Monday, July 30, 2018

Festim Diabólico

Se você voltasse à Porto Alegre de 1864 então se espantaria em perceber que a cidade ia da ponta do Gasômetro até a Santa Casa. Ali ficava um muro, que fora reformado na época dos Farrapos. A antiga Independência era uma estrada descampada onde, à esquerda de quem sobe, ficava a chácara da Brigadeira, e que se estendia até as margens do Guaíba.

No burgo açoriano, pois ficava restrito praticamente à península, e isso antes dos primeiros aterros, a área era bem menor. Enquanto a elite municipal encastelou-se basicamente na Duque de Caxias, então, rua da Igreja, o lado pobre da cidade era a que margeava o rio, pulava a ponte e seguia pelo antigo Areal da Baronesa, hoje o prolongamento do Pão dos Pobres.

Se você descesse pelo antigo Beco do Oitavo (por causa do Batalhão dos Caçadores, que ficava na boca da rua, nos portões da cidade, hoje a Des. André da Rocha) e chegasse além da Cel. Fernando Machado naquele tempo, ia cruzar por suas calçadas fétidas, onde o esgoto e a água das calhas e misturava em miasmas pela rua afora.

Se fosse perfazer o trajeto à noite, iria cruzar com uma cena caligaresca: trechos mal iluminados, muitas casas de pensão e lupanares. Muitos escravos-de-ganho eram jogados na prostituição por seus amos. O sexo era fácil a a violência gratuita.

A pior parte era atrás da Matriz. Como havia um cemitério onde hoje fica a Cúria, aquele entorno era desvalorizado. Segundo cronistas como Sérgio da Costa Franco, era comum no local desenterramentos causados pela chuva, com direito a caveiras se misturando ao lixo do curso.

Sair à noite era considerado loucura. Era cada um por sua conta e risco. Você podia tanto ver um crime, um assalto, uma curra, uma degola, ou ser vítima disso. Pior: você poderia encontrar com um certo José Ramos. Ele poderia te convidar para cear à casa dele, ali, no Arvoredo e, sem que você pudesse pestanejar, era morto a machadadas e finalmente transformado em carne para linguiça.

Os crimes da rua do Arvoredo, como ficaram conhecidos os incidentes que ocorreram nesse período, naturalmente foram matéria que foi apagada pela memória oficial na mesma proporção em que tornava-se lenda. Ao virar lenda, a maioria das pessoas que mencionava essa efeméride não sabia quem foram os autores dos assassinatos, muito menos a data. Sabiam que, durante certo tempo, Porto Alegre, que já era uma cidadela rude e caótica, foi uma cidade antropófaga.

Eu particularmente sabia da história mal contada pelo Renato Maciel de Sá Júnior, nos seus anedotários. Mas era preciso que houvesse algum indício histórico, para que fosse possível referir-se aos crimes como algo dentro do tempo.

Quem desenterrou essa tenebrosa página foi Décio Freitas. Lembro que assisti a uma palestra dele na Famecos na época que ele lançou o seu livro O Maior Crime da Terra, em 1997 (1). Ali, ele pegava das teorias darwinistas (aliás, o autor da Origem das Espécies tomou conhecimento da antropofagia porto-alegrense) para dizer que, à Zola, o homem falhou como ser humano e o seu atavismo animalesco falava mais alto. Cada homem traz o chacal dentro de si.

Décio falou que, quando ele era repórter do Diário de Notícias, em 1960, resolveu publicar os crimes do Arvoredo a partir de fontes, que eram os autos dos julgamentos. Foram três ao todo, sendo que, salvo em fotocópias que ele conservou quando pesquisou sobre o assunto, e que posteriormente boa parte do material foi misteriosamente extraviado do Arquivo Histórico.

Ao mesmo tempo, a redação do Diário passou a receber ligações anônimas e de grupos religiosos, pedindo para que a série de reportagens fosse suspensa. Por pressão de mãos invisíveis (possivelmente irmãs daquelas que sumiram com boa parte dos autos dos crimes), existia algo que queria pôr uma pedra sobre o assunto.

Foram quase 130 anos até que surgisse uma publicação que desse conta do assunto sem que fosse pelo viés pitoresco e lendário.

A história começa pelo meio. José Ramos foi preso acusado da morte de duas pessoas: José Ignacio de Souza Ávila e Januário Martins Ramos da Silva. A partir daí, foram acusados ele e sua esposa, Catarina Pulse, uma alemã húngara, muito jovem à época (quando saiu da cadeia, tinha apenas 41 anos). Muitos dos imigrantes alemães que vieram com ela teriam sido originários daquela região da Europa.

O grande problema é que Ramos era um rábula a serviço da polícia. Então havia uma relação entre ele e a Justiça, isso complicava as coisas para a polícia, na medida em que "facilitava para ele".

Ambos foram julgados e condenados. Porém, havia mais. Tudo mudou quando, anos depois, Catarina resolveu contar o começo de tudo. Ela e Ramos, mais Carlos Claussner, açougueiro na rua da Ponte, e mais um grupo de alemães vizinhos deles, faziam parte de uma quadrilha responsável por uma série impressionante de assassinatos sem precedentes aqui.

Só que, se no caso do primeiro julgamento, os dois comerciantes assassinados foram mortos e tiveram seus cadáveres ocultados, havia um outro grupo de vítimas, em geral, pessoas desconhecidas na capital ou de passagem, que foram mortas a mando de José Ramos, e tanto Claussner e Catarina (e pelo menos mais duas pessoas) foram cúmplices do que foi o açougue.

Depois de degolados (2), tinham a carne do corpo triturada (por Ramos e Claussner) e transformada em linguiça, fartamente vendida, por puro prazer de Ramos que, por sua vez, tinha uma ascendência enorme entre aqueles alemães, para grandes luminares da capital que, como Tiestes (da outra lenda), foram canibais involuntários...

Do ponto-de-vista legal, ao que parece, observa Freitas, havia primeiro o dilema de Ramos estar ligado à Justiça, pois era informante e tinha um "foro privilegiado", ou melhor, dangerous liaisons" entre a polícia e o criminoso. Por outro, havia um certo temor, por parte dos edis da cidade, em imbricar um grupo de alemães ao crime - o que, de fato, ocorreu, por conta de um certo antigermanismo que existia em Porto Alegre (e que iria desaguar na questão dos Mukers, esta, também, omitida por muito tempo).

Ainda em 1862, diz Décio no livro, o Deutsche Zeitung, hebdomanário produzido por alemães na capital, quase foi empastelado e seus donos linchados depois de um artigo de fundo que se colocava do lado dos ingleses na Questão Christie. A polêmica quase descambou num outro incidente diplomático, e tudo isso ocorreu numa cidade perdida no mapa.

Ora, imagine o que iria acontecer se os crimes fossem finalmente revelados, da forma como ocorreram, e ao acusarem-se um "grupo de alemães antropófagos" como os autores? Assim, seguiu-se praticamente a lógica perversa da peça do Ibsen, O Inimigo do Povo: às vezes, para o bem geral da nação, é melhor que a verdade não seja dita.

O dilema da polícia era, com efeito, associar os crimes à comunidade alemã: isso poderia ir contra todo o programa de imigração que era promovido pelo Império.

Décio Freitas explica que, mesmo depois de condenada e solta, ela resolveu finalmente contar tudo à polícia. Segundo ela, por puro descargo de consciência. Porém, a sua versão mudou o curso do que se sabia sobre o caso: de que era uma espécie de  folie en famille de uma quadrilha que vivia em função da figura de José Ramos (na sua vizinhança, no Arvoredo)  que, à época da confissão de sua companheira, também já estava mais fora da cadeia do que dentro. Era enfermeiro na Santa Casa.

Por esse e tantos outros fatores, a história foi sendo apagada, até virar lenda, sem indicação de nomes e de datas. Tanto que, até pouco tempo atrás, existia um sobrado verde (que ficou muitos anos fechado, até foi finalmente demolido, nos anos 2000) atrás da Cúria, onde muitos vizinhos na Fernando Machado diziam ter certeza de que aquela era a casa dos crimes.

O que não poderia ser: a Porto Alegre de 1864 não existe mais no mapa de hoje, exceto com relação a alguns prédios públicos, como o Solar do Gen. Câmara e a antiga Assembléia. O centro atual é uma cidade em cima daquela cidade.

Na verdade, Ramos, mesmo acobertado por cúmplices que preferiram calar, teria cometido o crime perfeito. O assassinato dos dois comerciantes, (mais um menino e um cachorro) foram, por assim dizer, o ato falho dos crimes (o assassino sempre "se entrega" inconscientemente, diria a corrente freudiana), e o que levou-os ao patíbulo.

Claussner, que havia sido listado como uma das vítimas, por sua vez, era o cúmplice nº 1. Ele é que era o verdadeiro açougueiro: a carne dos assassinados eram transportados em baús, do Arvoredo até o açougue da Riachuelo, que ficava atrás das Dores, numa época em que a entrada da igreja se dava pela Riachuelo, o que tornava o estabelecimento bastante conhecido pela população. Em sua confissão, Cataria disse que chegou a provar da carne (pode ter consumido em larga escala já que ela mesma disse que, em tempos de fome total, na Transilvânia, parte do povo recorria ao extremo do canibalismo).

Ramos resolveu matar Claussner porque acreditava que este fosse entregá-lo caso chegasse ileso a Montevideu, e então contaria dos primeiros crimes. Antes de qualquer certeza, deu cabo da vida de seu parceiro. E aquela pessoa que ele imaginou que não iria contar toda a história, Catarina, foi quem acabou contando.



NOTAS

(1) FREITAS, Décio. O Maior crime da Terra: o açougue humano da rua do Arvoredo. Sulina, Porto Alegre, 1997. 

(2) A degola era por aqui uma prática comum (algo como torcer um pescoço da galinha do almoço, diriam alguns), usada para crimes em geral e na guerra. Ou seja, muito mais comum do que pode parecer. Décio iria além num livro posterior, O Homem que Inventou a Ditadura no Brasil (2002), ao descrever como a degola era uma segunda natureza dos combatentes da Revolução Federalista de 1893, descrevendo com requinte de detalhes, como inimigos e prisioneiros (e populares) eram mortos dessa forma. Uma prática que estaria atavicamente ligada à história das guerras de fronteira no Prata, e que seguiu por aqui, até na Revolução de 23, a última que separaria chimangos e maragatos. 

Saturday, July 21, 2018

A Guerra dos Classificados

Nos anos 70, em Porto Alegre, existia uma guerra quente entre a Caldas Júnior e a Zero Hora.

Se existe uma data específica, ela teria começado quando, num determinado momento, endividado, Mauricio Sirotsky Sobrinho decidiu vender seu jornal para Breno Caldas.

Este, sem saber o que faria com ZH em suas mãos (talvez meter o cetro em sua testa, como o faraó), teria dado um solene chá de banco em Maurício. Este, a partir de então, decidiu que ia levar o jornal até o fim.

Até o fim dos anos 70, muitas tentativas de desbancar a Companhia do Correio do Povo-Folhas deram com os burros n'água. Uma delas foi o efêmero Hoje. Planejado como um tabloide de 48 páginas, a publicação surge em 1974 visando bater a Folha da Tarde. Para tal empresa, foram contratados profissionais tanto da concorrência quanto de outras praças.

Um dos problemas imediatos foi a concorrência com a própria Zero Hora, além do fato de que a Caldas Júnior, àquela época, operava em duas frentes, da Folha da Tarde e a da Manhã, esta desde novembro de 1969.

