Sunday, August 30, 2020

Doctor Sax

 

Charlie Parker
Charlie Parker


Pensei em escrever alguma coisa aqui sobre Charlie Parker. Depois, me recordei que já escrevi alguma coisa aqui sobre Charlie Parker. Mas como são 100 anos do nascimento dele, pensei em escrver de novo alguma coisa aqui sobre Charlie Parker. 
Lembrei do documentário Ken Burns' Jazz, que passou na tevê no final dos anos 1990 no canal GNT, você deve ser lembrar. O capítulo 5 se chama "Risco". Ele vai de 1945 a 1933 e pega o período da história norte-americana do final da 2ª Guerra Mundial e o começo do rock'n roll. 

A ideia de risco passa pelo próprio arquétipo do artista trágico. Ken Burns pega Bird como o exemplo máximo de artista trágico, de vida curta embora totalmente dedicada a causa de sua música. O documentário naturalmente não pretende nem ser moralista, nem ser em encômio para um tipo de divinização desse exemplo de personalidade que, por sinal, chegou ao seu paroxismo no rock.

Mesmo assim, é impossível não pensarmos em Parker forma dessa esfera trágica e mitológica. Ele é o herói trágico por excelência. Em seus hercúleos trabalhos, Charlie Parker, nascido em Kansas City, Misouri, no coração dos Estados Unidos, em 29 de agosto de 1920, amansou os cavalos aporreados do bebop a um custo muito alto: é como que se ao internalizar o artista, ele se investisse de tudo o que faz parte desse processo, o delírio, a loucura, o excesso, a música antes de tudo, um desejo de absoluto como valores tão caros à ele e quase uma profissão de fé artística.

Ken Burns mostra que as bandas de swing estavam em decadência depois da guerra. Negros que lutaram na Europa pela liberdade voltaram à realidade da miséria, do racismo das Jim Crow laws e da exclusão nos Estados Unidos. A música que tanto Parker quanto Dizzie Gilespie irão desenvolver nesse contexo seria como uma resposta a esse estado das coisas. O bebop retomava o ideário da renascença do Harlem, lutava contra a estereotipação do negro, a perseguição e a violência.

O bebop surgiu como uma reação ao antigo jazz, branco e massificado, para voltar-se para o público negro como uma nova experiência musical. Era um jazz mais para ouvir do que para dançar. Isso explicaria, em parte, a sua impopularidade e o estranhamento por parte dos ouvintes. Em parte porque o gênero nasceu mal assistido, em plena guerra, onde o lockout da indústria fonográfica e o esforço de guerra representaram uma barreira para o mercado musical como um todo.

Em segundo lugar, o bebop tentava firmar-se como alternativa ou resistência no campo do jazz. Por outro, ele começava a disputar espaço gradativamente para o pop. Sem falar que, pelo fato de adotaram uma postura política e de contestação, eram acusados, em pleno contexto da Guerra Fria (inclusive por circunspectos detratores, como Benny Goodman), de "comunistas".

Além de quebrar lanças contra o antigo jazz, o bebop, ao postular uma postura combativa à segregação racial e as leis Jim Crow, atacavam baluartes do gênero como Louis Armstrong, para eles, o perfeito estereótipo do artista negro docilizado pelo estabilishment e que era acusado por eles de fazer música para agradar a platéia branca. Enfim, da mesma forma que buscava espaço no campo, o bebop também fazia inimigos. E, por causa disso e além disso, parecia pregar no deserto.

Gillespie provavelmente, como diz Burns, moveu mundos e fundos como elemento difusor e integrador da cultura do bebop para o grande público. Mas mesmo assim, até por conta do próprio ethos de boppers como Parker, o bebop sempre pareceu um movimento outsider: eles não tinham espaço nos meios de comunicação, não gravavam em grandes selos. E era anti-comercial.

Mas era revolucionário: ele recriava os temas melódicos em pontilhismos, em desconstruções, em wits musicais, subvertia as regras de performance e de audição, não era mais para dançar, era para escutar. Mais do que uma nova linguagem, era um novo ambiente sonoro, com outra decoração e com outra mobília. Era Stravinski provocando uma histeria coletiva na platéia. O bebop podia te botar para correr mas, depois, queria que você voltasse para ouvir, pensando, o que é isso?

