Tuesday, April 28, 2020

O Op. 67 e seus desdobramentos

Beethoven em 1803




Beethoven é lembrado no mundo na ocasião do tricentenário do seu nascimento. O que é importante frisar às pessoas em geral é o porquê de sua relevância e de sua permanência. O discurso musical em Beethoven apontou para um outro rumo. 

Até então, como salienta Bruno Kiefer, apesar das mudanças ocorridas antes dele, havia um pensamento de que a substância desse discurso era imutável. Como ele diz, comparado com o Mozart das sonatas, se eu discurso era eivado de idéias complexas, esse complexo permanecia como tal. Beethoven mudaria isso. Ao mesmo tempo, se formos cotejar a produção do classicismo do século XVIII, vemos que, em Haydn e o citado Mozart, ela era prolífica e fundeada nesse caráter imutável do discurso. 

O que é dito no começo é desdobrado, desenvolvido, mas sempre de forma a que o discurso não se percae possa voltar ao princípio. Beethoven muda isso em dois aspectos. Um deles é o fato de que a massa sonora, a forma de reelaboração do discurso musical e a produção ganha mais complexidade, onde nada é impossível. Ah, não dá? Vamos tentar.  

Outro que poderia-se lembrar, segundo Kiefer, é um método dialético. Em Bach, diz ele, não existe motivo, mas, sim, fragmentos melódicos que são usados como elementos de construção. Ele salienta o sol-sol si bemol da sinfonia em dó menor, que é tão conhecida, mas que, acredito, se perdeu em parte na repetição e audição popular. O tcham-tcham-tcham-tcham tem muito de rítmico em comparação ao melódico e, como diz Kiefer, Beethoven faz uso de ambigüidades do ponto de vista harmônico. 

Ele abre caminho para toda a sorte de potencialidades em sua música, algo que não havia antes dessa forma. Por isso que poderíamos pensar em termos de audição comum por que Vivaldi é chamado de compositor que escreveu 600 vezes o mesmo concerto. Tudo é lógico no ilógico do “barroco” (uso a expressão a contragosto, porque é difícil pensar em termos de barroco luterano, mas isso é assunto para outro post), enquanto, na aurora do romantismo musical (Beethoven é, a despeito da sua revolução, um compositor de transição), ele coloca outra mobília, muito mais arrojada, no quarto-e-sala da música clássica. 

Para tanto, também, basta ouvir diversas vezes as famosas sinfonias nº 40 e 41de Mozart, depois, se possível, as mais de cem de Haydn, para ver que há alguma coisa a mais ali. Beethoven é mais rude, mais imperioso, mais espaçoso. Não existem leis imutáveis, como diz Bruno Kiefer:”as figuras [no barroco] já encerravam em si toda a obra (...) o motivo [beethoviniano] não permite fazer prever a obra”, diz ele. Não existe nada mais lógico e afirmativo das leis eternas do discurso como nas fugas de Bach: “o tema já é a fuga”, salienta. A elaboração consistia apenas num alargamento ou o desenvolvimento de algo posto.

Na Quinta (op. 67) temos, diz ele, uma profissão de fé do discurso do compositor de Bonn. O primeiro motivo, a tese, o segundo, o contrário, exigido pelo primeiro tema. Da sua tensão, nasce a síntese. Claro que essa “simplicidade” não é constituída nessa tensão, nem totalmente nessa dialética, diz ele. Mas é indicativo do que o autor da Sonata so Luar fez, do caminho que ele concebeu e trilhou, e do legado que ele deixou: toda a música do romantismo em diante é tributária dessas mudanças empreendidas por Beethoven, por exemplo. Não poderíamos pensar na Sinfonia Fantástica (composta por Berlioz em 1830) sem Beethoven. Nem em Liszt, nem em Korsakov, nem em Wagner, nem em Bruckner, muito menos em Brahms. 

Nem todo o desenvolvimento da música alemã, tanto para o sentido da conservação desses valores musicais quanto da sua superação, até o completo  esvanecimento com Mahler e o Modernismo. Era como se, antes, os compositores estivessem sempre cientes das regras da arte, das réguas e lentes para se escrever música. Beethoven bagunça o coreto. Desde a sua primeira sinfonia, ele acaba com o princípio do encadeamento começo, desenvolvimento (tensão)  e fim. Aqui, ele bota a tensão no começo. Se você para de escutar depois do primeiro minuto, parece que ficou algo parado no ar.