A Folhinha, como era chamada, nasceu da costela da Folhona, a partir do caderno de esportes. Considerado como ideia de Francisco Caldas e contando com uma redação jovem e dinâmica (Geraldo Canalli, Mário Marcos de Souza, Luís Fernando Verissimo, Ivete Brandalise, Carlos Nobre, entre muitos outros), ela marcaria época no começo dos anos 70.

Acusada de "comunista" e desprestigiada até pelo próprio Breno Caldas, ela sofreu uma intervenção em 75. Muitos jornalistas foram demitidos e, em sua maioria, acabariam fundando um projeto muito mais revolucionário - o Coojornal. A "folhinha" ainda agonizaria por mais cinco anos, até ser fechada, em 1980.

A experiência do Hoje foi efêmera: apenas nove meses. Com o fim do diário, sua redação foi incorporada à Zero Hora. Ao mesmo tempo, o jornal de Maurício Sirotsky havia adquirido novas unidades em suas rotativas. Inspirado no projeto de classificados do Miami Herald, em 1978 nascia o ZH Classificados.

Nessa época, o Correião tinha os seus classificados. Contudo, eles não davam comissão para agências, e a ZH passou a dar. E diferentemente da Caldas Júnior, a equipe do jornal da Ipiranga optou por descentralizar o atendimento em diversos pontos, ao mesmo tempo em que centralizava a demanda num número só e fácil de decorar, o famoso 139.

A Zero Hora começou cobrando um terço dos preços da Caldas Júnior. Em um ano, eles conseguiram amealhar metade do mercado. Já na Folha, como diz Walter Galvani (1), a presença de Edilberto Degrazia como diretor desde 1965 impedia uma efetiva modernização do tabloide, até 77, quando Edmundo Soares toma o posto do antigo plenipotenciário, que passa a responder pelo Jurídico.

Se 78 foi o ano da ascensão de ZH com os classificados, a data representou simbolicamente o começo da longa e dolorosa decadência da Companhia Caldas Junior.

A manutenção de uma folha de pagamentos mastodôntica, somada a gastos enormes com a instalação da tevê (protelada por anos e finalmente inaugurada naquele ano) começava a fazer água nas finanças da CJCJ, embora a realidade financeira da empresa fosse assunto de economia interna.

Quando a Folhinha foi fechada, em março de 80, a redação da Folhona chegou a mais 250 pessoas, sem contar com as sucursais. Naquela data - soube-se depois, a Companhia do dr. Breno já devia, só no Banco do Estado, mais de 2 milhões de dólares (subiria para dez em 1983, quando seria finalmente executada no governo Amaral de Souza, este, um desafeto de Breno, como este conta em seu depoimento (2)).

No caso da Folha, Galvani entende que a presença de Degrazia por tanto tempo engessou a renovação do jornal, da mesma forma que, com o recrudescimento da ditadura, manteve uma linha dura editorial, diversa do que historicamente havia sido a Folha desde o começo, em 36.

A FT ainda contava com correspondentes no interior do estado - inclusive em cidades da grande Porto Alegre, como Canoas e Viamão. E mantinha cadernos regionais, publicados apenas em partes do Rio Grande.

Só com o fim da Folhinha que a sua remanescente irmã mais velha inaugurou o seu caderno de classificados, isso cerca de dois anos depois do pulo do gato dos Sirotsky. "havíamos perdido o domínio dos pequenos anúncios para a Zero Hora", diz Galvani em seu livro. "A tentativa de reconquistá-la era imprimi-los no Correio e na Folha".

Na tentativa se olhar para o futuro, porém, a Folha espelhava-se no seu passado. Junto com o chamado classificado Dose Dupla, decidiu retornar com a Folha Esportiva, jogando derradeiras fichas no futebol, enquanto apostava num folhetim. A despeito do relativo sucesso, parecia mais uma solução romântica, que seria explicável nos tempos da Última Hora, com a A Vida como Ela É, no começo dos anos 50.

Mas nos 80, era difícil concorrer com a televisão e achar que um folhetim fosse virar o jogo aos 49 do segundo tempo, e sem que os editores soubessem, de fato, o que estava acontecendo com a Caldas Júnior, pelo menos a ponto de, juntos com Breno, apontar uma solução efetiva.

Esse episódio pode mostrar, à título de comparação, a distância que havia entre um modelo de jornal e outro.

E falando em tevê, quando Breno anunciou que iria lançar a TV 2, recebeu contato de Roberto Marinho, que estava interessado em transformar a Guaíba como retransmissora da Globo. Desfraldando a bandeira da "tevê nossa para nossa gente", o todo poderoso da CJ não quis fazer a parceria, protelando a inauguração para o fim da década, quando o dono da Globo já havia casado seu projeto justamente com quem? Maurício Sirotsky...

Imagine que Breno viu a cavalo passar encilhado duas vezes: quando podia esmagar a cabeça da hidra que era a Zero Hora e, na segunda vez, associar-se à Globo, ao invés da TV Gaúcha.

Em 16 de junho de 1984 (dia do Maracanazo), a Folha desaparecia com a Companhia Jornalística Caldas Júnior. O Correio retornaria em 86, sob a batuta de Renato Ribeiro, porém, depois de um período como standard, ficaria restrito ao formato tabloide. E, por sinal, agora aplicando as lições dos classificados de sua antiga rival, a Zero Hora.

Não deixava de ser curioso que, dez anos antes, a ZH tentava competir com a Caldas Júnior sem saber que, a partir daquele momento, a cultura do standard estava desaparecendo em favor do tabloide, justamente o formato que a Folha introduzira, quase meio seculo antes, influenciado pelas gazetas portenhas. O formato grande agonizava em matéria de apreço, no sul, depois do Diário de Notícias e, agora, com o CP, era como se os leitores fossem desaprendendo a ler no standard...

Diferente de outras praças brasileiras, que até hoje fazem questão do formato jornalão, no rio Grande, venceu o modelo tabloide. Ou seja, a Folha é pai e mãe da ZH que, por sua vez, herdara o formato da Última Hora que, a despeito de já apresentar o formato menor, a verdade é que ela havia nascido 15 anos depois da Folha da Tarde.

Porém, a primazia não contou quando o problema era evoluir, pelo menos do ponto-de-vista empresarial. Enquanto a CJCJ encastelava-se no pensamento autárquico de Breno, a ZH, mesmo com alguns erros de cálculo, como a quase venda do jornal até o advento do malfadado Hoje (afinal, até aquele momento, a Caldas Júnior era um inimigo intransponível), e a empresa de Maurício Sirotsky havia mudado  a tempo o modelo de gestão (que, como é possível ver no livro de Lauro Schirmer (3), sempre foi o inverso da Caldas Júnior, desde os tempos da rádio Gaúcha, nos anos 50), e o momento decisivo pode ter sido a vitória na querela dos classificados (cujo projeto seria depois copiado pela Folha, A Tarde e o El País): a partir dali, a trajetória dos dois jornais mudaria para sempre.


NOTAS;

(1) GALVANI, Walter. Olha a Folha. Sulina, 1996.

(2) PINHEIRO MACHADO, José Antônio. Breno Caldas: meio século de Correio do Povo - Glória e agonia de um grande jornal. LPM, 1988.

(3) SCHIRMER,  Lauro. RBS: da Voz do Poste à Multimídia. LPM, 2002.

Thursday, July 19, 2018

O Relógio Parou


O poeta e escritor Omar Luiz de Barros Filho era repórter da extinta Folha da Manhã em 1975. Fã ardoroso de Jorge Mautner ele retornara de férias no Rio, quando encontrou-se com o compositor de "Maracatu Atômico".

Na redação da Folhinha, Paulo de Tarso Ricordi e Arthur Monteiro conceberam um trote: falseando um telex, eles queriam mostrar de primeira mão ao recém chegado Matico a notícia da trágica morte de Mautner, num acidente rodoviário.

Ocorre que Omar não apareceu naquela tarde. Para não perder a brincadeira tão bem armada, a dupla não resistiu. Decidiram então pregar a peça no pessoal da redação.

A história comoveu a todos: mais tocou em especial a Wladymir Ungaretti, que era redator da rádio Continental (que funcionava na época do outro lado da Alfândega, no edifício do relógio, onde também ficava a Itaí). A 1120 tinha uma produção jornalística bastante limitada. Como a Caldas Júnior tinha um excelente serviço de agências de notícias, ele batia ponto no fim de tarde ali.

Ao saber da notícia da morte do poeta maldito, que era ídolo da magrinhagem e figurinha constante na programação da Continental (o seu "O Relógio Quebrou", lançado no ano anterior, tocava na programação da  emissora na época), ele sai correndo do prédio do Correio, a ponto de conseguir entrar na próxima hora cheia do 1120 é Notícia.

Deu de cara com Paulo Acosta, redator da emissora. Avisou: O Mautner morreu numa batida fatal na Rio-Santos, bateu a 120 por hora! O boletim virou uma edição extraordinária. Com "O Relógio Quebrou", recente sucesso do poeta maldito, Bira Brasil lia um texto que romanceava o acidente.

No fim da noite, a notícia já havia se espalhado por entre a estudantada do Campus Centro. Aos poucos, eles apareciam nos bares da Esquina Maldita, o Marius, o Alaska, o Estudantil e o Copa 70. Muitos ficavam sabendo da desdita ao chegar, depois das últimas aulas na Arquitetura e demais cursos de humanas que ainda funcionavam no antigo anexo da Reitoria.

E o clima sempre festivo de começo da noite acabou parecido com o que se via do outro lado da Sarmento Leite, onde ficavam as capelas da Santa Casa: velório e ressaca total. Entre inconsolados e perplexos, muitos choravam.

No dia seguinte, Ungaretti passa a vista na Folhinha, e nada da morte de Jorge Mautner. Contudo, ao ligar a tevê no Jornal do Almoço, vê a homenagem ao compositor.

Quando ele chega para o plantão da tarde na Continental, o diretor da rádio, Fernando Westphalen pergunta sobre a história. Wladymir responde que viu o telex na redação da Folha da Manhã. O 'Judeu', como era chamado, responde que não havia acontecido absolutamente nada.

Westphalen ligou para Paulo Onofre, que trabalhava na Folhinha e na 1120. Ele explicou que houve um trote, mas não sabia dizer muito bem teria sido enfim o autor da brincadeira.

O 'Judeu' deu frouxos de riso da situação e de Ungaretti, e a coisa ficou por isso. E assim como a TV Gaúcha havia embarcado na barriga da Continental, ainda durante todo o dia seguinte, a morte de Mautner seguiu repercutindo em outras praças do interior do estado até o Rio, quando a mãe do próprio músico ficou sabendo do acidente. Quando tentou localizar o corpo do filho, ficou sabendo que era um trote, e que ele estava vivinho.

O episódio acabou fazendo com que Mautner viesse para Porto Alegre apresentar o novo trabalho no Gigantinho (numa época em que o ginásio era palco de memoráveis apresentações, nos anos 70).

Porém, fez questão de passar na rádio e saber o que aconteceu.Westphalen recepcionou o compositor, mas desconversou a respeito do ocorrido, e disse que o rolo havia sido acidentalmente apagado.

O show atraiu mais de 4 mil pessoas e Jorge Mautner preferiu acreditar que tudo não passou de um belo jogo de marketing, e tudo ficou por isso mesmo. Ele só ficaria sabendo de todos os ângulos do episódio toda quando foi entrevistado por Lúcio Haeser para o seu excelente livro sobre a Continental (*).



