fato, apesar de toda a mitificação do Exile, afinal, o disco é considerado o grande momento dos Rolling Stones e o resumo daquilo que eles desenvolviam desde “Jumpin’ Jack Flash”, o decálogo do rock segundo Jagger, Richards e companhia limitada. Eu diria quase o mesmo. Mas o Exile é o que é.

Seria natural que o trabalho imediatamente posterior deles fosse ser diferente: afinal de contas, eles estavam, desde o final dos anos 60, sob influência do country blues, de Gram Parsons e arredores. No começo dos anos 70, estavam longe da cena inglesa, que se dividia entre o progressivo e o glam, enquanto o funk soul (Curtis Mayfield, Temptations da fase Cloud Nine) era o ritmo mais pop na américa. Os Stones, ao lançarem o Exile, certamente encerraram aquele ciclo para, num segundo momento, correr atrás do atraso. Por isso que, talvez, esse fosse o momento da integração com Billy Preston em detrimento de Stu, e a opção por baladas, como “Angie”, e por canções mais fanqueadas, como “Fingerprint File”. Claro que essa mudança não iria pasar incólume por crítica e por parte do público, que não os perdoou até hoje.

Mas, no fim das contas, a passagem pela Jamaica foi importante para a independência dos Stones como produtores. No momento da  troca da guarda, eles finalmente controlam todo o esquema. Tudo o que eles precisavam aprender, foi durante o período de Miller na produção e, coincidentemente ou não, na terra dos grandes produtores, gente como Reid e Dodd, que vivia todos os lados da música, como ouvintes, estavam antenados até nas blasters que mandavam a música ianque para o Caribe; como músicos, sabiam como se portar em estúdio, afinar instrumentos e dispô-los; e como produtores, eram verdadeiros alquimistas da arte pela arte, e muitas vezes fazendo milagre com equipamentos defasados. Na música jamaicana, desde o mento ou antes, todas as etapas estavam muito próximas, tudo andava junto. Se foi ou não coincidência, a verdade é que os Stones, quando fizeram o Goat Head Soup, estavam no lugar certo e no momento certo. A partir do Goat, eles eram músicos de estúdio e de palco para todo e sempre, amém.

No final de O Sol, a Lua e os Rolling Stones, Rob Cohen retoma a velha questão: quando foi que os Stones acabaram? Ele relembra a rusga dos anos 80, que talvez só não provocou a separação por causa da morte do Ian Stwart. Dizem as más línguas (e Rob Cohen está entre elas) que a banda permaneceu porque a carreira solo de Mick Jagger foi uma promessa que não se cumpriu.  Outros dizem que o grupo acabou quando Brian Jones morreu. Outros, quando eles largaram os covers. Uns dizem que o começo do fim está nos anos 70, quando a banda se aburguesou. Ethan Russell diz que os Stones acabaram em Altamont. Cohen entende que Steel Wheels, o primeiro depois da rusga oitentista, nasceu datado e morto; contudo, vê pontos altos em discos como Some Girls e Tatoo You. Junto com a maioria dos fãs roxos, ele faz coro à teoria da fase clássica, que compreende a parceria com o produtor Jimmy Miller, que vai de 1968 até 1972, ou seja, de “Jumpin’ Jack Flash” até o lançamento do incensado Exile on Main Street. No fim, Rob bate o martelo: “Some Girls foi o último movimento da banda antes de ela se acomodar na complacência”.

Hoje de manhã eu estava escutando o Love Beach (1978), do Emerson, Lake and Palmer e é notória a rejeição dos fãs do trio com relação à este álbum que, como se sabe, foi o canto de cisne deles. E talvez tenha sido a maneira mais funesta de encerrar uma carreira memorável como a do ELP no território do progressivo: com um disco onde, em plena era da Discotheque, eles pareçam emular a imagem dos Bee Gees, os reis do disco naquele fim de década. Então eu fiquei pensando: será que Emerson, Lake and Palmer também, naquelas alturas do campeonato, “se acomodaram na complacência”? Ou será que os tempos simplesmente mudaram e, no caso do rock progressivo, mudou rápido demais? Ou será que uma banda com tanta visibilidade e história como os Stones é que sejam obrigadas a prestas contas de sua integridade estética. Os tempos que mudaram para o ELP, para o Yes ou para o Jethro Tull também não mudaram para os Stones também?

