Monday, March 30, 2020

O Último Carnaval



O Carnaval de 1919


“Além disso, sobreveio a morte de inúmeras pessoas que, certamente, se tivessem merecido ajuda, teriam sobrevivido. Em decorrência da escassez de serviços no momento azado, que os doentes precisavam mas não alcançavam, e também em vista da violência da peste, era tão grande o número dos que faleciam, de dia e de noite, na cidade, que provocava estupefação escutar, e ainda mais ver, o que ocorria. Porque por força das circunstâncias, muitas coisas que contrariavam os costumes básicos de qualquer cidadão, começaram a existir entre os que permaneciam vivos”.

“O tratamento dado às pessoas mais pobres, e à maioria da gente da classe média, era ainda da maior miséria. Em sua maioria, tal gente era retida em suas próprias casas, ou por esperança, ou por pobreza. Ficando, deste modo, nas proximidades dos doentes e dos mortos, os que sobreviviam ficavam doentes aos milhares por dia; como não eram medicados, nem recebiam ajuda de espécie alguma, morriam todos quase sem redenção. Muitos eram os que findavam seus dias na rua, de dia ou de noite. Inúmeros outros, mesmo morrendo em suas residências, levavam os seus vizinhos a não se manifestarem, mais por causa do mau cheiro dos próprios corpos em decomposição, do que por outro motivo. De pessoas assim de outras, que faleciam em toda parte, as casas estavam cheias”.

“Tão grande era o número de mortos que, escasseando os caixões, os cadáveres eram postos em cima de simples tábuas. Não foi um só o caixão a receber dois ou três mortos simultaneamente. Também não sucedeu uma vez apenas que esposa e marido, ou dois e três irmãos, ou pai e filho,  foram encerrados no mesmo féretro. Muitíssimos destes fatos podiam ser narrados. E infinitas vezes se viu que, indo dois clérigos, com uma cruz por alguém, atrás do primeiro se colocaram dois ou três ou quatro caixões, carregados por seus respectivos portadores; assim sendo, onde supunham os padres ter um morto para enterrar, havia sete ou oito; com freqüência, até mais. Tais mortos excedentes eram, por esta razão, homenageados com alguma lágrima, às vezes, ou alguma vela, ou alguma companhia”.

A descrição acima, feita por Boccacio, no começo do clássico Decamerão, faz um retrato sem retoques do que foi a Peste Negra na Europa, mais precisamente em Florença, no século XIV. Na narrativa, a peste é o ponto de partida para que um grupo de jovens fuja da cidade, e isolado da epidemia, decida enfim contar histórias para passar o tempo.

As cenas da peste, descritas por uma testemunha ocular da história, no entanto, não estão longe do cotidiano do que se vê no auge de uma pandemia. Tanto que essas descrições poderiam se encaixar perfeitamente no que foi a Gripe Espanhola de 1918 quando atingiu o Rio de Janeiro em 1918, como descreve Ruy Castro em Metrópole à Beira-Mar. Aliás, assim como Bocaccio, ele abre o livro, que conta a história dos anos 1920 na Capital Federal, com o apocalipse que tomou conta da cidade por dois anos.

No fim da guerra, o Brasil enviou conselheiros militares para a França. A embarcação parou em Dakar.  Sem desconfiar, eles ficaram expostos a uma gripe que havia chegado à Europa no final do conflito, por intermédio das tropas norte-americanas. Em pouco tempo, quase toda a tripulação fora contaminada e quase duzentos morreram pouco depois de entrarem em contato com o vírus.

Ninguém tinha a menor ideia do que era aquilo. Num espaço de dois anos, a pandemia, que entraria para a história com o nome de Gripe Espanhola iria matar cerca de 50 milhões de pessoas em todo o mundo.  O vírus apareceu nos estertores da Primeira Guerra, quando não havia maiores perspectivas com relação a vencedores e vencidos: havia, sim, apenas o desejo do fim daquele longo e traumático conflito.