* HAESER, Lúcio. Continental: a rádio rebelde de Roberto Marinho. Insular, 2007 

A Escolha de Sílvia


Tem uma cena d' O Arquipélago (1) em que Sílvia, a moça pobre e filha de criação de Rodrigo Cambará, tem um conflito enorme com sua mãe, que é costureira. Esta critica a forma como a filha idealiza a memória do pai, que desapareceu.

Rejeitada pela mãe, que tem para com ela uma relação ambígua, ela transfere seu afeto para o novo pai. Com o lar fendido, ela sonha em ser aceita pelo pessoal do Sobrado. A realidade com a mãe é terrível. Sílvia é constantemente frustrada em sua idealização do pai, como se essa fosse uma forma de sua mãe a aliciar para si, jogando-a contra à memória dele, tão cara à menina.

De certa maneira, quando eu li o Solo de Clarineta (2), qual não foi a minha surpresa quando vi uma cena parecida com essa, porém se passando entre Dona Bega, a mãe de Erico, e o escritor. De fato, em dado momento, os pais dele se separam. Sebastião vai embora. A matriarca da família, com a máquina de costura e o chapiliniano manequim, sustenta a casa. É uma situação quase de livro do Dickens. Quando seu pai pega o trem para nunca mais voltar, Erico decide ficar com mãe. Ela, surpresa, diz: "pensei que você fosse ficar com ele".

O mesmo sentimento de culpa aparece em Sílvia. A mãe faz toda uma chantagem emocional, mas existe amor naquele empenho em sustentar o que sobrou da família. Por isso que a costureira não entende o desvelo da moça por um homem infiel e que as abandonou. Erico também fica entre dois corações. Ele não pediu para que seus pais se separassem, mas a realidade e implacável. O fantasma do seu pai irá o assombrar pelo resto da vida.

A necessidade de sustentar aquela família separada marca a sua vida e a sua primeira literatura. Os primeiros livros do Erico vivem à sombra dessa tragédia familiar - a imperiosa necessidade de começar do nada, em terras estranhas. Curioso que, voltando ao Solo de Clarineta, ali Verissimo fala que reconhece o fato de que transformou a mãe de Floriano, seu alter-ego, numa figura nula, se comparada à outras personagens femininas da trilogia.

Segundo ele, havia consciente ou inconscientemente um temor de que Flora ficasse parecida demais com D. Bega. Porém, sua mãe 'aparece' de certa forma na mãe de Sílvia, aquela mãe desesperada, que precisa sustentar o que restou daeuele lar perdido (e que Erico transformará simbolicamente como a sua grande busca) e que, mesmo de forma transtornada, quer ser aceita pela filha. Essa faceta do amor materno Erico transpôs para esta personagem secundária, e não para Flora.

Por sua vez, no Sobrado, Flora está na sombra de Maria Valéria. Esta, impositiva, assume uma papel quase masculino, quase andrógino (ou totalmente andrógino) desde ao ombrear Licurgo em O Continente até ao controlar, a manu militari, a vida do sobrado.

Sílvia porém quer ser aceita por Rodrigo e quer fazer parte dos Cambará. Para ele, ela é Alicinha, a filha que perdeu muito jovem. Rodrigo quer integrá-la e casá-la com Jango, seu filho mais novo. Ela fica dividida: naquele momento, desde a malfadada "noite de ano bom", busca ser correspondida por Floriano, o filho mais velho. Este, porém, na questão dos afetos, é um caso a ser estudado.

Floriano sempre me pareceu quase um personagem de tese. Ele parece estar tão ligado ao mundo intelectual de Erico, principalmente pelo fato de ser um escritor, por sua vez, em busca de aceitação. é considerado pela crítica como superficial e burguês pelo irmão. Quando retorna à Santa Fé, resolve colocar sua literatura no divã cujo analista é Tio Bicho.

Nesse momento, ele põe todas as suas expectativas e sua obra em revista. Tio Bicho acredita que ele precisa abraçar as raízes, escrever seus livros com os pés no chão. De certa forma, novamente percebemos Erico na encruzilhada da vida.

Verissimo também estava num processo de mudança de ótica e de ética em sua obra e, de certa forma, O Tempo e o Vento representou a mudança, desde aquela primeira fase, de Clarissa até O Resto é Silêncio até O Arquipélago, que abre a sua segunda fase "política", que vai até Incidente em Antares.

Floriano precisa passar pelo movimento dialógico com Tio Bicho, que é uma espécie de Tirésias, que profetiza e, a despeito de "cego", ele enxerga aquilo que falta para que o filho de rodrigo supere esse impasse. Um desses obstáculos era enfrentar e matar simbolicamente o pai. desde um funesto episódio, ocorrido em 30, os dois se separaram.

O pai não sabe o que o filho sente a respeito dele, e a recíproca é a mesma. É preciso enfrentar esses fantasmas, superar essa divisão, e esse é o ponto crucial na história, já no fim. Quando ambos ajustam as contas, Rodrigo pode morrer em paz e Floriano pode espantar seus esqueletos e paranoias do armário mental e seguir seu caminho, agora ele é o pai de si mesmo.

Mas se Floriano 'se resolve' como filho e escritor, a relação com Silvia é curiosa. Ela o ama incondicionalmente, mas frustra-se com sua indecisão. Ao mesmo tempo, ao contrário do pai, que é um emocional, e chora de amor até pelas amantes, o alter-ego de Erico tem uma certa rigidez afetiva que afasta Sílvia.

Ele parece pragmático demais, e amoroso de menos. A relação dele com Mandy (sua namorada americana) é tão superficialzada que é difícil saber onde começa a intenção do autor na construção do personagem ou se, como ocorre com Flora, é uma 'falha' da caracterização de Floriano. Afinal, por que existe tão pouco amor nele? De onde vem essa falta de paixão?  Mesmo assim, dentro do espírito de praticidade típica dos Cambarás, seu pretendente oficial, Jango, é outro que, como Licurgo, não demonstra amor nenhum pela futura esposa.

Sílvia sabe que Jango é a promessa de integrar-se definitivamente ao Sobrado. Quanto mais o tempo passa, ela sente que está perdendo Floriano Este, porém, só realmente demonstra interesse por ela quando é tarde demais.

Nesse meio tempo, quando há um hiato entre os dois, ela escreve um diário que de certa maneira, é o expediente extremo que Silvia lança mão de forma a elaborar essa perda e enterrar esse amor. O diário vira uma história dentro da história, e é um grande wit de Verissimo dentro do livro.

Como se fosse uma vocação de ser uma mulher do sobrado, renúncia das renúncias, ela finalmente aceita Jango como marido e abraça o amor a Deus e a religião como forma de sublimar aquele amor perdido. Mais tarde, Silvia empresta o diário à Floriano, que o utiliza como subsídio para o livro que irá escrever - e que descobriremos no último parágrafo, o livro é a própria trilogia que acabamos de ler.

Floriano conta o ocorrido a Tio Bicho que, à sua maneira, depreende do episódio que, claro, Erico aqui fala por ele, Sílvia sublima o amor proibido pela religião. É uma situação amarga e, de certa forma, pouco explorada pelos exegetas do O Tempo  e o Vento. Por que raios Verissimo optou por um final infeliz? Porém, por outro lado, nós ficamos a pensar: e se ele tivesse concebido um final feliz?

Floriano talvez, da forma como foi concebido, tão sem amor e tão apaixonado pela sua literatura, não seria capaz de conciliar as duas coisas?

No fim das contas, assim como Jango, da mesma forma que, segundo Luzia, como a maioria dos homens do continente, amava mais os cavalos do que as suas respectivas esposas, estava mais preocupado com os carrapatos da vacaria do Angico do que com a felicidade de Sílvia. E Floriano, apesar de ser um homem cosmopolita, intelectual, apenas trocou a lida campeira pela vida literária - são os dois lados da mesma moeda.

A escolha de Sílvia, para nós, pode ser inconsolavelmente triste. Sua renúncia, por seu turno, é tão difícil como a das mulheres que vieram antes dela. É uma escolha sincera, mas a promessa de ser a próxima na linha sucessória do sobrado implica num caminho triste e solitário.

Ela poderia renunciar a essa renúncia, e ser esposa de Floriano no mundo urbano e intelectual da Capital Federal. Mas, se o atavismo da moça do interior falou mais alto, ou a necessidade de ser a dona do Sobrado, e a promessa dada a Rodrigo em casar-se com Jango, enfim, toda uma série de fatores que fizesse a sua escolha.

Regina Zilberman tem um ensaio (3) admirável sobre o Tempo e o Vento fazendo uma comparação do percurso familiar dos Terra-Cambará com a tragédia dos atridas da Oresteia do Ésquilo, e da forma como a sublimação das paixões intestinas na realidade moderna da pólis interrompe a trajetoria sangrenta e mítica. Pegando o mote esquiliano, minha hipótese é a de que Sílvia e Floriano fariam parte desse pacto. Para que a 'maldição' não se perpetue, é preciso que essas paixões sejam simbolicamente refreadas.

É notável como, além de restaram separados para sempre, é como se, assim como ocorre com Orestes e Electra, eles permanecerão como personagens "celibatários". Floriano vai solitariamente cuidar de Flora no Rio e escrever as suas cosmogonias urbano-campeiras; Silvia, embora casada e com um filho à caminho, será, até o fim dos tempos, a castelâ solitária. Assim como ocorrerá aos filhos de Agaménon, separados para sempre.

No tocante ao caso de Orestes e Electra, como lembra Zilberman, para interromper o ciclo de desforras, era preciso interromper a causa principal, a libido. Ao cotejar Ésquilo com Erico, ela salienta que, quando os Cambarás tomam o poder em Santa Fé o elemento familiar torna-se secundário em favor do político (quando Licurgo derrota os maragatos e finalmente toma o poder no município, com a vitória de Júlio de Castilhos, em 1895).

Como ela observa ao analisar as personagens femininas, a característica essencial desses episódios (Ana Terra, Bibiana) é demonstrar o papel delas em esforçar-se para perenizar a família e a sucessão, garantida à custa da "castração sexual (...) e da dedicação obsessiva aos filhos" (p.156). Ou, parafraseando Regina Zilberman, sob a capa da ruptura, vemos o eterno retorno do mítico.

Por fim, quando chegamos ao Arquipélago, o familiar volta à tona.  Se O Continente (e O Retrato) representam essa mudança do mítico-familiar para o político-histórico, na última parte da trilogia, vemos um refluxo, onde o eixo dramático gira, com efeito, justamente em torno de Floriano e Sílvia, (muito embora noves fora, mais numa perspectiva psicológica do que propriamente mítica). E poderíamos inferir, à titulo de conclusão, que o trágico aqui ocorre, paradoxalmente, na ausência do trágico ou na sublimação deste.   


BIBLIOGRAFIA

(1) VERISSIMO, Erico. O Arquipélago. Globo, 1962.
(2) VERISSIMO, Erico. Solo de Clarineta. Globo, 1973.
(3) ZILBERMAN, Regina. Saga Familiar e História Política. In: O Tempo e o Vento: história, invenção e metamorfose. EDUPUCRS, 2001.

Vivaldi na esteira

Clemency Burton-Hill, apresentadora da BBC Radio 3 escreveu recentemente um artigo interessante a respeito de como ouvr música clássica hoje, na era do streaming. Ela fala que foi convidada a fazer um tipo de curadoria musical do gênero e foi indagada como um iniciante poderia aprender a ouvir esse tipo de estilo. O artigo dela está no site da BBC e vale muito a leitura.