A questão é que essa hipótese do ponto de corte da decadência stoniana é uma discussão que estará sempre em disputa. Sempre existirão fãs que irão defender qualquer uma das possibilidades apontadas acima. O Keith, no seu Vida, diz que quando eles começaram, eles sabiam que o normal no mercado era que um artista durasse, no máximo, dois anos. Ou seja, eles sabiam que o prazo de validade no mercado da música é curto. E a morte dos Stones foi decretada há quase meio século. O que seria menos funesto, acabar com tantos outros grupos, seja por fracasso ou por disemsão interna de seus integrantes, ou acabar “se acomodando na complacência”? A questão, eu volto aqui, é que ninguém quer dar razão aos Stones. Analisá-los apenas pela produção fonográfica deles puramente, sem relacionar com todo o contexto da banda, da época, da música da época, é tipo ser um eterno jurado de show de calouros, e querer que gente como os Stones tenham que ser nota 10 sempre. Também é verdade que, em nome da nova moda, eles estiveram muitas vezes tão longe do rock, que eles foram rencontrar, de certa forma, quando finalmente voltaram aos temas da fase clássica, a partir do Stripped, quando, ao que parece, não era mais fora de moda ser roqueiro.

A questão de Altamont é boa, porque os Stones nunca surfaram no flower power e, involuntariamente pagaram um preço alto ao fechar esse capítulo da história do rock. Mas foi justamente nesse momento que eles se fizeram como produto do rock, e justamente num momento de mudanças. Os Stones viraram empresa, com selo, com relações públicas, começaram a fazer dinheiro trabalhando fora da Inglaterra,  montrando bases estratégicas na Suíça e nas Bahamas (e gravando em muitos casos a partir de um estúdio móvel e que, como se sabe, alugavam a outros artistas) e foram os arautos da era do rock de arena. Quando os anos 70 terminaram, eles tinham uma marca consolidada, haviam sobrevivido aos pequenos e grandes perdas e revezes, a Altamont, ao fim do sonho dos anos 60, às mudanças no mundo da música, o progressivo, o glam, o funk, o disco e o punk e, talvez o maior desafio de todos, atravessar incólumes os famigerados anos 80 que, à guisa de uma teoria da conspiração maluca ou o que quer que o seja, com sua ética do presenteísmo, fizeram de tudo para acabar com a cultura e com os ídolos do rock do passado. 

Muitos, ainda hoje, dizem que o rock morreu. Se ele tivesse realmente morrido, teria morrido com os Rolling Stones – se eles tivessem ficando pelo caminho. Mas eles cruzaram todos os rubicões. Onde está a acomodação na complacência?  Se um garoto hoje pega numa guitarra hoje e resolve tocar rock, certamente irá passar por eles, se não pegou a guitarra por causa deles.  Os Stones são, em parte os curadores do que nós podemos chamar de rock hoje, eles fazem parte da história, da cultura, do imaginário; como ritual, o rock se renova e se presentifica a cada vez que eles retornam aos palcos. Quem entende os Stones a partir do pontual não é capaz de entendê-los como fenômeno a partir da perspectiva da longa duração dos Stones como um fato cultural, não como uma novela com mocinhos, bandidos, um clímax e um grande anticlímax, a grande tese de buteco que paira sobre a trajetória do grupo, fundado em 1962, ou seja, quando já haviam decretado a morte do rock.

Do ponto-de-vista musical, pode-se questionar a qualidade das produções posteriores à (chamada) fase clássica. Mas, se formos contextualizar, como uma banda na ativa numa época em que tudo mudava, os Stones poderiam ser acusados de acomodação se lançassem um Exile on Main Street por ano. Alguns vão dizer: “seria ótimo”. Pois bem, mas talvez foi por essa mesma razão que o Emerson, Lake and Palmer não lançaram um Tarkus por ano também. Eles não poderiam se acomodar, nem por uma questão de atitude, e nem por uma questão de mercado. Senão, era melhor ter ficado desde 1972 naquela mansão em Nelicôte, fazendo rock na garagem. Além do mais, para quem sabia que não iria durar dois anos e meio e começou como segunda ou terceira atração em turnês furrecas pelo interior dos Estados Unidos, durar dez anos e ser capaz de ter selo próprio e agendar excusões intercontinentais temáticas e gerenciar um circo de gente, desde a turma da promoção até a da graxa, e continuar fazendo esse circo funcionar pelas décadas seguintes, isso não é sinal de acomodação. Claro, como diz Rob Cohen, em algum momento na história, os Stones deixaram de ser interessantes. Mas isso é da vida. Inclusive, poderíamos dizer que essa exigência de ser interessante o tempo todo foi a ruína de alguém como Elvis Presley, que pagou o preço de não viver sequer para poder olhar para trás.