A medicina não soube à época do que se tratava. O certo, e que se soube muito tempo depois é que, a despeito do nome, ela não surgiu em terras ibéricas. Na verdade, muitos outros países a contraíram mas a Espanha, que estava neutra na guerra, foi o primeiro país a publicizar de fato os primeiros casos, que atingiram grande parte de sua população, incluindo o rei Alfonso. O que se sabe hoje é que ela veio dos Estados Unidos. E que não era uma gripezinha qualquer.  Ela começou a se disseminar no começo de 1918 pela Europa, até espalhar-se pelo resto do mundo e Brasil de setembro em diante.

Ela ia de uma singela dor de cabeça até um quadro de um piriri e cansaço extremo e dificuldade de respiração, cuja conseqüência era cianose dos extremos do corpo, tosse, tosse, tosse, hemoptise e morte.  Matou desde o sociólogo Max Weber até o presidente do Brasil, Rodrigues Alves.

Conta a história que a Espanhola chegou sorrateira e discreta, a bordo da embarcação Demerara, que havia fundeado em Dakar antes de aportar no Rio.  Boa parte da tripulação, marinheiros, por exemplo, entraram em contato com cariocas a partir de arredores do cais e nos mafuás da vida. A cidade não estava preparada para uma pandemia desconhecida como aquela. Em semanas, pessoas começavam a apresentar os sintomas citados acima, indo a óbito em questão de horas.

A fim de conter o contágio, as pessoas recorriam a remédios caseiros, de sopa de galinha e benzeduras a cachaça com limão. No começo diz Ruy Castro, as pessoas brincavam com a epidemia, dizendo que se tratava de alguma arma secreta provocada pelos alemães, que teriam colocado algum veneno de efeito retardado nas salsichas que eram exportadas para cá.

Importante lembrar que cidades como o Rio, assim como Recife, Santos, Salvador e Porto Alegre eram, naquele tempo, essencialmente portuárias: tudo passava pelo cais, de produtos até passageiros em massa. 

Delas, o Rio seria a urbe mais atingida pela Espanhola, com gente morrendo aos magotes, como Bocaccio descreve no primeiro capítulo do Decamerão. O precário sistema hospitalar da época não dava conta. Não havia leitos para todos; as pessoas morriam em questão de horas, a maioria durante um improvável atendimento: muitos em estágio terminal, já vomitando sangue e com os dedos das mãos e pés enegrecidos, no estágio avançado da doença. Em dado momento, não havia mais remédios, nem razão de ministrá-los a pessoas que estavam à beira-morte.

Não havia qualquer possibilidade de logística para velórios e enterros. Não havia caixão ou covas suficientes. Esquifes eram improvisados. Cadáveres ficavam pacientemente deitados à frente das casas, à espera de que ambulâncias os levassem. Corpos eram atirados em caçambas como se fossem lixo, muitos ainda moribundos, eram carregados com os mortos – às vezes, como diz Pedro Nava em suas memórias, citadas por Ruy Castro, crianças ainda vivas eram carregadas com suas respectivas mães mortas. 

Muitos deles eram sacrificados na hora pelos padioleiros. Em campas improvisadas, eram finalmente cremados e inumados de qualquer maneira, em valas comuns e sem identificação nenhuma.  Nesse meio tempo, era comum amigos do alheio roubarem pertences dos defuntos, de dentes de ouro até jóias.

Em dado momento, nem o decoro do luto fazia sentido; eram tantos os vitimados que já não havia quem vendesse víveres nos armazéns. De repente, não havia mais víveres. Os poucos secos e molhados que tinham coragem de abrir eram atacados por horas de pessoas, em geral infectadas, que apelavam para o saque de produtos de primeira necessidade. Com a escassez, os produtos custavam cada vez mais caro: um honesto e preclaro ovo custava o equivalente a uma galinha viva.

Os poucos jornais que circulavam avisavam seus parcos leitores a evitarem aglomerações e ou transporte público, estabelecimentos, escolas e fábricas. O centro do Rio se transformou numa cidade fantasma, com exceção das igrejas, onde muitos iam rezar como se fosse pela derradeira vez. Logo, policiais eram obrigados a fazer sentinela, de forma a que tais estabelecimentos pudessem funcionar. 

