Sunday, May 31, 2020

No tempo das coletâneas

A mãe de todas as coletâneas As 14 mais, da CBS


Coletânea é uma faca de dois gumes. Por um lado, ela ajuda um ouvinte a entrar em contato com determinado artista ou gênero. Por outro, ela é uma forma fácil das gravadoras darem vazão ao catálogo, ao mesmo tempo que produzem discos baratos e, de quebra, orientam o consumidor a direcionar o seu gosto para determinado gênero ou tendência. Aqui, no Brasil, creio que uma das pioneiras foi a das 14 Mais da CBS, essa da imagem aí, de cima, que vendeu muito e sempre era carreada por alguma faixa de um grande atista do selo que só aparecia ali. Era, pois, um produto valorizado. Mas é importante lembrar que as 14 nasceram no que eu poderia chamar de primeira fase da popularização do vinil no país. Quando a série acabou, nos anos 70, já estávamos no que eu poderia chamar de segunda fase do disco, na década citada acima, quando a produção e consumo de vinil aumentou de forma exponencial.

Ao longo daquela década, a coletânea virou moeda fácil para a indústria fonográfica. Muitas delas entraram fundo nisso. A Som Livre, a partir dos álbuns de novelas, descobriu uma ótimo filão, quando percebeu que era mais fácil negociar fonogramas de outras gravadoras do que apostar em trilhas originais para as novelas da Globo. Algumas empresas demoraram a entrar no esquema, como a Philips. Só depois da saída de André Midani, que ela entrou no esquema. Quando eles perceberam, marcas como a própria Som Livre estava tomando conta do mercado. Seria possível entender que, se ela não nasceu nesse momento, é nos anos 70 que ocorre, junto com a popularização de equipamentos eletrônicos, que esse formato se torna massivo. Os anos 80 assitiram ao paroxismo dessa prática.

Lembro que havia coletâneas de toda a forma, sobre tudo, desde novelas, coletâneas sob  o nome de emissoras de rádio, como a Mundial e a Excelsior, até marcas de refrigerante ou cigarro. Quem não se lembra das da marca Hollywood? Ou então das do selo estrangeito K-Tel responsável por trazer, de certa forma, muitos fonogramas dos anos 50, 60 e 70, e que eram difíceis de achar? Pois, se a coletânea era a salvação para as gravadoras, principalmente em momentos de estagnação do mercado fonofráfico, como no começo dos anos 80 ou dos anos 90, por outro lado, ela ajudava o discófilo a encontrar aquela determinada canção que ele não achava em parte alguma, e só poderia encontrá-la em discos importados ou gravando a partir de programas de rádio (pratica muito comum naqueles tempos, e que a geração de hoje sequer imagina o que era ficar ouvindo rádio de vigília esperando aquela determinada canção tocar?).

Esses discos podiam ser desprezados por colecionadores "sérios" de disco. Mas a verdade é que elas eram responsáveis por boa parte da receita dessas gravadoras. E muitos dos consumidores menos puristas, no fundo, adoravam esse tipo de produto. Não precisaria dizer que, olhando em retrospectiva, muitos daqueles ouvintes de antigamente têm uma inconfessa nostalgia das coletâneas. Lembro de estar vasculhando coleções em um sebo. Nisso, chega uma pessoa. Ela pede ao dono da loja determinada música, "assim, assim".

O dono naturalmente sabia onde encontrá-la, e mostrou o álbum, e a pessoa foi para casa feliz porque havia achado aquele disco com aquela determinada canção. O engraçado nisso é que a música (me lembro bem) que ele queria era "Satisfaction". Ele queria essa mesma, a faixa dos Stones. O vendedor lhe repassou o famoso Big Hits (High Tide and Green Grass), uma seleção já fora de catálogo da banda inglesa, só que era uma cópia importada, norte-americana. O comprador, como deu para perceber, não sabia nada disso, se era disco raro, se era importado, se era mono ou estéreo, se a capa era simples ou dupla, se a foto da capa era sensacional ou não, ele simplesmente queria a música. E levou.

Escrevendo isso eu lembrei que existem as coletâneas de bandas. Acho que poderíamos dividi-las em dois grupos. As de artistas ou grupos que sempre atualizam a sua produção lançando seleções de suas faixas, seja "as melhores" ou "as mais vendidas" (de compactos mais vendidos). E existe o outro grupo, a coletânea que resume um artista ou banda e, mesmo que a gente resolva, como sempre acontece, ir "da coletânea para desbravar a discografia", chega a conclusão de que eles nasceram para serem artistas de coletânea. É um rótulo meio perigoso e polêmico de se dizer, mas a gente sabe que existe artista que tem o seu "one hit wonder" e o resto do disco é uma sublime encheção de linguiça.

Ou tem aquela banda (não citarei nomes, mas você imagine) que a coletânea tem 12 faixas, e aquelas 12 são o melhor mesmo. A gente ouve os álbuns e chega a conclusão que o "the best of" é mais do que suficiente. Tenta, tenta embalde ouvir, reouvir os discos, mas não tem jeito. Ainda sobre coletâneas, podemos dizer que existe aquela coisa dos afetos. A cultura do disco, com esse expediente da coletânea, fez com que os ouvintes se apegassem à esses discos que, com o tempo, acabaram granjeando um status de culto. É o caso dos discos de novela da Globo. Muitos daqueles discos, que sempre eram desprezados por discófilos como coisa de "povão",  hoje são relançados, como se fossem clássicos em vinil.

Por exemplo, lá por 74, a música "La Chanson Pour Anna", com o Free Sound Orchestra, trilha da novela Fogo sobre Terra, fez um sucesso gigantesco. Tanto que os autores da faixa vieram ao Brasil, impressionados com o sucesso da canção, que acabou saindo tanto na trilha da novela quanto em outra, também da Som Livre, a Super Parada Mundial, volume 2. Isso é uma loucura, porque quem era da época hoje tem como referências esses discos. Não diria todo mundo, mas sempre tem alguém que guarda saudade dessas coletâneas. Essas pessoas são como o cidadão que comprou aquele disco dos Stones por causa de uma faixa. Também pesquisando em sebos, lembro de um casal. Eles estavam procurando o Beatles Ballads, uma coletânea ordinária, mas eles queriam aquela, por causa de alguma canção dali, algo como "Something".

A nota engraçada é que o balconista não encontrou o elepê no estoque. Mas encontrou outros discos onde havia a tal música. Contudo, o casal bateu pé. Queria o Ballads. Então pediram desculpas e foram procurar o álbum em outro sebo. Eu, claro, estava me deliciando com isso. É uma coisa que fala muito do afeto das pessoas com essas materialidades. Não era uma questão de querer o disco raro, o disco importado, o disco em estéreo verdadeiro, o disco com a versão tal. Eles queriam a coletânea tal, imagino que porque aquilo falava muito a respeito ou deles, que de repente tiveram esse disco e resolveram readiquiri-lo. Ou então, o que pode ser mais lógico, era um presente para alguém que pediu justamente esse disco. Porém, mesmo assim, eu interpretaria como um ato desassombrado mais associado a afetos e nostalgia do que essa coisa da cultura discófila, ou seja, do colecionador chato.

A gente imagina que a maioria esmagadora são desses consumidores mais desassombrados com relação ao produto, é algo mais de coração do que de cérebro. E esse era o tipo de consumidor potencial dessas coletâneas. Lembro de incontáveis vezes de estar em lojas de discos e o vendedor estar sempre naquela tarefa de gincana de descobrir qual era a canção que o cliente desajava. Não sabendo o nome dela, recorria para o solfejo, dizia, é uma assim, "lálálálálá". E o vendedor tinha que descobrir qual era a música. Ou a pessoa que chegava determinado a comprar "aquela faixa", que as gravadoras e eles sabiam, era a "carro-chefe" do disco. Lembro, falando em coletâneas de novela, da Sol de Verão Internacional. Aliás, da nacional também.

Era sempre uma faixa que acabava puxando a venda do disco. Em determinado momento, as gravadoras preferiam apostar em esquema com esses discos de novela do que lançar em compacto. O disco de novela, aqui, era o "single", fincionava a guisa de. Então volto ao caso desses discos da novela Sol de Verão (1982). Não tenho números quantitativos para afirmar, mas creio que a versão nacional foi impulsionada por "Você não soube me amar", da Blitz que, na época, tocava sem parar. Já a "internacional" foi também um fato curioso. A novela estourou a faixa "I Don't Wanna Dance", do Eddy Grant. Por causa dessa canção, que tocava na novela e teve clipe no Fantástico, ela foi praticamente responsável por carrear as vendas do vinil que, no fim daquele ano, havia desaparecido das prateleiras das lojas. Digo isso de cátedra porque eu fui um dos que queria o elepê por causa dessa faixa e não pude comprá-lo.

Essas coletâneas, se formos pensar, elas tiveram um ciclo, e que culminou com o próprio fim das trilhas das novelas da Globo. Porém, houve um rebote. No final dos anos 80, na mesma medida que surgia o CD no Brasil com realmente força foi outra época de recessão. O resultado é que as vendas não deslanchavam, as pessoas ainda estavam presas a cultura do vinil enquanto descobriam perplexas as promessas do novo som digital. O CD era inquebrável, não tinha chiado, dirava para sempre, etc. O problema é que era caro, e o player também era. Naquele tempo, ainda não existiam aquelas portáteis que a gente tanto levava para a praia no final dos anos 90.