Segundo o biógrafo de Mick, Philip Norman, a opção pela jamaica seria uma forma de atender tanto à questões de Keith quanto às de Jagger.

No final de novembro de 1972, ele estava por conta própria novamente quando os Stones se reuniram para iniciar um novo álbum no Dynamic Studios na Jamaica. A escolha do local foi ditada pela notoriedade cada vez maior de Keith como usuário de drogas: além da Suíça — que ele já estava começando a achar insuportavelmente sem graça — nenhum outro país, a não ser a Jamaica, lhe concederia um visto. Mick, além disso, decidira que o seguimento de Exile on main street não deveria ser apenas “outra coleção de canções de rock” e esperava que o berço do reggae desse à banda uma nova direção. Uma atração secundária era que, graças a seu passado colonial, a ilha era tão obcecada por críquete quanto a Grã-Bretanha, então ele seria capaz de assistir ao jogo no meio do inverno para sua total alegria. 

O processo de gravação foi bem diverso do álbum anterior. Ao invés de levar meses gravando bases num estúdio móvel, sem produtor e contando com o improviso e quase sem a totalidade dos músicos, para depois enfeixar tudo em sessões de overdub e gravação de vocais, nos Estados Unidos, os Stones optaram por resumir o trabalho de estúdio.

A despeito do que diz Norman, Mick falou à Rolling Stone que, justamente pelo fato de gravar fora da Inglaterra, a vantagem residiria justamente no fato de não haver tempo para distrações. Porém, segundo o depoimento de Richards em Vida, o guitarrista praticamente encontrou o paraíso terreal no novo mundo:

Em 1972, o lugar estava estourando. Os Wailers estavam assinando contrato com a Island Records. Marley estava aparecendo. Jimmy Cliff estava nos cinemas comThe harder they come. Em Saint Ann’s Bay, o público atirava na tela enquanto os créditos passavam, numa explosão familiar (para mim) de comportamento rebelde. A tela já estava furada — talvez por causa dos spaghetti western, que eram a moda naquela época. Havia muita gente com armas de fogo em Kingston. A cidade estava tomada por uma forma exótica de energia, um sentimento muito quente, uma boa parte do qual vinha do tristemente famoso Dynamic Sounds de Byron Lee. Era construído como uma fortaleza, com uma cerca branca que parecia uma paliçada, como aparece no filme. A faixa “The harder they come” foi gravada por Jimmy Cliff na mesma sala que usamos para gravar parte de Goats Head Soup, com o mesmo engenheiro, Mikey Chung. Um ótimo estúdio de quatro canais. Eles sabiam exatamente qual era o melhor lugar para a bateria e, para prová-lo, bang bang, pregaram o tamborete no chão.

Keith disse que eles estavam vazios depois do Exile, mas a sinergia dentro do estúdio e a filosofia de trabalhar bastante em pouco tempo foi fecunda: “Havia um ano não entrávamos em um estúdio. Mas tivemos algumas ideias boas, “Coming down again”, “Angie”, “Starfucker”, “Heartbreaker”. Gostei muito de fazer esse álbum. Nossa maneira de fazer as coisas foi mudando enquanto o preparávamos”, diz. A verdade é que, a despeito de ser um disco curto – e ter uma faixa originalmente gravada no começo dos anos 70, “Silver Train”, as sessões do Gost foram produtivas o suficiente para deixar muita coisa de fora. Isso explica o lançamento da caixa especial este ano. Fora os outtakes, faixas como “Through the Lonely Nights” e “Waiting on a Friend” seriam lançadas ao longo da década, a primeira como lado B de “It’s only rock’n roll” e a última como música de trabalho do Tatoo You. Além disso, "Short and Curlies" seria uma primeira influência explícita de reggae que nasceu das sessões do álbum, e que viria à lume apenas em 1974. Estas, por sinal, parecem ter mais relação com a produção do Goat do que as canções que os Stones lançaram recentemente como sobras de estúdio do disco ("Criss Cross"), e que mais parecem material dos tempos do Exile. 

