Saturday, March 09, 2019

60 anos de Chega de Saudade

O disco


Ninguém lembrou mas eu lembrei: dia 8 marcou a passagem dos 60 anos do lançamento do álbum Chega de Saudade, do João Gilberto.

Lembro que a primeira vez que ouvi "Desafinado" num programa de rádio sobre a história do disco produzido pela BASF. Era só um trecho mas eu fiquei com aquele trecho de música.

Quando eu era guri, eu detestava MPB. Porém, não sei por que simpatizava com essa música, que achava bem tocada embora parecesse uma besteira, uma novelity song qualquer. E, de certa forma, era. Tanto que, no começo, ninguém queria saber dela. Newton Mendonça e Tom Jobim tentaram convencer Cauby Peixoto e Ivon Curi a gravá-la mas em vão.

O João a gravou em fins de 58 e ela se tranformou no pináculo de um movimento de renovação na música brasileira que se insinuava desde o começo dos anos 50 mas que não tinha uma cara. "Desafinado", com "Chega de Saudade", seria essa cara.

Um dia eu descia a Cristóvão Colombo quando passei num brechó. Na pilha de discos [que não era a especialidade do brechó] que ficava num canto sempre debaixo do gato da dona do lugar. Procurando alguma coisa de rock deparei-me com uma cópia do elepê Chega de Saudade.

Lembrei que gostava de Desafinado  queria ter a faixa inteira. O problema é que eu detestava MPB. O que fazer, como diria o camarada Lênin? Resolvi comprar. Se não gostasse do resto do álbum, ia enfiá-lo na coleção de discos dos meus pais que, naquela altura, nem ouviam mais discos.

Ouvi o Chega de Saudade centenas de vezes. Posso dizer que tive uma epifnia fatal. Eu descobri o Brasil com esse disco do João Gilberto. Ouvia direto: era um disco breve; logo descobri os outros, e queria mais.

Queria saber tudo sobre MPB desde a Velha Guarda até os discos ao vivo da Maria Bethânia do meu pai. No mesmo brechó, descobri aqueles fascículos da Abril Cultural sobre a História da MPB e resolvi ir fundo nessa experiência. No meu aniversário do ano seguinte, ganhei o livro do Ruy Castro sobre a Bossa Nova.

Tudo foi consequência daquele disco. Porém, naquele tempo cavocar aqueles discos que o Ruy cita era uma tarefa impossível. Naquele tempo, havia um esquecimento a respeito da Bossa Nova.

O próprio Ruy fala que um dos problemas durante a pesquisa do livro foi a indiferença por parte das suas próprias fontes. Alguns sequer queriam ser associados ao movimento, tamanho era o apagão cultural que a memória a respeito do assunto gozava.

Hoje existe uma bibliografia considerável sobre MPB, como a coleção da Editora 34; monografias, teses e dissertações sobre o assunto, canção brasileira analisada à luz da Semiótica, o escambau. Mas esse é um movimento recente. Há coisa de três décadas atrás, o descaso a respeito da pesquisa e de interesse sobre o assunto era grande.

Acho, inclusive, que o livro Chega de Saudade, que depois virou best-seller e ainda é uma referência capital em história da MPB [acho que o Era dos Festivais, do Zuza Homem de Mello, não existiria sem o Chega de Saudade. O mesmo Zuza desencavou os tapes perdidos do Fino da Bossa e lançou em CD anos depois, pela Velas] e é pai de tudo o que saiu depois dele.

Aliás, ao contrário de quando ele saiu, hoje, com a Internet, é uma experiência muito mais intensa ler o Chega de Saudade podendo ouvir, a um clique, praticamente todas as músicas que o Ruy cita no livro, desde os 78 rotações do Stan Kenton e dos Modernaires e a Sinfonia do Rio de Janeiro, as gravações do João feitas pelo Chico Pereira até os mitológicos álbuns da Elenco, hoje tem tudo na Internet.

E tudo por causa daquele disco do João Gilberto. O engraçado é que, ao contrário do que possa parecer, foi um parto difícil. No final dos anos 50, a moda ainda eram os vozeirões e o diretor artístico da Odeon, o único selo que quis gravá-lo, era ninguém menos que Aloysio de Oliveira.
Mesmo sendo "moderno", pois vivera nos Estados Unidos com Carmen Miranda, ele era um homem do seu tempo: era da Velha Guarda. Quando a Odeon lançou o dez polegadas com as modernosas canções da peça Orfeu da Conceição, Aloysio colocou Vicente Paiva para cantar "Se todos fossem iguais a você".

A gravação soa bizarrísima aos ouvidos de hoje, mas essa era a estética da época: samba canção com vozeirões e pandeiros. Foi por conta de alguns maestros de gravadoras mais modernos, e entre eles estava Tom Jobim, que, dentro de um modelo dado, passou a recriar o samba-canção com um approach mais camerístico.