Ken Burns ressalta a questão do risco porque esse passo a frente do bebop era como se você recebesse uma dádiva, mas nessa missão estivesse a sua húbris. Você teria o dom mas pagaria o preço por querer ser um dos deuses. Aqui nós entraríamos na esfera do mito.  O problema nisso residia no fato de que havia um romantismo belamente trágico em torno dessa imagem do orfeu decaído do jazz. Essa imagem preexistia no imaginário do jazz; basta lembrar de Bix Biderbeke, onde a genialidade, os abusos e a tragédia andam de mãos dadas, mas o desfecho final parece seguir o desejo dos deuses e os inescrutáveis caprichos do destino.

Parker me fascina por essas coisas todas e porque sua imagem é de um homem de ternos bem cortados, de uma performance impecável, mas que tinha um gorila pendurado em seu pescoço como se fosse uma aura invisível para quem não o conhecia. Quem era de seu grupo não apenas conhecia esse gorila como também o tinha em seu tiracolo, era a heroína. A droga o transformou num homem que trocava o dia pela noite, a vida pelo vício, mas sempre de forma impecável.

Mas, na verdade, parecia um homem da calçada, da rua, que conhecia as veleidades das ruas, como um flaneur pouco a pouco das circunstâncias, enfim, uma pessoa complexa, mas ordinária, um hércules-quasímodo que havia passado três anos estudando música 15 horas por dia e conhecia mais de música, principalmente os clássicos, mais do que muitos dos frequentadores mais empedernidos do Carnegie. E aquele histórico parecia desaparecer quando ele aparece, a se assemelha a mais um, como um de seus pares. Mas não quer dizer que ele não fosse aberto a outros estilos e tendências: ele seria capaz de ouvir de Hank Williams às Variações Goldberg. Bird estava há milhas à frente de seu tempo.

E, de fato, como toda a cena, pregar no deserto significava não ter reconhecimento além da própria comunidade de músicos, não aparecer nos jornais ou em capas de revistas norte-americanas de grande circulação. Os boppers eram reconhecidos, porém, na Europa, que sempre foi uma espécie de valhacouto dos heróis esquecidos do jazz ianque. Parker nunca gravou num grande selo, ele era um músico dos músicos. Era o cara dos pubs do circuito Harlem e do Village.

Era uma música mercurial, onde as pessoas assitiam a um saxofonista como eles como se fossem ter uma experiência espiritual, ou, quase, uma hierofania. Isso explicaria toda a devoção e o delírio e o cult following dos beatlinks que, à sua maneira, talvez fossem e foram os seus primeiros críticos e os primeiros estetas do bebop. Kerouac ou Ginsberg estavam para Bird como Nerval ou Baudelaire estavam para Watteau. Mesmo odiado por muitos jazzistas, eles foram os seus primeiros evangelistas. O que para muitos poderia parecer mera auto-indulgência e extremo individualismo para eles era uma demanda pelo sagrado, pelo caminho da iluminação. Músicos como Parker eram para os beats como bodisatvas e a música deles era a verdadeira manifestação do sagrado. 

Quando Bird teve a chance de fazer um disco numa grande gravadora, o With Strings, na Verve, foi desancado pelos puristas. Na verdade, ele queria muito mais, mas suas relações com a indústria fonográfica eram lacunares. Sua vida era a noite, sua música se consumia no palco e no êxstase das drogas, mais precisamente a heroína. Bird tinha um longo histórico de abusos de drogas, e que começaram quando ele tinha 16 anos. Na época, ele sofreu um grave acidente de carro, que lhe deixou sequelas, como dores pelo corpo. Um médico o indicou morfina. Esse foi o gorila que se dependurou em Parker pelo resto da vida. O médico que atendeu Charlie já morto achou que ele tinha entre cinquenta ou sessenta anos. Tinha apenas trinta e quatro anos incompletos.

Porém, ao mesmo tempo que o gorila da heroína era um contrapeso e um caminiho sem volta, como mostra Ken Burns, a droga também era um fator de distinção social no mundo do jazz. Pertencer ao seu clube lhe emprestava essa distinção, mesmo que fosse a sua ruína. Porém, o tempo parava, o tempo era a noite, e a vida era o palco, e se vivia pela próxima dose. Parece clichê do rock? Pois nassceu muito antes. Creio que assim como o espírito libertário dos hippies estava em forma de semente nos beatniks, o etos ro astro do rock já existia no jazz. No entanto, assim como ao mostrar esse etos, o documentário mostra o outro lado da história - como no caso de Bix, que morreu num delirium tremens. E muitos sucumbiram às drogas, Anta O' Day, Chet Baker, Stan Getz e o próprio Miles, em meados dos anos 50.