Quando ele liga o segundo acorde no primeiro, ele tenta afrouxar essa tensão mas o movimento ainda parece não ter começado. Só no allegro com brio é que sentimos os pés no chão, o que seria, a rigor, o começo de uma sinfonia “nas regras da arte”.

Beethoven provoca o ouvinte, como se ele fosse um terceiro narrador que ri da reação de quem ouve e presta atenção no que seria o discurso musical. Ele se diverte o tempo todo com essas gags. O começo é uma exitação com a platéia, onde ele enche o discurso de tensão e relaxamentos,  não é começo-e-fim, é tática de guerrilha e de provocação.

A Quinta, como diz Kiefer, ele joga no ouvinte as quatro notas, notas do destino. O primeiro movimento é tensão contínua. “Toda a primeira parte desse movimento é construída sobre o motivo inicial que gera ali blocos, unidades maiores, de caráter ora misterioso, ora afirmador ou afirmativo”.

Acho que é importante observar como o autor tenta explicar a música, ou o discurso musical, que e abstrato, de forma como seja possível cheirá-la, apalpá-la, farejá-la aos ouvidos do senso comum. É, ao mesmo tempo, um exercício de puro raciocínio, ao tentar entender a seqüência de motivos e, ao mesmo tempo, há a possibilidade abstrair dentro do que Beethoven queria dizer. 

A música é palpável: ela sai do rigor da partitura e parece falar mais dele e mais de nós mesmos. Nesse sentido, na Quinta, Beethoven parece pôr um bode na sala, o destino bate a porta e não se sabe o que vai acontecer. Nada vai ser como antes, o jeito é pegar o destino, olhá-lo face a face é levá-lo a cabresto até a última nota do último movimento, movimento de superação, movimento de júbilo, movimento de vitória.

É nesse não saber o que vai acontecer que reside a novidade de Beethoven, principalmente nas sinfonias. Se antes o material temático era estática, com idéias contrastantes e não antagônicas em sentido dialético; no op. 67,  a Quinta, ele joga o ouvinte de um lado para outro: “não sabemos ainda o que vai acontecer”. No segundo movimento, Haydn iria desenvolver o material temático; Beethoven bate a carteira e sai correndo porta afora. 

Outro exemplo é o último movimento da 2º sinfonia, que é uma verdadeira festa que passa ao largo da etiqueta da sinfonia clássica. Aliás, fica essa sugestão de ouvir as principais sinfonias do Mozart e do Haydn para ver o quanto Beethoven avançou, não em matéria de produção mas, sim, em matéria de ímpeto, mesmo em peças que bafejam o clássico, como as sinfonias nº2 e nº7, elas não são mais como o classicismo. Em alguns momentos, ele foi radical, como na Eroica; em outros, foi além, mas nos ditames do classicismo, embora tenha sido o mentor da mudança do terceiro movimento, de uma dança tão associada à estética anterior, o minueto, para o scherzo. Se formos pensar no terceiro movimento da Júpiter (Mozart) para o absolutamente delirante Vivace da Op. 125 de Beethoven, você viajou anos-luz em quase quatro décadas de distãncia.  


Como diz Kiefer, na sinfonia clássica, os motivos sempre retornavam como atores, sempre os mesmos mas com figurino novo. A partir de Beethoven, eles jorram em catadupa. Era, pois, agora, impossível prever o caráter de síntese resultante da tensão entre os dois primeiros motivos.
Mas o mais fascinante em Beethoven do que esse impasse. Ele é um homem do século XIX, mas tem raízes fincadas no anterior. Quando Berlioz surge, três anos depois da morte do músico de Bonn, é como se o bastão tivesse passado para a nova geração. Como na música de Beethoven, ninguém saberia o que, a partir daquele momento, iria acontecer no campo da música.

Beethoven injetou vitalidade a música ao mesmo tempo que nos fez olhar para trás, nos fez olhar para a frente em matéria de música. Ele mostrou que, em todas as artes, sempre coube ousar, seja como for. E ele chegou aos 200 anos sem sequer cogitar que chegaria tão longe, sendo hoje tão popular quanto um rótulo de sabão em pó, substrado da indústria cultural que arrasta a tudo e a todos. E certamente porque ele contou a sua história em música e, por tabela, contou a história de todos nós. 

Referências:

KIEFER, Bruno. Música Alemã. Movimento: Porto Alegre 1985.