Ela fala que, com essa coisa de curadoria musical, ela recebia pedidos específicos como: música para estudar ou trabalhar; música para ninar o recém-nascido ou dormir, para impressionar os pais do namorado/a, música para se exercitar, desacelerar, cuidar do jardim, deslocar-se ou oferecer um jantar. E por aí vai.

Isso é interessante no sentido que revela essa imagem que as pessoas têm a respeito de música clássica. Ela tem uma linguagem que está nela. As pessoas em geral, que têm o hábito de ouvir pop (por exemplo), parecem ter uma visão ao mesmo tempo particular e, por outro, muito próxima do que podíamos chamar de senso comum: o erudito é, em última análise, quase um cognato para música de elevador: aquele tipo de som que você coloca como ambiente. Ou, por outra; é música para "descansar".

Isso significaria dizer que, para a maioria das pessoas, clássico é quase um sinônimo de lenitivo musical. É a trilha sonora ideal para 'fazer outra coisa'. O problema é que isso, pelo menos para mim, parece fazer com que o ouvinte deixe de perceber o que existe de potencial desse tipo de música, que é justamente aquilo que, ao contrário da música de elevador, ela tem a falar.

Não quer dizer que não existisse música clássica para entretenimento. Sobre isso, teríamos exemplos, desde a mozartiana Pequena Serenata Noturna quanto a Música Aquática, do Haendel que, de certa forma, tinha esse caráter digestivo.

Ao contrário dessa concepção tributária do senso comum na era da cultura de massas, nem tudo que foi produzido em música clássica pode ser considerada "relaxante". Lembro do Paulo Francis que, no Waaal, escreveu que achava a Sinfonia em ré menor do Beethoven "barulhenta" - (muito embora ele fosse admirador confesso de Wagner que, por su vez, era tão beethoviniano quanto barulhento também). De fato, no erudito, tem coisas e coisas. Aí, se existe a necessidade de uma curadoria para música clássica relaxante, ela residiria no fato de selecionar o que é e o que não é.

Acho que é possível estudar oo som do Idílio de Siegfried. Mas escutando o Liebestod, aí é complicado. Barroco, então, ótimo para cozinhar. Mas a Patética do Tchaikowsky ou o Marcha Fúnebre da Terceira do Beethoven, aí o buraco é mais embaixo.

Por experiência própria, eu ouvia por tabela a rádio da Universidade e achava que, independente de qual fosse o compositor que estava tocando (muito diferente do pop ou do rock que eu conscientemente ouvia, isto é, aquilo que eu colocava na vitrola), eu estava diante de algo bem diferente.

Era algo inteligente ou, na pior das hipóteses, estava me falando de algo que eu não ainda não compreendia muito bem, mas eu precisava compreender, porque essa música, essa música, ela fala sobre algo de alguém de uma época quando as pessoas ouviam e entendiam perfeitamente o que ela queria dizer. Ela não convidava o ouvinte a distrair-se com a sua musicalidade.

Ao contrário, enquanto eu estou perdido no seu acento, muitas outras pessoas estariam fruindo aquilo de uma forma que eu ainda não conseguir entender de todo. Claro que isso também passa pela minha curiosidade de ouvinte, de querer ouvir de tudo, até daquilo que os outros escutam.

Então, num determinado momento, eu cheguei a conclusão não de que eu queria, digo, deveria ouvir aquilo, não por mera fruição, mas para entender o que eu não entendia. 

Lembro que eu comprei, aos poucos aqueles fascículos da Abril. O primeiro foi o do Chopin. Na verdade, meu primeiro disco foi um do Ernesto Nazaré (que eu sempre ouvia na rádio da Universidade, mas depois eu descobri que Nazaré não era bem erudito). Chopin é uma boa forma de começar.

Botei o disco na eletrola. fiquei impressionado comigo, de estar ouvindo um disco de música clássica. A primeira faixa era um estudo. Por que estudo? Esse era o nome. A peça começava assim: lenta, romântica. Depois, entrava outro tema, que ia sendo desenvolvido. Depois, ela ia se desconstruindo, à medida que parecia ficar cada vez mais agônica, mais agônica, até uma explosão, que constrastava com aquele começo lento, até que a música, e depois, e depois, depois era como se o solista tentasse segurar aquela explosão e controlar todo aquele ímpeto, concentrar-se, até retornar ao tema inicial e o fim. Era o estudo Opus 10 nº3.

Eu pensei: isso é divertido, é quase um jogo. Cada peça tinha um temperamento, um ímpeto, uma personalidade, pareciam falar muito daquele que as criara. Pensei que fosse ser chato, que fosse desistir, mas então eu queria ir até o fim.

Mas, a partir dessa fruição, de ouvir um estudo do Chopin como se estivesse escutando rock, ou seja, prestando atenção ao máximo daquilo que estava dado, muito antes de eu pensar que erudito fosse 'lenitivo musical', para mim já era algo que queria comunicar. Aquele estudo não poderia ter sido, vamos dizer assim, feito para que você ouvisse de forma passiva. Então você ouve Elvis prestando atenção e Chopin para estudar? Não, alguma coisa está errada aí.

Essas maravilhas da indústria cultural. Fascículos de música clássica. Muito antes do streaming, era notável que você pudesse comprar um disco que, além da peça graada, por exemplo, a Sinfonia Fantástica, do Berlioz, ela tem um programa, escrito pelo próprio compositor, e o fascículo tem a história dele e um pequeno encarte com a história e a descrição da sinfonia (a formulação, os movimentos).

Aliás, os encartes de discos clássicos tinham muito disso. Aquela música não havia sido gravada de forma aleatória. Quando eu lia o fascículo, eu percebia que existia um nível de audição, por parte dos especialistas ou iniciados, que já estava além de mim. Essas pessoas não escutavam Berlioz para estudar ou andar na esteira.

Falo em indústria cultural porque, imagine o leitor que, em meados do século XIX, se você quisesse ouvir um concerto do Mendelsohn, você teria que correr atrás dele. Só alguém como o Príncipe Esterházy ou o margrave de Brandeburgo ou Frederico o Grande tinham condições de manter uma orquestra em casa para que ela tocasse o que ele quisesse. Você corria o risco de ouvir a Eroica uma ou duas vezes em toda a sua vida. Hoje, eu posso colocá-la no repeat. Logo, para entender a linguagem, o desdobramento da forma-sonata, eu posso repetir a peça infinitamente.

Ou seja, se a reprodutibilidade técnica tirou a aura da música (de ser algo restrito a um ritual específico e destinada a uma classe), a tecnologia pode transformar um ingênuo como eu num aspirante a especialista. Isso implica dizer um novo tipo de apreciação desse tipo de obra, que faz com que ela seja guindada ao status de ... "popular".

Acho que essa experiência dos fascículos e contracapas, antes de entender música clássica como lenitivo, me propôs uma outra visão dela. Mas acho que, pegando o mote da Clemency Burton-Hill, ela fala da experiência dela que, como a minha de certa forma, no começo, um dia nós acabamos entrando em contato com esse gênero. É o primeiro passo. Mas o ser humano pode ser estimulado a ir além a partir daí.

E descobrir que clássico não é propriamente nem para estudar e muito menos ser música esnobe ou elitista. Uma ópera do tempo do Rossini era tão popular quanto um flime do Netflix. Um lied do Franz Schubert era tão popular quanto uma canção do rádio. Hoje o senso comum é o de que você precisa de dress code para ouvir Schubert.

Por outro lado, a mesma indústria cultural que nos apresenta um fascículo do Berlioz pode transformar sua música em trilha de um comercial de tevê. A cultura de massa mudou os parâmetros - hoje, mais ainda, com o streaming, é o tipo de coisa que só não ouve quem não quer, e pode ouvir como quiser, se quiser. Não que não se possa escutar Vivaldi na esteira, tudo é possível. Mas, em determinado momento, o ouvinte pode ser estimulado a ir além e tem todos os meios de fazê-lo.

Enfim, como se vê, buscar o lado relaxante da musica clássica é rotulá-la como tal, a despeito do fato que, em muitos casos, como na "barulhenta" Nona, ela não é. Ou, mesmo quando ela é 'relaxante', ela parece que requer um tipo de atenção especial que não é o de ser música ambiente. Acho que o ser humano pode e é capaz de transcender essa primeira impressão, embora isso dependa, na verdade, da forma como ele se coloca diante da música como ouvinte.

Porque existem ouvintes e ouvintes. Aqueles para que tudo é música ambiente e, em geral, não ligam muito para isso. Ou outros, por exemplo, músicos. Um Hendrix ou um Charlie Parker, por exemplo, embora músico de jazz, ouvia de tudo e sabia o que ouvia. Enfim, todo músico é, antes de tudo, um ouvinte.

E às vezes, ouve coisas que os seus respectivos ouvintes não sonham. Pete Townshend ouve Terry Riley enquanto nove entre dez fãs do Who deve achar minimalismo um saco. Da mesma forma que Bernstein era grande fã do Mahler e dos Beatles. De repente, para quem aprendeu a escutar clássico desde o começo, ouvir pop pode ser algo incontornável. Contudo, como ouvintes, eles mostram que tudo é música, tudo pode ser ouvido com o mesmo deslumbramento, com o mesmo apuro e com o mesmo prazer e sem dress code.

Por fim: quero dizer que cada um faz o que quiser com aquilo que quiser ouvir, amém. Porém, relegar a musica clássica como lounge me parece subestimar algo que está dado ao ouvinte, e que promete muito mais do que parece.

Sunday, July 15, 2018

Medo e delírio em Las Vegas e o Imaginário Onívoro

Ilustração de Ralph Steadman para o livro 



Clássico de Hunter Thompson, Medo e Delírio em Las Vegas (1) é lembrado como  nascimento do jornalismo gonzo, além da exótica história, que mais parece um slapstick junkie de dois malucos tentando ficar doidões e trabalhar numa cobertura jornalística, quando acabam na verdade, como se sabe, tornando-se os protagonistas da narrativa.

Mas além das loucuras de Raoul Duke e o dr. Gonzo, a leitura mais notável é a ressaca do que foi o movimento contracultural nos Estados Unidos e o seu corolário. Depois do os Estados Unidos elegendo uma figura como Nixon e mergulhados num beco sem saída na Guerra do Vietnã, o tal "sonho americano" que eles buscam em Las Vegas é apenas uma blague para eufemizar o que havia de mais trágico que era, depois do sonho, encarar a realidade.

Depois da Marcha ds direitos Civis, a morte de Martin Luther King e Robert Kennedy, depois dos be-ins, o massacre de Kent e o fim da utopia hippie em Altamont. Isso que ele escreveu o necrológio da sua geração ainda em 71, quando o cadáver ainda estava quente.

Como diz a música, depois de tudo isso, era preciso que todo mundo ficasse chapado. Mas o uso de drogas recreativas aqui não tinha mais o objetivo de buscar paraísos artificiais ou a transcendência. Era a única forma de suportar um mundo que virou um pesadelo de delirium tremens.

Nos momentos de confissão Hunter Thompson revela que foi um filho da contracultura de São Francisco, em 1967. Ele diz que a cidade era o melhor lugar para se ficar, que aquilo "significava algo". Nada podia resumir ou explicar a experiência daqueles dias. E, como em Proust, a tentativa de forçar a reconstrução da memória involuntária talvez seja mais frustrante ainda: "a energia de uma geração inteira atinge o seu ápice  num instante mágico e duradouro, por motivos que na época ninguém compreende por inteiro, e que, em retrospecto, nunca explicam o que realmente aconteceu".