Enfim, CD era um grande investimento mas ainda era inviável, um sonho de consumo para depois. Muita gente comprava um ou outro mas não tinha previsão de ter o aparelho nem de ter condições financeiras de deslanchar uma coleção digital. As gravadoras também sentiram que isso era uma barreira para deslanchar o próprio catálogo em compact disc. Havia ainda a dor de cabeça de trocar todos os elepês por similares em versão digitalizada. Discos que alguns colecionadores levaram décadas a procurar, e que agora existiam em qualidade superior? Teve gente que se desfez dos discos e hoje se arrepende, com certeza. Ou não.

A verdade é que o mercado precisava dar vazão á nova tecnologia. E acredito que é por isso (é a minha hipótese) que os anos 90 a popularização do CD no Brasil ocorreu através de outro boom de coletâneas. Foi uma profusão de seleções de toda a forma. Desde a Gold Collection, da EMI, passando pela Nossa História e Personalidade (de MPB da Polygram), e muitas outras. Os originais não eram lançados em CD. Na Europa ou Estados Unidos, por exemplo, as majors acabavam confiando o lançamento de catálogo antigo a subsidiárias, como a See For Miles ou a Rhino. Aqui, com a necessidade de aguentar a crise, os selos vendiam coletânea. No começo, eram meio caras.

Mas havia a possibilidade de ouvir som limpo, etc. Então essa chantegam do digital funcionou como uma bolha para que esse formato pontificasse novamente no mercado fonográfico. O efeito coleteral é que, no final dos anos 90, a oferta de coletâneas nas lojas era pornográfica. Havia de toda a sorte, para todos os bolsos e gostos. Muita porcaria, inclusive. O lado bom é que, como muitas delas sobravam nos balaios, essas coletâneas serviam de solução para dar de presente ou para amigo secreto, enfim, esas coisas. Resolveu a dor de cabeça de saber o que regalar alguém e as gravadoras sempre encontravam um escoadouro para um tipo de produto que, sem que eles soubessem, já estava meio que chegando ao fim do seu ciclo.

Como vocês sabem, nessa mesma época, surgiu o Mp3. No final dos anos 2000, esse novo formato foi responsável pela exumação de praticamente todo o catálogo possível de todas as majors e muito mais. Ao mesmo tempo, o novo ouvinte, ele mesmo podia fazer a "sua" coletânea. Quer dizer, o novo formato mudou a forma de ouvir e criou um novo tipo de consumidor (que, na verdade, não consumia, já que os downloads eram, via de regra, ilegais, mas isso é outra história). As gravadoras sentiram o baque.

As coletâneas, que eram o cavalo de batalha delas em matéria de receita fácil, não tinham mais razão de ser. A ordem agora era a de fidelizar o consumidor com um produto mais diferenciado, caprichar nos encartes, investir em projetos como caixas. Houve uma depuração. Na história do disco, a coletânea terminou o seu caminho. Na verdade, se formos pensar, ela nasce com o vinil. Afinal de contas, os primeiros lançamentos em long-play não deixavam de ser coletâneas, como o The Voice of Frank Sinatra, da Columbia, lá de 1949, claro que numa época onde o que se vendia era ainda o 78 rotações.

O compacto, por sinal, havia nascido naquele mesmo ano. Com o passar dos anos, passou-se a investir no álbum do artista, como eram os discos de jazz. A coletânea era uma forma de requentar a discografia do artista, já que, na Europa, por exemplo, a música destinada ao compacto não saía no long-play. A coletânea servia, pois, de complemento, quando ela fornecia ao consumidor canções que não haviam sido lançadas em vinil. É o caso da primeira dos Beatles, de 1966 e que, naturalmente, está fora de catálogo há décadas. Lembro do Greatest do Bob Dylan, foi a primeira vez que eu pus ele na agulha do meu DDS 99 da Gradiente. Ou da do duo Simon and Garfunkel.

Ambas eram e são fáceis de achar em sebos por aí afora. Muitas delas formaram o caráter de tanta gente. Lembro de uma, chamada Yeah, Yeah, Yeah, da EMI, de 1983. Era praticamente toda dedicada a Invasão Britânica dos anos 60. Naqueles tempos muito pré-internet, um disco como aquelas era uma mina de ouro. Muitas daquelas faixas você só as encontrava ali se fosse procurar em lojas de disco. Por isso elas foram tão importantes. Hoje, todos aqueles fonogramas estão disponíveis na Internet, em streaming. Inclusive, se o ilustre leitor jogar no Google, é capaz de achar o próprio disco para download. A gente comprava coletânea como aposta. Será que essa banda é boa? Gostava, depois, nós compramos toda a discografia de muita gente, ouviu, reouviu, mas sempre voltou para aquela lembrança da primeira vez, a primeira vez foi numa coletânea.

O que dizer mais? Qe as coletâneas não existem mais. Elas eram uma forma de atualizar o repertório do artista, de oferecer uma oportunidade de um primeiro contato com ele, esses são fatores importantes e que demonstram a sua importância no tempo. Existe ainda a questão levantada aqui, referente a materialidade e aos afetos. Todo mundo tem a sua lembrança das que teve em sua coleção. Elas falam de nós, representam uma curva na vida de todas as pessoas que gostam de música.


Sunday, May 17, 2020

A Banda da Galera

Creedence Clearwater Revival


Creedence é a banda da galera. Não tem quem não goste, não tem som melhor para se escutar na estrada, não existe coisa melhor para tocar em banda de garagem – ou até mesmo em violão solo, conhecendo os acordes básicos de rockabilly.  É possível brincar desde com os gavetões básicos até os complexos porém simplificados arranjos de John Fogerty.  Não tem bandeca de garagem que não tenha pelo menos “Bad Moon Rising” em sua set list. É a feira básica: bateria, guitarra, base acústica, sem trucagens de estúdio, sem orquestrações de fundo – é rock de buteco. Ali está o começo do gênero, passado a limpo e num corpus de álbuns capaz de ombrear com os grandes nomes do rock.

E pensar que eles levaram anos para fazer sucesso da noite para o dia. Porém, enquanto eles eram os Golliwogs, a banda teve uma carreira, mas se formos ouvir aquelas gravações, eles na verdade pareciam como todos aqueles conjuntos americanos que queriam imitar as bandas britânicas e, no fim, se passavam apenas como mais uma. O compacto “Brown Eyed Girl” (nada a ver com a canção do Van Morrison), parece o mais puro decalque do Them, mais precisamente, de “Gloria”. Como Golliwogs, eles eram um quarteto fadado a ser mais outro daqueles que iria durar por um compacto ou outro, e ser esquecido com o tempo.

O mais curioso na história deles foi a inusitada mudança no estado das coisas. Em 1967,  a Fantasy Records topou que eles gravassem um disco. Era a época em que selos de rock investiam em bandas que investissem em álbuns de rock. O CCR ia se apresentar com uma banda atrás de um disco, não uma banda de garagem com um single obscuro, disposto a focar somente num público local, como uma Chocolate Watchband, Nazz, Premiers, etc. Bandas enfim que chegaram a chartear nas paradas, mas morriam em um ou outro compacto.

No primeiro disco, já com o nome de Creedence Crearwater Revival (Golliwogs soava racial demais, por referir-se à uma personagem de quadrinhos tipo blackface). Como novo nome, no entanto, o CCR não quis se firmar como as bandas ianques que pontificavam na época,  com trucagens de estúdio, mistura com ragas indianos e cítaras nem faixas experimentais, como o Dead ou o Love. A transa deveria ser rock básico, mas num approach mais autêntico: fazer canções de três minutos, mas não à moda bubblegum que se insurgia no final dos anos 60. Era rock básico mas para um público pretensamente cabeça.

Outra questão fundamental para a identidade do CCR foi, a despeito de ser uma banda da região de San Francisco, então em alta a partir de 1966, mas com uma persona diferente: queriam ser como uma banda do sul, tanto que foram rotuladas como de swamp rock: um misto de country caipira com Bakersfield Sound e jugbands mas numa moldura de rock. E misturando com um pouco de R&B e soul.

E fazendo rock de três minutos, de fácil deglutição. O resultado foi uma forte e intensa identificação por parte do público, comparável aos Beatles. Como banda de álbum, o CCR acertou quase sempre na mosca, e principalmente no começo, o que para a fixação de sua imagem na mídia, foi algo fundamental.

E tudo isso sendo da cena californiana, e totalmente distante dela. Doug Clifford fala que eles assistiam à maioria das bandas da região, quando se apresentavam no Fillmore. Eles viam aqueles conjuntos tocando desafinado, afundados em ácido e perdidos em solos malucos de vinte, trinta minutos (a alusão à “Dark Star” do Grateful Dead é inevitável aqui). O som deles poderia ser comparado a pares, como os Byrds ou a The Band, por exemplo. Contudo, no caso do Creedence, parece que o som deles era bem menos pretencioso, vendido em larga escala sem parecer comercial demais, e extremamente acessível.

E dentro do espírito da época. Enquanto muitas bandas pareciam reticentes ou pouco à vontade para falar de política ou do Vietnã em suas músicas (como no caso das britânicas), o CCR ia direto na medula. Falava de desigualdade social, de alienação, da realidade da guerra, do medo dos jovens perante os alistamentos à força, numa época em que a maioria da opinião pública estadunidense rejeitava a intervenção na Indochina, após o horror da ofensiva do Tet em 1968, apresentada aos perplexos telespectadores norte-americanos, que viam seus receptores de tevê derramando sangue ao vivo e a cores pela primeira vez.