Sunday, April 26, 2020

Café Soçaite


Cossta e Silva, a Rainha Elizabeth, D. Yolanda, a primeira-dama e o Príncipe Philip


Tava escutando o disco do show Rosa dos Ventos, da Maria Bethânia, gravado no Teatro da Praia, no Rio. Uma coisa curiosa é a versão dela para “Café Society”, do Miguel Gustavo, que foi um grande sucesso no final dos anos 50 na voz do Jorge Veiga.


Doutor de anedota e de champanhota
Estou acontecendo num Café Soçaite
Só digo enchanté, muito merci, all right
Troquei a luz do dia pela luz da Light...

Claro que a letra toda é uma homenagem ao Ibrahim Sued, que popularizou expressões como “champanhota”, a “dama de preto” (uma pessoa inconveniente numa soiree), ou “Jacintho que é também de Thormes” (forma como ele brincava com os sobrenomes dos grã-finos, no caso, fazendo menção ao primeiro dos grandes colunistas sociais). “Café Soçaite”, expressão hoje defunta, era como se chamava a boemia bem vestida e bem nascida que freqüentava as noites cariocas dos anos 50. Veiga até acabou ficando famoso no café por causa desse samba de breque, até ser esquecido, junto com a música, ressucitada pela Bethânia em seu pocket show.

Porém a Bethânia mudou o final da letra: “eu peço mais uísque/embora esteja pronta/como é que pode?/ Nina Chaves conta”. A Nina na época era famosa por causa do caderno Ela, do Globo, que revolucionou o colunismo social nos anos 60, com um texto de qualidade e títulos de matérias bem bolados, e uma diagramação tão arrojada que destoava do puído e avoengo projeto gráfico caturra do velho Globo (até a mudança, em meados dos 70), sempre aos sábados. 

O Ela era a grande novidade na imprensa carioca da época e ainda hoje é incrível reler os suplementos e se deparar um algo tão a frente de seu tempo. E tendo à frente Nina que, no final dos anos 60, rivalizava com o próprio e já consagrado Ibrahim Sued que, em 1968, voltava a O Globo. Nos anos 70, ela editava o caderno, mesmo morando em Paris, mandando suas matérias e crônicas (para o Ela ou para o caderno de Cultura, sempre com pautas exclusivas, como, em 1972, uma das primeiras reportagens publicadas no Brasil sobre o fenômeno do Pink Floyd com o Dark Side of the Moon) “via Varig”, como em sua famosa assinatura.

Falei da Nina porque lembrei que o último dia 21 foi “niver” da Rainha Elizabeth eu lembrei de uma história que a Hildegard Angel contou há algum tempo na ocasião do dia dos anos da Rainha, em 2018. Na época, comemorava-se os 50 anos da sua visita ao Brasil. Muita gente não sabe ou lembra, mas ela esteve em turnê em terras brasileiras em novembro de 1968. Foi a sua única visita aqui.

No Recife, com o Príncipe Philip a tiracolo, ela foi recebida pelo então presidente, Costa e Silva. Deslocando-se de iate pelo litoral do nordeste, depois estiveram na Bahia, onde foram recepcionados por Viana Filho. Dia 5, o casal chegou à Brasília, participando de uma sessão solene no Supremo, e com direito a uma sucessão de gafes e beija-mãos com luva (conde Chiquinho Matarazzo beijou e cavalheiros apenas devem acenas com a cabeça no cumprimento –  e ele ainda usou a faixa da Grã-Cruz da Ordem da Coroa da Itália por dentro do colete na presença de um chefe de estado) e tudo. Bola preta. Depois, seguiram para São Paulo (com parada em Campinas para equitação), com direito a recepção no Museu Paulista e a inauguração do MASP, no dia seguinte. Não houve Buffet, mas os garçons serviam salgadinhos e uísque “escocês importado”.

Mas o ápice da viagem dos Windsor na brazuca foi a passagem pelo Rio, onde desfilaram de corso pela cidade, com pessoas nas calçadas abanando e aplaudindo. Na Belacap, eles lançaram a pedra fundamental da futura ponte Rio-Niterói (que estava muitíssimo longe de começar a ser construída) e, na tribuna de honra do recém nomeado Estádio Mário Filho, junto com a grã-fina das narinas de cadáver (“quem é a bola?”,dizia a personagem de Nelson Rodrigues em sua coluna do Globo Esportivo) assistiram a um disputado match entre as seleções carioca e paulista num Maracanã lotado, com gente até dependurado no lustre. Bola branca.

