Thursday, December 29, 2016

O Grupo Ivanhoé


Anúncio do Grupo Ivanhoé na Folha da Tarde


No dia 11 de setembro de 1971, a folha da Tarde anunciava: "Paulistas descobrem o Sul com a Ivanhoé". A empresa, na verdade, era paulista e capitaneada por um grupo de jovens que haviam ganho um bolão na Loteria Esportiva. Com a Ivanhoé, eles queriam criar uma espécie de holding, abarcando desde um banco de crédito imobiliário até uma agência de notícias. Aliás, anunciavam desde já uma publicação própria, a Alhos e Bugalhos, produzida pela recém fundada Ivanhopress.

No entanto, foi um necrológio, publicado na edição de 20 de outubro daquele mesmo ano que se soube mais sobre a megaempresa. Tratava-se de convite para enterro de Pedro Louzada Balaustre, que seria ocorrida na cidade de Muçum. O texto também destacava as ramificações do grupo. o Correio do Povo também deu notícia do infortúnio, pormenorizando o perfil do falecido presidente da Ivanhoé Produções "aos 84 anos".

No mesmo dia, a Folha divulgava um "comunicado" (reprodução acima) que repercutiu inclusive na Assembléia Legislativa. Um deputado da região de Muçum que, pedindo espaço na ordem do dia, comunicou o passamento do ilustre conterrâneo.

O Diário de Notícias de 22 de outubro trazia reportagem sobre Balaustre, intitulado pelo jornalista que assinava a matéria, Janer Cristaldo, de "Lincoln do oeste paranaense". O texto também destacava a importãncia do falecido em várias esferas públicas e até culturais.

Três dias depois, Pedro Louzada Balaustre Júnior divulgou ao seu público externo — acionistas, autoridades civis e eclesiásticas — relatório da Ivanhoé Produções a respeito das novas ramificações do grupo: Ivanhoaço (Aços Finos Ivanhoé), Ivanhoair, Ivanhomem (uma espécie de Mobral), Ivanholac (Laticínios) Afugi (Associação de Funcionários da Ivanhoé), Ivanhocard, Ivanhoterra, Ivanhojuris, Ivanhomed, Ivanhoquímica e Ivanhofértil.

No fim, o relatório resume biografia de Balaustre, destacando seu começo no seio da terra, seus esponsais com Carmelita Umbrella, a matriarca da família e protetora das artes. Carmelita era uma fusão de Darcy Vargas, Anita Malfatti e Lina Bo Bardi. Perplexo com o relatório, o advogado e professor de Direito Antônio Martins Costa mandou carta à Louzada Jr. dando enorme apreço ao finado patrono, "exemplo de amor e dedicação e de bem servir".

Semanas depois, a imprensa seguia repercutindo as ações da Ivanhoé. A coluna de Antônio Carlos Porto (De Alto a Baixo) dava votos de boas festas à Dona Carmelita, que iria lançar pedra fundamental do Orfanato Pedro Balaustre; Ataíde Ferreira, na Folha Esportiva retribuía mensagem de fim de ano de um certo Alberto Umbrella, do clube Fortes e Livres, da cidade de Muçum.

No dia 31 de dezembro de 71, Carlos Coelho, no Informe da Zero Hora, dava um furo: Gabril Inellas, loco-tenente geral da Ordem Hospitalar de São Lázaro, anunciava interesse em adquirir o controla acionário da Ivanhoé Produções. Fez-se a polêmica: dado o processo de translado de uma grande empresa gaúcha do cone sul, cogitou-se, à guisa de solução imediata e salvacionista, a reativação da Micronorte, empresa vetusta que fora criada quando o Bicre-Banco Ivanhoé de Crédito Republicano, sob ameaça de ser absorvido pela Unidesco, foi salvo em cima do laço por uma operação deus ex machina (ou quase excusa?) da Holding Midas, que contou com o auxílio da Ourivesaria Balaustre, Refinaria de Petróleo Dilúvio S.A e a Metalúrgica Umbrella S.A.

A coisa engrossou quando um certo grupo econômico criou campanha publicitária sobre seu respectivo presidente, posto a ombreá-lo com o desaparecido Pedro Balaustre. A resposta veio incontinente de Balaustre Jr, que respondeu à matéria, ameaçando acioná-lo na Justiça através da Ivanholex (Advocacia), dadas a farta documentação franqueada pela Ivanhoinform — Espionagem e Sigilos Industriais. Contudo, antes que a polêmica ganhasse vulto, desapareceu por completo.

Repercutindo o caso, porém, a edição de 4 de julho de 72 da Zero Hora trazia um furo, dado em primeira mão por Aspecyr Umbrella, da Ivanhopress: estavam em negociações uma possível cinebiografia de Louzada Balaustre. Enquanto isso, o Grupo Ivanhoé crescia: foram fundadasa a Ivanhodog (rede de lanchonetes fast-food, em moda na época em Porto Alegre, com o advento do cachorro-quente), Ivanhonasa (Rede de Comunicação), Ivanhoféretro (ramo funerário), Ivanhoar (refrigerações industriais e domésticas), Ivanhocar, Ivanhobrás (aproveitando a onda de civismo dos anos 70) e, por fim, a Rede Ivanhoé Sul de Comunicações. Tudo sempre ganhando relativo espaço na imprensa porto-alegrense.

Em notas e rodapés de colunas, também surgiram outros desdobramentos do Grupo Ivanhoé: da parceria comercial com o Grupo Habeas Corpore (rede de supermercados Império S.A), e o surgimento de franchises, como as Boutiques Carmelita, Empresa de Táxi Bandeira 3, Roupas Íntimas Jandira S.A, Cabanha Ivanhoé, Haras Ivanhoé, Ivanhoave (Aviário Ivanhoé), a novos braços tentaculares da Ivanhoé Produções — até a Ivanhoerva (empresa de fomento ao plantio de gererê).

A imprensa também dava conta de uma futura escuderia, o Balaustre's Racing Team, disposto a suplantar a Coopersucar. O patrocínio dos bólidos, é claro, é do Banco Ivanhoé S.A.



Tempos depois, descobriu-se a o Grupo Ivanhoé só existia na cabeça dos idealizadores da brincadeira: Rogério Mendelski, José Antônio Pinheiro Machado, depois contando com a ajuda dos demais citados (aliás, Luiz Fernando Verissimo ficava responsável pelos artigos de fundo, como o reproduzido acima). O mico ficou por conta de próceres tanto da Assembleia do estado quanto do Congresso, que entraram para os anais com seus respectivos votos de pesar, proferidos no púlpito ao passamento do patriarca da inexpugnável Ivanhoé Produções.

E do pároco da Matriz de Muçum, que realmente preparou a igreja para as exéquias do inesquecível Pedro Balaustre. ^



PS: a história sairia, com riqueza de detalhes, no livro Anedotário da Rua da Praia 2 (o melhor dos três), do renato Maciel de Sá Júnior.




Monday, December 26, 2016

Quarto Distrito, Dias e Noites


A Roosevelt nos tempos de Av. Eduardo

Andando de passe livre por uma Porto Alegre quase deserta e de lojas fechadas em busca de algum bar, desci no fim do T2 e fiz uma coisa que não fazia há tempos: percorrer toda a Avenida Presidente Franklin Roosevelt, no 4º Distrito.

Desci da João Inácio até onde ela desemboca numa pororoca de carros e ônibus no cruzamento da Farrapos, Almirante Tamandaré e Visconde do Rio Branco. Na esquina da Tamandaré, avistei o Bar Garota aberto.

Depois da segunda cerveja, perguntei ao dono do estabelecimento se ele se lembrava do bairro nos anos 70 ou 80. Ele respondeu que toca o boteco desde o começo dos anos 90.

Então eu contei que eu havia descido a Roosevelt de cabo a rabo e concluí que o Garota era o único comércio antigo que ainda resistia no São Geraldo, que é uma região da capital que, justamente a partir dali, passou a sofrer uma decadência terrível.


Na verdade, eu nasci lá. Não vivi muito tempo no bairro. Morei depois em outros lugares, mas o São Geraldo sempre será um lugar meio mitológico. Afinal, eu passei meu primeiro ano de vida ali. Depois, mais tarde, sempre retornava no Natal. No Gobbo — aquele edifício gigantesco na frente do posto Shell, além de nós, meus avós maternos habitavam o segundo andar (nós no quinto).

Claro que não tenho recordações daquele começo profundo: mais daqueles serões natalinos, quando ainda era possível juntar toda a família da parte de minha mãe. Hoje parece engraçado imaginar como aquele apartamento, apesar de gigantesco, conseguia comportar tanta gente.

Lembro do Presépio originalíssimo da minha avó. Ficava num balcão. Meu avô, que sempre fora habilidoso com as artes de marcenaria, havia montado ele. A reunião de Natal fazia parte do calendário da família. Nós éramos os "de fora". Vínhamos ou do rio ou de Curitiba especialmente para o ágape — e sempre emendávamos o Ano Novo junto.

Nessa pequena nesga de tempo, me era possível voltar á Porto Alegre. Porém, como não tinha idade para andar livre pela cidade, meus passeios eram nas redondezas.

Só que, naquele tempo, a Roosevelt — ou antiga Av. Eduardo, era um imenso bulevar. Tanto que a rua possuía um comércio gigantesco, era um shopping a céu aberto. A própria construção de prédios como o Gobbo, o Satélite (da Varig, na esquina da São Pedro com Farrapos) ou o King Eduardo estava no contexto de um bairro em ascensão, com lojas, cinema, clubes e associações. O Gondeleiros tinha um dos melhores carnavais de Porto Alegre.

O comércio de rua do São Geraldo naturalmente chamava gente de todas as partes da Zona Norte. Difícil comparar com algo hoje. Algo como é a Azenha, porém sem aquela populacha e trânsito frêmito de ônibus e pedestres. A Roosvelt era mais calma, até porque era uma via paralela à Farrapos, que puxava todo o tráfego norte-centro.

Lembro que a gente fazia todas as compras de natal ali. Descia do Gobbo pela penumbra porta de serviço — minha avó me levando feericamente pela rua, não sem antes parar para conversar com tudo o que era dona de boutique pelo caminho. Logo, do lado do prédio, tinha a Boutique das Noivas. Mais adiante, antes da Igreja Batista, a oficina Coruja, no fim da quadra, a gráfica Belgraf. Na Quintino Bandeira havia um restaurante que servia rã (esqueci o nome) e que também fechou faz tempo.

O comércio começava ali, na altura da lancheria Sagres; a lotérica e tabacaria, depois vinha a Livraria do Globo, Multisport, Dália (outra parada da minha avó para papear), Casas Pernambucanas, o consultório do dr. Raskin e mais uma loja que esqueci. Quase no Gondeleiros, tinha a Joilie Modas (outra parada da vó) e, ao lado, uma lanchonete (o Milka) que, até este ano, havia virado num pé sujo (onde eu primeiramente pretendia gelar a garganta mas descobri, pálido de espanto, que era um estabelecimento a menos na avenida).

Verão em Porto Alegre era um inferno. Mas, naquele tempo, a gente podia aproveitar a Roosevelt, que tinha uma belíssima iluminação noturna e uma vida idem lá para os lados do Concórdia. Sempre tinha um bar ou lanchonete onde dava para curtir até a meia-noite. época de Natal era bonito de ver tanta gente na rua: muita gente, mas com todo o tempo do mundo.

Passando a Moura Azevedo, tinha a PanVel e a Lobrás à direita de quem vai para a Sertório. A Lobrás era a minha loja preferida (euqe tinha umas sacolinhas bonitinhas quando a gente comprava balas), e principalmente porque era a que tinha a melhor seção de brinquedos do São Geraldo. Adiante, havia à esquerda a Renner (três andares, onde hoje é a Coelho Comércio de Móveis), a Soberana dos Móveis e a Imcosul. Hoje tem o Rissul na São Pedro. Naqueles tempos, o único supermercado da região era o Real, que ficava na esquina da Pernambuco. Uma pernada.