Mesmo que falando para freaks, doidões e loucos de pedra, eles não tinham a menor intenção de posar de desbundados: o próprio Clifford, na entrevista, fala que o seu quarteto queria ser o oposto daquela viagem típica das bandas californianas da época. Tanto que eles não transavam drogas e álcool, pelo menos na escala industrial que a maioria delas costumava consumir.

Esse fator é curioso: mesmo surfando na onda da contracultura, o Creedence tinha momentos de convergência com o movimento e, em outros, de estranhamento. Um episódio que ilustra bem isso, e que sempre é relembrada por John Fogerty foi a participação deles em Woodstock. O CCR foi inicialmente escolhido como headliner do evento, já que era a banda mais darling da galera em 1969, com três discos estourados nas paradas e escolhida justamente para puxar outras para o festival que, no seu começo de divulgação, não era nada ainda.

Porém, na hora H, o Creedence se viu no meio de um público freak e cercado de bandas, de certa forma, idem. 

E nesse paradoxo de ser uma banda careta tocando para doidões, eles estavam no meio do circo que eles começaram mas que, no fim das contas não se identificavam de todo.  Para piorar a situação, eles foram escalados para tocar depois do Gratetul Dead, num dia de shows onde tudo se atrasou por causa da demora das demais bandas escaladas em chegar no local ou por causa da chuva intermitente desde o começo da tarde de sábado. No fim, subiram no palco na madrugada, depois que, segundo Fogerty, o Dead colocou todo mundo para dormir com seus números soporíferos. O resultado não agradou à ele quando eles ouviram o tape da performance. John implicou tanto com a gravação que pediu para que eles fossem limados tanto do documentário quanto do disco. E isso que o CCR fora, no começo, os artistas que puxaram Woodstock. Escutando o show deles hoje, fica, pelo menos para mim, a impressão que foi besteira dele.

Afinal, quem não estava chapado no palco de Woodstock, estava nervoso. Se fôssemos usar o critério má performance como critério para limar, pouca coisa serviria para ser usado. E sabemos que em vários casos, como nos registros do Crosby, Stills e Nash ou John Sebastian, muita coisa foi refeita depois para o disco ou o filme. Então, seria mais fácil entender a negaça do Fogerty como implicância e cabeça dura mesmo, algo que era típico dele, e que desaguaria no fim da banda, três anos depois. Implicância essa que, por sua vez, se voltou contra seus ex-bandmates. Ele nunca mais quis tocar com eles, nem em pesadelos.  

Enfim, a despeito de diferenças e convergências com seus pares e público, eles souberam, como poucas, falar a linguagem dos jovens da época e, mesmo pertencendo àquele zeitgeist, os valores e a estética de suas canções não embarangaram com o tempo. Muito pelo contrário, o CRR nunca saiu de moda e é sempre a melhor pedida.

Friday, May 15, 2020

Divina Lama

Capa da trilha do filme Woodstock




Tava pesquisando jornais de 1969 a fim de ver a repercussão de Woodstock por aqui. O Globo do dia 19 de agosto (matéria escrita através de agências) chama o evento (no título) de “festival das drogas” e destaca as três mortes ocorridas no Festival. Tanto o filme quanto a trilha sonora, um álbum triplo, comemoram esse mês 50 anos de lançamento. 

Independente de criticar a ótica do jornal (a grande imprensa em geral mesmo a americana, tinha uma visão parecida), é interessante confrontar a imagem que o acontecimento teve em seu tempo e a forma como Woodstock foi plenamente mitificada no decorrer do tempo.  No dia 14 de agosto, o mesmo O Globo relembrou no Segundo caderno os 40 anos do Festival, sob o título de “Divina Lama”.

A ótica do evento, depois de quatro décadas, já está decantada sob o manto do mito. Ou, como diz Rodrigo Mehreb, em O Som da Revolução, é a celebração da “Nação Woodstock”: uma convergência de gente que acreditava na sedimentação de uma nova mentalidade “guiada pelo pacifismo, pelo amor à música e pelo desprezo a qualquer sintoma da sociabilidade decadente formulada por seus pais”. Segundo ele, o discurso vinha se fortalecendo ao longo dos anos1960, mas agora o mundo via uma demonstração maciça dessa unidade criativa como uma utopia possível – em Woodstock.

Aliás, o livro, chamado O Som da Revolução, tem como tese fundamental a dicotomia entre o devaneio da utopia hippie e os achaques da mesma revolução sendo progresivamente enquadrada e engarrafada como empreendimento capitalista. No caso de Woodstock, muito além da “apoteose das drogas” ou da “sedimentação de uma nova mentalidade”, não teria acontecido se não tivesse sido concebido como um empreendimento.

Tudo começou com um tubarão da indústria da música, Miles Lourie, que investiu quatro manarins de criar o festival. Antes de mais nada, mesmo que em começo de carreira, todos queriam alavancar seus respectivos nomes no mundo dos negócios. Os mandarins eram John Roberts e Joel Rosenman, Artie Kornfeld e Michael Lang. Lourie deu corda na pipa de Roberts e Ronseman, que pensaram numa transa em Woodstock, algo como uma firma e um estúdio de gravações. Enquanto Joel e John buscavam onde aplicar capital, Artie e Lang estavam cheios de idéias, mas não tinham dinheiro algum. Juntou-se a fome a vontade de comer.

Estes, por sua vez, foram designados a apresentar seu projeto com um planejamento estruturado. Então veio a idéia de uma bureau musical. Para amortizar alguns gastos iniciais, alguém sugeriu um show de inauguração do empreendimento, com grandes artistas do pop. Com o tempo, começaram a dourar a pílula do tal show. Por que não transformá-lo num festival (não competitivo) e tentar lucrar ao máximo com ele? Lang já tinha alguma experiência com um evento do tipo em Miami, embora em menores proporções.  Ou seja, prá começo de conversa, nunca foi um evento beneficente (como muitos ainda o concebem hoje).

Ficou combinado uma divisão meio a meio entre os quatro mandarins numa venture para exploração da marca Woodstock. Foi aberta uma linha de crédito no Bank of North America de cerca de meio milhão de dólares para o começo. O segundo passo era achar um lugar para o festival. Para elaborar as questiúnculas de logística, Lang convidou gente ligada ao Miami Pop Festival e a Bill Graham, o experiente executivo de espetáculos do Fillmore East, em San Francisco.

O dualismo entre movimento hippie e capitalismo porém começava no grupo de mandarins, sendo a turma de Lang a primeira e John e Joel a segunda. Claro que a relação entre essas duas forças não se deu de forma pacífica. Lange temia que os engravatados espantassem o pessoal da música. Por outro lado, John e Joel, com medo que o grupo “hippie” assustasse os potenciais fazendeiros de Woodstock dispostos a alugar seus terrenos, preferiu fazer as negociações eles mesmos.

Problema é que logo os fazendeiros do local perceberam que Woodstock seria um “festival das drogas”. A possibilidade de represália e mesmo de sabotagem em caso de fixação do evento no local provocaram uma célula de crise no grupo. Outro problema vinha da frente dos yippies: o líder político Abbie Hoffmann, por exemplo, queria dinheiro para que seu politiburo não provocasse piquetes durante o festival.  

A escolha de um lugar Ideal para o evento parecia naufragar na mesma medida que os grandes grupos idealizados por Lang pareciam se desinteressar por Woodstock. Ele não contaria com os Doors, Stones, Beatles ou Bob Dylan. Byrds não quiseram interromper sua turnê e não viam nada de bom naquilo. Iron Butterfly queria um helicóptero somente para eles, a fim ir, tocar e voltar incontinenti, o que não foi oferecido. Jeff Beck tinha recém acabado sua banda, e não teria tempo de montar outra e ensaiar a tempo. 

Lang ainda tinha que ser político com Bill Graham, que era um grande mecenas nesse sentido, muito embora não tivesse ilusões quanto ao sucesso dos shows do ponto de vista comercial. Mais do que isso,Bill interferia na escolha dos artistas, impondo nomes que tocavam no Fillmore mas que não tinham qualquer visibilidade, como o Santana.

O projeto quase se liquefez quando, em fins de junho, o lugar escolhido foi vetado. Naquele momento, o palco estava sendo montado e ingressos vendidos. Foram salvos em cima da hora por Max Yasgur, um produtor deleite que se interessou pelo evento.  Ele queria dinheiro, muito dinheiro, mas também estava disposto realmente a bancar o sonho de Woodstock, no meio daquele oceano de conservadorismo ululante na hora de arrendar um espaço para o evento. O local agora fora todo deslocado para as terras  de Max, em Bethel, muito embora o nome “Woodstock”  tenha permanecido – afinal, era a marca em questão, antes de tudo.

A despeito de todo o imaginário que surgiu nos anos seguintes, para o staff que ergueu Woodstock – com armações de ferro, pregos e martelos, não havia a menor perspectiva de estar fazendo história viva. Havia apenas a certeza de que pelo menos 60 mil pessoas apareceriam, à medida em que os ingressos iam sendo vendidos.  Nas vésperas do evento, problemas pareciam se avolumar em maior quantidade do que nos registrados ao longo do projeto, desde janeiro de 1969.