O almoço foi no MAM, com recepção do governador Negrão de Lima e a primeira-dama, Dona Emma. O convescote reuniu cerca de duzentas pessoas – entre elas Austreslégilo de Atahíde, o Ministro das Relações Exteriores, Magalhães Pinto e o cantor Sílvio Caldas. O prato principal foi faisão, preparado pelo maitre René. Para beber, só (e muita) champanhota.

Ao fim do repasto, deu-se a troca de presentes: Elizabeth ganhou uma pulseira do governador da Guanabara, admirou-a sem, no entanto, conseguir abrir o fecho. O Príncipe Philip ganhou por sua vez uma taça de vermeil com pedras brasileiras incrustradas. Dona Emma ganhou da Rainha uma poudrière de ouro e o governador Negrão de Lima, por último, um belo retrato do casal real, encaixilhado numa moldura de prata. Não perdendo a chance de ser ligeiramente bairrista e, quem sabe, em parte, coberto de razão, Swann diz que o faisão assado do MAM e o passeio no Rio salvou a visita de Elizabeth II no Brasil. 

A agenda de sábado passava por uma recepção ao staff da embaixada britânica a bordo do iate Britannica e, mais à noite, um encontro na própria embaixada, em São Clemente. O evento juntou mais de quinhentas pessoas incluindo os embaixadores da Comunidade Britânica das Nações, o embaixador dos Estados Unidos e, completando a paisagem, o crème do café soçaite da Belacap.

Dessa vez a coisa não ficou nos acepipes e a casa ofereceu um buffetzinho aos convidados: o pessoal estava com a barriga roncando. Porém, todavia, não aconteceu no Rio o corre-corre de gente esfomeada que ocorreu em Brasília. Entre os convivas, era possível vislumbrar o embaixador e a senhora Moreira Salles, Glorinha e Ibrahim Sued,  Maria Ortemblad, Paulo Fernando Marcondes Ferraz, Baby Bocaiúva e Antonio Callado com sua filha, Tesse.

Alguém falou em Ibrahim? Em 1968, ele estava de volta ao Globo. Sua coluna, na época e nas décadas seguintes, além de marcar época e lançar várias expressões típicas, era praticamente um feudo, um enclave na parte de geral. Ali, de posse de seus muitos contatos, muitos deles na esfera dos governos, ele fazia chover: dava informações de cocheira e, depois que toda a imprensa anunciava, ele dizia que já havia dado o páreo antes, e ria, com toda a imodéstia possível: “sorry, periferia”.   

Começou do nada, no Diário da Noite, depois chegou a um espaço de meia página na Manchete que, com a direção de Helio Fernandes, começou a se tornar uma publicação importante junto com eles. No final dos anos 50, tinha uma seção na Bloch e mais a coluna “reportagem social”, em O Globo. Mesmo que contasse com um copidesque (Henrique Pongetti), muitos a acusavam de analfabeto, e de assassinar o léxico (Nestor de Holanda, por exemplo, o chamava de “monomental”). Com o tempo, essa fama começou a jogar ao seu favor, ainda mais quando lançava estrangeirismos que não existiam, como “kar” ou “ademã”.  

E como acontecia com todo grande colunista (que tinha que mantê-la, inclusive, aos domingos (quando o Globo passou a ter uma edição dominical, nos anos 70), tinha vários ‘subs’ trabalhando com ele que, de resto, acabava sendo ele mesmo o copidesque, vetando textos grandes. Afinal de contas, ele era um ex-fotógrafo e não um Josué Montello. O “analfabetismo” de Sued passava pelos seus garranchos indecifráveis e riscos e mais riscos sobre linhas de laudas datilografadas. Foi nesse estilo, contra tudo e contra todos, e dizendo “Gigi, eu chego lá”, que ele chegou lá.

Um pouco diferente de hoje, colunas sociais representavam uma janela ao infinito para os leitores. Nos anos 50, elas eram um ganha pão para a imprensa: toda publicação tinha que ter a sua Hedda Hooper. 

Alguns jornais tinham mais de uma (caso do Globo, principalmente a partir dos anos 60, com o suplemento Ela e Ibrahim cerrando justas no segundo caderno. E havia as revistas especializadas na cobertura do soçaite, como lembra Ruy Castro: desde a Rio, do próprio Grupo Globo de Roberto Marinho até a Rio-Magazine, de Alfredo Thomé, e a Sombra, de Walter Quadros. “Todos esses veículos descreviam uma realidade que, considerando-se o Brasil em que vivia a esmagadora maioria da população, apaixonava milhões de leitoras”, diz Castro.