Em menos de um ano de Espanhola, mais da metade dos cariocas haviam contraído o vírus. Até o final do ano, quando boa parte da população passou a desenvolver resistência à gripe. “Assim como surgira, a gripe fora embora”, diz Castro. “Não por alguma poção ou magia, mas porque as pessoas haviam ficado imunes”. 

Segundo ele, se poucas semanas antes, a população estava à beira-morte, agora se encontrava às vésperas do tríduo momesco de 1919. “Quem sobreviveu não perderia por nada aquele Carnaval”, diz. Os festejos seriam as exéquias daquele período negro na história da Capital Federal. De repente, a então vazia avenida Rio Branco passou a se encher de foliões se perdiam no entrudo na batalha de lança-perfume, enquanto davam passagem às bandas de música da polícia e dos bombeiros. A Light dera passe livre para a população, que encheu o centro com ranchos carnavalescos, desfiles de corsos e a chegança de blocos, como o Cordão da Bola Preta. Mas, mesmo que existisse o medo de que aquela maldita gripe voltasse, ninguém parecia se importar. E se fosse o último Carnaval da história da humanidade?


Referências

Boccacio, Decamerão. Tradução de Torrieri Guimarães, Abril, 1979
Ruy Castro, Metrópole à Beira-Mar. Companhia das Letras, 2019. 


Thursday, March 19, 2020

Um certo Nestor Verissimo





O Tempo e o Vento, mais precisamente no Arquipélago, que fala da última geração dos Terra Cambará e suas relações com o contexto cultural e político entre as décadas de 1920 e 1940, tem um motivo condutor que vai desde o começo da trilogia. No livro, erico Verissimo aborda as contradições entre tradição e modernidade. Isso está plasmado nas falas dos personagens, desde Bibiana e Dr. Winter até Babalo, sogro de Rodrigo Cambará e Tia Maria Amélia. Rodrigo, uma pessoa refinada, que estudou na capital, por exemplo, defende a tecnologia, o avião, o trem, o fonógrafo, o rádio; Aderbal acha um ultraje, e defende os modos antigos. Maria Valéria também.   

Esse tema, na verdade, segundo o escritor, foi o fator que o motivou a escrever os três livros. Ele conta de um tio, Nestor que, não vendo uma pilha de discos num canapé, senta sobre eles, quebrando-os. Essa foi a epifania que fez com que Verissimo passasse a olhar como coisas novas como discos eram algo totalmente fora da cultura daquele povo perdido no sul do continente.

Nestor, diz Verissimo, nas suas memórias, foi o modelo para um dos principais personagens das segunda e terceira parte da obra, Toríbio, o irmão de Rodrigo na história. ele, Toríbio, é o modelo desse gaúcho, forte como um touro, que tem uma cultura das lides campeiras, mas que gostava de ler. Aqui, para mim, uma licença poética do autor, já que, assim como a imagem de latin lover do Capitão Rodrigo, vão além das fronteiras da verossimilhança. Nestor Verissimo também pode ser encontrado no marido de Bibiana: um homem corajoso, que divida a vida entre o campo e nutre uma nostalgia dos tempos de guerra.

Fato é que o contexto ajuda na urdidura desses personagens. Por exemplo, tanto o Rodrigo, Toríbio bisavô quanto o bisneto cruzaram mais de um século de história do Rio Grande do sul entre guerras. Curiosamente, as guerras do século XIX em O Continente não estão presentes de fato nas páginas do primeiro volume da trilogia. Isso ao contrário do Arquipélago, onde o próprio Erico teve a experiência vivida nos tempos das revoltas de 1923 e 1928, como prático de farmácia, atendendo guerrilheiros feridos.

Talvez por isso, e justamente por isso, a experiência narrativa da história desses episódios seja tão forte e tão bem documentada em O Arquipélago. Muitos daqueles eventos que ocorrerem entre a região da Campanha e a fronteira norte do Rio Grande do sul estivessem tão presentes no livro. A dramática tomada da intendência, as mortes, a tensão do clima político de um grupo de combatentes se batendo contra forças federais e contra o presidente do Estado, Borges de Madeiros, estão nas conversas e diálogos dos personagens.