Os gastos já chegavam na lua onde a Apolo 11 havia chegado, na mesma época. A previsão de gastos era cada vez maior, isso sem contar a facada que eles levavam de terceirizadas como a Food For Love, responsável pelos snacks e que não queria dividir o lucro com a venture. Fora isso, a quantidade de penetras extrapolava qualquer expectativa de público, para o bem ou para o mal.

O que os salvaria era o contrato com a Warner no sentido de trabalhar a marca com vistas a lucrar a longo prazo com produtos oriundos do projeto. A perspectiva em curto prazo e prevendo a grana dos ingressos já havia virado vinagre. Agora, o problema era o de infra-estrutura para um mar bíblico de gente e a ameaça estatal, por parte do governador de Nova Iorque, Nelson Rockfeller, de intervenção em Bethel. E torcer para que nada saísse muito de controle.  

Era necessário equipes médicas no local, por conta de gente com problemas de insolação, desnutrição e intoxicação (pelos cálculos dos organizadores, houve uma média de sete overdoses por hora), ou tudo ao mesmo tempo. Isso além da questão dos banheiros químicos no local e a construção de uma fossa dada a quantidade exorbitante de lixo produzido naqueles três dias.  

Nos bastidores, bandas como o Who ou Grateful Dead queriam pagamento em cash enquanto as ameaças de intervenção em Woodstock continuavam. Um ensaio de boicote de músicos foi contornado no sábado quando John Morris conseguiu que uma agência de banco abrisse de forma a que eles pudessem sacar a grana para pagá-los. Se isso era contornável, havia o incontornável: trânsito fechado, chuva intermitente, lama, LSD na água e horas intermináveis de espera para tocar e/ou entre um show e outro.  A própria empresa de fast-food contratada para abastecer os 400 mil hippies não deu conta da demanda. Foi preciso uma operação de guerra em plano evento para que helicópteros aterrisassem em Bethel com suprimentos para durarem até segunda.

A ressaca dos organizadores não foi diferente da do público, embora fosse de outra ordem: a documentação do Bank of North America fora mal ajambrada, havia um campo de abacaxis a serem descascados, não havia grana para pagar os funcionáriose o rombo no banco ia além do milhão de dólares. 

O acordo de cavalheiros ruía em propostas quanto à venda de suas partes para o conglomerado Time Warner em troco de adiantamentos em dinheiro.  Lang vendeu seus direitos sobre a marca Woodstock por 30 mil dólares, sem suspeitar o que ela se tornaria nos próximos 50 anos. No momento, era o jeito de se livrar da expectativa de avalanche de processos legais sobre eles. John e Joel seguiram descascando abacaxis, tentando salvar sua imagem perante o mundo financeiro. 

Dez anos depois, essa marca começava a virar sinônimo de lucro. Entrementes, nesse processo, a Warner já faturava com o documentário e a série de álbuns lançados a partir de1970. “O maior festival hippie da história lançava também o garrote soberano das corporações sobre essa etapa de rebelião cultural nos Estados Unidos”, anota Merheb.

Joe Boyd, que esteve em Bethel, disse depois que Woodstock não deixava de ser um microcosmo do problema do cotidiano da contracultura: uma colisão do ideário dos hippies com a realidade da vida a olhos vistos. Bill Graham, que era veterano em cotejar essas duas vertentes, no sentido deque ele era produtor cultural que tinha por conta eles como seu público-alvo sem no entanto se desviar do fato de que tudo aquilo era um negócio e que deveria ser bem administrado,  viveu naqueles dias para ver Santana, um de seus protegidos, ser guindado para o sucesso no Festival.

Com as defecções de vários artistas consagrados, a hora era dos neófitos. Que o diga Melanie, que tocou debaixo de chuva no primeiro dia, aberto por Ritchie Havens, dos botecos do Village para o estrelato. Enquanto muitos temiam abrir o festival, ele encarou o desafio e foi recompensado por isso: virou símbolo de Woodstock.

Na falta de grandes nomes e, paradoxalmente, pelo fato de que muitos das grandes atrações terem virtualmente flopado em meio ao caos e a lama de Woodstock, essa foi o inesperado plot twist do evento: Who, Creedence (que foi a banda de primeira hora), The Band passaram discretamente pelos shows, enquanto Tem Years After, Santana, Joe Cocker, Mountain e Crosby, Stills e Nash pontificaram tanto nos três dias quanto no disco e no documentário.

O famoso e conhecido documentário, dirigido por Michael Waldleigh e vencedor de um Oscar, por sinal, salientou essas e outras tantas coisas, como as boas vibrações e o espírito hippie, como um zeitgeist que transcendia o próprio fato de que Woodstock era, na verdade, o último ato da contracultura dos anos 60. Paradoxalmente, ele entronizou tudo o que havia de positivo no meio de tantas coisas negativas em disputa. 

A tensão entre capitalismo versus revolução passa longe do filme que, por sua vez, foi responsável pela disseminação em escala mundial do “espírito” do histórico festival. De fato, para quem viu Woodstock de longe, tanto no tempo quanto no espaço, o evento seguiu um outro rumo próprio, perenizando sua intocável mensagem de paz.

E ambos, filme e música, seguiram conquistando platéias e ouvintes, e provocando catarses na medida em que o documentário era reprisado em sessões ao longo dos anos 70, tanto em circuito comercial quanto em cinematecas. No caso brasileiro, festivais como o malfadado Festival de Guarapari (1971) o esquecido primeiro Hollywood Rock (1975) e até mesmo o Rock In Rio (1985) representavam o desejo de experimentar algo como Woodstock no país, como diz Nelson Motta no livro Noites Tropicais.

Sobre o rescaldo dos eventos, Merheb salienta que Woodstock foi a consolidação de um fenômeno que afetaria os quatro cantos do planeta, influenciando e subvertendo culturas e comportamentos em escala mundial: “O que aconteceu naqueles três dias rapidamente saiu da esfera da realidade rumo ao reino das lendas, algo impossível de ser repetido, imune às contradições e portanto quase intocável”.  A diferença da abordagem do assunto, nas edições de O Globo em 1969 e depois, em 2009, é notável nesse sentido: em quarenta anos, o “festival das drogas” se transformou em “divina lama”.


Referências:

Rodrigo Merheb. O som da revolução: Uma história cultural do rock 1965-1969. Civilização Brasileira, 2012. 




Sunday, May 10, 2020

Eu e Richard



 
A morte do Little Richard me fez voltar no tempo. Lembrei de quando eu li pela primeira vez a autobiografia dele (escrita pelo Charles White), livro que foi lançado aqui na LPM, e que está esgotado há umas três décadas. Eu peguei o livro num sebo, trocando uma pá de gibis. Naquele tempo, final dos anos 80, eu tinha começado a esboçar o que seria uma coleção de discos, e mais precisamente, entrando numa seara que não tinha absolutamente nada a ver com o que tocava no rádio ou era sucesso naquele tempo.

No princípio, eu tinha interesse em light music, coisas como Glenn Miller ou música de cinema de Hollywood dos anos 50. Até que eu assisti ao filme Stand ByMe (“Conta Comigo”) e me apaixonei pela trilha sonora. A trilha, como se sabe, é de pop dos anos50, do wops e rock. Logo, eu virei roqueiro, mas do rock dos anos 50. O problema era achar aqueles discos. No começo, eu ainda não garimpava em sebos de vinil. Mas logo depois, saiu a cinebiografia do Ritchie Valens. Logo, do nada, aconteceu um pequeno surto de nostalgia daquele rock a la American Grafitti, que eu lembro de ter assistido pela primeira vez naqueles corujões da Globo dos anos 80.

O problema que eu logo descobri foi algo que eu havia pensado depois: os anos 80, dentro de sua lógica e potencializado pelos meios tecnológicos da época, pareciam querer impor sua cultura massiva de todas a formas, sem dar brecha para nada. Era como se vivêssemos apenas para o presente. Nunca se viveu uma cultura do presente como naquela década. Se você descobrisse um Jerry Lee Lewis, por exemplo, você ia pesquisar sobre ele em qual fonte? Na Conhecer? No Almanaque Abril? O passado estava fechado para que pudéssemos descobrir o que aconteceu até então em termos história  da cultura pop.

O que podia acontecer eram essas pequenas subversões. Um filme cuja história se passa nos anos 50 e a trilha sonora é composta por canções de época. Aquilo era lançado como soundtrack e, contra toda a lógica da cultura de massa, uma canção antiga de repente virava sucesso.

Lembro que o cinema na época foi pródigo nessas ‘subversões’: “Be My Baby” voltou às paradas com Dirty Dancing;  “Twist And Shout” com Ferris Buller’s Day’s Off, “Unchained Melody” com Ghost e “La Bamba” com o filme demesmo nome. Conta Comigo não chegou a fazer muito sucesso. Aqui ele nem chegou ao circuito comercial (vi ele na Sala Eduardo Hirtz, ou seja, numa cinemateca). A trilha saiu antes aqui pelas lojas.

Hoje parece absurdo, mas era dessa forma que nós descobríamos que existia música pop boa e interessante muito antes dos famigerados anos 80. Era como se fossem pequenos furos que deixavam uma outra luz entrar. Depois de catar esses discos, eu tinha uma amostragem do que era o pop dos anos 50. Então eu passei a procurar mais discos e pesquisar. Naquele tempo, não tinha Wikipedia. Você ouvia um artista como os Coasters sem saber que eram negros. Tirando o Elvis, eu não conhecia a cara dos artistas.