Mesmo que Philip Norman diga que os Stones foram parar na Jamaica por não terem onde aterrisar naquele momento, a verdade é que Kingston era porto de muita gente que estava fazendo música naqueles tempos. Paul Simon gravou lá “Mother and child reunion”. Por causa da fama de Byron, o seu estúdio estava ganhando reputação parecida com a do Muscle Shoals como base independente para produção de discos. Surfando nesse clima favorável, Lee reformou o Dynamic justamente no momento em que Mick e Keith chegaram: ele gastou uma pequena fortuna para reequipar as instalações, adquirindo, a pedido da banda, um Hammond, um pianoforte de concerto (que é ouvido em “Angie”), além de fones de ouvido e microfones, a pedido de Jagger.

Goat Head Soup está aparentemente fadado como o momento em que eles se afastam de sua fase áurea. Como é possível ver nesta comunicação, eu discordo dessa visão, acho que é um olhar retrospectivo e descontextualizado e que não leva em consideração mudanças na música ao longo dos anos 70. 

Se pensarmos bem, é como se, com o Goat Head Soup, os Stones definifivamente entrassem nos anos 70. Um disco como o Exile, com seu apelo ao primitivismo do rock básico, ainda estava servindo a partir do cardápio da renascença do rock stoniano que nasceu no final dos anos 60: é possível pensar aquela que é chamada de fase clássica do grupo como o momento onde eles estabeleceram-se como a banda de rock. Existe um espírito que transita aqueles álbuns, que vão e vêm, de tal arte que existem fortes pontos de contato entre eles: a música de um poderia muito bem estar em outro. Com o Goat, ao entrar nos 70, os Stones interpolam as tendências da época, as baladas, o funk com seus sintetizadores e o glam com seu filtro pop em cima do rock básico.   

Diria que ele marca a fase em que os Stones passaram a ser julgados mais pelos que eles foram do que pelo que eles queriam ser, isto é, uma banda na ativa - ou julgados mais em relação à eles mesmos do que a eles com relação ao contexto, essa é a régua pelo qual eles, a partir dali, e o Goat, sempre são medidos. Stephen Thomas, a despeito de reclamar do aburguesamento estético dos Stones, levanta uma questão interessante: enquanto Mick se transforma num relações públicas de si mesmo, Richards parece perfazer o caminho do herói às avessas, cada vez mais associado à personalidade desviante do roqueiro decadente que é tão caro ao imaginário do gênero. No entanto, o que ele entende como algo aparentemente negativo, eu vejo como a síntese perfeita do que são os Stones, nesse mesmo imaginário, hoje e sempre. Mas, mais do que isso, e essa é uma questão que pode ser mais abordada – eu paro por aqui – é que, pela primeira vê em diante, os Stones passaram a administrar a sua própria produção musical a partir do Goat Head Soup - um grande disco

Ademais, acho fascinante o fato de que os Stones, quando entraram nos anos 70, eram uma banda que havia perdido os direitos dos primeiros discos para livrarem-se do antigo empresário. Fundaram um selo próprio, e tiveram que fugir da Inglaterra para não pagar taxas escorchantes para o fisco britânico. E também foram obrigados a isso não por mero capricho mas, na condição financeira em que eles se encontravam à época, eles iriam falir, segundo previsões do seu empresário, em pouco tempo.  E começaram um processo de gravação de discos e de produção de turnês a partir de outros lugares fora do seu país de origem. Ou seja, nos anos 70, eles começam do zero. Eles têm que reafirmar a sua reputação como banda de rock, banda de palco, e de turnês agora mundiais, em shows em arenas. Eles não eram mais aqueles amadores dos anos 60, e mais do que isso, eram os seus próprios empresários. Os Stones viveram, por essas circunstâncias, como corsários pelo mundo afora, gravando ora na Costa Zaul, ora na Alemanha, ora nos Estados Unidos, e ora na Jamaica, como no caso do Goat Head Soup. Enquanto a crítica entendia que os Stones se acomodavam, na verdade, eles estavam reafirmando sua marca e, mais o que isso, transformando o rock, no âmbito do showbiz, num fértil modelo de negócios, algo que segue até hoje, mesmo que o rock já atualmente seja um estilo musical coadjuvante – embora os “acomodados” Stones ainda detenham o bastão de maior banda de rock em atividade, para todo o sempre, amém.  