Existe um imaginário 'positivo' da época, com flores na cabeça e pés descalços mas, para Hunter, já em 1970, para ele, já não havia qualquer traço de nostalgia. Ou melhor, há, mas essa nostalgia apenas faz com que a realidade seja mais dura, quando ele recorda aquela sensação de integração de pessoas tão doidas como ele, por toda Frisco: "todos compartilhavam a sensação de que estávamos fazendo algo correto, mesmo sem saber o que era... sentíamos que estávamos vencendo (p.78). De qualquer maneira, essa visão, no campo do imaginário, ainda persiste como um capital simbólico do legado dos anos 60. Ou não?

Para ele, o grande engodo foi acreditar que eles estavam do lado certo e que as forças do mal certamente cederiam: "aquela era a nossa hora; estávamos na crista de uma onda imensa e linda". Depois, ele diz: "e agora, cinco anos mais tarde, basta subir um morro íngreme em Las Vegas e olhar para o Oeste com a predisposição adequada para quase enxergar a marca da maré - ougar onde aquela onda enfim quebrou e se retraiu".

A realidade, cinco anos depois, redundou em Altamont, em Charles Manson, em Kent, os bombardeios sobre Hanói e o combate pelo combate na Segunda Guerra da Indochina. Era preciso persistir no erro até o fim, como na falácia do jogador.

Do ponto-de-vista do "morro íngreme", Thompson já observara o que aqueles garotos que queriam mudar o mundo havia se tornado numa geração cínica e hedonista, movida a cocaína e álcool, a geração Laurel Canyon, que Robert Altman representou muito bem na sua controversa versão para O Longo Adeus, de Raymond Chandler, ambientada na Los Angeles do começo dos anos 70. E que podemos vislumbrar também de certa forma na Ditch Trilogy do Neil Young, ele também um habitante e testemunha ocular de Laurel Canyon.

De certa forma, o episódio da cobertura da cobertura da National District Attorneys Association's Conference on Narcotics and Dangerous Drugs parece uma bela alegoria do que eram os Estados Unidos naquela época. Um bando de meganhas e políticos conservadores postulando sobre o efeito nocivo dos narcóticos na sociedade enquanto, na figura de Douke e Gonzo, e outros mais, rodeavam o evento "under the influence" debaixo do nariz de todo mundo.

A alegoria é que, a despeito de toda a cruzada moralizante, estavam todos numa cidade "imoral" e cercado de usuários, como se fosse um grande "o rei está nu", noves fora o absurdo da situação - justamente em Las Vegas, a capital dos divórcios, do jogo e da mentira? O último reduto do entretenimento kitsch da América e que era, com efeito, o paraíso perfeito para esse hedonismo que Thompson denuncia.

Ao mesmo tempo, como um wit, Hunter entremeia sua narrativa com textos jornalísticos - um deles dá conta de como as drogas estavam minando as tropas no front da Indochina. Parecia um grande paradoxo aquele bando de rednecks e Mr. Jones na conferência (que o dr. Gonzo dizia já conhecê-los muito bem do filme Easy Rider) não eram capazes de enxergar.

No meio do delírio, o triste holofote sob o palco mostra toda a debacle não do sonho americano, mas o começo de uma distopia desesperadora que, de certa forma, fora deflagrada por aqueles que justamente acreditavam que haviam descoberto as chaves do paraíso na terra.

Thompson não poupa Leary. Hunter também acreditou no drop out. Agora ele entende a degradação moral do jovem e decadente  cafe society de L.A. E nós podemos entender essa escalada por toneladas e mais toneladas de drogas. Era uma questão de, como ele diz, "sobrevivência".

Em sua exortação, ele pontifica: "nada restou da velocidade que abasteceu os anos 60. Os estimulantes estão saindo de moda. Esse foi o defeito fatal de Tim Leary. Ele cruzou os Estados Unidos vendendo a "expansão da consciência" sem parar para pensar nas realidades sinistras e dolorosas à espera das pessoas que o levaram a sério demais. (...) sua perda e seu fracasso [dos usuários de LSD] também são nossos. Em sua derrocada, Leary levou consigo a ilusão central de todo um estilo de vida que ele mesmo ajudou a criar...uma geração de mutilados permanentes, perseguidores fracassados, que nunca compreenderam a falácia mística essencial da Cultura do Ácido: o pressuposto desesperado de que alguém, ou ao menos, alguma força, está cultivando a luz no fim do túnel" (p. 195).

Hunter associa esse messianismo ao imaginário comum milenarista de busca de um messias, de um condutor de gentes, alguma "autoridade superior" ou, como ele mesmo diz, a sensação de "estar vencendo", estar do lado dos deuses: "primeiro gurus. Depois, quando isso não funcionou, um retorno a Jesus". Depois, maharishis e mansons, "o Fulano de Tal que comanda "espírito e carne". Para ele, não houve integração possível entre os Angels (que ele conhecia muito bem) e a esquerda enragé de Berkley e as experiências, segundo Hunter, malfadadas de Kasey e Ginsberg - e tudo desaguaria em Altamont,  que foi simbolicamente o fim do sonho, e da pior forma possível.

Altamont que Thompson acredita que era a crônica de uma morte anunciada, mas que ninguém foi capaz de vislumbrar isso, nem os hippies, nem a imprensa. "a orgia de violência (...) apenas dramatizou o problema. As realidades já estavam estabelecidas: a doença era nitidamente terminal e as energias do movimento já tinham sido dissipadas na busca pela autopreservação (p.196).

Incrível que, Medo e Delírio.... emoldurado como uma grande aventura louca de uma cobertura de reportagem que voltou-se para si mesmo, é possível encontrar um amálgama de denúncia e ensaísmo virulentos que faz a crônica da perda da inocência daquela geração da contracultura.

Thompson cinicamene busca pelo sonho americano como um Diógenes procurando algum ser humano honesto, porém, no lugar errado. Aliás, como é possível ver, tudo estava fora do lugar ou, como diz a canção que é o leitmotiv do livro, over the line. Parece que estamos condenados a assistir sempre a esse filme stuck inside of Mobile with the Memphis blues again. Depois da utopia de um orgasmo social e o fim dos tempos, uma implacável revanche conservadora também sob a égide do messianismo. Somos todos tributários desse imaginário onívoro.



(1) THOMPSON, S. Hunter. Medo e Delírio em Las Vegas. LPM, 2010.

Saturday, July 14, 2018

A Música no Livro

Tava pensando numa lista de músicas que aparecem em livros.

Talvez seja possível fazer uma grande lista mas, de cara, lembrei-me de seis que são citadas nas obras. Não são músicas que aparecem em adaptações, mas temas que são citadas pelos respectivos autores. E, mesmo assim, a maioria dos leitores não notam à primeira vista. Mas que, de qualquer maneira, estão ali.

Peguei como primeiro exemplo a trilogia do Erico Verissimo que, se pegarmos, por exemplo, o Arquipélago (1962), seria possível inventariar um sem número de temas musicais, na sua maioria, eruditas, o gênero preferido do romancista, para escrever, quem sabe, um livro só sobre isso.

"Loin Du Bal" - "O Retrato" e "O Arquipélago", de O Tempo e o Vento, Erico Verissimo


"Loin Du Bal" é uma peça do compositor francês Ernest Gillet (1856-1940). No livro O Retrato, da trilogia de Erico Verissimo, o tema, o disco preferido do dr. Rodrigo Cambará, serve como um leitmotiv do próprio personagem, associado sempre à sua personalidade de rapaz estouvado, impetuoso e orgulhoso. Como primeiro intelectual dos Cambará, ao voltar de Porto Alegre, em 1910, ele compra um fonógrafo e instala o equipamento no Sobrado (e o primeiro de Santa Fé), para o desgosto da tia Maria Valéria, que tinha horror à música. Em O Arquipélago, perto de morrer, ele pede à Sílvia, sua filha de criação, que toque o disco para ele.


"La ci Darem la Mano" - Ulysses, James Joyce



Famoso dueto da ópera Don Giovanni (1787), de Mozart (e libreto de Lorenzo Da Ponte). Em Ulysses, o tema aparece no capítulo 4 do livro (Calipso), quando ele traz o pequeno almoço a Marion na cama. Então ela diz a Leopold que vai cantar o dueto num concerto que será organizado por um empresário chamado Blaezs Boylan que, como se sabe, é o amante dela. Na ópera, é um dueto do primeiro ato, quando Don Giovanni tenta seduzir Zerlina, noiva de Masetto.


"Oh, Johnny, Oh" - Ham On Rye, Charles Bukowski



"Oh Johnny, Oh Johnny, Oh!" é uma canção de Abe Olman e Ed Rose, de 1917. Tema típico do tempo do Tim Pan Alley, ela tornou-se popular com a gravação das Andrews Sisters, em 1939, no auge do sucesso do trio, no comçeo dos anos 40. No livro, a música toca num rádio ligado no último volume, na cena em que o (anti) herói do romance, Henry Chinaski, se mete numa cruenta roleta russa de copos de uísque, no Capítulo 51.


"Mambo nº 8", On The Road, Jack Kerouac


On The Road é um livro essencialmente musical, que influencia tanto o estilo da prosa quanto a música é tematizada ao longo da história, que gira sempre em torno de bebedeiras em bares, com bandas de bebop ou rádios e jukeboxes. Mesmo que o jazz seja o motivo condutor do romance de Kerouac, outros gêneros aparecem na obra: um, quando Dean reconhece um programa de honky-tonk ouvindo rádio no carro quando eles descem a estrada 66 em Amarillo. outro, quando eles dançam mambo deliberadamente num bar na Cidade do México. Uma das músicas é o Mambo nº 8 de Perez Prado, que fazia grande sucesso na época (fim dos anos 40, quando se passa a história).


"One Toke Over The Line", Medo e Delírio em Las Vegas, Hunter S. Thompson.



Único sucesso da dupla Brewer & Shipley (cujo estilo de country junkie lembra o Grateful Dead, que cheogu a gravar com eles), "One Toke Over The Line" aparece no final de  Medo e Delírio em Las Vegas, quando Raoul Duke, o excêntrico protagonista do livro, está lendo o Los Angeles Times escondido na cafeteria do aeroporto, no capítulo 13. Mesmo banida de muitas emissoras de rádio por causa da alusão a drogas, "One Toke Over The Line" fez grande sucesso na época, e é cantada por Benício del Toro na adaptação cinematográfica da novela, de 1998.





Friday, July 13, 2018

Uma Entrevista


Semiótica, significâncias e a partogênese do idealismo sincrético:
Bate-papo com Dr. Hilderbrand Durand Funderburger.

Palavras-chave
Semiótica. Epistemologia. Teoria da Comunicação.


Complexo, sistemático, incomensurável. Não existem palavras para resumir e explicar o professor e semiótico Dr. Hilderbrand Durand Funderburger. Trajetos arqueológítipicos numa história que plasma-se entre diversas constantes, desajustamentos e injúrias psicossociais.

Graduado em Linguística em 1978 pela Universidade Santa Rita de Cássia e doutorado na Sorbonne em 1983, orientado pelo famoso filósofo Frere Jacques e por Gilbert Furtwangler, dois luminares da chamada Escola Animalista, a formação do professor Funderburger está imbricada com o desenvolvimento dos estudos culturais, a Pós Nova História (PNH) e seu corolário imagético para o estudo dos problemas de Comunicação e Cultura e Civilização.