Claro que o mercado da música passou a explorar aquele filão de nostalgia. Aqui no Brasil, essas coletâneas eram, como quase sempre, sinônimo de seleções de capas horríveis e sem pesquisa nenhuma quanto à originalidade dos fonogramas. Entrementes, houve a minissérie da Globo (Anos Dourados), com Maysa, Roberto Yanes, Perez Prado, Billy Eckstine. Lembro que saiu um disco Brasidisc/SBT, O Melhor dos Anos Dourados. O nome surfava no sucesso da novela mas era puro rock anos 50 e 60. Era mais um disco com rock dos anos 50. A diferença é que a extinta Brasidisc investia pesado em catálogo da época, mesmo, com Carl Perkins, Fats Domino, Buddy Holly, essas coisas.

Nessa mesma época, o CD se popularizava. Lojas como A Discoteca tinham uma seção de música digital no subsolo. Lá eu encontrava dezenas de coletâneas de anos 50. O problema é que, além de eu não possuir um player, os discos eram importados e eram caros. Mas dava para ver que, lá fora, aquele material estava sendo relançado, e em edições muito boas: Golden Hits of Fifties, coisas do tipo. Era de enlouquecer, tanto pelo conteúdo quanto pela inacessibilidade.   

Depois eu ia descobrir, na fase sebo, os discos da Brasidisc, gravadora que eu descobri por causa daquela coletânea em parceria com o SBT. Antes, eu tinha catado, em fita, a segunda trilha do filme La Bamba. Diferente da primeira, essa tinha material da época, Skyliners, Chuck Berry, Shirley And Lee, Huey Smith, La Vern Baker, tudo isso se somava ao que catava de outras seleções, o que aumentava a minha coleção de figurinhas de músicas dos anos 50.

Sempre lembrando que, ouvindo direto esses fonogramas, eu não tinha lá conhecimento de quase nada sobre eles, só sabia que eram canções legais e era uma coisa muito mais bacana do que tocava no rádio naquele tempo para mim. Os discos mais legais eram os da Brasidisc, que lançava álbuns de época, como o Dance Album, do Carl Perkins, que era um original da Sun Records, e o Georgia Peach.

Esse não consistia do material do Little Richard da fase inicial, da Speciality (embora a Brasidisc tivesse lançado aqui um elepê do Lloyd Price da Speciality). O Richard regravou os seus sucessos várias vezes, e o Peach era seleção da fase dele na Vee Jay, que misturava regravações com material inédito no lado B, até com coisas feitas junto com o jovem Jimi Hendrix, faixas que eu não curtia na época, mas hoje acho o lado B até mais interessante que o A.

Foi quando eu achei o livro do Richard no sebo, li e reli e fiquei abismado. Era a primeira vez que eu com, sei lá,13 anos, entrava em contato com o que era a vida de um roqueiro: era uma loucura de histrionismo, influências, a barra do começo, racismo nas rádios brancas na América, sempre do lado dos cantores brancos, como Pat Boone e Elvis. 

Talvez por isso, pela leitura do livro, por muitos anos eu fosse totalmente refratário aos discos do Presley, que só fui ouvir mesmo de fato depois de velho, já na época do mp3. E orgias, mais racismo, cenas de bastidores do mercado da música dos anos 50, grandes momentos do rock, altos e baixos do Richard em sua carreira, drogas, injustiças, os momentos de sucesso, os momentos dramáticos quando ele largou o posto de maior artista de seu tempo no auge, a dificuldade de voltar, de readaptar-se com novos cenários no rock, etc.

Perdido, no fim, num oceano de Angel dust e devendo grana para o Larry Williams, o compositor de “Bad Boy” cobrava a dívida ao amigo metendo uma arma na cabeça de Richard, que pagou a grana mas depois ficou bolado, ainda mais depois da morte do cara que, de compositor, virou um mafioso de merda e morreu por causa disso. Então Richard voltou para o tabernáculo e tornou-se o pastor Penniman. Em sua trajetória, Little Richard parecia perfazer o percurso de Agostinho, porém sempre indo e voltando, a conversão nunca era definitiva. O artista e o pastor, eles viviam na mesma mente, como o apolíneo e o dionisíaco enterrados nele, feito sapo em macumba.

O engraçado foi que a primeira vez que eu lembro de ter ouvido Little Richard foi naquele disco, o La Bamba (o volume 2). A primeira faixa era “Ready Teddy”. Eu achava, by far, o que eu havia ouvido de mais quente em matéria de rock até então (ainda não conhecia os Beatles). E eu reouvia aquela faixa pensando quem era aquele cara. E, muito tempo depois foi que eu descobri que ele era negro. E, qual não foi a minha surpresa ao ler a introdução da biografia do Little Richard. Num depoimento, John Lennon conta de quando ele fez escambo com marinheiros no porto de  Liverpool e trouxe para casa singles do Little Richard. E, ao escutá-lo pela primeira vez, teve a mesma impressão que eu tive: aquilo era muito melhor do que o resto, melhor até que, Deus me livre, melhor que Elvis. Mas quem era ele?

Qual foi a surpresa dele, como a minha, ao descobrir que Little Richard era negro. E qual não foi a surpresa de tanta gente ao ter aquela epifania, de ver como havia tanto da cultura negra no rock. Assim como é possível vislumbrar tanto de hillibily e influências de Hank Williams e Ray Price em Carl Perkins, são só elementos para que possamos concluir que é impossível saber quais são as fronteiras do rock. 

O que pode-se perceber é que, naquele momento, no final dos anos 50, ele já estava quase pronto.Tanto que a geração logo posterior à ela é totalmente tributária daqueles experimentos e maluquices dos anos 50, e Little Richard, mesmo com sua produção curta, é amplamente fecundo para tudo o que veio depois, e que está aí até hoje.  Tanto que  tudo o que podemos pensar em matéria de performance nasce com ele. Muitos artistas que nem nasceram ainda, vão fazer coisas no palco que eles nem sonham que são influência da influência da influência, e tudo isso se tem uma fonte, ela está em Elvis, em Chuck Berry e em Little Richard e tantos outros pioneiros do rock.

Friday, May 08, 2020

Nosso homem em Surubim

Chacrinha em seu programa de retorno à Globo, em 82


Li finalmente a biografia que Denílson Monteiro escreveu sobre o Chacrinha. O que motivou a ler o livro, além do fato de que já o devia ter lido, foi porque assisti a algumas reprises do Cassino, com o homem de Surubim já de volta à Globo,  nos anos 80. Fazia muito tempo que eu não assistia a um programa completo dele. Sou do tempo que essa atração passava na tevê toda semana. E a gente execrava, fazendo coro a centenas de milhares de pessoas que odiavam amar o programa, e ficavam diante da televisão apenas para criticar o baixo nível do que representava aquilo.

Hoje eu comparo a atração com o que existe em rede aberta, e vejo que, como dizia Dom Abelardo, “tudo se copia”. Em matéria de “baixo nível”, como o cassino e a Buzina eram chamados, isso nunca mudou e nem vai mudar. Esse “baixo nível” é, na verdade, um projeto da televisão, não um desvio a ser, digamos, corrigido, em favor de uma programação com cultura e qualidade, etc, ideais que todos vocês sabem que, em última análise, não vende programa.

E naturalmente Chacrinha sabia disso. E era por causa dessa cláusula pétrea em suas visões sobre comunicação. A diferença é que hoje isso é instituído, e em moldes estabelecidos pela ordem da indústria cultural: a modernização da sociedade brasileira de lá (época do Chacrinha) implicou, como bem observa Renato Ortiz, numa mudança de mentalidade empresarial, tanto no setor industrial e empresarial como nos meios de comunicação.

Acontece que esse processo de modernização nos meios de comunicação aqui só se deu nos anos 70, com a consolidação das indústrias culturais no Brasil. Antes, vigorava algo que apontava para isso, mas essa mentalidade empresarial ainda não estava plenamente consolidada como cultura. Na televisão, isso só se deu a partir da primeira experiência das organizações Globo como rede, a partir da utilização do satélite. Enquanto outras emissoras ou faziam água, a partir do Jornal Nacional, a Globo deu o salto. Se hoje existe tevê com mentalidade empresarial, quem deu o primeiro passo foi a Globo.

Ao ler tanto a biografia do Chacrinha quanto a autobiografia do Boni, é possível pegar Chacrinha como um objeto a ser estudado. Oriundo do rádio antigo, sua passagem para a tevê foi natural, como a de muitos outros comunicadores que, como se sabe, no caso brasileiro, migraram do rádio para a televisão. A questão é que esse período, no âmbito da migração desses profissionais, representaria um momento de transição.Isso não foi diferente para Chacrinha. Ele é o mais perfeito exemplo desse profissional de transição. 

O problema é que ele trouxe usos e costumes do rádio antigo para a tevê. Mas não qualquer uma: justamente a Globo de Boni, José Ulisses Arce, Walter Clark, Pipa Amaral e Joe Wallach, homens oriundos do marketing e da publicidade, que conheciam muito bem esses vícios e atavismos e, ao planejar a Globo, queriam tudo menos esses vícios e atavismos.

Porém, nos anos 60, o tipo de profissional que eles tinham que lidar ainda eram tributários dessa cultura. Nesse sentido, o conflito de gerações entre os produtores da TV Globo com uma atração com Abelardo Barbosa, com suas três décadas de carreira como comunicador e atração com capital simbólico capaz de levantar a audiência de uma emissora emergente, é um episódio interessante. Era o conflito dos jovens, querendo fazer um novo produto, com uma nova filosofia na área comercial e de programação, e o “velho guerreiro” com os seus modos, seus anunciantes, sua forma de cooptar artistas e pagá-los.