Ibrahim tinha esse lado “frágil”, de ser um colunista ligeiramente tosco com seus “ademâs”, “toca, telefone, toca”,  e “ela passou e deu aquele alooo-óoo”. Mas pelo que ele soltava de primeira mão e com o esperto expediente do “depois eu conto”, ele sempre causava a impressão que sabia muito mais do que dizia, e isso é, de fato, arma do colunista. E ele devia realmente saber, assim como havia muita coisa, nos anos 70, que se sabia e que não podia descer para a gráfica. 

Ou, se descesse, teria que ser da forma mais enviesada possível – como no episódio da Revolução dos Cravos onde as palavras “golpe” ou “revolução” não apareceram nas manchetes brasileiras no dia 26 de abril de 1974. Ruy salienta que, no caso de Ibrahim, quando este publicava alguma informação exclusiva ou foto de determinada fonte, seria um pequeno favor que, num segundo momento, podia ter a sua retribuição, um segredo revelado à guisa de dívida saldada. Algo para lá de óbvio hoje, mas na bolsa de valores do colunismo, nada mais comum do que o embaixador cuja filha ou esposa aparece em foto ou em nota ter antes dado alguma informação de cocheira. O circuito de consagração social, no colunismo, então poderia ter sempre essa mão dupla. 

A fonte e a informação são os capitais do colunista. E desde informações políticas até notas amenas do soçaite, tudo mexia com a imaginação dos leitores e leitoras, que sonhavam acordados com recepções, jantares, descrições de vestidos até listas de celebridades em determinado convescote ou soirée.

Em pouco tempo, o pai dos colunistas sociais no Brasil, Maneco Muller (Jacinto de Thormes) era o mais famoso mas, já nos anos 60, Sued era, de longe, o mais lido. Maneco foi o grande atualizador do colunismo social aqui, pelo fato de que ele amalgamava fatos políticos com os sociais, algo que Ibrahim levaria ao paroxismo, a tal ponto que, nos anos 70, em O Globo, passando a vista no primeiro caderno do jornal, por causa da censura, quase todo fadado a chapa-branquismos transcritos quase que ípsis literis e muita informação de agências internacionais, parecia que era nas colunas (esportivas, culturais e sociais) que os jornais realmente respiravam um ar mais leve. Maneco desceu (depois voltaria como Jacinto, em 1973) e Ibrahim subiu, e Muller mesmo explicava sua diferença com seu colega. Se, para ele, o colunismo era ganha-pão, para Sued era uma questão de sobrevivência.

E o que o alimentava era o caderninho de contatos. Com o tempo, eram tantas as caçapas que dava que era óbvio que ele tinha contatos dentro das salas do poder, tanto do Guanabara quanto o Itamaraty (grandes fontes dele eram D. Yolanda Costa e Silva e Guimarães Rosa, além de escritor, diplomata de carreira longa, sendo também embaixador do Brasil em Bogotá e em Paris).  E mesmo gravitando nos altos escalões, Ibrahim era sucesso popular. Os leitores se divertiam com suas expressões, sempre repetidas diariamente, como outro obsessivo e colega de jornal, Nelson Rodrigues – este, também popular e responsável pelas mudanças de hábito do leitor de jornal, que quase sempre começava pelas colunas, e não pelo primeiro caderno.
Ibrahim virou figura popular a ponto de então ser citado no samba de Miguel Gustavo: “Eu sou até citado na coluna do Ibrahim/ E quando alguém pergunta, ‘Como é que pode?’/ Papai de black-tie jantando com Didu/ Eu peço outro uísque, embora esteja pronto/ Como é que pode?/ Depois eu conto...” Por causa disso, Jorge Veiga, insuperável cantor de sambas de breque, acabou entrando no universo da grafinagem por algum tempo, e a música pegou.

O dado curioso envolvendo tanta gente é que Bethânia, que desencavou a música em Rosa dos Ventos, fora uma das comensais no famoso almoço real no MAM, em novembro de 1968. E ela cita justamente Nina Chaves (ou “Chavs”, como ela assinava) que, naquele momento, quebrava lanças na redação do Globo contra Ibrahim, numa história curiosa e que só foi revelada décadas depois.