O restante do comércio se espraiava pela São Pedro, entre a Roosevelt e a Farrapos. O Marinha Magazine, do outro lado da rua, do lado de onde fica hoje a Caixa. Defronte, no 2502 da Farrapos (onde meu avô morava antes do Gobbo, depois de sair do Centro, há priscas eras), a J.H Santos, onde todo mundo ia lá aproveitar as "barbadinhas". Foi dali que eu ganhei meu Atari, no Natal de 85, sempre fingindo acreditar que eram presentes do Papai Noel.

Falando em presentes, antes da distribuição, minha avó (que, como matriarca, era a responsável pelo pregão dos presentes depois da reza inicial e agradecimentos pelo ano que passou etc etc.) pedia para que a gente não estragasse os papéis-presente. ela tinha um compartimento no armário do quarto com toneladas de papel de presente. Muitas vezes, ela comprava alguma lembrancinha para alguém em algum bazar, mas depois embrulhava o regalo com papel da Renner — aquele de Natal, que era dourado com vermelho, só para fingir que era um presente chique. eu me divertia vendo ela fazer a trampa (e depois pegava os papéis tudo de novo).

Aqueles serões de Natal eram divertidos. Até o ponto em que as famílias das famílias viravam famílias. E sempre o patriarca morria, a matriarca era o fator de coesão do grupo. Até que enfim ela partia, e todo o núcleo se desfez. Isso acontece com todas, não iria deixar de acontecer conosco.

O curioso foi que, junto com o progressivo desmanche da família Esperança, ocorreu o declínio da Roosevelt. No começo dos anos 80, surgiu o Iguatemi, seguindo uma tendência de fim de comercio de bairro pela cidade em favor de shoppings, a partir do primeiro deles, o Centro Comercial João Pessoa. Algumas lojas fecharam suas filiais no São Geraldo, como as Pernambucanas. Outras simplesmente fecharam suas portas — Imcosul, Soberana dos Móveis, Marinha Magazine e a J.H.

O comércio que ficou é pequeno, literalmente de rés do chão. E a Roosevelt congelou no tempo: o bairro está lá mas, como aconteceu comigo ao descer a avenida dos seus estertores até a Farrapos, naquela quente tarde de 25 de dezembro, estava eu na verdade em busca de outra Roosevelt, uma Roosevelt que não existe mais.






Thursday, December 08, 2016

Estação Elétrica, 40 anos



Arte do disco


O tempo passou eu me lembrei: o Estação Elétrica, único disco de estúdio do Bixo da Seda, está fazendo esse ano 40 anos. É incrível imaginar o que era para uma banda de rock do extremo sul do Brasil lançar um álbum naquela época em que rock era puro desbunde e contracultura.

Fazer rock há 40 anos atrás era como navegar pelas águas turvas e intranquilas. O mainstream era em parte aquela MPB que estava ficando cada vez mais bicho grilo, enquanto o rádio tocava somente os sucesso pré-fabricados de ocasião — basicamente os fonogramas de paus de sebo e trilhas de novelas da Rede Globo. Não que isso fosse de todo ruim; inclusive, se a gente pegar hoje aquelas trilhas, fica impressionado em ver quem como diria o André Midani, até o jabá era de qualidade.

Mas em matéria de rock, navegar pelo gênero era quase como pregar no deserto. basta lembrar que grandes clássicos que saíram na década — e que são cultuados hoje — foram retumbantes fracassos. Muitos foram lançados em selos que ou fecharam ou foram comprados por alguma grande gravadora. Por muitos anos, aquele material restou fora de catálogo.

Foi o caso do Estação Elétrica. Lembro que, quando ia a algum sebo, sempre via a capa do elepê em exposição (assim como o Por Favor Sucesso, do Liverpool). E não tinha a mínima ideia do que era aquilo. Lembro que, lá pelo começo dos anos 2000, eu comentava com um amigo a respeito de uma matéria da Bizz sobre grandes álbuns de rock esquecidos — texto, se não me engano, do Fernando Rosa, que foi um dos primeiros a inventariar todo o legado do gênero que ficou esquecido por quase três décadas e que reapareceu com a Internet.

Esse meu amigo disse que tinha os dois vinis, o Estação e o Por Favor... E me gravou ambos em CDA. Isso que, naquela época, ali por 2000, 2001, nos áureos tempos dos três-oito-meia, não havia tecnologia para baixar discos completos como hoje ou muito menos streaming (Youtube viria depois). Logo, ter acesso a esse material era ainda um privilégio.

Isso que o áudio do meu CD era, na verdade, ripado do algum vinil, totalmente artesanal. Mas estava tudo ali, exceto o Marcelo Zona Sul. Era notável observar a diferença da primeira fase Liverpool Sound — mais tropicalista, lisérgico, Mutantes, puro rock sessentista Lado B, muito melhor do que o udigrudi pasteurizado e colonizado da Jovem Guarda e a segunda, rock clássico, misturando viagens tipo Yes no lado A e um som mais básico, hard rock com uma malemolência a la Stones.

Meu choque inicial foi perceber que a Internet nos prometia essa perspectiva revolucionária: de descobrir toda uma música que ficou arquivada e que agora eu poderia usufruir. Você sempre ouvia falar do Bixo, do Fughetti e das histórias do IAPI, mas faltava ouvir o disco. Agora, não faltava nada. Virei fã na primeira audição, e é sempre uma delícia ouvir o estação, assim como tantos álbuns clássicos e que passaram batidos por tanto tempo, todo o prog nacional que havia ficado prá trás.

Rock era algo interdito por aqui. Imagine o que era fazer música em Porto Alegre nos anos 70. O estabilishment do nosso burgo açoriano não queria saber de aglomerações de jovens em lugar nenhum. Se em outras cidades, como no Rio de Janeiro, havia uma certa permissividade, por parte dos órgãos do governo, para a realização de shows, aqui era quase uma aventura para se conseguir liberação de algum evento. A coisa mudaria a partir do Musipuc e com as Rodas de Som, produzidas pelo Carlinhos Hartlieb, em 75. No Clube de Cultura, direto da Zona Norte, o Bixo da Seda começava a sair do casulo. As tardes de sábados e domingos eram povoadas pelas guitarras de Mimi, Edinho e Cláudio Levitan.

Aquelas tardes no Clube seriam o prenúncio do que iria acontecer também a partir do Musipuc, que era a revolução do Vivendo a Vida de Lee. Nessa fase, Bixo e o Prosexo tocavam muito pelo interior do estado. O turma de Fughetti chegou a lotar o auditório da rádio Cultura, de Pelotas. A ideia era tocar onde fosse possível. No entanto, muitos diretório acadêmicos estava fechada para o rock. Isso naquela época em que o movimento estudantil ainda via o gênero como algo alienante ou coisa parecida.

Ou seja, parte da juventude não via com bons olhos aquelas bandas; por outro, as gravadoras simplesmente ignoravam a produção musical do estilo naquele tempo. Casos clássicos: os Mutantes foram demitidos da Phillips porque o progressivo deles era considerado hermético demais para as rádios. Outra foi o Vímana, cujo disco de estreia — totalmente produzido pela banda, foi esnobado por todas as gravadoras brasileiras. Independente de qualidade, num outro contexto musical, os dois álbuns teriam acontecido — o que não ocorreu, naquelas tempos adversos dos anos 70.



O Bixo da Seda seria o piece de resistance das Rodas de Som no Teatro de Arena, em 1975. Eles já fazia um circuito tocando em locais nomo no Sindicato dos Metalúrgicos (na Francisco Trein), perto do IAPI e venciam a resistência de parte do público local em desdenharem artistas locais. Carlinhos Hartlieb, que já mantinha contato com eles desde o Por Favor Sucesso, conseguiu amalgamar novos talentos com seus amigos veteranos.

As Rodas foram um sucesso desde a sua estreia, em 7 de março de 1975. O apoio dado pela Continental (onde Júlio Furst já dava a largada divulgando os músicos da cidade no programa do Mr Lee) fez com que os 240 lugares do Arena fosse pouco para as quase mil pessoas que estavam no lado de fora do viaduto Otávio Rocha. Isso contrariando todas as expectativas: muitos achavam que era coisa de maluco um espetáculo na madrugada de domingo em pleno Centro.

As Rodas e a nova onda de artistas impulsionou a carreira do Bixo que, um anos depois, estava de malas prontas para o Rio. eles haviam fechado contrato para a gravação de um elepê para a Continental. Ao mesmo tempo, outros grupos, como os Almôndegas, já surfando em outras praias, também se insurgiam no mercado fonográfico. foi uma época que durou exatamente o período do auge do Mr. Lee na Continental. A banda foi reformulada para as sessões. Renato Ladeira, que havia deixado a Bolha no segundo disco (apenas compôs algumas faixas, mas estava ausente de É Proibido Fumar), toca teclados e guitarra no Estação.

Uma pena que o Brasil daqueles tempos ainda não estivesse preparado para o rock. Aquela primavera musical que floresceu em Porto Alegre perdeu-se num longo inverno. E o Bixo acabou.

Quando o rock gaúcho estourou, nos anos 80, no entanto, muitos daquela nova geração paradoxalmente ia contra o legado dos anos 70. Não que isso fosse regra. Quando o disco-manifesto saiu, em 1984, a Bandaliera, agora não mais uma banda instrumental, gravava "Rockinho" do Fughetti Luz. O Bixo havia acabado, mas ele sempre estava em espírito naquela nova dentição do rock regional.

Na verdade, o Bixo da Seda nunca acabou: só fez, como é mode se dizer hoje, uma pausa. e é provável que essa redescoberta e essa permanência nasceu porque, em algum momento, outras pessoas além de mim, conseguiram uma cópia em fita cassete ou em CDA e descobriu que o rock gaúcho não começou em 1984. Começou bem antes, e a maior banda de todos os tempos por esses pagos é o Bixo da Seda.

Friday, December 02, 2016

Emotional Rescue



Se você se lembrar, logo no começo de Keith Richards: Under the Influence, o guitarrista dos Rolling Stones toca "Blue And Lonesome", faixa de (regravada por e quem a notabilizou) Little Walter que dá nome ao novo álbum da banda. No documentário, ele conta como o blues foi o café da manhã do quarteto, destaca a importância cultural da música americana tanto para o mundo quanto para a sua própria formação musical.

Dada a largada, é fácil entender onde está o começo de Blue And Lonesome. se formos olhar em retrospectiva, desde que Mick e Richards começaram a compor, deram-se conta de que não conseguiam sair do pop. Ao mesmo tempo, conseguiram um primeiro lugar nas paradas com um cover de um standard de Willie Dixon, o Barry Gordy Jr do Chicago Blues, "Little Red Rooster".

Lembro quando comprei meu primeiro disco dos Stones, o Big Hits (High Tide And Green Grass) inglês. A última faixa era o Red Rooster. Aquilo me assombrou: até então, era o que mais perto eu havia escutado de blues. Depois é que fui perceber a ousadia deles em transformar um blues rural num single. Era a contramão do sunshine pop que grudava nas paradas inglesas naqueles tempos da Invasão britânica.

O paradoxal nisso é que, ao mesmo tempo em que a banda colocou aquele gênero até então segregado nas principais rádios americanas (a maioria daqueles discos de blues era, até ali, apenas sucessos regionais de rádios idem) no primeiro plano, os Stones como compositores, foram se afastando do gênero que os formara. A partir de 65, pelo menos em estúdio, Jagger e Richards surfaram em várias tendências ao longo do tempo — cultura mod, psicodelia, country-rock, funk, disco, punk, MTV, pop, até o momento em que o paroxismo de experimentações quase provocou a cisão da dupla criativa do grupo.