A Globo precisava dele e ele precisava deles. O problema residia no fato de que a Globo não ia abrir mão do projeto de reformulação de grades, de tabelas, racionalização do uso do tempo (algo criado pela Excelsior, mas consolidado pela Globo). E Chacrinha, com sua experiência e sua trupe, era um feudo dentro de qualquer emissora de rádio e tevê. Nesse ponto, ele representava o antigo e eles o novo. O grande desafio residia em contrabalançar ou negociar esse jogo de vontade individual (Chacrinha) com a racionalidade da empresa (Globo).  Problema é que, daquele momento em diante, o que era para ser negociação virou cabo de guerra.

Para se ter uma idéia, a TV nos anos 50, como lembra Walter Clark, era uma bagunça. O espaço dos “reclames” podia se acumular à medida que as atrações demoravam no palco. Para compensar, não era raro as tevês, para compensar, porem no ar blocos comerciais de uma hora. Agora, a partir dos anos 60, e passando pela mentalidade desses novos profissionais da telinha, a regra era obedecer horários: a programação é horizontal, com programas fixos e em sequência na respectiva grade, de forma a prender o telespectador.

O mais importante, e que se dá a partir da Excelsior, como observa Renato Ortiz: existe uma identidade entre tempo e espaço comercial. Hoje, parece estranho explicar o óbvio ululante, mas a verdade é que houve um tempo onde isso simplesmente não era observado.  Um programa agora não é mais vendido para um patrocinador.

Isso era para acabar com um atavismo do rádio e que permaneceu na televisão brasileira. Até os anos 60, os mais velhos irão se lembrar, era mais do que comum programa do produto tal, como “Teleteatro Gessy Lever”, “Repórter Esso”, e outros bichos. Isso veio do rádio para a tevê. A transação podia, às vezes, ser entre o núcleo que produzia o programa ou o estafe ou o apresentador e a empresa. Como cada programa era um feudo, havia uma negociação entre os dois lados, onde o produto final, o programa, saía perdendo.

Agora, a partir da mudança, um programa deixava de ser vendido ao patrocinador para ser veículo do produto a ser anunciado, dentro de um tempo comercializável a ser adquirido por um cliente em potencial. O cliente comprava o espaço na TV como se comprasse um espaço na página do jornal. O tempo era um buraco abstrato a ser preenchido.

Na Globo,  Chacrinha seria carro-chefe da programação. No entanto, sendo da velha guarda, seria resistente a essas mudanças. Por mais amizade que tivesse ao estafe da Globo, sempre quis impor a sua palavra final. Ele era do tempo do vale, da amizade com o empresário que historicamente anunciava no seu programa (caso das antigas Casas da Banha),assinava cheques, pagava cachê, enfim, era o pequeno senhor feudal do seu espaço, seja no rádio para a tevê.

Chacrinha foi o caso digno de estudo. Era o senhor feudal, do acordo de cavalheiros,  contra a mentalidade capitalista moderna, num momento em que essa nova filosofia de missão weberiana de mercado se impunha como uma questão de sobrevivência, de vida ou morte. Sua estréia no Canal 4 se deu em 1967. Até 1972, quando se deu o ruidoso desenlace, foram cinco anos de queda de braço entre os executivos da Globo com o Conde de Surubim.

Mais do que isso: como se sabe, sua bússola eram as pesquisas de audiência. Tudo o que ele fazia ou deixava de fazer em seus programas estava vinculado ao desempenho no Ibope, para o bem ou para o mal. Esse era outro traço pessoal de Chacrinha como senhor feudal: para manter ou aumentar sua audiência, não havia limites, nem que fosse preciso apresentações como “o cachorro mais pulguento do Rio de Janeiro” (fato real).

Tudo fazia parte do circo freak do Velho Guerreiro. Sua escola, ainda no tempo do rádio, era fazer das tripas coração. Se sustentar com anunciantes de forma a manter o programa no ar. E, a fim de angariar ouvintes numa época em que ele era comunicador em rádios menores em comparação às grandes Nacional e Mayrink Veiga, que mantinham grandes orquestras, cast de atores, artistas e programas líderes de audiência. 

Chacrinha sempre foi o radialista marginal, mantendo espaços na Tupi ou Rádio Clube Fluminense e se virava com o que podia. Para apresentar algum diferencial, era preciso ser freak. Por exemplo, na Fluminense, ele bolou um programa à moda da época, com transmissões ao vivo dentro de algum baile. 

A diferença é que, ao contrário das outras rádios, a “transmissão” do “baile” era fictícia: tudo era feito de mentira, com uso de sonoplastia. Essa era a sua guerrilha, correr por fora do jeito que fosse possível. Aliás, programas “ao vivo de mentira”, não era invenção sua: outro disk-jockey, Martin Block, em Nova Iorque, tinha um programa chamado “Make Believe Ballroom” nos anos 30. Mas como dizia Chacrinha: nada se cria, tudo se copia...

Quando Chacrinha chega à Globo, essa nova mentalidade em televisão não estava aplicada de todo: a Excelsior revolucionava a questão do uso racional de tempo, mas ainda era uma empresa com mentalidade à antiga. A TV Rio, de onde viera Walter Clark, fazia largo uso de venda de espaço da programação para anunciantes.  Chacrinha, com o Festival da Canção, eram a bola da vez para levar ao Canal 4. Se o Festival era unanimidade, havia resistência de muita gente da Globo quanto ao Velho Guerreiro. Esse grupo resistente sabia que o Conde de Surubim só confiava nele mesmo.

Mais do que isso, dizia a Boni algo como: “a Globo quer melhorar o nível, mas precisa cair na boca do povo”.  Mesmo assim, o produtor insistia no nível dos artistas, visando também o mercado paulista. Afinal, dois anos depois, o recurso de micro-ondas já permitia transmissões ao vivo para as duas capitais. Porém, fiel a seus princípios, Chacrinha apelava, desde concursos como “mais pulguento” (e que botou toda a produção e espectadores do Fênix para se coçar, literalmente) ate atrações freak, como Seu Sete da Lira, entidade recebida pela famosa suposta médium Cacilda.

A atração, que era alvo de disputa entre ele e seu concorrente, Flávio Cavalcanti, na Tupi, fazia seus ritos, como fumar charutos e beber cachaça, ao vivo para Rio e São Paulo  -  era a guerra quente da audiência. Boni reclamava do baixo nível para Chacrinha, enquanto este criticava a Walter Clark da interferência de seu colega nos negócios do pernambucano, acusando Boni de querer transformar a Buzina e o Cassino em shows americanos.

A briga entre os dois aumentava de forma progressiva. Boni pedia para que Chacrinha observasse o limite de tempo, enquanto este fazia o contrário. O ápice foi em dezembro de 72. O Velho Guerreiro estendeu o programa além das 22h. Boni tirou o Cassino do ar e colocou a próxima atração. Os dois brigaram feio. Chacrinha demitiu-se e foi para a Tupi e a querela foi parar na Justiça.

Por sua vez, a Globo colocaria Só o Amor Constroi, apresentado por Marisa Raja Gabaglia, um piloto aos domingos, preparando o Fantástico, cinco meses depois. Às quartas, punha no ar o Globo de Ouro, a “sua parada musical”, precursor dos programas musicais gravados da emissora, e que permaneceria na programação por 18 anos. Nesse sentido, Boni diz queos dois programas serviriam como formas de reconfigurar o nível da programação e, segundo ele, “qualificar a audiência”. De certa forma, o primeiro ciclo de Chacrinha na Globo foi importante para fidelizar o público.

A parte mais interessante da biografia de Chacrinha foi a vida de filho pródigo do Velho Guerreiro nos anos 70: passou pela Tupi num momento de lenta decadência. A emissora dos Diários Associados era o oposto da Globo, ainda com a mesma filosofia antiga, como a TV Rio. Enquanto este sai do ar em 1977, a Tupi sofre toda a sorte de perrengues até o fechamento, em 1980. Pouco antes, O Conde de Surubim tentou a sorte na Bandeirantes, onde, por problemas de infra-estrutura. Chacrinha, que permaneceu um período fora das telas, pós-Globo, quando apresentou uma série de shows na boate Sucata (de Ricardo Amaral), com a ameaça de voltar a ficar longe da telinha o obrigou a pedir socorro à Boni.

O homem da Globo pensou que, naquele momento, o Velho Guerreiro seria o nome ideal para estrelar nas tardes de sábado. Já era o tempo quando ele pontificava aos domingos, agora ocupados pelo Fantástico. Seu programa de volta,em março de 1982, está no Youtube na íntegra. Por sinal, essa derradeira fase “global” do Conde de Surubim está bem documentada e acessível na internet.
Chacrinha teria dito que voltara para a emissora de onde não deveria ter saído. 

De fato, só o tempo seria capaz de falar, venceu o novo modelo de televisão sobre Chacrinha, comunicador que representou uma figura de transição entre um momento e outra da tevê brasileira. Quando ele retorna ao 4, já está docilizado aos ditames da programação em detrimento do “feudo”. Não que ele tenha se rendido de todo: seu programa sempre foi um feudo, se não diante das telas, pelo menos fora delas.