Pois durante três dias o Rio acordou e dormiu com a Rainha e sua comitiva. Não era uma visita protocolar e o povo participou do passeio real com pompa e circunstância. Lotaram Copacabana no domingo de manhã, durante o corso pelas principais avenidas, provocando um rush que acabou atrasando o convescote do Museu. Sua Majestade não fugiu da multidão e todos acenavam para ela, acenando de volta, na carona de um Rolls-Royce descapotado. Segundo Carlos Swann (Carlos Leonam), na coluna do Globo, aquela manhã de sábado foi uma pitoresca apoteose: em plena avenida Atlântica, sendo aplaudida e saudada por banhistas em flor.

A tal história curiosa de bastidores sobre a passagem da Rainha pelo Brasil a Hildegard Angel contou no JB em 2018. Na época, a primeira-dama, Yolanda Costa e Silva quis dar um presente à Rainha. E encomendou à Zuzu Angel o regalo, que concebeu uma capa com uma jóia, feita com ouro e pwdras preciosas, em parceria com a H. Stern, tendo como modelo a própria esposa do presidente. A capa ficou pronta na véspera da chegada de Elizabeth II.

No esquenta para a chegada, Ibrahim e Nina repercutiam a expectativa. Enquanto ela fazia uma grande reportagem seriada sobre a história da Inglaterra até contextualizar a Rainha, no século 20, ele dizia que Elizabeth era uma pessoa sóbria e que modernizou a noblesse em Buckingham. Tanto que sua entourage para a digressão à America do Sul era de pouca gente. E, se morasse no Brasil, seria fã de seu programa noturno na Globo, canal 4.

Ou seja, no fim das contas, a primeira-dama, que foi quem deu linha na pipa para a elaboração do presente, depois saltou da raia, da forma mais pusilânime possível, com direito a Ibrahim servindo de garoto de recados em sua coluna. A Hildegard conta que a esposa do presidente foi quem deu linha na pipa para a jóia. A Nina, que sabia da feitura do regalo, deu em sua coluna que a primeira-dama ia dar o presente. 

O Ibrahim, que se dava com a mulher do Costa e Silva, ficou bravo e publicou no jornal que uma repórter estava espalhando que a Rainha ia ganhar uns balangandãs no dia 5 de novembro, na véspera da chegada da Rainha, e publicou uma nota de D. Yolanda, relativizando o boato do presente. Sued dizia que o protocolo impedia que Elizabeth ganhasse um presente. No fim, quem deu linha na pipa depois ficou do lado do Ibrahim e deixou Nina e Zuzu dependuradas no pincel. “basta qualquer jornalista ligar para o Palácio para obter a informação certa”, diz o colunista, citando Yolanda. E ficou o dito pelo não dito. E a nota com o furo foi tirada do jornal.

Na recepção do MAM, Ibrahim trazia a condecoração da Ordem do Cedro do Líbano. Quebrou o protocolo e beijou a mão de Sua Majestade...

Na ocasião do descerramento da pedra fundamental das obras da Rio-Niterói, Elizabeth perguntou ao ministro Mário Andreazza em quanto tempo a ponte ficaria pronta. Ele respondeu: “em três anos, majestade”. Ela ajuntou: “então eu voltarei para a inauguração”. A obra só seria inaugurada seis anos mais tarde, em março de 1974.  

Friday, April 10, 2020

Phono 73 e o fim de Era dos Festivais


Promocional do álbum Phono 73




Numa coluna, em 73, o Sérgio Bittencourt bate na tecla que a ascensão da cafonália foi provocada pelo fim dos festivais, ou dos que teriam se rebelado contra ele ou porque queriam se dar bem e só ou os que, na impossibilidade de vencer os certames, passou a pixá-los. E, com o seu fim, os grandes compositores foram saindo de cena, enquanto o brega começou a grassar nas paradas de sucesso.
Eu acho que hoje é possível ter uma outra visão do fenômeno. Na virada da década, houve um aumento exponencial de consumo e de produção de discos e equipamentos eletrônicos. Ao mesmo tempo, um novo segmento de público passou a consumir música, uma extração mais popular, por assim dizer, e essa produção veio de encontro dessa demanda. 