A reviravolta ocorreria em 95, com o Stripped. três décadas depois, os Stones voltaram ao velho repertório ao mesmo tempo que trocaram as guitarras por violões. Quando já não mais havia necessidade de navegar nas vigas do pop, Jagger e companhia começaram o longo caminho de volta. Depois de tanto Emotional Rescue, e Undercover parecia incrível ouvi-los fazendo um cover de algo como "Little Baby" ou experimentando "Love In Vain" novamente. Aliás, a versão para o clássico do Howlin' Wolf — e consequentemente o Stripped já era uma espécie de prolepse de Blue And Lonesome: e se os Stones fizessem um disco só regravando velhos clássicos esquecidos?

Nas turnês, por conta da demandas dos fãs, as velhas canções reapareciam no set list dos shows. Keith tocou Wild Horses em Copacabana, em 2006 — algo impensável nos anos 70. Em 2015, ele resolveu lançar um álbum de inéditas com os Vinos (o Crosseyed Heart). Richards, alias que, depois de Mick, nos anos 80, resolveu ser cada vez mais autoral, até na hora de mixar as próprias faixas, como aconteceu no Bridges, deixou o seu material solo para o último disco.

Como não haveria nada de novo, pelo que se depreende no resgate emocional de Under the Influence, os Stones decidiram mudar os planos. Ao invés de emplacar algum sucesso, optaram por fazer o que faziam antes de gravar o primeiro disco. Blue And Lonesome impressiona porque é o primeiro disco da carreira do quarteto que é 100% covers. Nem na época em que eles ainda não se arriscaram em compor de verdade, eles haviam feito uma produção totalmente de versões (basta lembrar que o álbum de estreia deles, de 64, tem "Tell Me" e mais duas faixas Nanker-Phledge).

Como Keith fala em Vida, o material autoral deles se distanciava das raízes da música que os uniu ao mesmo tempo em que sua respectiva produção musical foi o que os manteve como grupo. Os Rolling Stones naturalmente nunca abandonaram o blues, muito embora este tivesse ficado num plano inferior na sua música — até o momento em que não havia necessidade de buscar o novo. Ou seja, em parte é um "retorno às raízes" como diria a imprensa ou um "resgate emocional", parafraseando a canção da banda.

No documentário de Morgan Neville, Richards põe a agulha no disco e roda Blue And Lonesome com o Little walter. Aquilo cala fundo. Até porque aquelas gravações originais (até a "I'm So Lonesome I Could Cry", que toca numa juke, no meio do filme) tem um blend especial. Aquilo soa simples e puro, uma gravações simples, como o rock deve ser — em um take, sem mixagens, com instrumentos acústicos, de preferência num registro rudimentar, como Robert Johnson. De certa forma, foi o que os Stones fizeram: nesse aspecto, foi quase como o primeiro disco. Pocas tomadas, banda ensaiada, gravada numa questão de horas, sem grandes mixagens, como um disco do Coltrane. Urgente e rude como o jazz, como o blues.

Dylan disse à Rolling Stone que sua postura singer-songwriter de certa forma matou o folk porque a essência do estilo é a versão. Ele se dizia "culpado" por ter virado autor, mas o folk não morreu; ele simplesmente se transformou à medida em que a música precisava mudar. Quer dizer, o passo não foi dado em falso. Porém, como diria o Gombrich na sua História da Arte: nem sempre o moderno ou o contemporâneo é o melhor em matéria de estética. O retorno não é um movimento único e típico da pós modernidade. Há muito coisa a aprender e a descobrir com o antigo. Desta forma, o retorno não é necessariamente nostalgia mas, sim, a busca do essencial.



Thursday, December 01, 2016

Desapegos



No começo deste ano, por motivo de força maior, tive que me desfazer da minha coleção de discos. Não sei quantos eram, mas era uma estante inteira. Isso que eu recentemente havia ganho mais vinis de amigos, embora não tenha tido sequer a oportunidade de escutá-los. O problema é que, com o passar do tempo em que fui me mudando para lugares cada vez menores, cheguei a um ponto em que sequer tinha condições de fretá-los.

No entanto, foi uma decisão que vinha sendo pensada há algum tempo. Pelo menos, desde que meu DDS 99 da Gradiente estragou de vez. O rádio estava com a luz digital apagada, os tapedecks estragados e o prato tocava sem retorno. Até que, numa última mudança, a correia estragou de vez.

Menos mal. Acho que teria sido muito mais difícil para mim se o toca-discos ainda funcionasse. Então, em março, eu dividi minha coleção entre aquilo que podia ser bricado, e aquilo que talvez rendesse algum dinheiro, e mais alguma coisa que pudesse ser vendida a curto prazo. Meu plano não deu muito certo. Eu dispunha de duas semanas para livrar-me de tudo. Um lote eu vendi, e me garantiu alguma sobrevivência. Aliás, eu sequer imaginava que os elepês rendessem dinheiro. Na verdade, nem tudo. A maior parte — e paradoxalmente a que eu mais me aferrava — não tinha valor nenhum.

Nenhum comprador demonstrou interesse nos meus discos de música clássica, que compreendia acho que 90% do meu acervo. ia desde aqueles títulos da Deutsche Grammophon até fascículos da Abril, como o Grande Compositores da Música Universal.

Lembro do meu primeiro disco de música clássica. Eu comprei num brechó, que ficava na Cristóvão Colombo, na frente da antiga Brahma. era um fascículo do Chopin. de tanto ouvir aquele velho disco riscado do Roberto Zidon na Rádio da Universidade tocando Ernesto Nazareth, eu fiquei com vontade de comprar um disco de clássico. Acabei me viciando.

O curioso é que, nesse brechó, a dona havia adquirido um lote gigantesco que certamente pertenceu a uma pessoa que colecionava discos de clássico. Imagino que fosse um senhor que morreu, a família se desfez daqueles 'trambolhos' e a dona comprou o lote. Eu passava todo dia ali. Ela nem era entendida do assunto, o negócio do brechó era roupas.

Eu notei que os discos eram escolhidos a dedo, e isso numa época em que o gênero erudito realmente fez época na história da indústria fonográfica, vamos dizer assim, brasileira. Até porque, hoje, na era digital, num nível internacional (e virtual) souberam lidar com os novos formatos e o mercado de nicho, ao passo que as novas gerações vão descobrindo esse tipo de música, e tem tudo nos fones ao passo de um clique.

Mas lembro de quando eu descia no subsolo da Casa Coelho: tudo lá embaixo era só jazz e erudito, e tinha um balconista que entendia das duas coisas. Imagino que o antigo dono dos discos costumava ir na Victor, na Krahe ou na Coelho, e saía de lá com toneladas de Karajan, Bohm, Richter, Previn, Rubenstein e Brailovski, tudo em lançamentos RCA, Columbia, DG.



Era esse tipo de material que eu encontrava ali. Acho que o básico para uma discoteca de clássico eu comprei ali, com meus morlacos de estagiário. Tanto foi que os meus discos de rock começaram a ocupar menos espaço na minha estante. E era algo curioso de se ver. Esses eruditos, em brechós e sebos da cidade, sempre eram vendidos a preço de banana. Ainda são.

A gente vivia um tempo distante da revolução do mp3 e da Wikipedia. Então, a importância que aqueles fascículos e contracapas (as contracapas, meu Deus, as contracapas!) tinham para a formação de cada um de nós era incomensurável. Os fascículos da Abril foram o meu começo. As 9 Sinfonias (caixa da Abril, com a Sinfônica de Leipzig) do Beethoven. Ao mesmo tempo em que me guiava pela rádio da UFRGS, aquilo tudo criou em mim uma obsessão por música clássica que perdura até hoje.

De vez em quando, passo em algum sebo ou no Brique da Redenção, e vejo algum disco do tipo e lembro da minha coleção. Lembro do dia em que, não podendo mais ficar com meus elepês e, tendo que entregar o apartamento, apelei para o Mensageiro da Caridade. liguei para lá e agendei que passassem para levar os discos.

Enquanto os carregadores encaixotavam tudo aquilo, eu lembrava do meu primeiro disco, de tantas madrugadas de audições, das leituras das contracapas. aquilo tudo representava uma curva de vida, de uma vida que se fez por tantos anos, álbum a álbum, adquirido e guardado com tanto carinho. Recordava do dia que aquele Hammerklavier com o Emil Gilels foi comprado, aquela caixa com a Zauberflôte também, aquele Puccini da Victrola com árias com a Lícia Albanese, as valsas do Chopin com o Arrau, a Sinfonia em Ré Menor do Beethoven com o Toscanini, o meu sonho de ter toda a Bach Edition da Telefunken (aqueles de capa azul com fotos em relevo) com todas as cantatas sacras do mestre de Eisenach, os discos do I Musici, todas aquelas capas lindas da Deutsche Grammophon, que sempre foi aquela gravadora que a gente comprava o disco pelo selo, e se não fosse por isso, era pela capa. Aquela Eroica com o Karajan que eu garimpei na Augusta, quando fui para São Paulo que, aliás, era importado e o dono da loja me cobrou uma nota por ele. Aquele fascículo do padre José Maurício que, na época, tinha a única gravação do Réquiem dele.

Em poucos minutos, o pessoal do Mensageiro colocou quase duas décadas de discos do meu acervo em sacos e caixas e desceu com tudo para o caminhão. Não podia mais mantê-los. Me senti vazio. Ainda me senti, sempre que passo na frente de um brechó com discos antigos. Fiquei órfão de meus elepês. Os de rock eu passei adiante sem remorsos. Nem eram tantos. Menos mal que, desde que eu descobri o mp3, eu fui me desapegando dos bolachões.

Não tenho fetiche por vinil, algo muito comum hoje. Mas é impossível livrar-me de toda a cultura de formação que gira em torno da minha geração de ouvinte, quando o long-play era relevante. Eu me apegava mais porque aquele acervo, com aqueles solistas, e aquelas gravações (Georgy Cziffra interpretando os estudos do Chopin), era material de uma época em que o cast dos grandes selos mantinham nomes como um Karajan, cuja imagem se misturava com suas interpretações de Beethoven, como Richter com Bach. Enfim, toda uma época de ouro do vinil de clássicos que acho que renderia um belo livro sobre o assunto.

Como eu disse, as lojas davam um destaque enorme para uma seção como a de erudito, ao mesmo tempo que as gravadoras lançavam muita coisa do gênero. Foi um boom que começou nos 60 (muitos dos meus eram daquela época, a maioria 60/70, o auge do vinil). A RCA tinha até a série Victrola, que eram edições populares de clássico, a preços módicos. Para quem se detiver, vai perceber o valor de uma contracapa de disco era como hoje eu ouvir o Piano Concerto do Schumann (tinha o disco com o Van Cliburn e o Fritz Rainer) no Youtube lendo a Wikipedia.

Por essas e outras que meus discos farão falta, mas não tanto. Eu até que ainda tenho acesso àquele manaicial de informação. O que fica é a mesma curiosidade enciclopédica que querer aprender sempre. Ou seja, não me apegava pela forma (vinil) mas pelo conteúdo.

Ele hoje está no mundo virtual. Não sei se é um apanágio zodiacal, mas eu pressinto as coisas lentamente. Então, desde muito tempo, eu já me preparava para o fatal desenlace. Lá se foi meu acervo para a caridade. E a única pessoa que daria valor aos pobres discos era este que vos escreve.

Às vezes eu aleatoriamente ouço, aqui ou ali, algum trecho da Sinfonia do Novo Mundo, do Dvorak, ou a suíte da Coppélia, ou o final do primeiro ato da La Traviata, e me perco em divagações. Fico imaginando que, em algum lugar fora do tempo, meus discos estão incorruptos, naquela mesma estante, esperando por mim.

Friday, November 25, 2016

Gabriela



Desde pequeno que queriam que Rubião fosse doutor e montasse uma banca. "Olha o dr. Basílio, com setenta anos, não precisa se preocupar com mais nada. Só dá uma passadinha por semana no escritório".