Foi ele que entendeu João Gilberto quando ele queria apenas um guia telefônico com vassourinhas de percussão.

Claro que havia a briga com Aloysio a ser resolvida. Ele bateu pé, já que quem vendia naquele tempo, além do citado Cauby, era o Anísio Silva, e era um cantor que vendia tanto, a ponto de encher as burras da Odeon de dinheiro e  que, de certa forma, foi isso que, de certa forma, "patrocinou" a loucura de gravar um maluco como João Gilberto.

Mas Aloysio bateu pé e quem o convenceu a gravar JG foi seu amigo  dos tempos do Bando da Lua, Dorival Caymmi. O autor de "Marina" naquele tempo pertencia ao cast da gravadora, também pertencia ao time dos que vendia bem.

Ou seja, aquele PS: que aparece na contracapa do disco, onde Tom diz que Caymmi concorda com o talento do conterrâneo, era mais do que um green card. Ele com efeito viabilizou os compactos "Chega de Saudade" e "Desafinado" que permitiram a aventura de um long-play, algo que, em 58, era um formato reservado somente a grandes artistas, enquanto João era um "baiano bossa nova de vinte e sete anos" que era ligeiramente conhecido pelo baixo cafe society do Rio dos anos 50, que depois de uma lacuna de meses, reapareceu tocando aquele violão certinho atraindo todo mundo da Zona Sul como o flautista de Hamelin.

A Bossa Nova chegou ao disco também porque virou moda e saiu do Beco das Garrafas e arredores e foi parar em São Paulo, onde a música comercialmente falando acontecia no Brasil. Chega de Saudade fez carreira nas emissoras de rádio e nas lojas de disco de lá e foi a partir de São Paulo que João Gilberto viraria um nome nacional. Porém, quando essa moda começou a fazer água no Brasil, ela já já havia empestado o mundo para sempre.

O curioso é, pouco tempo depois, com a Bossa Nova já estourada, Aloysio deixaria o emprego na Odeon e iria fundar um selo especializado no gênero, a supracitada Elenco, inspirada em pequenas gravadoras de jazz, como a Blue Note. Um selo que marcaria época mas que soçobraria ante à falta de tino comercial para negócios de seu idealizador. Mas essa é uma história para um outro post.





Tuesday, March 05, 2019

O Trenzinho do Riacho

Antiga Estação do Riacho, na Cidade Baixa


Achei esses dias numa troca de livros um daqueles exemplares curiosíssimos do Almanaque do Correio do Povo. O de 1980 traz uma matéria assinada pelo falecido Amaro Júnior sobre a antiga linha de trem que existia em Porto Alegre e que ligava o Centro à Zona Sul.

Um parêntese: o Amaro ninguém mais o tem como referência. Ele foi junto com o Archymedes Fortini e o Túlio De Rose o que poderíamos chamar de os primeiros jornalistas esportivos do Rio Grande do Sul e numa época que sequer existiam federações de desporto. O Amaro era especializado em basquete tendo sido inclusive instrutor de ginástica e treinador.

Então me chamou a atenção ver um texto dele versando sobre a história da cidade - fato aliás que não deveria me espantar, já que, no assunto, se com efeito ele não pegou carona na Arca de Noé, pelo menos digamos que pisou no barro.

O chamado "trenzinho do riacho" como era chamado parecia uma locomotiva de mini-mundo. É importante que imaginemos que, naquelas priscas eras, não existiam muitas servidões que levassem o pessoal da península central - o núcleo duro daquele burgo açoriano com os arrabaldes da capital gaúcha. Para se ter uma ideia, era impossível ir à Tristeza à um século e picos atrás se não fosse à cavalo. O trem era a forma mais racional para realizar o trajeto.

Construída em 1912, a estação ficava passando a ponte de pedra, onde hoje fica o monumento aos Açorianos. Dali vinham e chegavam as composições. Havia desde os vagões de passageiros, quase sempre com gente saindo pelo ladrão até os que levavam os cubos de matéria fecal do Riacho até a estação da Ponta do Melo [hoje o começo da Pinheiro Borda] onde o cocô do cidadão de bem porto-alegrense era solenemente despejado. Porém, é importante salientar que, na verdade, a linha foi idealizada, ainda em 1896, apenas e tão somente para levar cubos de dejetos para as margens da Zona Sul.

Aos fins de semana, a procura pelo transporte era grande: havia os que iam passar o dia no clube Tristezense e os veranistas de fim-de-semana, que iam à Pedra Redonda.

Importante lembrar [imaginar] que o Guaíba era um rio vivo, e essa vida consistia numa relação muito grande entre o porto-alegrense e o Guaíba, no tempo que suas águas eram bucolicamente balneáveis e parnasianamente límpidas, ou seja, era o paraíso na terra.