Nesta entrevista, Dr. Funderburger. que hoje atua como pesquisador junto à Pós-Graduação em Pós-esconstrutivismo da Universidade Campbell’s, nos guia ao fulcro do problema da racionalidade bifurcada da pós-modernidade sob o signo da Pós-verdade, e fala do seu trabalho que dialoga com campos de significação e cultura e as linguagens sincréticas daí depreendidas, como o ocaso do estruturalismo, do formalismo e das contradições da racionalidade cativa nos meios de comunicação de massa, o problema dos afetos na era do pós-tudo e muito mais.

Pergunta: a midiologia no Brasil, com suas temporalidades, intersimilitudes e dialogismos parecem ligados com a tua trajetória intelectual e acadêmica. Como tu caracteriza esse teu percurso arqueológico?

Funderburger: minha base sempre foi a semiótica mas havia aquela guerra quente de guerrilhas com o estruturalismo, o formalismo, a gramaticalidade das coisas, mas eu não entendia as provocações reinantes entre esses discursos atávicos. Um dia, desbundei e confessei que preferia ser um flanêur, e que minha razão de viver era o Gerativismo de Chomsky. Foi com esse sentimento que, em 1974, vivi em Paris morando no banheiro de um cabaré em Montmartre. Passávamos os dias bebendo destilado no Latin. Éramos como os boêmios de Puccini. Ouvíamos muita Edith Piaf e Juliette Greco, fumávamos maconha e haxixe que vinha da Tunísia. Estudávamos Kristeva, Barthes, Althusser, Derrida, Foucault. Então descobri Saussire e, com isso, todo um novo mundo se descortinou. Meu mestrado era bem heterodoxo e já estávamos numa transa bem cistransdiscipllinar. Essa bagagem nos fortaleceu e nos jogou numa roda viva de novos questionamentos dialógicos e carnavalizantes.

Pergunta: tu dizes que foi do estruturalismo para a semiótica. Como se deu esse deslocamento?

Funderburger: foi um Rubicão antropocêntrico, tudo começou como uma epifania diante do que poderíamos chamar de chamado epistemológico como uma ampliação desmesurada da própria Linguística como um todo imanente. No começo, eu entendia isso como uma emanação da cultura como reflexo estruturado da superestrutura. Depois, virou uma cizânia hermenêutica que me fez ver que a visão cientifizante do discurso metodológico empírico da ciência maquinística e psicossocial provocava uma espécie de engessamento, um beco sem saída do ponto de vista filosófico. Havia uma dificuldade geracional, e eu diria mais, inclusive, de cunho gerativísitico, mas sempre relacionado à semioses significantes. Esse deslocamento, essa meiose mitêmica conceitual foi minando a minha perspectiva teórica. Esse aperspectivismo ameríndio gerava essas controvérsias.

Pergunta: como tu avalia o saldo dessas controvérsias? Há ainda um saldo epistemológico a ser sacado?

Funderburger: eu sou um pós estruturalista cristianizado orficamente pela semiótica. Para os estruturalistas, não há diferença entre descrição e análise. Era análise crítica. Era preciso porpor novas compartimentalidades menos estanques. Mas nada foi em vão. Era preciso demonstrar novas formulações que dessem conta desse novo estamento significante. Não havia mais clima para que nós nos contentássemos com as antigas respostas sistêmicas. Para mim, descrição, análise, era tudo a parte de um todo, uma relação indissociável, Era preciso um basta para aquelas estruturalizações engessantes que já eram a análise e a descrição, com uma resposta a todas as perguntas que pudessem ser formuladas, inclusive, àquelas perguntas que sequer existiam, eram eternas, eram propriedade fundamental da matéria. Eram apenas ideia, alienação, fetichismo, reificação, a mais-valia dos usos e costumes tecnísticos, o twist, o hully gully. A metodologia era dura, mas era preciso uma interpretação, uma solução, a saída da estrutura estruturante. A idéia. A ideia nua, pura e limpa. Era necessários abandonar esses equívocos históricos que estavam sendo desenvolvidos pelos pesquisadores de ponta e esse vício rebarbativo de que a interpretação era livre e subjetiva. Era preciso um novo espaço para o signo, além da precisão conceitual. Nesse processo, a relevância da razão instrumental foi se perdendo, tornou-se obsoleta mas que insidiosamente ainda subexiste no tecido social relativista como um cancro social.

Pergunta: a semiótica veio para explicar aqueles problemas que, antes dela, não existiam. Depois, houve o problema do ponto-de-vista da recepção, e todo aquele movimento histórico que retrocede até o devoramento do Bispo Sardinha, na aurora da colonização portuguesa, e depois o retorno da própria discussão da recepção que, modernamente, numa segunda fase subjacente, não obstante imanente, passando por teorias de leitura que obviamente passam por teorias de leitura como as elaboradas por Barthes. O que tu achas que se perdeu nesse processo, porém, subvertendo a lógica do discurso semântico, numa realidade escalonada e, como diria Umberto Eco, fraturada?

Funderburger: eu diria mais. Quando penso no Bispo Sardinha, lembro da velha discussão entre os irmãos Campos e Antônio Cândido, de como quando e onde começou a nossa literatura. Destarte, enquanto Cândido falava em sistema literário, os Campos falavam em Gregório de Mattos Guerra e Anchieta. Eles querem Gregório como o nosso Dante. Mas o nosso Dante era um impuro, ele dormia com as mucamas assim, num lupanar de paradoxos! Ora, eu, você e todos nós sabemos que Anchieta escrevia em Tupi para os caranguejos da praia e os anjos do céu (risos). Logo, não havia sistema literário. Mas a contenda deu-se pela defesa sistemática de Gregório, um carnavalizante e tropicalista avant la lettre mas veja, como não lembrar de Vieira e seus discursos safadíssimos defendendo o escravagismo?

Pergunta: haveria Literatura Brasileira sem os irmãos Campos?

Funderburger: os modelos são constantes e lacunares. Tanto poderia haver como não haver, “haver” e “a ver”, entende o jogo de palavras? Mas, a rigor, sou um cândido. Estou além dos campos. Concretismo, o que tenho a ver? (risos). Mas essas análises e processos estruturantes apenas deram margem a um debate vazio embora inspirador. Os modelos parasemióticos conseguiram dar compreensão, discernimento, organização e diferenciações tão caras à produção de arte. A arte sempre se produz, nunca é produzida. Ela produz como um coito teogônico, um coito frenético e gemebundo, um coito mítico e salvagem, com bastante palavrão ao pé do ouvido, um coito que é puro amor. Um coito dialético que une o coito e o amor numa síntese hegeliana e não-aristotélica. Um coito da ideia. Mas claro que estamos aqui falando de uma concepção adstrita a modelos de experimentações estruturantes, dessa concepção, dessa ontogênese do paradigma, a semiótica nunca foi algo fácil de se dominar. Mas como sou um pós-tudo, eu discordo de mim. Eu concordo com Maffesoli: eu sou tribal. Não acho que haja qualquer atrelamento a nenhum modelo pré-estabelecido e de contornos limitantes, como o modo de produção asiático. As experimentações, sim, elas são latentes, elas produzem significações, e mais, no percurso inverso do que as por assim dizer aplicações, podem produzir coisas fantásticas e inovadoras, dentro do imaginário, e não na ideologia obviamente.

Pergunta: tu falaste apropriadamente em coito teogônico e de quebra separacional de paradigmas. Tu acha que, se houvesse uma negociação dialógica, seria possível coexistir um entendimento mais hospitalar a respeito do casamento entre os diversos campos cândidos do conhecimento ou tu acha que esse coito proibido freudianamente geraria o que podemos dizer,  um certo tabu totêmico?

Funderburger: acho que, numa perspectiva epistemológica, as experiências do tempo são importantes. O ócio é conciso, o ócio produz, essa espera do tempo gera a coisa em si na esfera do sensível, tudo claro, e aqui vão dois parênteses dependendo da consistência do poder unificador da tipificação metamorfósica. É o que Kant, se fosse um leitor de Bakhtin, chamaria de partogênese do idealismo sincrético.

Pergunta: tu falas em partogênse e em ócio. Tu te considera um idealista ou um materialista? És platônico ou plutônico?

Funderburger: (longa pausa) Difícil de responder. Eu sou um operário do tempo. Como eu disse, minha trajetória semiótica mudou minha visão de mundo. Tudo para mim são semioses. Semioses são como orgasmos. Eu tenho semioses na fila do caixa eletrônico, na frente do computador, na calçada, no trânsito, vendo Sílvio Santos na tevê. O Sílvio Santos me provoca semioses (risos). Eu estou sempre tendo semioses. Eu vejo semioses escorrendo pelas paredes.

Pergunta: me parece que tens uma relação intensa com a semiótica, é matriz epistemológica, teleológica, uma revelação, quase uma heerofania. Como tu entende essa relação centripetamente revelatória na esfera genuflexória do sagrado no profano e deste para aquele, quase uma relação vamos dizer assim ontológica, como ver o divino através do signo, como tu entende que isso se aplica na sua prática?

Funderburger: Não quero fazer demagogia aqui mas tenho que fazer o devido contraponto com o pragmatismo mas sinto o poder das teorias de Foucault aqui comigo e eu as cultivo como as orquídeas que eu tenho na minha sacada. Aliás, é interessante pensar essa relação entre microfísica do poder e fait-divers no sentido de como isso estabelece novos parâmetros para o fazer jornalístico. Posso dizer que eu concordo e discordo de mim, e respoderia ao pragmatismo de inspiração pierceana via Lasswell para que possamos fazer o trajeto antroposófico de compreender a práxis da importância da personalidade, estrutura social e cultura na explicação dos fenômenos políticos e a forma como a mídia catapulta e recebe isso de volta, como um bilboquê. Como não esquecer de Odisseu, como não salientar o fundamento epistemológico como identificador das bases teóricas? Sim, agora vemos em parte, mas veremos face a face. Eu vejo essas matrizes, dimensões ou dispositivos interligados. Aliás, que bela discussão poderia ser feita a partir da compreensão analiticamente operativa (o que não significa concreta) dos dispositivos! Não é apenas pegar uma teoria a contrapelo. Não! Devemos tratá-la à pires de leite, como uma gata de luxo. Devemos comprar atum para ela, atum, não, Whiskas! É preciso pegar a semiótica e ter uma relação de empatia com ela. Perguntar: você está bem, acordou bem hoje? Fez a sua toalete matinal? Como está o seu coração hoje? Enfim, seria um desafio a ser respondido pelas dimensões anteriormente indicadas por uma pergunta. Aliás, o que problematizar ou o que fazer é o que não nos falta nestes tempos de incertezas e quebra de paradigmas.

Pergunta: a semiótica teria um quê de felinamente perpectivista? Ou seria o contrário? O que ela responderia se ela falasse sobre os contextos políticos e suas inversões formalizantes nesse ambiente conflagrado e por que não dizer deflagrado?