Mas não, ele queria seguir sua vocação, que era Letras. "Meu filho, o que você vai fazer com esse diploma, meu Deus? Vai ficar entregando currículo e ninguém vai te chamar, daqui a uns tempos, vai ficar sem vintém e vai ser a suprema humilhação, pedir dinheiro emprestado a amigos e ter que viver em casa de parentes. Já pensou? Viver de sofá em sofá, tendo que mendigar uma refeição por dia? É isso o que você quer?".

Sua tia lembrava do Odorico. "Aquele cocainômano imprestável e falastrão, um usurário e gastador, morreu vivendo com a mãe, com quarenta e dois anos, sozinho numa casa de praia, de caseiro para pagar a cerveja. Teve que virar caseiro em Cidreira prá sair da Cruzeiro, senão ia acabar morto ou por overdose ou baleado por algum traficante. e esse era outro idiota com diploma!".

De nada adiantava argumentar. mamãe sempre vinha com um estoque de primos e filhos de amigos bem sucedidos. E era implacável: "Imagina tu chegando no Natal da família, todo mundo com mulher e filhos e você ali, sem presente, de calça de abrigo, o idiota da vila, vai só para beber, vomitar na camisa e fazer vexame mesmo!".

Na verdade, vendo que a cantilena não redundava em nada, seus familiares começaram a meter-lhe em ridículo. "E esse concurso? Não vai fazer? É o último dia! E esse outro aqui? Também não? Puxa, você não quer nada!".

Não tardou, Rubião acabou passando em Letras. A ofensiva diminuiu, mas era uma paz armada. Logo seria impossível o convívio com sua família. No fim, formou-se e aquilo que seus pais vaticinaram realmente aconteceu. Muitos currículos e nada. "Taí, o Vítor passou naquele concurso e vai ser escriturário em Pelotas. Vai até comprar uma casa nova para a vovó e construir uma de praia lá em Itapeva, para passar as férias". A frase ficava em suspenso, como se ele esperasse o: "e quanto a você?".

Argumentavam de diferentes maneiras, forçavam um silêncio constrangedor dele quando vociferavam sobre tais assuntos. Os anos passavam, e e nada de emprego, nada de concurso, enquanto o filho de fulano ganhava promoção ou o primo tal era agora sub-chefe de alguma coisa, carro do ano e casa própria.

Nessa época, ele começou a rarear em casa. vivia de bico, para poder manter uma vida noturna. Chegar em casa a uma de madrugada, para sair às seis, ou pelo menos antes que todos acordassem. se pudesse, entrava e saía pela janela. Certo dia, numa praça, viu uma jovem, silenciosa e triste, que parecia compartilhar do mesmo desamparo.

A identidade e a angústia acabou os aproximando. Conversaram e, depois de um mês, estavam juntos. Porém, depois de um ano, a cobrança começou a partir dela. Amargurado, não podia sequer fazer qualquer reparo às acusações. Ao mesmo tempo, sentia-se culpado: afinal de contas, ela tinha razão. Aliás, todos tinham razão. Ele é que estava errado. Só que, ao contrário de sua família, não queria decepcionar a moça. sentiu-se duplamente culpado.

Vendo que sua situação era incontornável, começou a fingir-se de maluco. Depois de semanas bebendo pesado e compulsoriamente, quebrando louças e móveis ou passando dias a fio num quarto fechado, ela decidiu chamar um médico para comprovar sua insanidade. Bebeu meses a fio, até chegar quase em quadro de delirium tremens. Sempre achava graça quando dizia que pessoas nesse estado viam bichos andando pelo próprio corpo. ele não só já passava a ter essa experiência isso como também enxergava elefantes cor-de-rosa no quarto. Conclusão: estava realmente ficando maluco. "Quer ficar assim, o problema é seu", repetia, do outro lado da porta.

Foi internado na rua Santana. Enquanto o tempo passava, Rubião analisava seus companheiros: o Nelson, o Pedro o Grande e o Franklin Delano, todos aliás egressos dos bancos das Belas Letras. Era quase uma Arcádia na Pinel. Durante horas a fio, discutiam desde o Arquíloco e o Pentâmetro iâmbico até o Formalismo Russo e Estruturalismo. Parecia que estavam nas cadeiras de plástico vermelhas do Vale, como nos velhos tempos.

Numa quinta, pelo fim da manhã, Napoleão chegou esbaforido. lamentou sua derrota em Waterloo, disse que o Duque de Wellington era um gigolô e que ele havia sido derrotado apenas porque o Paissandu havia recebido a mala preta. Nosso herói explicou que, ora diabos, eram 40 mil prussianos contra 20 mil franceses. E, parafraseando Cláudio Cabral, explicou que não faz sentido receber soldo para perder e mala preta para ganhar. E quem venceu Paissandu foi o Marcílio Dias.

— Foi o Tamandaré. - respondeu Napoleão.

— Foi o Marcílio - insistiu Rubião mesmo sem estar lá muito convicto.

— Tamandaré.

— Marcílio!

— Tamandaré.

— Marcílio!

— Tamandaré.

— Marcílio!

— Tamandaré.

— Marcílio!

— Foi o Tamandaré, cacete, ele é quem comandava o Paissandu, digo, comandava o Marcílio! — disparou Napoleão, triunfante. em seguida, em tom grave, emendou:

- O negócio é o seguinte e eu vou contar prá vocês. A situação tá cínica. O Duque de Wellington e aquele general prussiano estão atrás de mim. Digo, de nós! Ele vai entrar com os seus 40 mil cavalarianos aqui e mais ainda a cavalaria russa e a prussiana. Mas nós não vamos nos entregar! Não podemos se entregar para os homens! Pegando da espada, ele empossou Rubião, Franklin, Nelson e Pedro majores.

Lutariam até o fim.

— Soldados! — bradou Bonaparte em seu cavalo branco, à guisa de General Osório: — É fácil a missão de comandar homens livres; basta mostrar-lhes o caminho do dever!

Napoleão nomeou nosso herói como seu comandante-em-chefe. Numa primeira ofensiva aliada, porém, houve um tiroteio bárbaro, que durou longos segundos. Logo, Franklin, Maurício e Pedro que, junto com os 18 do Forte, marcharam em direção do exército inglês, aos gritos de: "abaixo á plutocracia", desciam a avenida Atlântica, em direção ao Leme. Foram alvejados no caminho, à medida em que avançavam, como patos de tiro ao alvo.

Aquartelados, Major Rubião e Napoleão Bonaparte resistiam. Logo, veio a carga inimiga. Napoleão foi até a janela para jogar uma granada, mas levou um tiro de bacamarte no ventre. Desabou de costas, com estrépito. Tentou recompor-se, mas suas tripas saíram da barriga, como lombrigas pretas e disformes. Suas últimas palavras foram: "Assim morre um marechal da França!". De borco, o sangue fazia um triste desenho negro ao redor do cadáver.

Sozinho, agora era ele contra 40 mil.


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Do céu baixo e pesado de plúmbeas nuvens escuras de chumbo como um Zepelim, continuava a cair uma garoa fina e gelada.

Um vulto apareceu. O Duque de Wellington reconheceu o marechal de campo prussiano.

— Vai uma cachacinha, sr. Blücher?

— Claro, tchê. Estou congelando aqui.

Cada um deu um talagaço. Depois, o Duque pôs o binóculos, bombeou, suspirou um hausto de bafo triunfal de cachaça de Santo Antônio e disse:

— Vou atacar.

Quando foi escancarar a entrada do quartel, deparou-se com um um soldado encapotado mas com uma metralhadora na mão:

— Sr, o sargento Von Bingen está gravemente ferido sr.

— Quem foi? - quis saber Blücher.

— O tal do Rubião.

— Ele se entrega - murmurou o duque, entredentes. - Temos que pegá-lo vivo.

— Mas ele atirou na maldade, sr. Todos se entregaram, por que esse idiota fez isso?

Entraram no quartel. O pátio parecia o de um claustro, amplo. Estava vazio, chegaram com o séquito até a sala da guarda.

— O major maluco está lá dentro — revelou um soldado. — O desgraçado estava na ronda na hora da confusão.

O duque disse aos demais que iria assumir o controle da situação. Foi até a porta:

— Major Rubião.

— Quem é? - disse a voz lá do fundo.

— Sou eu, o Duque de Wellington. A oficialidade está toda presa. Te entrega que a tua vida estará garantida.

— Nem duque e nem dique vai me prender - devolveu Rubião, com a voz transfigurada pela cólera.

— Não quero derramar mais sangue.

— O sangue é meu e eu faço o que eu quiser — riu forçadamente o major.

Exasperado, o Duque mordia o cigarro apagado no canto da boca:

— Saia daí, porra, saia, seu vagabundo! Por que você não ouviu os seus pais e não passou naquele concurso do INSS?

— Não me provoque, doutor, não me provoque.

— Saia!

A porta abre. a luz de uma lamparina caiu em cheio em sua cabeça sem o quepe. Murilo tinha uma Mauser C-96 na mão direita.

— Largue essa arma, major! - gritou Wellington.

Em resposta, o major abriu fogo. Como não sabia atirar, o tiro pegou de raspão no ombro do Duque.

— Podem vir, seus chimangos de merda! Não tenho medo de vocês! — E, rindo: — Venham! Eu não tenho nada a perder!

Os outros oficiais, que estavam no pátio, vieram em direção ao duque com pistolas em punho. Wellington, que conseguira recompor-se a tempo, fitava o insolente major. Apontou o revólver e fez fogo. Largando a Mauser, Rubião levou as mãos ao peito, no lugar onde a fazenda do dólmã começava a ficar ensopada de sangue.

— Chimangada de merda...

Apoiou-se na parede às suas costas, com o olhar distante, porém numa expressão quase orgásmica de uma Santa Teresa de Bernini. Os sargentos, que irromperam na cena, continuaram a atirar no major que, por algum tempo, ficou grudado na parede dada a violência dos tiros. Uma bala o pegou na barriga, outra no braço esquerdo, mais um tiro no braço esquerdo, dois no direito, um na perna direita, outro no ombro esquerdo, as demais no peito. Foi escorregando, escorregando, à medida em que o sangue chegava ao chão, até Rubião estuporar-se finalmente como que sentado. No percurso da sua queda, a parede estava pintada com um caminho de vermelho.

Houve um momento em que Rubião pareceu recobrar as forças. Abriu bem os olhos e disse audivelmente:

— Gabriela.

Quando os médicos chegaram ele já estava morto.








Thursday, November 24, 2016

A Caixa



Esses dias, durante uma mudança, fui arrastar um armário e uma enorme caixa de fotos caiu na minha cabeça.

Enquanto eu juntava as fotos e recolocava todas no lugar, repassava uma por uma. Uma irmã da minha avó materna que eu não sei o nome, com um óculos Aghata Christie, meu pai com meu irmão no colo na véspera de Natal, uma tia num cômoro na orla de Cidreira (no tempo que havia cômoros em Cidreira) com as amigas, meu avô materno com um terno xadrez estranhíssimo, um aniversário meu no playground do Selva de Pedra, no Leblon, com garrafas de Coca-Cola antigas. Outra tia na Escola de Arte (e que abandonou a pintura para virar dona de casa), um primo montado num pônei na beira da praia, em Pinhal.

Que fim levou toda essa gente? E por que eu ainda tenho essas fotos? A gente vai herdando álbuns de fotos de parentes — e de parentes e de parentes. Até fotos antigas que não nos dizem nada. Coisas até do primeiro casamento de meu avô. de repente, olho a noiva: nunca a conheci. Sempre achei que minha avó fosse a primeira.

No fim, a sensação final é a de que era melhor não ter visto as fotos. Essa experiência de olhar fotos antigas é meio angustiante. Nós vamos guardando fotos, postais, para quê? chega a um ponto em que elas não nos dizem nada, apenas trazem tristeza. Parece que existe um certo prazer mórbido em repassar essas imagens.