E sustentar esse gorila fazia com que você vivesse em função do vício durante o dia e da música pela noite adentro, essa era a casa onde eles habitavam. O dia-a-dia de Bird era um cotidiano de junkie e a capacidade de administrar o médico e o monstro dentro de si era a sua vida. Dominar a música e a vida junkie era para Parker era como domar cavalos selvagens, e entrar nesse esporte incluia viver uma vida como a de Bird. Como disse a viúva de Parker, Chan, você entra num caminho sem saída, o vício pode sair do corpo mas não sairá jamais de sua cabeça. Os demônios estarão sempre esperando por você.

A romantização da vida do jazz, encorajada pelos próprios músicos que viviam essa vida era mais forte. Muito antes do rock, essa romantização da vida de calçada já existia no jazz e o bebop provavelmente foi o paroxismo disso. Sempre que olhamos em retrospectiva, vemos tantas vidas interrompidas de tantos músicos que arderam como estrlas cadentes e parece que vieram a este mundo apenas para dar o fogo aos homens e pagar o preço de sua húbris, essa é a aura do jazz. O bebop não podia viver sem isso, o uso de drogas mudou a performance, a percepção, tudo o que está hoje associado ao rock começou, de certa forma, com o bebop.

Agostinho, no Doutrina Cristã, interpretava o roubo do ouro dos egípcios pelos hebreus (Êxodo) simbolicamente não como roubo mas como o retorno do que era deles. O mesmo ele dizia do saque da filosofia grega por parte dos patrísticos como ele. Verdades pagãs não devem ser temidas. Ao contrário, dizia ele, a herança daqueles filósofos deveria ser retomada culturalmente deles que seria, segundo Agostinho, injustos possuidores. O pagão era injustamente detentor daquela cultura porque eles se serviam mal daquilo, usando no culto de "deuses falsos".

Músicos como Charlie Parker compunham deliberadamente saqueando temas que eram standards do jazz branco e recriavam, de forma crítica e criativa, aqueles temas que, no fim das contas, eram deles e foram confiscados pelos brancos. Ele não inventou isso mas o bebop foi fértil nisso. E o bebop como cultura ou subcultura enxergava o mundo dessa forma. Ele se queria libertário, contestador, anti-estabilishment. Era o anti-swing. Parker tem vários temas onde ele saqueia o swing branco e transforma em bebop. Isso é revolucionário. Guardadas as devidíssimas proporções, acho que a música no bebop, e o estilo composicional do Charlie Parker passava por uma ótima parecida. Ele é o Santo Agostinho do jazz. É uma tese de boteco, mas acho que poderia render um pouco se fosse ampliada, fica de sugestão para um próxima postagem.

Pena que o grande parto do bebop foi mal documentado, já que a indústria do disco estava fechada na época da guerra e os discos não compartimentariam extensas jams. Acho que o melhor do Parker não foi gravado ou é pirataria gravada ao vivo e que depois foi oficializada com o tempo, como o Jazz at Massey Hall. O que foi oficialmente é uma amostra, ou o que nos restou de toda a sua passagem meteórica pela história do jazz.  



Thursday, August 20, 2020

50 anos do Baile da Pesada

Capa do disco
 


O último 16 de agosto marcou a passagem dos cinquenta anos do lançamento do primeiro disco da série Bale da Pesada (Big Boy e Ademir Lemos), pela gravadora Top Tape. O álbum foi lançado oficialmente também num domingo, no Canecão, local onde os bailes começaram a se popularizar. A temporada, que começou em 12 de julho, se estenderia até o fim de agosto e depois ganharia o subúrbio.

 

Como diz Hermano Vianna em seu estudo sobre o funk e soul no Brasil, a história dos bailes da pesada começa no final dos anos 60. Nessa época, algumas casas noturnas da Zona Sul do Rio começam a apostar cada vez mais em som mecânico. Uma delas foi o Le Bateau, em Copacabana. Localizada na praça Serzedelo Corrêa com Hilário de Gouveia, a boate atraía a joie de vivre da juventude bem nascida e bem vestida carioca ao som de coisas como Johnny Rivers, Chris Montez e Miriam Makeba, entre outros sucessos pop da época.