Ou seja, digamos que houve um aumento de público consumidor, que passou a ouvir rádio musical popular, que foi crescendo pela década, e que ia muito além (produção e consumo) da circunscrição da música de festival. Aliás, música de festival que, nos seus últimos anos, como mostra o Zuza Homem de Mello (*), havia, por várias variáveis e vários motivos, perdido o espírito competitivo, minado pela censura e por intrigas de bastidores. Ele demonstra que os festivais acabaram como tudo na vida acontece em ciclos. 

E o ciclo dos festivais acabou ali, num momento em que a correia produção-consumo chegou a uma espiral ascendente, abrangendo públicos mais amplos, e quando o mercado passou a avaliar a produção, dentro do âmbito da indústria cultural, a partir de aferições cada vez mais de ordem estatística, institutos de pesquisa, paradas de sucessos, ou seja, armou-se, a partir dali, a indústria da música virou uma máquina, algo totalmente diverso do mundo romântico dos festivais. Eles apontaram possibilidades, que era a produção para um consumo de massa, ainda mais quando passaram a explorar a televisão, e depois, em rede, com a Globo. Em uma década de festivais, de “Arrastão” até “Fio Maravilha”, muita coisa mudou. 

E os próprios festivais, com seu formato e âmbito (no começo, atingiam ainda um público restrito, quando a televisão ainda buscava espaço e não era transmitida em rede, no começo dos anos 60), foram um produto importante, mas num determinado contexto e numa determinada época. De tal forma que tentativas de recriá-lo, nos anos 80 (Festival dos Festivais, MPB Shell) tinham mais um sabor de nostalgia do que de uma possibilidade de ‘renovação’ dentro do campo da música. O próprio púbico (consumidor de música) já tinha adquirido novos hábitos: consumia música no rádio musical popular, nos programas de tevê como Chacrinha e Globo de Ouro ou Fantástico, e as novelas de tevê. 

Os festivais, por sua vez, não morreram, mas perderam esse apelo ao mainstream, já enquadrado pela cultura de massa; mas sobrevivia nos circuitos alternativos e universitários, já buscando um respectivo público segmentado para a sua apreciação e, muitas vezes, distante do mercado da música.

Numa outra coluna, em julho de 73, Bittencourt volta a criticar o franco comercialismo das paradas de sucessos, com o fim do Festival e o fato de que não haveria mais o certame a partir daquele ano. O de 72 fora o último. Ele fala dos que passaram a se queixar da questão das paradas de sucesso como corolário do fim do FIC, citando os grandes nomes que surgiram e que pontificaram naquele tempo, como Sidney Miller e Edu Lobo. 

A questão é complexa e vai além do que supõe a vã filosofia do Sérgio. A MPB estava vigiada desde 69, os compositores mais proeminentes foram tanto largando a causa do festival quanto partindo do Brasil, enquanto a ditadura queria controlar totalmente a estrutura do FIC quanto, como diz Zuza, querer vendê-lo como exemplo da ilha de tranqüilidade do Brasil dos tempos do governo Médici. Sabendo disso, como ocorreu em 71, muitos grandes nomes boicotaram o FIC. E o evento estava com os dias contados,se transformando num espetáculo do baixo clero da música. Ao mesmo tempo, a indústria do disco começava a ela mesma ditar o sucesso, sem precisar da mediação de um festival da canção. 

Foi o caso do PHONO 73, apresentado no Ahiembi, e que era uma espécie de festival sem concorrentes, já que era, na verdade, uma vitrine do cast da Philips transformado em evento musical. Ou seja, a estrutura de festival já não correspondia à demanda da produção musical brasileira (já que ele mesmo, por si, tratava de formar suas próprias capelinhas dentro do campo da música). 

O festival como evento não era mais novidade, não servia mais como amostragem do que se produzia de “bom” no Brasil, as gravadoras por si já estavam fazendo a sua rescolta de artistas e os promovendo por conta própria (CBS e Phonogram compravam grandes espaços nos jornais, rádio e tevê para divulgarem seus lançamentos e seus artistas). 

O próprio fenômeno do Globo de Ouro era um exemplo bem acabado de como a música foi encontrando caminhos diversos para a divulgação de seus artistas. Ela passou a mediar a produção musical, ao passo que um festival, por todos os fatores elencados acima e outros tantos mais, não dava mais conta do que se fazia em termos de música e do que era vendido no mercado. 