Por outro lado, é incrível de se pensar em como nossa memória é um repositório pantanoso, como o manatial do Simões Lopes Neto que, como velhos álbuns de fotos, tem coisas que a gente tem certeza que esqueceu, ou que a vida acabou relegando a um arquivo morto — tão morto que, se não fossem meus retratos de infância, eu sequer lembraria de ter estado no lugar tal, ou de determinada festa de aniversário.

Parece que nós temos mais facilidade de elaborar o tempo recente, ou o passado recente. Mas o passado profundo é a história de uma outra pessoa. Minha infância é um garoto que eu conheci ou que me contaram histórias sobre ele. O que ele experimentou, viveu, presenciou ou sentiu? É impossível reconstruir esse passado. As fotos são pistas. Aquele menino com cara de perdido entre guarda-sois na praia sou eu? O que eu pensava naquela época? A fotografia parece uma filmagem curta, sem áudio. É um milagre que exista uma lembrança de um dia e um lugar. Mas meu retorno é impossível.

Quando quero lembrar-me, aí estou fabulando a história de uma outra pessoa, de um outro meu que, ao contrário do conto do Borges, é mudo. Quando me olho, já não sou eu; parece um filho que eu tive há muito tempo, e que perdi e por quem não tenho saudades. E o tempo que se passou da foto até o momento em que estou compondo esse texto é tão breve comparado as horas do dia que se arrastam desde que me acordei, hoje — um dia na vida que não irei inventariá-lo num diário e que vai se perder no sumidouro da memória. Tempo tempo perdido e que redunda em nada, nenhuma emoção, nenhuma experiência, nenhuma vida vivida (de repente, uma quinta que até eu fiz questão de deixá-lo passar, pensando na sexta, e que também desaparecerá) e que, voluntária ou involuntariamente, cai no arquivo morto.


Mudando de assunto e ficando no mesmo: terça eu estava pesquisando na Internet e lembrei da Editora Saravan, que lançava álbuns de figurinha temáticos, de futebol a novela. Na época da ditadura, era pura lavagem cerebral: a primeira parte eram figurinhas do presidente, das bandeiras dos estados, de culturas de produtos típicos de exportação brasileiros, de signos de ufanismo, algo bem de época. Na nossa inocência, nós colecionávamos isso. Quando procurei pelo álbum da novela Pai Herói, deparei-me com o fac-símile da capa.

Foi como voltar a um lugar que eu não ia faz anos. E essa sensação de voltar é sempre estranha: parece bom voltar, mas talvez fosse melhor ter ficado no presente. Sem falar da sensação mórbida de querer evocar mais e mais. a verdade é que o fac-símile me raptara. E lá estava eu evocando coisas que não me lembrava. Às vezes é bom, mas se eu me viciar nisso, talvez não volte nunca mais.


O álbum

Hoje, revendo a reprodução na Internet, é incrível a propaganda ideologicamente ufanista que era feita por esses produtos (quem conhece a música 1965 (Duas Tribos) e viveu a infância nos 70 vai entender aquela letra). Paradoxalmente, era puro entretenimento. e o fato de eu jogar bafo com a figurinha do presidente Figueiredo não me impediu de várias vezes avacalhar o Hino nacional quando a gente hasteava a bandeira no colégio e sempre acabava na Direção — aliás, quase fui expulso do Positivo por conta disso. e só parei de apupar o Hino porque ia ser expulso mesmo. Enfim, a lavagem cerebral da editora Saravan não deu muito certo.

Na época do Orkut havia uma comunidade, a Acervo Brega, que era uma espécie de base de dados maluca e colaborativa de arquivos de mp3 não de música popular brasileira, mas de música brasileira popular. Numa dessas, uma usuária postou um rip de disco vinil da canção de abertura da Família Barbapapa, que era uma animação francesa que passava na antiga TV Globinho nos anos 70. Não sei se passava em outros estados, mas passava no Rio. A apresentação, na época, era da Paula Saldanha.

Quando fui ouvir aquela música, foi catártico: devo ter chorado litros ao mesmo tempo em que toda a minha infância proustianamente apareceu diante de mim. O mais estranho foi voltar a tanta coisa que havia acontecido há tento tempo e que, por conta dessa distância temporal, havia praticamente se perdido na poeira da memória.

Não eram bagatelas que eu me recordava: a música trouxe de volta toda uma época finada, muito recente para ser chamada de nostalgia, mas também muito recente para ser esquecida — enfim, tudo aquilo de volta, como o chá com madeleines do Proust. É aquele momento quando somos raptados por uma memória involuntária. Mas que ganha uma considerável importância porque, dessas pistas e ruínas do passado, eu começo um novo álbum imaginário, onde eu tento montar os pedaços de algo relativamente ordinário que, na verdade, não deveria ser esquecido.

A gente muda, os tempos mudam, mas essas coisas permanecem enterradas na gente — como diria o Nelson Rodrigues nas suas Confissões, como sapo em macumba. Mesmo que tentemos esquecer, parece que a vida faz com que a gente acabe confrontando com essas coisas de novo, como um ajuste de contas. Existe um tempo para tudo na vida. E parece que se deixamos algo para trás, elas nos cobram a conta do esquecimento.



Deixei a música no repeat por horas e horas, e acho que passei uma madrugada inteira ouvindo aquela maldita musiquinha do Barbapapa. Lembro que a Kibon vendia latas de sorvete com a imagem da família Barbapapa. depois fui morar em outros locais. Muita gente da minha idade não conhecia o desenho. No fim, de tanto insistir e, tanto tempo passado, achei que eu estivesse é delirando. décadas depois, o mp3 no raptou de volta aos anos 70, à TV Globinho, a Paula Saldanha, o Pequeno Polegar lá na Tijuca e as apresentações de teatro (eu vestido de mandarim, contrariado porque tive que "puxar" os olhos com lápis para parecer com um chinês), a casa Sendas e os passeios de bondinho do Pão de Açúcar (eu ainda de cabelo loiro de camisa de regada listrada e botinha ortopédica, meu Deus olha isso), o Selva de Pedra, descer a Rua Almirante Guilhem de pé descalço (onde a gente escapava do sol por causa das copas das árvores mas queimava a sola dos pés na ida e na volta) num domingo de manhã com baldinho de areia e passar o dia na praia.

De repente, tocou a campainha. Pus rápido todo o resto das fotos na caixa, que joguei num canto, como se fosse uma barata seca.



Tuesday, November 22, 2016

O Fim de Big Boy


Newton Duarte, o Big Boy


Morto em 77, Big Boy foi um radialista que representou a transição da linguagem 'séria' da locução comercial para o estilo mais informal e voltado para o público jovem. Se na história do rádio, ele foi um personagem de transição, para o FM ele foi o nosso Dante, o último radialista antigo e o primeiro moderno da Frequência Modulada.

Hoje é sintomaticamente tempo de relembrar esse Dante do rádio. Ele era um locutor de uma fase de transição porque não existia no Brasil, pelo menos no rádio comercial, alguém que fosse a personificação dessa cultura jovem que surgiu durante os anos 70. Época em que, paradoxalmente, o rock ainda não era o prato principal do banquete das grandes gravadoras como seria, na década seguinte. Como radialista, ele foi o primeiro homem moderno porque personificou aquele que soube valorizar-se como emissor.

Naqueles tempos pré-internet, quando toda a virtude estava no "controle da emissor", a informação era o que diferenciava um profissonal de outro. Era a época em que um profissional de mídia, no caso, de rádio, se fazia pelas suas fontes, fossem gravadoras, artistas, assinatura de publicações internacionais, até ter contato com algum comissário de bordo da Varig que pudesse importar qualquer material quente que estivesse saindo da Europa ou Estados Unidos. Qualquer tipo de contato era importante, e deter essse controle — além de muito engenho e arte — perante uma certa audiência é o que notabilizava o profissional.

Ao mesmo tempo, também havia essa cultura inerente ao profissional de rádio, no caso, o disk-jockey — modalidade de locutor que surgiu nos Estados Unidos a partir de gente da antiga, como Allan Freed, de quem o Big Boy era naturalmente influenciado por ele. Pois esse papel do DJ e essa cultura jovem mediada por ele, além de todo o capital cultural que se transubstancia ao longo do tempo, numa época em que a informação era ainda limitada aos meios de comunicação tradicionais, cresceu consideravelmente através do tempo. eles eram aqueles que sugeriam discos, artistas, liam de cartas até a lista de sucessos da Billboard, enfim, como se usava na gíria do turfe, davam as 'barbadas' para o ouvinte. Não ouvi-lo significava ficar por fora dos acontecimentos.

Porém, com o tempo e com o advento da Internet, olhando em retrospectiva, vemos que essa cultura do DJ teve diacronicamente o seu início com o começo do rock nos Estados Unidos ainda no AM e chegou ao fim nos estertores do FM musical, no final da década passada. O surgimento do FM ainda era um período de transição — ainda mais no Brasil onde esse formato foi experimental até o fim dos anos 70.

Por ironia do destino, Big Boy, nascido Newton Duarte, que foi o locutor que padronizou o formato do DJ moderno no FM, na verdade, foi um elemento de transição: como Moisés, não chegou à Terra Prometida. No momento em que o mercado iria mudar, ele subitamente morreu. Contudo, uma era não morreu com ele: pelo contrário, Newton não viveu para ser testemunha da mudança do FM experimental para o comercial (a Eldorado mudaria exatamente um ano depois de sua morte, em 78). A grande virada seria já nos 80, época do já longínquo e vetusto BRock, gênero que mudou o perfil comercial das gravadoras — que, até o primeiro compacto da Blitz, não enxergavam qualquer viabilidade para qualquer manifestação de rock nacional. De certa forma, o Big-Bang do FM foi o BRock.

Big Boy infelizmente não pôde viver aquilo que, de certa forma, ele criou. Tudo o que ele aplicou ainda na Mundial nos tempos do AM seria a base do rádio em Freqüência Modulada e a sua progressiva segmentação a partir dos anos 80: parte das emissoras iria adotar uma postura agressivamente comercial enquanto outras optaram por uma programação mais alternativa. E foi um mercado que, diferentemente de hoje, podia, por conta disso, absorver um grande número de profissionais.

Pelo menos uma coisa elas tinham em comum: como ainda vivia-se num período em que a grana rolava no meio rádio ou, pelo menos, enquanto essa verba entrava (seja lá de qual forma) lá, esse modelo se sustentou, e por um longo tempo. Aliás, foi justamente o tempo em que os DJ ainda detinham esse perfil de "oráculo". Havia o capital informacional do 'emissor' e a cultura típica da rádio, na relação entre a emissora e seus respectivos ouvintes.

Claro que podemos dizer que isso ainda existe — e certamente sempre irá existir. Mas esse perfil oracular do DJ, e essa importância do locutor na cultura do rádio, antes da Internet, era considerável se compararmos com hoje: a música não "passa" mais pelo rádio ao mesmo tempo em que aquele "dinheiro" também não passa mais como passava. Foi como uma Serra Pelada, foi algo muito grande enquanto durou, mas o formato foi exaurido pela Internet.

Sem tristezas nem saudades, as gravadoras hoje podem prescindir doS DJS, os artistas, de certa forma, não precisam gravitar em torno de programas de rádio — se compararmos que estar fora do esquema nos anos 70/80 era quase como pregar no deserto ou estar proscrito. Se a indústria fatura hoje com o streaming e todo a informação rola na Internet, o rádio, mesmo tempo um alcance gigantesco, ainda amais no interior do Brasil, acaba tornando-se redundante.

A consequência disso é a próprio abastardamento da figura do disk-jockey no FM. Nos últimos anos, mesmo com o natural protesto de muitos ouvintes, o espaço e a importância dessas rádios jovens (ou rádio rock, muito embora o rótulo rock atualmente seja tão passé quanto o próprio rock) vem diminuindo. As que não acabam tornam-se enlatadas via satélite, estão virando repetidoras de hard-news. Mesmo grandes figurões do FM de outros tempos hoje são progressivamente alijados do microfone, E têm como alternativa apenas o formato web — obrigando-se a viverem por conta e compartilhando o espaço virtual com todo mundo.