Os horários eram dois: um às oito da manhã e o outro, às quatro da tarde. Nos fins de semana, eram quatro horários: outro às dez e o quarto, às duas.

A demanda de passageiros era grande, e sempre havia gente em pé que, com uma paciência bizantina, tinha que aguentar uma viagem que ia de quarenta minutos ou mais, contando as baldeações, como a no Asilo Padre Cacique que, naquele tempo, ficava na beirinha do rio.

Aliás, quase todo o trajeto era pela margem, pegando passageiros também no fim da José de Alencar ali onde hoje fica o Viaduto [da Marli, a origem do nome fica para um futuro post]. No Cristal, ele parava na altura do Hospital Militar e, mais adiante, na Vila Assunção, onde também havia um nosocômio.

Foi numa segunda etapa que a linha foi estendida até a Pedra Redonda [graças à linha, este bairro tornou-se balneário da cidade muito antes de Ipanema, e era então considerada por muitos, segundo Roberto Pellin no livro Revivendo a Tristeza, como a melhor das praias do Guaíba], que atendia um número enorme de gente que ia para o que era uma espécie de Lido porto-alegrense.

Diz o Amaro: "nessa extensão, o trem passava pelo fundo de um corte de morro, dando a impressão de túnel, até chegar à estação do balneário, onde existia um redondel de ferro no qual colocavam a locomotiva para virar de lado. A operação era feita "a muque" e nela colaborava toda a rapaziada que se encontrasse no local na ocasião. Era tudo brincadeira e muitos até esperavam a chegada do trenzinho especialmente para ajudar no trabalho".

Já numa terceira fase, já sob o controle da Prefeitura [originalmente, como era comum naqueles tempos, a linha era particular. Depois ela seria integrada à Viação Férrea] foi criado um ramal até a Vila Nova. Como se sabe, a região era - e ainda é - um polo produtor de hortifrutis. Porém, a experiência não deu lá muito certo e as operações não duraram por muito tempo. Segundo Walter Spalding, o tal ramal foi criado por fins eleitoreiros já que um dos grandes benfeitores do bairro, Vicente Monteggia [hoje nome de avenida] prometera votos para o candidato a intendente, Otávio Rocha.

Integrada à Viação Férrea, a linha foi estendida do Riacho até o Mercado, com a construção da estação Idelfonso Pinto [em 1927, o Amaro não chega a ser preciso com relação à datas em seu texto], que os mais velhos recordam, ficava onde hoje é a parada do 43 da Carris. Essa estação foi idealizada porque, dada a demanda de passageiros, a parada do Riacho era longe demais para quem vinha de fora.

Diz o Amaro: "passou então o trenzinho a sair do referido ponto, seguindo pela avenida Mauá, bem junto aos armazéns do Cais [os trilhos ainda estão lá, como única lembrança da trilha, hoje totalmente desaparecida] aproveitando os trilhos já existentes que transportavam mercadorias vindas por via férrea para embarque nos vapores surtos na zona portuária. Atravessava o trem os terrenos da saudosa Praça da Harmonia [hoje o limite entre a praça Brigadeiro Sampaio e a Mauá que, provavelmente na época que o Amaro bateu estas laudas, ainda pertencia ao antigo III Exército que, até meados dos anos 70, mantinha um tenebroso paiol na região onde outrora ficava a praça original] entrava na rua General Salustiano, passando em frente da antiga Casa de Correção [hoje a modernosa praça do Aeromóvel] e trafegando, após, pela Pantaleão Teles [Washington Luís] ia fazer a primeira parada na sua anterior estação inicial".

Contudo, para chegar lá, o trem tinha que atravessar o riacho. Por isso, por algum tempo existiu ali, além da vetusta ponte de pedra, uma outra, de ferro, especialmente para a passagem das composições.

Claro que, nessa época, a locomotiva já não levava bosta para o Cristal. Ela ficava defronte à esquina da Pantaleão com a Espírito Santo, onde hoje corre a pista da Perimetral.

Mesmo depois de ter sido extinto, em meados de década de 30, o tráfego regular para a Zona Sul, a ponte de ferro e a estação do Centro eram usadas. A Idelfonso Pinto serviu, até sua demolição, nos anos 70, como depósito e a do Riacho, como garagem para as composições da Viação Férrea [o trecho que compreendia entre o Cristal e a Pedra Redonda posteriormente seriam arrendado à particulares] que, segundo Amaro Júnior, "superlotavam a acanhada estação de Porto Alegre no Caminho Novo [Voluntários da Pátria] esquina Conceição hoje também desaparecida".

Parece piada, mas Porto Alegre já foi uma cidade legal.