Funderburger: acho que nesses tempos em que vivemos na web 2.0 pós orkutianos, nessa discussão entre apocalíticos e integrados, entre apolíneos e dionisíacos, fausticos e prometeicos, devemos estar atentos: talvez essa pudesse ser uma nova chave de leitura para as propostas da Semiótica. Eu, por exemplo, entrei no formalismo, saí do formalismo, entrei no estruturalismo, e saí, saí da Linguística, fui, para Comunicação, terminei o curso do Projeto Minerva nos anos 70, experimentai daime, entrei de cabeça na Cultura Racional, estive em todos os lugares e só me encontrei em mim mesmo. Mas hoje eu sou apenas uma cabeça, um só campo, sou filho da terra e do céu, e sou todas as cabeças ao mesmo tempo, sou: uma hidra semiótica.

Pergunta: você se diz uma hidra semiótica mas, num determinado momento, você disse que desbundou. Como foi isso?

Funderburger: sim, minha geração carregou cartazes dizendo “Muerte” em 1968 e depois dançou no frenetic Dancin’ Days. Eu me cansei de metodologia. Se eu mandar um artigo para a sua revista eles me mandam o artigo de volta. Isso é sintomático. Mas vocês não devem levar isso para o pessoal. Entre o pessoal que se manteve mais rigoroso, há muito maior fidelidade a autores. Dane-se o Chomsky. Estamos em 2018 e tem gente ainda citando Adorno (risos). Essa matriz de pensamento, esse devir dos afetos, que para mim é importante, de repente não é tão importante para os outros.

Pergunta: esse desbunde epistemológico, essa incontinência metafísica tu entende que depois te reabilitou quando todo mundo resolveu entrar nessa coisa de interdisciplinaridade? Agora tudo é imaginário, o real virou irreal e o real não existe mais, é imaginário?

Funderburger: com toda a certeza. Eu não tenho dúvida de que existe o real. Eu aceito que haja uma discussão sobre o estatuto da realidade, mas assim como há quem não creia no real, e isso é lícito, eu também acredito que também é legítimo acreditar no real. Existem várias camadas de realidade, como uma torta fria. Existem camadas que eu chamaria de camadas primárias da realidade, que me parecem indiscutíveis: uma mesa é uma mesa, uma cadeira é uma cadeira, quando tem Sol, tem Sol. Uma coisa meio pré-socrática. O que é, é. O que não é, não é. Que será, será, whatever will be, will be. Essas coisas as pessoas tendem a ver, a enxergar, a aceitar, da mesma maneira. Isso para mim é o real. O resto é vórtex.


Pergunta: Qual roteiro metodológico que poderia abarcar os estudos dessas camadas da realidade?

Funderburger: creio que é tudo uma questão de internalizar essa volubilidade da episteme. Eu trabalho mais com a perspectiva de metodologias qualitativas que vão para a sociologia compreensiva, também usada por Maffessoli, e essa questão do devir afetivo como uma proposta, ou melhor, uma falsa meia proposta, de rever o conceito de sistema-potência-violência-força e as clássicas dicotomias saussureanas, simples assim. Reconheço relações de dependência entre os elementos de um sistema, mas pode haver ruído ou acaso que o altere, em previsões, portanto, ou sem recurso a um reconhecido sistema. Aí então eu negocio um exemplo ao inverso e auto-explicativo, já agregando possíveis dialéticas até mesmo quando a supressão da ideia é, por si só, um preconceito filosófico que perturba os empirismos da decantação da língua no dualismo força-violência. Tipo, como um dia de chuva. Um dia de chuva, um sapato furado, um banho de um carro quando passa numa poça e nos molha até os cueiros. Quando tudo parece dar errado, isso é capaz de alterar todo o sistema, como uma tempestade solar. Uma conexão que, à guisa de perspectiva teórica, se escalona em dialéticas linguísticas. Por exemplo: eu falo “eu vou ao supermercado” e o mundo conspira a seu favor. Mas não se deve abusar da fortuna. Você sabe que não pode ir com fome a um supermercado, etc. A língua é viva. São essas rupturas que criam as novidades. Obviamente, e fixo até com vergonha de aqui proclamar o óbvio, mas eu não sou contra o modo de produção aisático, a hipótese causal hidráulica, o modelo de Lasswell ou força-violência, mas sou a favor das potencialidades do sistema mais abertos à título de desbunde metafísico e de uma complexidade que não seja entendida, digo, resumida a um preto no branco, um, vamos assim dizer, um raciocínio de calculadora dismac, como “aqui tá raso, aqui tá fundo, aqui tá raso, aqui tá fundo”, mas como um olhar que contemple justamente essa complexidade shakespeareana e alforria dos sistemas. Pois, afinal, quem não é complicado e na hora agá não diz “ai meu Deus, se foi o boi com a corda”. Nesse sentido, já não existem mais sistemas, não existe mais preto no branco, não existe mais metafísica, não existe antroposofia, seichonoiê, revista Nosso Amiguinho, modo de produção asiático ou whatever: tudo é transdisciplinar. Escapa-se da discussão do que seja ou não inter, multi ou pluri-disciplinaridade. Aceita-se que o teu problema requer, invoca outras áreas para que mais se saiba sobre ele, ou para que mais tentativas de respostas sejam alcançadas. Agora tudo é quantitativo. O que fazer, para onde ir? Quais os ganhos? Como não esterilizar este potencial conceito pela visão de que pessoas de diferentes credos e idiosincrassias, crenças, afetos, se devam reunir e aportar sua contribuição? Por que não reconhecer o valor da quebra da disciplinaridade como uma queda adãmica secular, em vez de interpretá-la como ‘coisa coletiva de pessoas que querem trocar’ tribal e afetivamente. Ou seja, as coisas são assim mas poderiam ser diferentes. E se fossem diferentes. Apenas intuo que pode ser muito bom e diferente.

Pergunta: obrigado pela entrevista.
Funderburger: de nada.


Thursday, July 12, 2018

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Criatividade: capa de disco pirata dos Beatles imitando o design dos lançamentos da Capitol

Tava eu mexendo numa papelada e caiu no meu colo um catálogo feito em xerox com discos e vídeos dos Beatles. O catálogo era do misterioso Capitão Gancho, um especialista em pirataria dos fab four.

Lembro que recebi isso numa daquelas festas bacanas que o programa Beatlemania 99.3 fazia em pubs da época, como o Kafka (que ficava na 24 quase esquina Dr. Timóteo) e o Sgt. Pepper's dos tempos da Dona Laura.

Isso foi lá por 89, mais ou menos. Eu, com o dinheiro contado, fui na festa promovida pela falecida Band FM, do inesquecível programa apresentado pelo Kamarão nos domingos à noite.

Na época eu estava descobrindo os Beatles e tinha algumas cópias pirata de alguns filmes dos Beatles, isso muito antes do advento da Internet. Hoje é incrível pensar na sensação de isolamento e de penúria cultural que era todo um manancial de informação que precisava ser descoberto pouco a pouco, algo que atualmente é jogado diante de nossos olhos pela internet.

Claro que, naquele tempo, eu era fanático pela banda e foi toda uma grande descoberta conhecer todo aquele material em vídeos e discos e fitas. Era fanático embora não a ponto de ser um rato de fã clube. Meu fanatismo estava naquele nível de paixão onde não havia espaço para mais nada além dos Beatles.

Alguém me indicou uma fonte que havia numa locadora que era uma ex-sorveteria na Av. São Pedro. Ali, o dono fazia essas cópias de VHS pirata de shows de rock oque, para os anos 80, era algo meio que dava a sensação de câmbio negro. Parece que o melhor que havia para assistir em vídeo-cassete eram vídeos piratas.

Porém, o catálogo do Capitão Gancho era superior: ele tinha um número interminável de itens, além de coisas de carreira solo da banda, mas que não me interessava muito.

O fundamental é que, além de colecionador, ele tinha uma caderneta com centenas de contatos com fãs dos Estados Unidos e Europa. Cedo, na aurora da sede do VHS, ele começou a fazer o tráfico de pirataria. Essas fontes eram fundamentais, e tudo vinha via sedex. Não havia e-mail naquele tempo. E tudo ainda girava em torno de cópias de fitas de áudio e vídeo.

Claro que, para aquele mundo fechado pré-internet, isso era uma porta para o infinito. Havia muito mais do que se podia imaginar além da discografia oficial dos Beatles.

O problema é que, ainda no começo do CD, a pirataria de áudio vivia em função do vinil. E pirataria em vinil era cara e muito rara. Poucos eram os discos feitos no Brasil. Os poucos que eram produzidos sofriam uma restrição enorme, diferente do boom que surgiu com a pirataria oficial do casette nos anos 90.

Assim como o material de áudio e vídeo, as fontes bibliográficas eram escassas. Nos anos 80, Beatles era coisa do passado. O pouco que existia estava esgotado. A gente tinha apenas aqueles pôsteres do Kubrusly da Editora Três e a famosa revista do Marco Antônio Malagolli, do fã-clube Revolution. Essas publicações foram relançadas ao longo do tempo e eu cheguei a tê-las.

A revista do Malagolli, por sinal, era o catecismo da discografia pirata dos Beatles. Hoje, com Wikipedia e outros sites de referência, esse material é obsoleto; porém, era o começo de tudo. A Documento (como se chamava) contava uma bibliografia da banda mas, na segunda parte, que era a mais saborosa, era um resumo do que seria o corpus de bootlegs dos Fab.

O que a gente sabia era que são pelo menos quatro vertentes: o material de sobras de estúdio, o da BBC, a de shows ao vivo e demos e o famoso copião do filme Let It Be, que fora comercializado provavelmente pelo Allan Klein, e que foi a primeira grande fonte de álbuns clássicos dos anos 70 ainda, como o Sweet Apple Trax e o In a Play Anyway.

O interessante e que, no jargão dos pirateiros, como aparece na publicação do Mallagoli, havia já, no final dos anos 80, uma discografia clássica, ou seja, de álbuns clássicos, que eram citados como se fossem discos de carreira, como o Who's Shouting in My Ears, Nothing Is Real, Broadcast e o Yellow Matter Custard.

A maioria desses discos se caracterizava por capas improvisadas, em geral coladas, vinis sem separação de faixas e uma péssima qualidade. Mas eram "quentes", isto é, eram de fato os Beatles, mesmo com gravações que eram cópias de cópias disponibilizadas em qualidade de áudio que exigia que vivêssemos mexendo no equalizador para poder reaproveitar a pobreza do som.

Como disse acima, esses discos eram raríssimos e valisíssimos. O que nos dava a oportunidade de ouvi-los era através desse tipo de transa de cópias de fitas. Então o esquema era encomendar de alguém que fosse para a fronteira para comprar fitas, em geral aquelas Sony ou TDK, que eram as mais usadas.

Como cassete em geral era caro, a opção em geral eram as VAT, vagabundíssimas (viviam arrebentando, nos obrigando a fazer uma operação de reaproveitar bobinas de outras fitas e emendar os tapes com estilete e durex), mas era o jeito de montar uma discoteca. Lógico que o que a gente realmente queria eram os discos.

Ás vezes, havia a chance de comprar um. Mas levaria muito tempo. Fora o problema que essa material simplesmente não parava nas estantes dos sebos. Quando aparecia um que eu quisesse, a solução era pagar um sinal ao doo da loja, e ir pagando aos poucos, para que ele nos segurasse o disco. A briga de colecionadores era uma batalha campal. Muitos deles inclusive já possuíam um esquema com o lojista: quando o comandante da Varig trazia o vinil, ele já tinha endereço certo. Você sequer tinha a chance de ver o disco.