Ao mesmo tempo, pelo fato de que a Informação emana da própria Internet, ele se vê diminuído; a sua expertise não mais lhe dá qualquer garantia de importância. Mesmo que exista vida na rádio web, o antigo DJ não possui nem 10% da grandeza dos tempos do vinil.

Enfim, nunca imaginou-se que pudéssemos chegar a uma época em que o espécimen do DJ clássico chegasse a um franco e definitivo processo de extinção. Que fique claro: o 'apresentador de programas', como salientamos acima, não deixará de existir.

Mas ele não é o DJ. em alguns casos, o 'apresentador' está diante do microfone por outros motivos — até porque, em alguns casos, ele é aquele que 'puxa' anunciantes para a emissora ou o seu respectivo programa. logo, não é bem a expertise aquilo que o dignifica. A questão é que ter ou não a devida expertise, e num contexto adverso, onde esse capital informacional — a carta na manga que o notabilizava e que o valorizava — está disponível para todos, não significa um elemento diferencial para franquear seu devido espaço no éter. Analisando friamente, uma rádio hoje não faria a mínima questão de manter um espécime desse tipo em seu cast. A não ser que ele seja o dono da dita cuja. do contrário, é defenestrado sob a alegação de 'falta de verbas'. Enfim, o seu destino é o ostracismo amplo e irrestrito.

Philip Roth, atavismo jurássico do tempo que se fazia literatura no mundo, disse que a cultura literária vai morrer daqui a duas décadas — da mesma forma, vaticina que será o tempo em que o livro chegará ao fim (há quem diga que o livro já acabou há 20 anos). Da mesma forma, se pensarmos em rádio, em rupturas provocadas pela cibercultura, tanto o escritor quanto o disc-jockeys são resquícios de um tempo em que esse movimento de acesso à informação era a forma principal de acesso a uma "cultura" e a uma visão de mundo "diferenciada". Nós podemos, mesmo sob protesto — como o fáustico Andrew Keen (*), tecer uma catilinária (e claro que esse artigo tem desavergonhada influência do Culto do Amador) contra esse engodo provocado pela Internet e contra esse "ultraje contra a cultura e inteligência humanas", etc. Mas a verdade é que chegamos ao fim de um ciclo e que, hoje sim, Big Boy está definitivamente morto e enterrado.


(*) O Culto do Amador, Andrew Keen, Zahar, 2009.


Friday, November 11, 2016

Invadindo o Éter


Um Transglobe


Há tempos atrás, tive que me mudar e fiquei sem internet. Ao mesmo tempo, um vizinho faleceu e como a família dele pôs muita coisa que não teve tempo de vender fora, eu herdei um Transglobe Philco, um rádio feito para pegar ondas curtas. Como naquele tempo eu tinha um estéreo que, apesar de estar quebrando, ainda funcionava como auxiliar do áudio do meu note (só o rádio funcionava, as funções de CD e casette já estragaram faz tempo), eu o usava.

Com a mudança, eu perdi meu computador, que queimou, e não tem conserto. Ao mesmo temopo, fiquei definitivamente sem Internet em casa e sem rádio. O Transglobe, que eu havia deixado de lado por meses, acabou se tornando a minha única alternativa em casa.

Claro que, a partir dali, sendo só eu, um colchão e um rádio, o aparelho ganhou uma outra dimensão para mim. Principalmente em dias intermináveis, quando eu tinha que ficar o dia em casa, pelo fato de não ter alternativas, chuva ou por ser domingo. O que me salvou, por meses a fio foram os poucos livros que eu ainda carregava comigo e o Transglobe.

Sem querer, voltei ao tempo em que eu era guri e descobri o rádio. Naqueles tempos, sem tevê no quarto, sem Internet, que ainda não existia, a saída era o rádio. Aliás, sempre foi: sempre e cada vezes mais, ele para mim é o único eletrodoméstico possível. Meu primeiro rádio era um de pilhas, pequeno e azul. Pegava após o AM.

Meu pai um dia comprou um rádio-gravador CCE com headphones, que ele usava no quarto, numa época em que ele era fanático por Faixa do cidadão. Foi uma mania dele que, meses depois, passou. e eu herdei aquele rádio-gravador que, além da banda de Am, tinha três de Onda Curta.

Como ele não era exatamente o equipamento ideal para captar ondas tropicais desse tipo — a antena telescópica era curta — eu pouco usava a OC. Porém agora, com um Transglobe, e com sete faixas, eu podia ia muito além da escuta em onda média. O Transglobe tem um dial estendido, isto é, tem uma faixa maior, que permite que seja possível pegar uma emissora no "detalhe", uma rádio de potência baixa do pado de uma com potência alta. Por exemplo, mesmo com a LBV rachando no 1300 khz, eu consigo captar a Tupi do Rio nos 1280. Num radinho de pilhas, isso seria impossível.

Com o Transglobe, agora, eu conseguia pegar emissoras de fora, e de bem longe das da região metropolitana de Porto Alegre, entre elas a ABC 900 e até a São Francisco, de Caxias. Claro que é mais fácil de noite, e no inverno, quando o período noturno é maior. A partir dos estertores da primavera, o dia amanhece muito cedo. A Tupi começa a desaparecer ali pelas cinco da manhã. Ao mesmo tempo, no Inverno, eu cinda consigo pegar rádios de Santa catarina, como a Marabá ou a Porto feliz, ou a Frequência, de Garopaba, Porém, sempre ou no fim da noite ou no começo da manhã, já que a maioria delas sai do ar á meia-noite.

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Meu problema com a onda curta era o total desconhecimento da rotina de escuta nessas faixas. O segundo é que o meu Transglobe tem o ponteiro do dial travado. Então, quando eu uso o seletor para mudar de faixas (35m, 31m, etc), eu faço na base do voo cego: não sei onde nem o que eu vou sintonizar. Porém, consigo notar que essas duas faixas são as que t~em mais incidência de rádios.

A outra questão é que, ao contrário do Am, onde tudo parece estático, a OC é dinâmica. A rádio que eu pago num sábado de tarde eu posso não achá-la amanhã; algumas emissoras que fazem world Service muitas vezes o fazem em determinados horários. Ou seja, não é comum num FM, quando você sintoniza e fica escutando o dia inteiro. Terminou a transmissão para determinado lugar ou espaço geográfico, o sinal some.

Mais: a recepção sobre com as intempéries aqui ou no local da emissão, com a atividade do sol, com a estação do ano. Outras, por exemplo, eu posso achá-la agora mas, de repente, levar meses eu talvez sabe-se lá quando eu irei sintonizá-la novamente. Lembro que aquela que eu peguei tocando uns Berber music, e que tocava aquele tipo de música marroquina, como a daquele disco do Brian Jones, o Joujuka, era realmente marroquina, era a Radio Medi1 de Tanger.

Só descobri o resto da história por causa da Internet. de fato, eles transmitem ao vivo regionais de música bêrbere. Muitas vezes, essas apresentações duram quase vinte minutos, e dão uma ideia do que é esse tipo de música. Achei a Med por acaso, no meio da interpretação, e aquilo não acabava nunca. de repente, alguém falava algo que eu não pude entender. e a música recomeçou. entediado, resolvi passar a estação e não achei mais a Med1.

Das nacionais, me acostumei com a rádio Aparecida que, aliás, não é a única religiosa. Já peguei uma gospel dos estados Unidos, mas não consegui descobrir de onde era ou esqueci. Peguei de noite, e o som era bom. Peguei outras religiosas, mas evangélicas. Por sinal, tanto no Oc quando no AM, é o que mais existe. Parece que, pelo fato de que muitas pentecostais ou arredores não permitam seus respectivos fiés verem TV, o meio principal de difusão delas é, justamente, o rádio.

Não tenho estatísticas quanto ao número de estações no Brasil que sejam hoje eminentemente religiosas. Mas, pelo alto, é possível dizer que são elas que ainda mantém de pé o rádio analógico enquanto fenômeno de massas e de ouvintes. Também cato quase sempre a Rádio Brasil Central até o começo da madrugada, e a Rádio Trans Mundial de manha

Das internacionais, peguei a Martí, para Cuba (de Miami especificamente, mas para a Ilha), a já citada Med1, Rádio Internacional da China mas em espanhol. depois pelas, 4 ela sumiu do dial.


Estações internacionais eu consigo pegar até que em qualquer parte do dia. Contudo, as brasileiras eu sei que, em geral, ficam no ar até lá pelas duas da manhã. Quando eu morava em Curitiba, pegava a Guaíba e a Gaúcha em OC. Porém, hoje, noto que as duas emissoras, depois do advento da Internet, meio que negligenciam essas transmissões. eles inclusive não mais anunciam a interrupção das transmissões em onda curta de madrugada. e quando algum ouvinte rádio-escuta pergunta, os apresentadores em geral não sabem o que responder.

A verdade é que a Internet mudou muito a prática tanto das rádio a respeito da OC, quando á imensa legião de ouvintes dessas faixas. Como acontece com os usuários de um Transglobe, como eu, eles são cada vez menores. É de se imaginar qual seja o perfil de um rádio-escuta de OC hoje, quando nem as próprias agências, jornais e outros meios de comunicação sequer utilizam os serviços mundias de muitas emissoras remanescentes que ainda fazem uso dessa tecnologia para difusão cultural e de radiojornalismo.

Como se sabe, foi uma época que cresceu muito com a Guerra fria e que, mais tarde, com o a queda do Muro e o advento da Internet, foi diminuindo de forma exponencial. Até mesmo rádios como a Guaíba que, desde o começo, sempre fez uso de boletins de estações como BBC, rádio Nederland, Voz da América, com o tempo, só mantinham essa prática por atavismo — até porque, por tradição, a antiga Caldas Júnior sempre deu um valor incomensurável à editoria de mundo, seja no impresso quanto na Guaíba.

Hoje, ao contrário, nem existem razões para manter esse tipo de tecnologia que só não posso chamar de obsoleta porque, depois de me achar tornando-me um rádio-escuta das antigas, muitas rádios ainda não só transmitem na faixa da OC quando algumas, que se fizeram nessa onda, como a Aparecida, produz conteúdo especial para ouvintes dessa faixa. O número de emissoras que faz uso continuo de OC ou Onda Tropical aqui no Brasil se pelo menos não é equiparável às de Am, pelo menos é expressivo o suficiente para que alguém possa dizer que a OC analógica ainda funciona — pelo menos enquanto a digitalização não fazer com que meu Transblobe vire peça de museu.







Wednesday, October 26, 2016

O Império Contra Ataca



Meme da época do Stop Online Piracy Act



Há pouco tempo, a a Warner Music Group firmou contrato com a SoundCloud, legalizando instantaneamente uma enorme quantidade de músicas postadas no serviço. Segundo a Forbes, o negócio foi na casa dos US$ 120 milhões só para comprar 5% da empresa, que vale hoje mais de US$ 1,2 bilhão. Ainda de acordo com a revista, essa é a ponta do iceberg do que ela chamou de revolução silenciosa da digitalização da indústria fonográfica.

Quem tem boa memória deve lembrar do acordo que a Universal fez com os sites de streaming, com vistas a franquear todo o catálogo dos Beatles. Junto com isso, veio uma espécie de salvaguarda de curadoria do conteúdo desses e de outros artistas, todos devidamente protegidos mediante contratos que prevém um considerável retorno para as respectivas gravadoras.

Desde o advento do mp3, os tubarões da indústria fonográfica ficaram a ver navios com o aparecimento de sites de download, como o Napster e seus desdobramentos, até o aparecimento de páginas de upload e compartilhamento, como o Rapidshare. Isso não faz muito tempo, porém, já é um capítulo da história da música dos anos 2000.