Ao rever seus programas, vemos muita coisa que ainda existe hoje. Mas, ao mesmo tempo, há muita coisa de datado. O Cassino, ainda nos anos 80, tem muito de rádio, tudo muito óbvio, muito esquemático, fundeado em frases feitas, reações de jurados bem calculadas, falas de Chacrinha como reclames de seu tempo de comunicador nas ondas hertzianas. E tudo emoldurado numa atmosfera autenticamente circense. Esse ambiente de circo, por sua vez, parece único e intransferível. Nenhum programa depois dele foi capaz de reproduzir isso. 

Em outubro de 1987, pouco antes de sua morte, veio o reconhecimento acadêmico a nosso homem em Surubim. A Faculdade da Cidade concedeu a ele o título de professor honoris causa. Boni discurou em homenagem ao amigo, num encômio que parece também parece falar um pouco do próprio orador:

“ O que nós precisamos para a TV é de pessoas com formação generalista, que tenham um amplo conhecimento. Me dê uma pessoa inteligente que, em quatro dias, eu a torno um iluminador, um operador de câmera, um cenógrafo. Agora, eu não formo atores da noite para o dia, nem escritores e, nem que eu quisesse na minha vida inteira, um Chacrinha.  Então, eu quero dizer a vocês, alunos, que não percam tempo estudando iluminação, que isso é irrelevante. Tenham cultura, para quando chegarem à TV encontrarem um caminho compatível com o talento de vocês: quem tiver aptidão para a fotografia, vai ser um operador de câmera, um editor de vídeo; quem tiver vocação para escrever, que vá ser escritor. Mas preocupem-se com uma formação de base forte em conhecimentos gerais, pois a TV precisa de generalistas, não de especialistas. E o maior exemplo disso está aqui, diante de nós: o Chacrinha. Um comunicador quando ainda não se falava em comunicação. Um tropicalista antes da Tropicália, que, às custas de seu grande talento, tornou-se um profissional inigualável”.

Referências

Walter Clark, O Campeão de Audiência, Ed. Best Seller, 1991.
José Bonifácio de Oliveira Sobrinho. O Livro do Boni. Ed. Casa da Palavra, 2012.
Denílson Monteiro. Chacrinha. Ed.Casa da Palavra, 2014.
Renato Ortiz, A Moderna Tradição Brasileira – Cultura brasileira e Indústria Cultural. Brasiliense, 1988.

Thursday, May 07, 2020

It Isn't a Pity?

Capa do Mirror, repercutindo o anúncio do fim da banda, em março de 1970




Vejo um vídeo com o John Lennon tocando “John Sinclair” no Reelin’ in the Years. Sei que muita gente não gosta do disco Some Time In New York City. Acho que, naquele momento, como se sabe, aquela parceria dele com a Yoko tava meio que no fim naquele momento histórico. Penso nisso aleatoriamente enquanto vejo a mídia relembrar amanhã os 50 anos do disco Let It Be. 

Sabe,  eu, que sempre tive dificuldade com a carreira-solo dos Beatles, poderia contar nos dedos quantas vezes eu ouvi esse disco. Acho que foi o Rodrigo Merheb, no o Som da Revolução, que repercutiu uma fala do John, dizendo que essa fase do Some Time foi uma bola fora total dele.
Minha impressão sobre os Beatles solo será sempre a mesma que eu tenho quando re-ouço o McCartney, de 1970. É um trabalho de expressão, é um despertar depois da experiência dos Beatles, é a cara do Paul, um cara experimental, que não vê problema algum em ser, inclusive, solo dentro da própria carreira solo, como no curioso projeto do Fireman, e nos dois discos McCartney.

Mas a minha impressão, a minha verdadeira impressão e que, naturalmente, é apenas a minha opinião, é a que faltam os outros três. Aqueles mesmos três que George apresenta, na capa do seu seminal All Things Must Pass, como 3 duendes de jardim. John ficou puto com essa referência, o que não o impediu de recrutar seu amigo para as sessões do disco Imagine. “It Isn’t a Pity”, e isso é um dos motivos pelos quais eu acho sempre uma experiência meio dolorosa voltar a esses álbuns, sempre me pareceu um réquiem para os Beatles. 

Não era essa a intenção de George, porquanto ele havia escrito a letra muito antes do fim da banda. Mas aquele final, com uma lembrança do coro de “Hey Jude” foi o toque final na canção, e deu o tom do disco, um réquém ao extinto quarteto.

Vendo o movimento dos Beatles no fim da banda: George, depois, em seu álbum triplo, deu a entender que ele tinha muito a dizer. Ou seja, também minha impressão: era outra libertação. Ele disse que muito do que saiu nesse disco foi vetado pelos Beatles. Coisas que, quando eu ouço, eu posso entender o porquê. Até mesmo no caso de “Cold Turkey”, de John, e que ele queria lançar com a banda.

O que fica evidente, e que soube-se depois, é que a produção individual dos quatro não cabia sequer na proposta dos Beatles. Ao mesmo tempo, as respetivas experiências em estúdio deles, cada vez mais individuais, potencializadas pelo uso de overdubs, o que. desobrigava que ensaiassem ao vivo juntos, serviu para esse isolamento recíproco. Quando eles tentaram voltar a ensaiar juntos, não havia mais química: eles pareciam haver se desmamado uns dos outros. A carência da figura de um produtor só piorou isso.

A separação era iminente e o impacto na vida deles seria exasperadora. Infelizmente ou não, marcou muito esse começo da produção solo. Cada um juntou a sua turma, cada um pôde enfim dar vazão ao que eles queriam fazer mas os Beatles haviam se transformado numa franchise maldita para esses projetos. Essa separação se refletiu de várias formas nesses primeiros trabalhos: faixas muito experimentais(John, Paul,George), ou muito confessionais (John), sub-produções (Paul) ou digressões além do universo do rock (Ringo).

Coisas que eles podiam matar no peito pelo fato de que eles haviam juntado bastante capital simbólico com os Beatles. Mas acho que essa pretensão esbarrava no fato de que eles estavam sem esse guarda-chuva também simbólico (os Beatles) e precisavam arranjar resultado, fazer dinheiro, e isso também significava fazer músicas comerciais e ganhar dinheiro indo para a estrada. 

Quando fez os Wings, Paul queria ser uma espécie de Incredible String Band e tocar para universitários. Muito tempo depois é que ele viu que deveria assumir o status de uma verdadeira banda de rock, nos moldes dos anos 70.

Depois da egotrip do grito primal, com seu debut pós-Beatles, John misturava sua devoção quase filial a Yoko à petardos de azedume, rancor e deboche contra Paul. Algo que eu acho que vai contra o disco. havia um prazer especial em espezinhar McCartney. Na época. Por isso que Imagine, nesses momentos me soa datado. E acho que John, assim como renegou coisas dos Beatles, hoje teria outra v
isão sobre essas cantigas de maldizer...

O menino George juntou uma congregação para fazer uma segunda The Band. Ringo queria ser um cantor de vaudeville, interpretando canções que já tinham suas respectivas versões definitivas. E Paul, como eu citei acima, queria viajar de Kombi pelo interior da Grã-Bretanha com a família e fumar maconha.

O menino John levou a militância até seu paroxismo, já em Nova Iorque, encheu o saco daquela vida a dois e resolveu ‘volver a los 17’. Acho que o seu melhor período foi quando ele desmamou da relação amor e ódio Paul e Yoko e caiu na vida. Infelizmente, sem os Beatles, e até mesmo sem o rigor de Paul com relação aos três, John era aquele garoto bêbado em Woolton, cantando coisas ad-lib e com um violão desafinado.

Ou essa atitude era um atavismo, algo que só Freud explicaria, um ato de rebeldia, ou ele não havia aprendido nada com as lições de Brian Epstein no começo dos Beatles.A realidade é que ele sempre me pareceu um músico naif (não que isso seja algo depreciativo)  e que, durante algum tempo, com os Beatles, mantinha um controle sobre sua carreira. Sozinho, John se ressentia de sua ex-banda e inconscientemente, da falta dela .

Tanto que, minha opinião, claro, o grande momento de John solo é o encontro com Bowie e Elton John, e “Whenever Gets You Through The Night”, esta, sim, uma canção livre  daquele bolor dos primeiros discos, sem Paul ou Yoko no horizonte mental, e pensando em fazer sucesso à moda de um artista (um, não, dois) que era a cara dos anos 70, década que ele parecia não ter entrado.

George deu um salto monstro com All Things Must Pass,diz-se. Muitos consideram esse não apenas o seu grande momento mas, também, e essa é uma opinião sob disputa, poderia ser considerado o melhor trabalho solo dos quatro em todos os tempos. Foram dois petardos (ou duas granadas sonoras, como diria Big Boy), o All Things Must Pass e o Concert for Bangladesh. Mas o seu problema era a continuidade.

E muitos que exaltam esses dois álbuns triplos não têm a mesma impressão da seqüência. E até mesmo a própria EMI/Capitol que, quando lançou a primeira coletânea de Harrison (aquela do calhambeque), colocou no lado A os grandes momentos de George nos...Beatles.

Acho que George foi vítima do primeiro solo pós-quarteto de Liverpool. Isto é, ele ficou com a obrigação de matar um leão todo ano, enfim, lançar um “My Sweet Lord” a cada disco. E, o que era muito importante nos anos 70, cair na estrada. E esse foi justamente o motivo pelo qual ele quase saiu dos Beatles. 