 

Com Ademir nas picapes, as noites do Bateau, a partir de 1969, passaram a tocar o que de melhor era lançado nos Estados Unidos em matéria de soul, mais precisamente de um gênero que se estabelecia: o funk. Além do Bateau, havia Missiê Limá, na Sucata, na Gávea, também tocando as novidades do som dançante ianque em terras brasileiras. Curiosamente, como observa Hermano Vianna, foi a partir da Zona Sul que o funk ganharia os subúrbios, a Baixada e o resto do país. Ou seja, a trajetória do funk carioca, quem diria, em parte, nasceu na altura do Posto 3.

 

No começo dos anos 70, com a facilidade do acesso ao crédito, houve um aumento no consumo de equipamentos de som, desde para uso doméstico quanto para som profissional. A indústria do ramo se desenvolvia no Brasil nessa década, também estimulado pela demanda por discos. No caso do Rio, como observa Hermano Vianna, o disco importado era uma commoditie possuía enorme demanda a partir de lojas especializadas, como a Billboard, em Copacabana. Esses discos, que eram procurando tanto por colecionadores quanto por disc-joqueis, serviam numa transversal entre consumidores em geral e produtores de emissoras de rádio e equipes de som. E ter acesso às novidades do funk e soul naquela época era sinônimo de distinção na cena musical. E Big Boy, que estava nessa fronteira cultural entre o mundo do disco e o rádio, se tornaria o produto mais bem acabado dessa nova ordem.   

 

Surfando no sucesso nas picapes do Bateau, Ademir lança, no começo de 1970, uma coletânea, que leva o nome da boate. O disco, lançado pela Top Tape, era uma novidade no Brasil: long-plays temáticos de baile, com seleção de músicas dançantes e customizando uma casa noturna era algo que simplesmente não existia. As próprias coletâneas de rádio, que se popularizam nos anos 70, também. Johan Cavalcanti fala que a música gravada em disco se consolida no rádio no final dos anos 60, baseada em canções pop e românticas, voltadas ao público jovem em geral. As principais emissoras desse segmento foram a Mundial AM e a Tamoio (no Rio), Difusora e Excelsior AM (em São Paulo).

 

Ele diz que, na esteira do sucesso dessa nova programação, essas emissoras foram pródigas em explorar o sucesso das canções mais pedidas e executadas a partir do lançamento de coletâneas em vinil. “Além do consumo das canções que gosta, dizo autor, “o ouvinte consome a própria proposta de programação da emissora, que é levada de modo resumido para um álbum, que retrata sua programação de um determinado momento”.

 

A parceria entre rádios e gravadoras rendeu dezenas de discos temáticos de emissoras, como Sua Paz Mundial ou Excelsior, a Máquina do Sucesso. Além de vender a marca da empresa, esses álbuns entraram na onda avassaladora da difusão do pop internacional no Brasil, uma tendência que chega ao ápice nos anos 80. Já coletâneas de sucessos pop eram raras nos anos 60. Muitos devem se lembrar da série As 14 Mais, da CBS. No entanto, essa coleção era feita estritamente a partir de fonogramas da gravadora.

 

Num primeiro momento, Ademir Lemos, que já fora figurante de programas de televisão, investia na carreira de discotecário no Bateau. Com o sucesso do funk e contando com a parceria do selo Top Tape, ele lança, em meio de 1970 um disco, que pode ser considerado um marco do gênero. Baseado em temas mais tocados na casa, o disco recebe publicidade de Big Boy, que já mantinha um programa diário na Mundial do Rio e tinha uma coluna em O Globo. A capa do disco – Le Bateau Ao Vivo (que, na verdade, não é), aparece em primeira mão na coluna Top Jovem de Big Boy do dia 3 de abril de 70. Em 27 do mesmo mês, ele anuncia o lançamento do disco na própria boate, anunciando a presença de Fábio, Jorge Ben e Wilson Simonal. O disco, segundo o radialista, já roda na programação da rádio Mundial, com destaque para a faixa “My Baby Loves Lovin’”, do Joe Jeffrey Group.

 

Discos pau-de-sebo como o As 14 Mais da CBS existiam desde o começo dos anos 60 no Brasil. E seleções de pop jovem também, como o Juventude em Brasa, da Odeon (1964) ou as séries de bandas de baile fantasmas como  Ed Maciel, Os Versáteis ou a Som Bateau – em geral gravadas por conjuntos de estúdio, embora focada no pop que fazia sucesso das pistas de dança daquele tempo. Porém, a partir do Le Bateau Ao Vivo, além de um produto customizado por um discotecário, há a homologia entre o DJ e uma rádio de segmento jovem. Na mesma época (abril de 1970), Big Boy também entraria para o ramo da discotecagem: a partir de maio, ele também passa a promover bailes, inicialmente na Tijuca (Uruguai Tênis Clube) e Gávea (Umuarama Clube).