Ainda puxando pela memória dos leitores: muitos devem lembrar de quando apareceu o Rapidshare (ainda com o site baseado na Dinamarca). aquela tecnologia, que acenava já com os ares da Web 2.0, permitia que arquivos maiores fossem divididos entre usuários em comum — em sua maioria, baseados em redes sociais de caráter folksonômico*, como o Orkut, quanto em blogs — mais especialmente os respectivamente hospedados no Google/blogger. Foi a Era do download, o eldorado da cultura Mp3.

A isso, deu-se o crescimento do acesso a informação sobre artistas/discos/selos, através da Wikipédia — tentativamente uma forma de catalogar um tipo de informação que estava dispersa na Internet. Na mesma época, sairia o livro 1001 Albuns You Must Hear Before You Die. Ao êxito editorial da publicação, veio a classificação de uma lista de material a ser ouvido (agora, com a web, com possibilidades infinitas) também a (re) descoberta tanto de clássicos antigos quanto da 'auratização' de bom material que as próprias gravadoras, no afã de conciliar suas vendas com uma relativa atualização de seus catálogos.

A verdade é que, mesmo com o CD, a maioria dos selos não estava nem interessada e nem preparada para publicizar todo o seu respectivo catálogo. Muitos ainda se apegavam ao vinil por conta disso: muita coisa não seria digitalizada, pelo menos, a curto prazo. Com a avalanche do mp3, esse prazo foi jogado para as calendas gregas.

De certa forma, a frenética demanda de downloads liquidava com os lucros das gravadoras enquanto rapinava o catálogo mainstream. Contudo, o que boa parte dos internautas buscava era, com efeito, a cauda longa** desse processo, quer dizer, o que seria o mercado de nicho — todo o resto da música que nem a própria indústria conseguia resgatar dos seus arquivos.

A fórmula redes sociais (Orkut) mais Blogger foi uma época bem específica: de certa forma, começou com a popularização do Orkut, com a transformação do blog em páginas tematizadas de download, lá por 2005/6, e durou a polêmica do Stop Online Piracy Act***, casuísmo do Congresso americano, em defesa das empresas lesadas pelo processo, cujo corolário foi o fechamento das páginas de upload/download (Rapidshare e Megaupload), do Orkut, além do fechamento de milhares de blogs.

A verdade é que, se essa caça às bruxas deu algum resultado foi mostrar que, se as gravadoras não conseguiam combater esse fenômeno (o download), queriam pelo menos mostrar do que seriam capazes. A verdade é que até mesmo eles sabiam que é impossível conter de todo esse fluxo. E, afinal de contes, como se sabe, ainda é possível baixar música livremente pela Internet. Porém, ao invés de tentar caçar downloaders, as gravadoras resolveram dar o passo á frente. se não é possível vencer o inimigo, junte-se à eles.

Depois da tempestade, as gravadoras remanescentes — Warner, Universal e Sony, compram participações em sites como o Spotify e em satartups de vídeos. Em troca de um valioso acervo musical (que é mais barato e logisticamente digitalizar para streaming do que vender em Cds, aliás, desnecessário conceber algo diferente disso), elas obtêm participações irrisórias para, num segundo momento, se possível, comprar partes maiores com descontos substanciais para vender.

Ainda de acordo com a Forbes, essas 'três grandes' ganharam posições nesses startups na casa dos US$ 3 bilhões. A tendência é esse capital atingir a ionosfera quando o Spotify vingar prá valer: basta lembrar que os grandes artistas estão ainda em processo de migração para as páginas de streaming. é uma questão de tempo para que, em alguns anos, tudo, ou praticamente tudo possa ser encontrado nessas ferramentas virtuais. Ou seja, demorou, mas o Império contra atacou.

Quando isso acontecer, os grandes tubarões irão finalmente comemorar. A nova lógica do lucro digital, somado à tecnologia (agora aliada à facilidade do acesso aos arquivos de áudio, através de dispositivos móveis, algo impensado no começo da web 2.0, lá por 2006, quando menos gente tinha acesso ao digital e todos ainda dependiam de desktops para ouvir e baixar música, os selos deram o passo adiante e pegaram o internauta em cheio. Hoje, quase uma década depois, algo dinossáurico como o SOPA não faz sentido algum. O download em mp3 pode correr á solta, mas a promessa de lucro somada ao fato de que elas hoje detém o mesmo conteúdo porém disponibilizado de uma forma mais atraente para um usuário/comprador que considera o mp3 quase que como coisa do passado. e as páginas de uploads cada vez mais se reciclam, agora para os mais diversos usos.

E os artistas? A pergunta é: quem ganha nesse ínterim? Certo é que os artistas/compositores ganham pouco ou nada com esse movimento mercadológico com relação ao que acontecia antes da derrocada. Por trás da recusa de gente como Neil Young em proibir sua música no streaming, mais além do que ele alegara (má qualidade de áudio, o que, em parte, ele está soterradíssimo de razão), o problema reside no fato de que os artistas extraem um valor mínimo de royalties desses novos canais, e obtém pouco ou nenhum controle. Como disse John Oates, da dupla Halll & Oates: “Essa é a história do ramo musical”.



* Folksonomia é um termo conhecido em Informação na web, porém pouco difundido. Refere-se à taxonomização de metadados executado colaborativamente pelos usuários da Internet, através de ferramentas de buscas de sites.

** Recomendo o livro A Cauda Longa, de Chris Anderson, que fala sobre os fluxos e refluxos da economia virtual.

*** Lei norte-americana de 2012, que autorizaria o Departamento de Justiça dos Estados Unidos e os detentores de direitos autorais a obter ordens judiciais contra sites que estejam facilitando ou infringindo os direitos de autor ou cometendo outros delitos e estejam fora da jurisdição estadunidense.

Friday, October 21, 2016

Baladas Sangrentas


Capa do No One Cares

O In Wee Small Hours, do Frank Sinatra, sempre foi o meu disco de cabeceira. Prá mim, o maior de todos. Na verdade, nem sempre foi assim. Mas, a partir de quando eu comecei a ouvir o disco como um filme, eu pensei no álbum como se ele contasse uma história. Mais do que isso: ele é o primeiro capítulo dessa história — contada em torch songs — e que compreende outros cinco discos, culminando no Point of No Return (1962).

Quando retomou sua carreira, após ganhar o Oscar, Sinatra assinou com a Capitol, selo que estava formando um cast de cantores 'adultos'. Ou seja, para um artista maduro como ele, as possibilidades eram infinitas. Foi lá que ele concebeu a ideia de fazer albuns concetuais. Quer dizer, ao invés de ser uma rescolta de canções sem um tema definido, ele decidiu enfeixar os temas de de um long-play, o novo formato de audição fonográfica.

Depois de dois trabalhos em dez polegadas, Songs for Young Lovers (53) e Swing Easy (54), ele lança o In Wee Small Hours (55), já em formato vinil e em dois discos de 10 polegadas. O disco marcou época e atravessou gerações, chegando como o primeiro do livro 1001 Albuns You Must Hear Before You Die. Seus trabalhos mais comerciais ficariam reservados aos 78 rotações. Em compensação, Sinatra teria liberdade artística de ousar no formato vinil.

Dessa forma, de 53 até 62, ele lençaria uma série de discos 'programáticos, ora baseados em swing,(Come Dance With Me, com uma orquesta de 57 músicos, comandada por Billy May) ora em baladas (Close to You, com um formato mais camerístico). Nesse meio tempo, ele elaboraria um ciclo destinado apenas à fossa.

O que ele tem de tão especial assim? É um disco de fossa que tem a mística reforçada porque críticos em geral relacionam o trabalho com os rumos da carreira sentimental de Sinatra. Para a maioria deles — e de seus muitos fãs, as canções são endereçadas à uma pessoa em especial: Ava Gardner.

Sinatra foi casado com ela entre 51 e 53 e divorciaram-se em 57. Como se sabe, foi um romance cheio de arrufos. O casal, porém, havia anunciado a separação em 53 e o processo de divórcio começou no ano seguinte. Ele não a esqueceria jamais, e ainda ficariam amigos pelo resto da vida.

Note-se que, pela seleção de canções do 'In Wee', o desenlace ainda parece forte na interpretação dos temas. Consta que ele teria chorado após o master de "When Your Lover Has Gone". O tempo todo, parece que ele fala de um amor precocemente perdido, quase que a um passo de uma desesperada reconciliação ("I See Your Face Before Me"). Ao mesmo tempo, quando embalde racionaliza ("I'll Never Be the Same), ele cai num sentimento de prostração sem precedentes ("This Love of Mine").

O segundo disco do ciclo é o Close to You (57) e segue a mesma lenga do anterior. Porém, o arranjador, Gordon Jenkins, opta por um octeto de cordas (com eventualmente algum instrumento de sopro), dando um tom mais soturno ao álbum, que culmina com "The End of a Love Affair" (depois gravado pela Lady day no Lady In Satin).

Where Are You? é o terceiro vinil do ciclo de fossa ditch do Sinatra. Mais conhecido que o anterior, é cheio de regravações dos tempos da Columbia. Porém, todas melhores: "Laura" e "The Night We Called It a Day". Aqui ele apresenta "I'm a Fool to Want You" e "Autumn Leaves". Os arranjos, por sua vez, fazem com que os músicos basicamente acompanham Frank que, por sua vez, quase declama. Essa fase, por sinal, coincide com o fim do processo de divórcio com Ava, o que explica o paroxismo da tristeza.

Contudo, o paroxismo dos paroxismos de Sinatra é Sings for Only the Lonely. Este, a despeito de seguir a mesma fórmula, leva-a às trevas. Aqui, ele volta a trabalhar com Riddle (com a produção a cargo do seu spalla, Felix Slatkin). Nelson, que havia perdido esposa e filha recentemente, deu o tom trevoso ao disco. Frank parece que saiu do tribunal após a consumação do divórcio direto para os microfones do estúdio da Capitol em Hollywood. Um disco terrível de se ouvir, mas que vai ficando melhor depois da 600º audição.

Only The Lonely tem os seus clássicos que, se não eram antes de Sinatra, viraram com ele: "Angel Eyes", "What's New?", "Blues in the Night", "Guess I'll Hang My Tears Out to Dry" e, é claro, "One for My Baby (and One More for the Road)", aliás, música do "chefe", Johnny Mercer. Talvez seja o melhor de todos os álbuns do gênero "torch" mas, não é tão marcante quanto o In Wee, que tem um quê de recém traumático; o "Only" soa mais como o fundo do poço em pessoa.

O quinto elepê de fossa é o No One Cares, aquele lá de cima, onde ele aparece na capa de gabardine, olhando para o fundo do copo de uísque e alheio ao burburinho ao redor dele. Esse é quase um volume 2 (contudo com Jenkins na produção, ao invés de Riddle) do anterior, porém com um tema cardinal, "When No One Cares", do Sammy Cahn, que é seguido por mais um punhado de clássicos, onde ele parece, depois do fundo do poço, passar por um processo de elaboração da perda, com músicas como "Just Friends" ou "Here's That Rainy Day".

o sexto é último é Point of No Return (62). O título se explica: é o derradeiro trabalho de Frank com a Capitol. desde o ano anterior, ele já havia fundado o seu próprio selo, a Reprise, e já tinha alguns discos por lá. Mesmo aparentemente deslocado dos anteriores, parece ser a perfeita coda para um dos ciclos mais interessantes em toda a história da indústria fonográfica.

Já passados alguns anos do fim, Sinatra opta por canções que, depois de todo o desalento e de todo o sentimento de perda, ele parece ter transformado aquele silencioso desespero dos álbuns anteriores numa dolorosa e comovente nostalgia. nessa vibração, aqui ele interpreta "I'll Remember April", "I'll See You Again", "These Foolish Things" e termina como se deixando um recado, com as músicas que fecham o lado B: "I'll Be Seeing You" e provavelmente a mais bela versão de "Memories of You". Aliás, a forma como ele a canta, especialmente nos versos finais, parecem um último suspiro de tudo o que parece um longo e langoroso discurso, quase uma terapia, e que começou lá atrás, no In Wee Small Hours.
"Pont Of No Return" também é o ponto final em todo esse processo — de tal arte que, depois dali, ele não mais repetiria a fórmula. No máximo com All Alone e o Sinatra & Strings (ambos da fase Reprise, como o Watertown, mas já em outro contexto, já que ali ele entra apenas com a voz) mas que, antes de tudo, são discos de baladas, não de torch songs. Isso reforça a tese deste blogueiro, a de que o ciclo se encerra justamente ali.