A banda não voltou a excursionar por causa dele, que, reiteradamente, impôs sua permanência com essa posição, a de não retornar aos palcos. Nos anos 70, ele naturalmente foi convidado a rever essa opinião. Chegou a excursionar na época do Dark Horse, mas seria outra decepção. George nunca mais se adaptou à vida ao vivo – algo que foi de suma importância para a gestação dos Beatles e a própria permanência não só deles quanto de qualquer banda pop, no cenário musical.

Em sua autobiografia, Eric Clapton, seu grande amigo, disse que, quando convidou George a sair do eterno casulo e voltar a fazer shows, a experiência foi negativa. Segundo Eric, Harrison, naqueles shows no Japão, onde ele era a estrela, estava presente apenas em corpo, a alma estava muito longe dali. E se despirmos nossa armadura de fã, ao ouvir as gravações, até podemos perceber essa ausência espiritual de George. Seria injusto dizer que seu êxito solo se resumiria a All Things Must Pass. Mas a verdade é que, ao longo de sua trajetória solo, tudo é muito lacunar. E a resistência em ser uma figura pública apenas conforma isso.

E o que dizer do menino Paul?  Ele enfim chegou a conclusão de que estava jogando o seu talento pela janela da Kombi pregando no deserto com um hippie fora de época. E decidiu transformar os Wings num cavalo de batalha. Acho que, independente de querer escolher qual dos quatro solos é o melhor ou o que vendeu mais, creio que McCartney foi o único que encarou a realidade de ser um artista dos anos 70 e em diante. Que o diga a sua carreira, célere e contínua, que segue até hoje, com altos e baixos, como acontece com gente de carreira longa. Mas é o preço de uma carreira longa. 


Acho que ele foi o único que, em parte, conseguiu contornar aquelas pendengas existenciais do fim dos Beatles e assinar novamente o seu contrato com o show-biz. Tirando aquele hiato dos anos 80, quando democraticamente toda a turma dos anos 60 viveu a sua midlife crisis, A partir de 1990, com o revival dos Beatles (agora em CD!) e um novo disco solo (Flowers In the Dirt), Paul partiu para as suas terceiras boas vindas, e aqui está ele.

E John? Bem, uma coisa que eu acho que foi um marco para os quatro é que o contrato que eles assinaram em 1962 previa que eles produzissem até 1975 (isso está na contracapa do Please Please Me, lembra?). 

Então, acho que esse foi o grande teste para os Beatles em carreira solo. Era a metáfora do copo cheio e do copo vazio. Ou você enxerga esse prazo para cumprir tabela ou como laboratório para decolar. Na minha opinião bem de papo de mesa de calçada, enquanto John e George, em determinado momento, principalmente no fim do contrato, não estavam mais interessados em gravar. John voltou para Yoko com sua escova de dentes, depois de ficar, como diria George, num disco que muitos entusiastas de All Things... desconhece, “tired of midnight blue”.

Quando George submeteu o seu Somewhere In England para os executivos da Warner, eles vetaram o trabalho, alegando que ele não era comercial. E ele teve que fazer concessões, a despeito de ser ele, George Harrison, não o garoto do começo da carreira (Clapton passaria por isso também, no Behind the Sun). O disco acabou fazendo sucesso com “All Those Years Ago”, mas, mesmo assim, ele resolveu dar uma pausa, por se sentir desiludido com a indústria da música.

Contudo, creio que era mais fácil entender que os tempos mudaram, que ele não poderia relaxadamente fazer algo tão autoral e subestimar uma gravadora numa época o que mais valia uma canção de sucesso do que um álbum experimental, como o que ele fazia nos tempos do Álbum Branco. Esse desencanto com a “indústria”, de certa forma, não deixava de refletir esse momento na sua carreira, a sua própria personalidade e postura diante da criação musical e o descompasso entre um artista e sua época – já pós disco e que havia retomado o gosto pelo single, e não mais por álbuns conceituais que tanto notabilizou sua geração.

John já tinha dado uma pausa na carreira. Quando retornou, disse que os anos 70 foram uma droga. 
Double Fantasy parece limpo de tudo aquilo que ele passou naquela década que findava e que, na verdade, parecia ser uma longa preparação, um longo aprendizado de como viver sozinho depois dos Beatles, depois das revoltas contra o fim, contra todos os excessos. John confessou que, mesmo depois de toda a tarimba como compositor, se sentia inseguro.

Não sabia se ainda o queriam, se ele tinha a mágica. “Just Like (Starting Over)” me soa como um belo canto de cisne. Tem muito de permanente que havia em sua alma, citações a doo wops e a Beach Boys. É como na canção de Elton John em sua homenagem: John é aquele velho jardineiro que, um dia, sabíamos que ele existia, viva perto de nós, e deixou um jardim devastado e que sua melhor jardinagem havia sido há tempos idos. Aquele seu misterioso vizinho era, há décadas atrás, tocava guitarra numa banda.

O disco, bastante maduro e reflexivo.  A despeito de que, como eu disse, nunca fui um entusiasta de todo de suas respectivas carreiras solo. Platonicamente falando, sempre me parece que falta a parte que completa. Porém, o que parecia um recomeço acabou tragicamente se transformando no fim. O que ele faria depois? Nunca iremos saber. Para mim, o Double Fantasy é um belo momento que permanece eterno, uma doce eternidade, é a sua hierofania, quem sabe o seu trabalho mais autêntico.

Paul fez McCartney II em 1980, disco que poucos entenderam, embora John tenha curtido “Comin’ Up”. A aprovação de John a esse trabalho de Paul sempre me deixou assombrado, como se eles passassem a voltar a reparar no outro, não que isso tivesse acabado de todo. Mas depois de tudo o que eles tiveram que passar? Esse foi um dos mtivos pelo qual nos “anos 70 foram um saco”. Mas John havia gostado do disco, o que era um bom sinal, já que, anos antes, ele havia dito que a única coisa que seu parceiro havia sido “Yesterday”. Pelo visto, as mágoas eram agora águas passadas. E o futuro finalmente apontava para um reencontro. Isso não é uma pena (1)?



(1) Eu falava de it Isn’t a Pity e a música, que saiu no solo do George, havia sido composta anos antes, mais precisamente em 1966 e, por pelo menos quatro anos ela foi rejeitada pela banda para sair em disco. Na verdade, acho que os quatro funcionavam como um filtro, como um superego na hora de gravar alguma idéia nova. Por exemplo, para começar, muita música Lennon-McCartney ficou de fora dos primeiros discos por vários motivos. E a gente fica se perguntando o porquê,visto que muitas delas eram boas para os Beatles, como “A World Without Love” ou “I’ll Be On My Way”. Mas aí ou eles haviam cansado da canção ou implicavam com algum verso. Num segundo momento, havia as tentativas de George e coisas do Paul e do John que passavam pelo filtro. Coisas como “It’s Only Love”, “What You’re Doing”, por exemplo, são músicas que eles confessaram serem’filler songs’ e, com exceção dos fãs, não acham nada delas. Mas foram gravadas. Depois de 66, a produção deles aumenta consideravelmente. Há a possibilidade de repassar muita coisa para outros artistas, como “Sour Milk Sea” (que eu não gosto) ou ”Step Inside Love” (que poderia ter saído no Álbum Branco). Mas a verdade é que sobrava material para os discos. Há quem diga que eles tinham material para ocupar o lugar de Revolution 9, mas isso é assunto para outra oportunidade, minha opinião é a favor dela. Mas o episódio da rejeição de It Isn’t a Pity me faz perceber que, de fato, havia um tipo de música para ser do corpus dos Beatles, e outras não, mesmo que muita coisa gravada sob sua chancela tenha sido desmerecida posteriormente por eles ou pelos fãs.  “Child of Nature”, depois “Jealous Guy”, certamente foi cortada porque já havia uma concorrente similar, “Mother Nature Son”. O George crítico ácido do White Album tinha uma assinatura, dentro do espírito de galhofa do disco, e It Isn’t a Pity, se formos ver, tem um tom confessional e triste que não caberia nos Beatles. Não imagino ela nos discos deles. Mas ela coube perfeitamente no espírito do All Things Must Pass. Assim como muita coisa que eles fizeram na época da banda, foi deixada de lado e encontrou espaço perfeito nos trabalhos solo posteriores deles. Ao mesmo tempo, é possível ver que, dentro do crivo dos Beatles, muita coisa abaixo do nívelda banda podia ser “aprovada” justamente porque têm o espírito deles, mesmo que fosse depois desconsiderada por algum deles ou pelos subestimada pelos ouvintes (não vou falar fãs, porque esses, a gente sabe, gosta de tudo e não tem discussão), coisas como “Hey Bulldog”  “The Inner Light” ou “Baby, You’re a Rich Man” (todas geniais, e clássicos, em minha opinião), canções que, inclusive, encontraram seu caminho como lados B de singles. Um detrator delas, Lennon, dizia que muitas vezes eram trechos de esboços de músicas que foram fundidas, e no fim das contas, não tinham muito o que dizer.  Porém, como se sabe, dentro do espírito de uma canção, querer dizer algo não era lá um critério muito importante. Importante seria o que a canção significa a partir do que ela passa a ser, seja lá como for.  E, afinal de contas, debaixo do guarda-chuva dos Beatles, muita coisa dentro do espírito do Álbum Branco não faz sentido algum, a não ser pelo fato de dialogar com todo o nonsense que ronda o disco.