 

Em julho, surge a oportunidade de discotecar no Canecão. O objetivo era ocupar as tardes de domingo, horário em que a casa não funcionava. A primeira festa, ocorrida no dia 12, pôs 3 mil pessoas. O disco Big Boy e Ademir, lançado pela mesma Top Tape, navega no sucesso do empreendimento, que lotou a casa noturna entre os meses de julho e agosto.

 

Com o fim abrupto do contrato com o Canecão, provocado pela boate e o disco, começa um novo capítulo na história dos bailes da pesada, na história do funk e na história do disco: o circuito agora sai da Zona Sul e ganha o subúrbio: Guadalupe, Rocha e Tijuca, e depois a Baixada Fluminense, Petrópolis e Niterói. Em pouco tempo, outras equipes de som se destacariam na cena dos bailes cariocas, como a Revolução da Mente, Atabaque, Uma Mente numa Boa, Black Power, Soul Grand Prix e a Furacão 2000.

 

Já o primeiro disco Baile da Pesada renderia vários desdobramentos. No final de 1970, Big Boy lançaria o seu próprio álbum da série da Pesada, seguido pelo Baile da Cueca (1972) e Big Boy Show (1974). No começo de 71, a Equipe lançaria Hórus falou e disse: Grilação Mundial. A seleção, produzida por Big Boy e Pedrinho Nitroglicerina, seria trabalhada nos estúdios da Som Livre. O disco, um compósito da proposta dos discos dos Bailes e seleção de sucessos viculados pela emissora, entraria para a história como a primeira coletânea de rádio de segmento jovem a sair no mercado.


Ao fazer pesquisa em sebos, é possível encontrar os discos produzidos por Big Boy ao longo dos anos 70. São eles Big Boy e Ademir Lemos (1970), O Baile da Pesada (1971), O Baile da Cueca (1975), The Big Boy Show (1976), And the Beatles Were Born (1977) e uma parceria com Rômulo Costa, o primeiro álbum da Furacão 2000 (1977), que saiu depois de sua morte, naquele mesmo ano. 


Lançado em 1970, a primeira coletânea do Big Boy, ainda em parceria com Ademir, pode causar estranheza para quem é de hoje. Na verdade, ele seria estranho até mesmo para quem o ouviu na época. Afinal de contas, ali ele apresenta, pela primeira vez, Kool and the Gang, The Meters, Canada Goose e The Buoys. Sem nenhuma exceção, os artistas presentes no disco não eram conhecidos no Brasil. A maioria deles, caso do Kool and the Gang, que iria ser mundialmente conhecido na era Disco, haviam lançado apenas um ou dois compactos, e em selos obscuros e alternativos, como o Dee-Lite, a gravadora do Kool and the Gang.


O mais interessante é que, naquele tempo, não havia ainda a febre de coletâneas despejadas no mercado como aconteceria no final daquela década. Mais: os artistas presentes no elepê sequer tinham representação com algum selo no Brasil. Isso quer dizer que o álbum é rigorosamente pirata. Ele saiu aqui pela Top Tape, que começava ali uma parceria de anos com Big Boy. Não saberia dizer como eles conseguiram os masters para a prensagem.

 

O que se sabe é que Big Boy conseguia, através de várias conexões, cópias desses compactos. O álbum pode ter sido fabricado a partir desses singles. Como esses grupos não tinham representação aqui e mal eram conhecidos, o fato do disco ser bootleg ou não passou batido. E além disso, o DJ, já programador e apresentador na rádio Mundial, tocava essas faixas, tanto no seu programa vespertino quanto no matinal Show dos Bairros que, apesar do que viria se transformar no final dos anos 1970 e anos 1980, tinha uma programação pop e jovem.


Ou seja, Big Boy agenciou um tipo de música (o funk que ele tocava nas boates Sucata e Canecão) influenciando uma gravadora daqui (a Top Tape) a pôr ela no mercado e difundi-la no rádio pelas ondas da Mundial.