Para mim, por mais correto que queira ser a observação do Bittencourt, ele é mais a opinião de um compositor e que se fez dentro da estrutura dos festivais, Então, ele não deixa de referendar uma opinião de classe, ao mesmo tempo em que rejeita tudo o que seja sucesso e que não passa pela chancela de “especialistas” de um corpo de júri de um festival, mesmo ao se tratar do FIC que, a cada ano, estava cada vez mais eletrônico, por um lado, enlatado e vendido pela Globo e, por outro, transformado num produto para, no fim das contas, vender a própria Globo como marca. Ao vender o FIC, a Globo estava se vendendo para o Brasil e o mundo.  Esse, à guisa de conclusão, foi o fim do FIC.  Em resumo: o fim do FIC não foi causa desse processo mas, sim, conseqüência dele.

Outra questão bem da época e levantada pelo próprio Bittencourt ao repercutir a pouca procura por ingressos ao show do Gilberto Gil no Teatro da Praia, no verão de 73. O Gil havia chegado de Londres, onde a cena underground era bastante forte. Assim como a Gal havia pontificado com o show Fa-Tal no fim de1971, aquele foi um momento da MPB alternativa. Mas em 1973, assim como nem festivais como o FIC davam conta da realidade da produção musical da época, o certame ainda se prestava a ser um cartão de visitas do Rio (como apregoavam as vinhetas na Mundial na ocasião do FIC de 72) que, naquele momento, do ponto de vista cultural, parecia olhar para si mesmo ou apenas para a Zona Sul. 

Tanto que, num segundo momento, o empresário de Gil e Gal, Guilherme Araújo, passou a agendar apresentações de seus pupilos nos subúrbios da cidade, como, por incrível que pareça, em Campo Grande, na Zona Oeste do Rio. Ao que parece, o pensamento dos artistas na cidade ainda pensava como no tempo do samba-canção embora sem a Nacional ou a Tupi ou a Revista do Rádio. 

Ou, por outra, pensava como no tempo da Bossa Nova, num segundo momento, promovendo apresentações ou pocket shows em bares modestos remanescentes em Copacabana ou alternativas no mesmo sentido, com em churrascarias na Tijuca, Peixoto ou Humaitá. Um evento que, de certa forma pareceu uma resposta a esse estado de coisas foi o Phono 73. 

Com cara de festival, mas sem ser, foi apresentado em São Paulo, onde o mercado é mais forte, vendendo os artistas da Polydor e Philips. Aqui, não se trata de mera competição mas, como nos moldes do MIDEM europeu, a estratégia é vender o cast da gravadora para todo o Brasil. O que era preciso nesse momento era marketing pesado para vender cantores para todo o Brasil, voa televisão ou rádio, mas de forma massiva, de forma a compensar os gastos com prensagens de disco. Parece óbvio hoje, mas não era naquele tempo, quando ainda boa parte da indústria fonográfica ainda pensava de forma paroquial. 

Por uma questão purista, artistas da MPB nascentes queriam ainda viver tocando em universidades ou em teatros de pequeno porte, como o da Praia, Opinião ou o Teresa Rachel, e de preferência no Rio ou adjacências. Por um lado, esse marketing agressivo não apenas torpedeou a carreira desses artistas quanto aqueceu o mercado da música a partir dali. 

Essa foi a importância do Phono naquele momento, um passo a frente diante do impasse gerado pelo fim dos festivais de grande porte (sempre lembrando que certames de pequeno porte ainda resistiam, tanto em cidades pequenas quanto dentro do circuito universitário). O lado ruim, naturalmente, foi a especialização desse mesmo marketing, que desaguaria no jabá do FM e da tevê via satélite, nos anos 80, uma prática que já existia desde muito antes, mas que chegaria a um paroxismo na década seguinte.

Nesse sentido, olhando em retrospectiva, iniciativas do Phono 73, a despeito de sua pretensa excelência, pelo fato de contar com o melhor escrete da MPB da melhor época do gênero do Brasil, quando a música, aí sim, singrava em mares de tranquilidade em termos de criação e descomprometimento com o mercado do disco começava a atingir um outro patamar como produto cultural. Isso também explicaria porque a Globo, depois de dispensar o FIC, no mesmo ano, criaria o Globo de Ouro, dando primazia à parada de sucessos e a transformação de um programa musical num desfile promovido através de fontes como o Ibope, Nopem e consulta à produção de emissoras de rádio de Rio e São Paulo.  Mas aí é assunto para outro post que, como diria o Ibrahim, depois eu conto.  


* Zuza Homem de Mello, A Era dos Festivais. Ed. 34, 2000.