SOBRE A CAIXA de 2020. As canções "novas", como "Scarlet", ao que parece, foram gravadas apos as sessões da Jamaica, sendo mais próximas das graações do elep}e seguinte. Quando aos outtakes, é notável, ao ouvir a primeira gravação de "Hide Your Love", os Stones ainda estavam lidando com cacoetes do Exile: bateria seca, slide guitar, etc. Comparando o outtake com a versão final, vê-se que a proposta estética do Goat estava em aderir à musicalidade oleosa do funk dos anos 70, com wah-wahs, pianets a la Stevie Wonder e chipôs suingantes. Nada mais de "Rip This Joint". Ou, como disse Mike Edison no livro Sympathy for the Drummer: "se as melhores partes do Exile soavam black, o Goat Head Soup soava blaxplotation". 


Referências

Keith Richards. Vida. Globo, 2012. 

Phillp Norman. Mick Jagger. Companhia das Letras, 2012.

Rob Cohen. O Sol, a Lua e os Rolling Stones. Zahar, 2017.  



Tuesday, September 01, 2020

Fita ou quando a música tinha dois lados

 


Segundo os almanaques, num dia como hoje, em 1963, na Alemanha, a o cassete foi apresentado ao grande público. O formato, na verdade, segundo consta, ainda era bastante incipiente em seus inícios, mas no final dos anos 70, já era popular o suficiente para que praticamente suplantasse o long-play em vendas já na década seguinte. As grandes vantagens da fita eram a portabilidade e a possibilidade de gravação caseira ou a pirataria de arquivos de áudio. O CD, que morreu também, era a promessa da síntese do long-play e da fita, dada a sua respectiva portabilidade. Contudo, a vida útil do disco digital foi menor que a do ciclo do vinil e do cassete, que teve uma existência maior, provavelmente por causa da pirataria de camelô. Quando o CD foi parar na calçada, aí foi a vez da fita partir dessa para melhor.  

 A portabilidade serviu para popularizar as fitas. Primeiro nos carros e, depois, com o walkman. Hoje parece absurdo, mas a gente comprava álbuns em formato cassete nas lojas, e colecionava discos em fita. Eu, por exemplo, tinha a coleção completa do Dire Straits em fita. Mas a verdade é que, para um colecionador que se quer colecionador, a grande mídia era o vinil. O disco a gente mostrava para os amigos, e tinha orgulho de mostrar a coleção emparedada em decks e estantes. A fita? Bem, a fita era legal, em alguns casos, tinha qualidade de som melhor que o disco (como no caso dos Beatles, por exemplo), mas ter uma fita original era como não ter nada. Afinal, era possível fazer cópias caseiras. O disco era simbolicamente a prova de que você tinha a gravação- matriz.

Quando à possibilidade de gravação caseira, a fita teve tudo a ver com a época de sua grande popularidade. O seu auge, principalmente no Brasil, ocorreu quando as FMs se segmentavam, mais precisamente em busca do público jovem. O FM jovem puxou as vendas de walkman, e a venda de walkman colocou as emissoras de rock e pop no seu auge em matéria de difusão de música. Seria possível dizer que eles são a cara dos anos 80. Quando eu era piá, como eu falei num post ali embaixo, eu escutava radinho de pilha. Ora, radinhos de pilha em geral não tinham FM.

O walkman foi o rádio que popularizou o FM. Como diz Renato Ortiz, analisando o mercado fonográfico, o mercado de venda de discos se desenvolve em função do mercado de aparelhos de reprodução sonora. A grande corrida do ouro foi nos anos 80: entre  1967 e 1980, diz ele, a venda de toca-discos no Brasil cresceu em 813%. E o rádio,e a tevê, naqueles tempos pré-internet eram a plataforma de lançamento de sucessos. O FM se fez nos anos 80 e tudo o que a gente poderia pensar em matéria de música passava pelo rádio musical, algo que não acontece hoje, a não ser em algumas bolhas em mercados musicais de nicho.

Foi no final já dos anos 80 que as fábricas de som começaram a investir cada vez mais em systems mais simples, mirando um público menos audiófilo, como o dos Garrard-Gradiente anos 70. A grande época do FM foi a da segunda metade dos anos 80 até o final dos anos 90. E a fita tinha uma importância grande não apenas para os ouvintes como para quem fazia rádio.