Mais conhecido, o álbum Baile da Pesada (1971) repetiria a mesma fórmula, amalgamando pop e funk, com artistas e grupos desconhecidos no Brasil (e muitos deles ainda com relativo sucesso nos Estados Unidos), como The Mardi Gras (de Nova Iorque, porém acabou fazendo mais sucesso na Europa, com o single “Girl, I’ve Got News For You”), Bobby Bloom, Katie Love, The Happenings, The Bluejays, Paul Davis, Great Jones, entre outros. Big Boy introduzia compactos que recebia de fora, e montava a coletânea, cujas faixas tocavam na Mundial.

 

Em O Mundo Funk Carioca, Hermano Vianna explica que, no começo, discos propriamente “de balanço” eram raros. Big Boy de certa forma instaurou um movimento que já acontecia naquele momento: os DJ de festas já estavam antenados ao que estava acontecendo em matéria de balanço em outras partes do mundo, mais especialmente nos Estados Unidos, a fonte do soul e do funk, gêneros que estavam, por assim dizer, entrando no cardápio musical das gravadoras, casas de espetáculo e rádio brasileiras naquele período. 


Em tempos muito pré-internet, o grande capital do disc-jóquei era o material que chegava de fora, quase sempre através de voos internacionais; os comissários e aeromoças se transformaram em deales do que ele chama de época da “transação de discos”. Essa demanda era bastante disputada entre os DJs e a exclusividade desses lançamentos era o seu capital social. E descobrir o novo som dançante era a grande corrida do ouro desses discotecários.


Para um comunicador como Big Boy, isso funcionava para os dois lados: tanto para o seu trabalho em rádio e jornal, quanto para o repertório que ele podia trabalhar e pautar nas pistas de dança. Ou seja, as atividades andavam de mãos dadas e o corolário disso foi que, numa penada, ele serviu ao rádio, ao pautar a costumização de discos “assinados” por emissoras (como o E Hórus falou e disse: Grilação Mundial).


 Quanto à indústria dos bailes e seu público, com os álbuns “de balanço”, como no caso da série Baile da Pesada. A partir daí, já é possível perceber os processos de segmentação nas decisões de programação das emissoras, como suas interfaces com as gravadoras que, cada vez mais, passam e  ver no rádio um espaço importante em termos de visibilidade e rentabilidade. Porém, no caso de Big Boy e o começo dos bailes, em 1970, ainda podemos dizer que vivia-se a aurora de todo o circuito da cultura que iria de desenvolver a partir de então.




Referências


 

TOP JOVEM. O Globo. Rio de Janeiro: 3 abr. 1970, p. 8.

 

TOP JOVEM. O Globo. Rio de Janeiro: 27 abr. 1970, p. 11.

 

TOP JOVEM. O Globo. Rio de Janeiro: 26 mai. 1970, p. 13.


VIANNA, Hermano. O Mundo Funk Carioca. Rio de Janeiro: Zahar, 1988.

 

VAN  HAANDEL, Johan Cavalcanti. Mapeamento das Emissoras de Rádio e Gravadoras Envolvidas na Produção de Coletâneas de Sucessos Internacionais nos Anos 70. In: Rádio no Brasil [recurso eletrônico]: 100 anos de história em (re) construção / organizadores Vera Lucia Spacil Raddatz ... [et al.]. – Ijuí : Ed. Unijuí, 2020.




Saturday, August 08, 2020

Sobre listas


O Nildo,  dono deste blog, me desafiou para publicar no Facebook minhas influências musicais em capas de disco. Achei que seria mais interessante transformar o típico desafio de lá numa publicação daqui. Tentei lembrar do primeiro disco que eu vi na vida. Não lembro. Quando eu era menino, meus pais não tinham eletrola nem rádio. Minha primeira infância foi sem música.

Foram comprar um toca-discos bem depois de casados. Recordo de umas fitas compradas em loja que eles trouxerem do tempo de Estados Unidos. As fitas eu encontrei depois, eram de álbuns do Engelbert Humperdink, um In Concert da Joan Baez e dois do Glen Campbell (um era o The Last Time I Saw Her Face), que era uma paixão dos dois pelo cara. Sempre que eu ouço “Gentile on My Mind” ou “Whichita Lineman” eu lembro dessa época.

Depois eles compraram um 3 em 1 Philips e começaram uma coleção de discos. Isso era final dos anos 70. Uma vez, umas colegas de trabalho de minha mãe foram lá em casa. Uma delas tinha chegado com a coleção completa do Roberto Carlos. Fiquei impressionado como ela cuidava dos álbuns, a ponto de conservá-los dentro de capas de plástico.  Mas eu não ouvia discos nem nada, não guardo nenhum contato com o toca-disco no começo.