Porém, o mais interessante na terceira parte do O Tempo e o Vento é sua estrutura narrativa, tão cheia de detalhes e pesquisa histórica. O próprio Erico dizia que, saindo do universo míticodo primeiro tomo, ele precisava agora "entrar na história".

Outro fator importante: se pegarmos os capítulos Lenço Encarnado e Um Certo major Toríbio (cujo título dialoga naturalmente com Capitão Rodrigo de o Continente). poderiam ser considerados, respectivamente, como a Ilíada e a Odisseia na obra de Erico. 

Enquanto ele narra a guerra e evoca lembranças de juventude, recriando o passado, ele estrutura o Lenço como um episódio de guerra, enquanto o capítulo seguinte narra, de forma um tanto rocambolesca, a trajetória de Toríbio na Coluna Prestes, e toda a aflição de sua família, pelo fato de que as informações sobre a Coluna estavam censuradas, como diz José Augusto Drummond e, durante todo o processo da marcha, muito pouca informação chegava ao público. No próprio Arquipélago, Rodrigo fica sabendo da suposta morte de Toríbio através de um relato de um tropeiro.

Mas a questão é que Nestor, o alter-ego de Toríbio, sobreviveu à toda a marcha, quando foi preso na Bahia numa emboscada da PM. No cadafalso, um tenente o interpelou, perguntando quem ele era. ele diz que era um Verissimo de Cruz Alta. O tenente respondeu que havia estado por lá na caça à Coluna. Aí vem a pergunta: você conhece fulana de tal? Nestor não conhecia mas, cidade pequena, era quase como se conhecesse. Como Odisseu, ardilosamente disse que eram primos. Foi quando o tenente o libertou e o convidou para cear em sua barraca. Posteriormente ele foi preso no Rio e libertado, meses depois. 

A cena foi recriada em O Arquipélago; contudo, Erico trocou o nome da "prima" pelo de Rodrigo. O oficial disse que havia estado no Sobrado, e ambos ficaram amigos para sempre da hora para a outra. quando finalmente voltou á sua terra, Nestor quis conhecer quem era a sua "salvadora"...
Acho que Toríbio, pelos relatos de Verissimo, está tanto no Capitão Rodrigo quanto até no jeito engraçadamente grotesco de Aderbal, um personagem bastante subestimado na trilogia. No final do capítulo Um Certo major Toríbio, também como Odisseu, na terra dos Feácios, o irmão de Rodrigo em casa narra a sua história, com as escaramuças, as cenas de batalha, o sofrimento da marcha, a vida famélica no dia-a-dia da Coluna e, por fim, descreve os personagens importantes da cruzada e os "desconhecidos".

Se o seu relato parece pitoresco e um pouco nostálgico, é como se ele narrasse a história da sua vida, ainda com um certo orgulho do gaúcho guerrilheiro. Mas Rodrigo, ao analisar a postura de muitos em querer insistir na luta contra Borges e Bernardes, depois da experiência de 1923, com tantas mortes, já começa a achar que aquele orgulho campeiro, de estar em guerra, era algo que não tinha mais razão de ser. Aqui entra a própria crítica do autor, e que também permeia toda a obra: O Tempo e o Vento não é um épico, não é um livro de exaltação à vida, às tradições gaúchos. Ao contrário, é um livro que, enfim, é regionalista, embora não-tradicionalista. essa é uma leitura que ele mesmo explica em Solo de Clarineta, mas que muitas outras leituras e visões sobre a trilogia não conseguem ver: o "anti-tradicionalismo" e o embate entre o antigo e o moderno na tradições gaúchas.




Referências:

Solo de Clarineta, Globo, 1974.
O Arquipélago, Globo, 1973.
José Augusto Drummond, Coluna Prestes, Rebeldes errantes, Brasiliense, 1985.