O discografia de Frank Sinatra é tão variada e diversa. Porém, se tirarmos todos os álbuns como quem tira o triângulo do monte de bolas de bilhar, esse ciclo de discos de fossa compreendem um ciclo perfeito (ainda a minha tese), com começo, meio e fim. A tempestade passou, e agora ele pode partir para sempre.





Wednesday, October 19, 2016

A Comédia Humana de Dylan


O compositor

Bob Dylan ganhou o Nobel de Literatura e, desde quinta, eu tenho ouvido e lido muita coisa a respeito contra e a favor. Porém, acho que nem quem critica quanto quem corrobora a opinião da Academia Sueca deve ter entendido o motivo pelo qual o cantor-compositor americano foi escolhido como o premiado deste ano.

A explicação da Academia: Dylan deu “novas expressões poéticas dentro da grande tradição da canção americana”. Mesmo a despeito dessa afirmativa, muitos têm dito que isso "abriu precedentes", etc. Outros vão mais além: acham que, daqui a pouco, qualquer youtuber ou blogueiro pode acabar concorrendo para o Nobel.

É claro que há muito exagero nessa polêmica. Até porque a maioria desses críticos não conhece Dylan. Além do mais, primeiro: a Academia estava para conceder o prêmio há quase duas décadas; segundo: a premiação se dá não por um disco, mas pelo conjunto da obra.

Creio que a única forma de entender os porquês da escolha residem aí. O agraciado não desejou escrever uma discografia que abarcasse toda a tradição da música folclórica americana. isso foi uma coisa que aconteceu. Ele não foi como um Balzac, que decidiu, a altos brados, dizer que iria escrever a crônica da burguesia francesa na sua Comédia Humana.

Dylan era uma jovem cria do renascimento do folk porém num ambiente boêmio e urbano, em Nova Iorque. Ao mesmo tempo, acabou se relacionando com uma geração que lutava pelos Direitos Civis e que tinha em Newport, uma meca esquerdista, a sua pátria. Como todos aqueles jovens, Bob ouviu de cabo a rabo o The Anthology of American Folk Music, caixa concebida pelo musicólogo Harry Smith. A partir de tudo o que ele ouviu quando jovem, Dylan começou a criar a sua obra.

Porém, ao invés de simplesmente interpretar aquelas músicas, como muitos fizeram (como Joan Baez), ele resolveu usar aquele material como uma espécie de ponto de partida para uma obra singular.

É como na história da arte: existem centenas de pinturas da madona, e cada artista, ao longo do tempo, recriou, através de engenho arte e de sua ideologia, a sua nova versão do mesmo tema. Nesse sentido, Dylan tornou-se um esteta daquele espólio cultural; além de um cantor-compositor, ele repassou todas aquelas músicas numa perspectiva autoral e, ainda assim, e mais, dialogando com a música do seu tempo — além do folk, o blues, o rock, originando daí a sua respectiva natural fusão.

Sendo mais específico: boa parte da discografia de Bob Dylan é uma paráfrase de uma tradição e de músicas que já existiam. Contudo, ele foi o primeiro a incorporar essa música e dar-lhe cara e nome.

Dylan é original em parte. Se o é, o é sendo um compilador esperto e inteligente. Porém, quando transforma esses motivos em material autoral, ele mistura visões artísticas, citações literárias, paráfrases, incidentes linguísticos, mistura Chuck Berry com Allen Ginsberg (Subterranean Homesick Blues), reinventa músicas tradicionais (Maggie's farm, Blowin' in the Wind, Ballad of Hollis Brown). Elmore James (Pledging my Time). Como Bach nas suas cantatas, ele recriou uma música preexistente mas, de forma obstinada, ao invés de copiar, resolveu colocar em tudo o seu toque pessoal.

Esse processo criativo Dylan usou em praticamente todos os seus discos, em 50 anos de carreira, e essa intertextualidade em sua paleta é algo que ainda está em processo de ser decifrado. O próprio Garth Hudson, quando ensaiava com Bob em Woodstock, não sabia bem ao certo o que era cover e o que era música dele.

Poderia fazer uma comparação com Sinatra. Este, porém, não poderia ganhar um Nobel, é claro, já que era, antes de tudo, um intérprete. Mas Frank foi o artista que pegou todas as grandes canções do Great American Songbook e tornou-se o seu cantor seminal. Sinatra colocou as canções do Tim Pan Alley no topo do mundo*. Da mesma forma, porém sendo menos popular e mais autoral, Dylan pegou a música americana folclórica e atualizou-a, dando-lhe a devida importância e, mesmo não sendo um grande cantor, deu-lhes uma voz. A grande música americana tem essa dívida respectivamente com Sinatra e com Dylan: Sinatra por ser o intérprete do grande sonho americano; Dylan por ser a voz telúrica, maternal e mercurial da música norte-americana do século XX.

Isso não é pouca coisa. e talvez seja muito para apenas um Nobel de Literatura.




* E curioso e ligeiramente sintomático que, nos últimos discos, Dylan tenha optado justamente por virar intérprete de canções do Tim Pan Alley, uma geração que, de certa forma, ele ajudou a liquidar...



Saturday, October 01, 2016

A Cidade do Chope


O Chalé

Tem uma propaganda da Guaíba sobre o Chalé da Praça XV que anuncia buffet de feijoada ao som da banda da Lapa, com o “melhor do chorinho e do samba de raiz”.
Parece ser uma boa pedida para um sábado. Porém, vivemos um tempo não só de gentrificação de espaços públicos históricos quanto de anacronismos culturais.

Não que eu queira aqui estar bancando o conservador ou o defensor do patrimônio público. Não. Mas é interessante observar como os usos e costumes — se não descaracterizam o local, criam um outro tipo de ritual.
Em alguns casos, esses lugares resistem: é o caso do Mercado Público, que fica ao lado do Chalé, e é o seu irmão mais velho: data ainda do Segundo Reinado, quando a Praça quinze chamava-se Conde D’Eu.

Hoje nós vivemos a era dos supermercados. Agora imagine o leitor como era adquirir mantimentos há um século. No tempo de nossas avós, as casas não tinham geladeiras e os mercadinhos rareavam. Logo, o Mercado era a Meca dos secos e molhados.

Até meados do século passado, o Mercadão era literalmente o mercado público. O advento das grandes redes e os mercados de bairro quase mataram ele. Nos anos 80, naquela onda de demolições, ele quase virou estacionamento.

Hoje nós ainda podemos contar com o Marcado. Contudo, com o tempo, a gentrificação foi o preço da sua sobrevivência. Para não morrer, o local teve que dançar conforme a música: de Meca dos secos e molhados, o prédio virou um ponto turístico e um ambiente de culto à memória e às tradições da vida urbana da cidade. Quem não gosta de levar um visitante a provar um sorvete na Banca 40?

Antes que procurem no dicionário: “gentrificação” é, via de regra, a gourmetização do espeço público. No caso do Mercado, até os anos 80, ou seja, até a reforma e a sua reinauguração, em 1997, era um ponto de comida barata, produtos de preço de ocasião, e antro de pés sujos. Com a reforma, o espaço se modernizou.

Um exemplo são os tradicionais restaurantes dali. Há meio século, era o ponto onde o sem-culotes que habitava nosso pequeno burgo açoriano bebia a sua primeira e santa cerveja da tarde.

Hoje, ao correr a vista no cardápio, é difícil encarar. Virou arapuca para turista. Ao mesmo tempo, com a mudança do caráter dos estabelecimentos e o aumento da oferta de serviços de mesma monta, o Mercado tem um outro público. A rigor, hoje, aqueles que teimosamente ainda frequentam o centro de Porto Alegre.

Restaurantes extintos dali, como o Treviso, eram locais que não fechavam nunca — e possuíam uma frequência considerável durante as madrugadas, principalmente porque o comércio e as redações de jornais ficavam todas no Centro. Ou seja, o Mercado era never sleeps.
Hoje, ele dorme com as corujas.

Falei tudo isso para chegar no Chalé. Por exemplo, para o tipo de cardápio que ele hoje vocifera aos sábados (feijoada e samba) é algo totalmente diferente do que era ou foi o estabelecimento, quando surgiu, no começo do Século XX.

Reitero: não quero ser o chato da história. Mas, para ver como os usos e costumes mudam com o tempo, o Chalé surgiu num tempo em que a colônia alemã (ou teutônica, como diria o Nilo Ruschel) na capital era gigantesca, e tomava conta de agremiações esportivas, lojas, cervejarias (até a época da Guerra, a Ritter, a Sassen e a Bopp, depois comprada pela Continental e depois a Brahma, mas essa é também outra história), o diabo.

Aliás, como o Chalé, a maior parte dos chopes de Porto Alegre nasceram de raiz germânica: o Gambrinus, o Zeppelin, o Zither Franz, o Lilliput, o Bretstubel, o Rhinengold (nome wagneriano), o Berger e inclusive o antológico dona Maria, que ficava na José Montaury, ao lado da Globo (outro antigo ponto-de-encontro da boemia jornalística de Porto Alegre, mas isto é uma outra história), pertencia a Maria Hopf, que começara trabalhando no citado Gambrinus.

Havia outros bares de raiz teutônica: o Hubertus, na Otávio Rocha, a Confeitaria Jahn, a Coroa, da Frayu Krantz, ao lado da Galeria Chaves e a antiga Woltmann que, como a Colombo, funcionava inclusive como um café-cantante.

O Chalé, segundo o Ruschel, foi construído em estilo bávaro, e o ferro foi todo importado da Alemanha. Naquelas priscas eras, não se trabalhava com esse material por aqui, tudo vinha de lá. O engenheiro ou arquiteto mandava o projeto e eles mandavam os insumos.
Naturalmente que esses chopes, e inclusive o Chalé, fosse um local onde toda a comunidade alemã da cidade se encontrassem. E, para acentuar a cor local (como diz Ruschel), o quiosque tinha (e prá quem for lá ainda hoje, está lá) um pequeno palco, quase no teto, onde ficava um pequeno conjunto regional, que se empoleirava e tocava dobrados ou até a carga da Cavalaria Ligeira, do Von Suppé.

Ou então, tocava ali um trio clássico, com violino, piano e violoncelo, e tocavam desde Chopin até Beethoven. Ou então, como diz Ruschel, o regional puxava algumas marchinhas marciais, e a estudantada cantava junto, mesmo brasileiros — entre eles, Paulo de Gouvêa, Teodomiro Tostes, Athos Damasceno e muitos outros, que se tornariam intelectuais do começo da Revista do Globo e da imprensa do começo do século passado.

Ruschel conta do espanto do ensaísta R. Magalhães Júnior ao presenciar, aqui em Porto Alegre, no Hubertus ou no Chalé, o desfile de cantores e cantoras entoando lieder de Schubert ou valsas do Strauss filho nos germânicos saraus noturnos de então: “meu Deus, isso aqui não é o Brasil, eu estou em Viena ou no Prater”.

Resumindo: o Chalé pertence a uma época de ascendência da comunidade germânica na cidade, época que morreu depois da I Guerra e foi varrida depois da Segunda. Aliás, a biografia do arquiteto Theo Wiederspahn fala muito da injustiça que ele (e muitos outros) sofreu por ser de origem teutônica a partir de então (mas isso também é assunto para um próximo post). época essa cujo mais simbólico atavismo é, justamente, o famoso quiosque que existe ali até hoje — e que parece estar tão longe de suas origens culturais. Pelo menos o chope ainda resiste!