Meu pai tinha um gosto específico, com coisas da Bethânia, Clara Nunes, Erasmo Carlos, Glen Campbell. Minha mãe tinha umas coletâneas, uns discos de novela, Elis, Milton Nascimento e Julio Iglesias que eles ganhavam de presente de um parente que era fanático pelo cara. A coleção era meio lacunar, não ia para direção nenhuma, nem gosto específico. O hábito de escuta deles era o das pessoas “normais” em geral: eventualmente, com amigos, aos fins de semana.   

Uma vez, não sei por que, meu pai comprou um rádio-gravador CCE daqueles anos 80 com aqueles headphones enormes. Ele ouvia de noite na cama. Na mesma época ele pegou uma mania de radioamador. Comprou um equipamento de faixa do cidadão. Às vezes, ficava no escritório dos fundos da nossa casa (nós morávamos em Curitiba), conversando com dexistas. Foi uma época dele. Aquele escritório dele era bacana, tinha estantes de livros e uma mesa grande e uma máquina IBM daquelas preta. Minha avó, que morava conosco, achava graça quando meu pai estava fora e eu tomava o posto dele no escritório. Botava papel na máquina e ficava escrevendo sei lá o quê.  Mas eu não mexia no equipamento, achava aquilo uma besteira. Mas a máquina de escrever, eu me sentia uma pessoa melhor batendo à máquina (vá saber).

Acho que fugi do assunto. Voltando, na mesma época meu pai me deu um radinho de pilhas. E eu ouvia as AM da cidade na época. Lembro das músicas daquele tempo: “Reluz”, com o Marcos Sabino, “Na Hora da Raiva”, com a Wanderléa (“você faz de mim o que bem quer”), “Leão Ferido”, com o Biafra, e “Time”, com o Alan Parsons. Isso é o começo, é minha primeira experiência como ouvinte. Esse era o tipo de som que tocava no rádio AM. Meu radinho não tinha FM. Depois meu pai encheu o saco do CCE e eu passei a escutar música no rádio-gravador. Sempre que eu escuto essas músicas eu retorno aos tempos do meu radinho azul.

Mas mesmo assim eu não ouvia FM, preferia fazer escuta de rádios de fora, pela madrugada. Pegava as emissoras daqui, a Gaúcha (na época do Júlio Rosemberg) e a Guaíba (saía do ar a uma da manhã e voltava às cinco). Como a Gaúcha tinha uma potência enorme, dava para curtir a madrugada toda. E, como o programa do Júlio era musical, eu recordo do que ele tocava, muito Roberto Carlos. Lembro que, nessa época, estourou o “Me Dê Motivo”, do Tim Maia. Foi um baita sucesso, tocava todo dia no programa.

Os sucessos do rádio eram daquele tipo, não tinha rock. Meu pai tinha um amigo no bairro onde nós morávamos. Ele era de Lagoa Vermelha e tinha uma coleção enorme de discos. Comparada com a nossa, aquilo era fora do comum, era uma parede de discos. Mas o acervo era praticamente de música nativista. Era a época do começo do auge dos festivais da canção. A gente ia na casa dele e era só o que se ouvia. Música de Califórnia, Cenair Maicá, essas coisas. Eu ouvia por tabela. Mas eu não tinha um gosto musical específico a respeito de nada. Eu apenas escutava o que tocava. Mas não achava nada de nativismo. O amigo de meu pai tinha os discos do Kleiton e Kledir, e gravou-os em fita para nós. 

Naquela época, além de escutar música em AM, eu ouvia muita coisa no toca-fita do carro. Dessas viagens, eu recordo muito das fitas da Clara Nunes do meu pai e esses Kleiton e Kledir. Acho que foram meus primeiros ídolos, tanto que eu até vi eles no Teatro Guaíba, na turnê daquele disco que tem “Corpo e Alma”. “Deu prá Ti” foi o tema que a gente ouvia no carro na época que migramos de Curitiba para Porto Alegre, lá por 83, 84 

Meu primeiro disco pode ter sido a trilha do Plunct, Plact Zuum!, aquele especial infantil da Globo. Eu pedi de presente por causa do “Carimbador Maluco”, mas eu não sabia bem quem era o Raul Seixas. Lembro que eu detestava aquela canção da Bethânia no disco, achava que quebrava totalmente o clima. Mas nessa época não tinha rock ainda. Isso começou, se não me engano, quando eu voltava de carro do colégio e tocou “Pro Dia Nascer Feliz”. A gente foi pego literalmente de calças curtas. Antes, porém, teve a Blitz.