Para os ouvintes, ter um rádio-gravador, toca-discos ou walkman com gravador, era a possibilidade de gravar a programação musical das rádios, principalmente a da madrugada, e deixar para tocar como se fosse uma coletânea. E havia a grande moda da época, que era o hábito de gravar as música preferidas direto da programação ao vivo. Das duas, uma: ou a gente gravava o horário nobre das emissoras como a Atlântida, Universal FM ou a Cidade, para copiar os sucessos da semana ou as mais pedidas ou então ligava para o locutor ou o pessoal da programação para pedir aquela canção ou justamente uma faixa que a gente não tivesse em casa e eles em geral tinham no acervo.

Com o tempo, a gente sabia qual a rádio que era mais colaborativa e paciente conosco nessa tarefa de gincana, qual era a que tinha o acervo mais “quente” ou aquela que a gente sabia que só tocava jabá (do bem ou do mal), e vivia restrita aos promos, aos discos pagos para rodar na programação todo dia. Nesse caso, havia aquela distinção de rádios jovens, que era algo possível naqueles tempos – anos 80 ou 90, que era a entre as emissoras comerciais e as alternativas.

Nas alternativas, sempre rolava algum programa temático, onde eles tocavam um disco clássico na íntegra, um bloco com um lançamento mas executando as lados B para os ouvintes ou, melhor ainda, alguma novidade de fora que chegava em fita através de um piloto ou comissário ou turista. Como se sabe, existiu por muito tempo uma defasagem entre os lançamentos de discos no exterior e, depois, aqui no Brasil.

Naqueles tempos, quando a internet era mal e mal usada apenas para fins militares, conseguir uma cópia de algo como os primeiros discos do Cure (isso no começo dos anos 80, antes deles estourarem de fato e, inclusive, virem tocar no Brasil e no auge), furando tanto a exclusividade das gravadoras daqui quanto a ditadura massiva das grandes rádios comerciais, a fita foi um expediente que permitia esses arroubos, esses pequenos levantes e, claro, levavam os ouvintes à loucura.

Eu lembro de ter caixas e mais caixas de sapatos de fitas, onde eu separava as que eu usava para gravar coisas do rádio e as que eu usava para copiar discos, em geral raridades e pirataria. Mais tarde, com a moda do double deck em systems e em toca-discos, a mania de cópia de discos chegou ao paroxismo. Isso foi mais ou menos na mesma época da popularização do CD no Brasil, a partir de 1989. O auge do compact disc iria perfazer praticamente uma década firme. Nesse meio tempo, a fita foi perdendo força nas lojas. Não lembro de quando, mas, quando o CD virou um artigo totalmente popular, ainda mais na época do 1.99, a fita perdeu espaço, restando ainda, por algum tempo, nos camelôs.

Meu último contato com cassete foi quando eu fiz estágio na Feplam como operador de rádio na Educadora 1340. Os programas, que eram produzidos e apresentados pelos alunos de áudio e de locução da fundação, eram todos gravados em fitas. Era mais prático gravar nesse formato do que em rolo. Isso foi em 1994, ou seja, mal estava-se introduzindo nas grandes rádios o expediente do registro em DAT. Mesmo quando eu fazia programas na faculdade, a gente gravava em fita. No curso de operador, a gente aprendia a manusear rolo, mas já era também uma mídia em desuso, apesar de ser bastante usada, principalmente na Guaíba, que usava o rolo para marcar o sinal das horas. Hoje, toda aquela modelo de operação mudou totalmente. Eu guardei várias fitas dos meus tempos de operação na 1340 AM mas, com as mudanças e, pelo fato de eu já não contar mais com toca-fitas, acabei colocando tudo fora. Junto foram fitas que eram históricas, coisas de rádio que eu havia gravado há anos, e que eu insistia em guardar comigo.

É pena, pois, o que era mera brincadeira (gravar programação de rádio) hoje representa uma fonte de pesquisa para se estudar a história do rádio no Brasil. Diferentemente de mim, muita gente guardou muita coisa dos anos 80, dos anos 70, e essas fitas, que originalmente permaneceram nas coleções das pessoas por uma questão afetiva, podem hoje nos permitir conhecer como foi o rádio brasileiro no passado, uma memória que, por sinal, é tão mal tratada e aviltada.


Referência

Renato Ortiz. A Moderna tradição brasileira - Cultura brasileira e indústria cultural. São Paulo: Brasiliense, 1988.