É certo que a Blitz foi o divisor de águas. A gente curtia eles como se fossem nossos irmãos mais velhos. Mas era difícil de grana para comprar um disco. Um amigo de rua tinha o álbum deles, com aquela faixa riscada. Por causa da Blitz, eu pedi a trilha da novela Sol de Verão. Eu ouvia o disco só por causa dela e, é claro, de “Tempos Modernos”, do Lulu Santos (gostava também de “Muito Estranho”, com o Dalto). Eu já tinha esses discos e eles já me diziam alguma coisa. Depois, no fim da época de Curitiba, a incontornável febre do Ritchie. Tive o compacto, com “Baby, Meu Bem” e, depois, o Voo de Coração. Eu esperei aquele disco no natal como se fosse ao próprio Natal.  

Mas, enfim, olhando para trás, pode-se ver que foi quando apareceu uma música para a gente ouvir, falando para a gente. Aquela MPB maneirista (isso sou eu falando agora sobre o passado) do final dos anos 70 não dizia nada para nós. A Blitz, o Lulu e o Ritchie, sim.  E foi essa época que surgiram aqueles artistas que entraram de sinuelo no caminho da Blitz: Magazine, Sempre Livre, Herva Doce, Guto Graça Mello, Absyntho, Grafite, veio tudo ao mesmo tempo. “Mamma Maria” é bem aquela época, lembro do verão de 83 em Caiobá ou Guaratuba.

E teve por ali uma progressiva massificação do pop internacional pra mim. Lembro do “I Don’t Wanna Dance” (Eddy Grant) e “Reggae Nights” (Jimmy Cliff) que tocaram muito no rádio desse tempo, essas foram hits de verão, temas de novela e com direito a clipe no Fantástico – que era, nos anos 80, o lugar dos lançamentos de música. E o Thriller, do Michael Jackson. Acho que esse disco foi o momento em que o pop internacional veio para ficar. Já estava por aí; mas, com o Thriller (e, depois, com o BRock), as FM pararam com aquela programação MPB final dos 70 e entraram nos anos 80.

Mas tudo isso aconteceu para mim antes de um contato maior com o FM e o rock brasileiro. O rock ia acontecer do meio para o fim de 84. Nessa fase, eu vim para Porto Alegre. Por uns dois anos, o toca-discos ficou num guarda-móveis e eu vivi ainda de rádio AM. Eu só fui entrar nessa onda quando eu ganhei meu primeiro walkman, lá por 87. Foi a partir daí que eu comecei a escutar FM de segmento jovem, como a Universal, a Atlântida e a Ipanema, rádios que hoje não existem mais. 

Ou seja, fazendo um rescaldo, posso dizer que meu primeiro contato com música foi menos pelo disco e mais pelo rádio. Só poderia falar numa fase de colecionador de discos, ouvindo FM e lendo revistas do gênero, ou seja, como ouvinte mais “reflexivo” sobre o ato de escutar e passar enfim a delimitar minha identidade musical a partir do gosto muito depois desses começos. Mesmo se fosse falar dos primeiros discos, foram um ensaio disso. Não sei o que eu pensava a respeito daquilo que eu ouvia, qual era a minha fruição daquilo que eu ouvia comparado com hoje? 

Mesmo pensando em retrospectiva a respeito de que eu via na Blitz o despertar de uma música da minha geração, essa conclusão eu só fui ter bem depois. No começo, tudo era muito inconsciente e muito aleatório, indireto. Então, acho que essas influências não poderiam ser explicadas por discos. E mesmo que eu tentasse, ela seria a partir de discos ou artistas que me tocaram mas não me conduziram; e o que eu passei a ouvir depois não teve parte com essa influência. Ou seja, foi uma influência que influenciou e não influenciou. Só no fim da minha adolescência é que seria possível dizer que fui estabelecer uma identidade calcada num gosto específico, numa ou outra banda de rock. Mas aí a coisa seria tão consciente que não sei se poderia chamar de influência. A influência, de fato, eu creio que foi crepuscular; o resto veio depois do despertar.

Por exemplo, o primeiro disco de rock que eu consciente fui numa loja e comprei sozinho foi o Alchemy, do Dire Straits. Mas existe um interlúdio antes disso e que fica para uma outra vez.