Da mesma forma que eu comecei a pirataria de vídeo em locadora, meus primeiros cassetes eram de sebos. Porém, nos dois casos, o pessoal tiha um conhecimento limitado de pirataria. Gravei um disco duplo, Eight Arms to Hold You (da foto acima), que eram um padrão de bootlegs dos Beatles que eram, em geral miscelâneas de várias fases em discos duplos e sempre com capas bonitas.

Também as gravações eram caras. Por exemplo, se eu quisesse fazer uma seleção de faixas, mesmo que de um disco comum, eles cobravam bem mais caro. O que era inacreditável, porquanto a mão de obra era zero. Nesse começou, eu gravava para ver o que era. Dessas coletâneas, como o Eight Arms, serviam para que se pudesse ter uma ideia do que era o corpus pirata dos Beatles. Os mesmos discos traziam trechos ao vivo, sobras de estúdio, BBC, sempre um pouco de cada coisa.

Era esse tipo de amostra que eu tinha quando eu fui atrás do tal Capitão Gancho. Mesmo colecionador, ele já tinha um esquema montado em casa, dois gravadores integrados de qualidade, alguns álbuns pirata. E ainda teve a ideia de, ainda em 89, de alugar constantemente um segundo VHS (em geral, eram equipamentos caros e carissimamente estragáveis) para cópias de vídeo.

O fascinante era que, justamente por conta dessa gama de contatos, o Capitão Gancho recebia material quase todo dia, toda semana. Nessa época dos anos 80, pareceram aqueles famosos John Barrett Tapes. Esse cara foi o primeiro, de dentro da própria EMI, que disseminou a nata da sobra de estúdio dos Beatles em alta qualidade.

Esse material redundou num disco abortado, chamado Sessions, que seria o proto-Anthology, e uma seria intitulada Ultra Rare Trax, esse praticamente o pré-Anthology, inclusive com faixas que não entraram no projeto da Apple que, depois de muitos arrufos judiciais e outras mumunhas mais, sairia no final dos anos 90.

O fascinante é que os John Barrett Tapes era a prova que a gravadora tinha muita coisa, que a gente sequer sonhava, a ser lançada em ótima qualidade. Mas tudo passava ainda por pendengas judiciais e a crença de que um lançamento desses era pouco viável nos anos 80, quando artistas dos anos 60, a despeito de serem os Beatles, não eram considerados de muito interesse comercial.

Aliás, ainda havia um projeto inicial em marcha, que era o próprio relançamento do catálogo oficial da banda, e que seria o começo. Quando ela finalmente apareceu em CD, não foi sem um grande estardalhaço. Afinal, era oportuno esse relançamento, já que os discos estavam esgotados, mesmo os novos, e as prensagens anteriores foram lacunares e em qualidade sofrível. Pra piorar, era preciso otimizar a discografia oficial que estava esparsa em dezenas de coletâneas que, depois do digital, perdeu a razão de ser.

Mas em 1989 ou 90, não havia no horizonte a possibilidade de vislumbrar um lançamento oficial desse material pirata. E o jeito era gravar fitas. Mas mantendo contato direto com um colecionador que, mesmo não sendo da área da comunicação, recebia fotocópias das revistas como a Dig It e a Beatles Monthly Book, que eram muito mais acuradas a respeito de informações sobre os Beatles do que as nossas publicações.

Esse comércio ativo de colecionadores, que eu achava melhor e mais 'racional' do que o fanatismo dos fãclubistas (que não era tão grande nos anos 80, quase um bando de essênios) tinha esse capital simbólico que eram as fontes discográficas pirata e livros recentes, como o Complete Beatles Recording Sessions, do Mark Lewisohn, que era (e ainda é) o maior especialista nesse setor.

Tanto esse material disseminado em vinil (por uma tal de Drexel Records) pelos anos 80 quanto o livro de Lewisohn mostravam que havia pirataria de qualidade por aí, muito melhor que aquela extração que surgiu a partir dos anos 70. Ao mesmo tempo, a Pyramid (outro selo bizarro, mas com umas capas bem transadíssimas e vinis coloridos) despejava em vinil e em CD a íntegra de tudo o que restara dos programas dos Beatles na BBC, num total de treze ou quatorze álbuns.

Logo depois, esses tapes da EMI ganhavam outras edições como coleções em série mas em formato digital. Um exemplo eram os Unsurpassed Masters (cujas matrizes deviam pertencer aos arquivos de John Barrett): digitalizadas, muitas daquelas faixas tinham qualidade igual ou superior às mixagens remasterizadas da EMI. Chegando por aqui em edições importadas naturalmente, era lógico que poucos teriam condições de comprar esses disquinhos.

Mas eles já eram um divisor de águas nos bootlegs; logo surgiriam outros miniselos que, com o tempo, passavam a limpo tudo aquilo que já havia aparecido em vinil. Para nós, os sem culotes, os despossuídos, restava contar com colecionadores para conseguir uma cópia em fita.

Por exemplo, lembro quando o Capitão Gancho puxou da coleção dele os dois primeiros volumes do Ultra Rare Trax, que era a série mais clássica desses álbuns de sobras de estúdio. Dispostas em ordem aleatória, era uma faixa mais sensacional que a outra. Outakes em estéreo, cruas, como se estivéssemos ouvindo os Beatles gravando, como uma mosca na parede. Quando ele pôs o piratão na eletrola para gravar, eu fiquei chocado com a qualidade de som.

Era o material mais quente possível. Não esqueço que ele gravou os discos no equipamento de som do irmão dele, que era fã do Genesis (nunca me esqueci desse detalhe, havia na estante a coleção completa do Genesis, em formato digital importado na época, nem no Brasil havia todo o catálogo em CD)). A primeira faixa era um false start de I Saw Her Standing There, seguido de uma tomada completa, com erros de contrabaixo do Paul de backing do John. A segunda faixa era um outtake de One After 909. Era inacreditável (tempos depois eu acharia o disco num sebo, era o meu pirata preferido) . Mas o prazer da primeira audição era proustiano, não poderia ser nunca mais ser repetido.

Começo dos anos 90 foi o auge dessa evolução da pirataria em CD. Com o dólar flutuante, nem dando sinal era possível comprá-los. Ao mesmo tempo, apareciam CDs do Who, Hendrix, coisas que a gente não achava nem em vinil por aqui. Acho que foi a época que os sebos mais lucraram, até lá por 1998 ou 99. Fora que muitos colecionadores foram gradativamente trocando o elepê pelo CD, e muita coisa foi desovada nas lojas. Era a chance de comprar discos que nunca mais apareceriam de bandeja (ledo engano, hoje é fácil achar esses relançamentos em 180g por aí).

É lógico que, deslumbrados pela revolução digital, nós queríamos partir para o CD começando pelo nacional, e os disquinhos não eram baratos. Mesmo com o advento deles, o vinil ainda era a mídia mais usada – isso quando comprava-se LP por ser um formato básico, diferente de hoje, quando é apenas um fetiche para quem não viveu a época da bolacha.

Mas estou tervigersando e isso cansa o leitor. Voltando: esse período 90-95 foi o da disseminação desses boots dos Beatles. Uso 1995 como data limite porque foi nesse ano que a Apple finalmente deslanchou o projeto Anthology. É natural que, de posse de todas essas sobras dos Beatles, era necessário pensar um lançamento que prestigiasse não os colecionadores (que, por sinal, não viram muitas novidades nesse novo material) mas todo o público em geral, até quem não era fã incondicional dos Fabs.

Isso explica o “corte” que foi feito ao criar uma série que fizesse uma retrospectiva, não obstante a impossibilidade de disponibilizar tudo como os boots completos) mas que, de certa forma, pegou a essência de todo aquele “corpus” pirata, desde o que julgo ser uma jogada verde, que foi o Live at BBC (que por sua vez era um resumão daquela coleção mamutesca de treze discos em dois CDs) de 1994 até o Anthology.

Quando eles saíram, entre 1995 e 96, foi como se toda uma época desaparecesse: eu já conhecia (em fita) muito daquele catálogo do Capitão Gancho. Por sinal, lembro dele abrindo na minha frente Sedex chegado da Europa com fitas e mais fitas com material explicitado em cartas batidas à máquina, com tapes raríssimos com mixagens diversas de faixas do Álbum Branco (que, como se sabe, pelo fato de ter sido produzido pelos próprios Beatles, possuía uma quantidade considerável de mixes e acetatos diferentes das mixagens oficiais). A gente ouvia aquilo embasbacados; ia muito além do que a gente achava que conhecia (e tinha mais, não muito mais, mas mais).

Primeiro foi o fim do Beatlemania 99, que foi o programa que congregou esses fãs desgarrados, desde aos encontros no Sgt. Pepper's até as sessões daquele Magical Mystery Tour no Sesc (o deslumbramento de assistir ao filme era inenarrável). O programa, que era patrocinado pela EMI, foi morrendo aos poucos, junto com a própria 99.3 que, por fim, virou uma enlatada. 
 
O Anthology também deu uma refreada naquele instinto arqueológico de bootlegs. Primeiro que gravar tudo era pouco viável a longo prazo. Era um passatempo divertido, porém caro (as fitas também eram um investimento complicado). E depois do projeto, pelo menos de minha parte, eu enchi o saco de pirataria. Nessa época, eu já estava ouvindo muitas outras coisas, e ainda por cima aproveitava a própria desvalorização do vinil para comprar clássicos, jazz e outras coisas que nem tinham relação como rock que, paradoxalmente, era um gênero menor na minha discoteca.

98 (vinte anos atrás!) foi também o ano que eu descobri, depois de ler Negroponte, que a Internet era um caminho sem volta. Qual não seria a minha surpresa ao descobrir que, no auge do download desenfreado, pós-rapidshare, lá por 2004, e depois, com o streaming, todo esse material pirata dos Beatles fosse aparecer com força, e em sua totalidade?

Todo? Claro que não. Acho que foi ali que, olhando em retrospectiva, é divertido pensar em toda aquele trajeto arqueológico que foram pegar naqueles boots clássicos e toscos como o File Under (do fã clube Revolution) ou o Beeb 6 e o Quarrymen (que foram pirateados no Brasil que hoje têm realmente um grande valor, não só histórico (e pelo retorno do vinil) mas pela beleza de muitas capas, como as dos piratas da BBC que, seja lá quem foi o autor delas, eram paráfrases dos discos alemães e americanos oficiais (os discos da Capitol por si só valem um próximo post), eram de uma criatividade ímpar.

Discos com quaidade péssima (como o histórico Yellow Matter Custard) mas capas deslumbrantes. E muitos deles têm esse valor simbólico mesmo, já que foram superados pelo CD e mp3, e que compreendem praticamente tudo o que é conhecido do famoso copião do filme Let It Be, disponibilizado numa série digital chamada Thirty Days (ou algo assim).

O que ficou foi provavelmente esse feticho do audiófilo, que a gente levou para outras correntezas, outros gêneros, outros artistas, ouytras discotecas. E tudo passa pelo deslumbre do vinil comprado, da fita gravada, da descoberta. E tudo isso num mundo em que a realidade da Internet era impensável. É possível dizer que hoje tudo é acessível e isso é ótimo.

Contudo, é justamente essa acessibilidade não passa pela experiência daquele tempo. Se eu virasse beatlemaníaco agora e tivesse diante de mim tudo isso que eu descobri, desde as VHS deliciosamente gravadas com o sabor do interdito (“é proibida a reprodução etc”), não havia a experiência da espera, da descoberta, da expectativa. Era um fetiche, sim, mas estava imbricada àquela realidade analógica, pré-internet (rádio, lojas de discos), da qual estávamos todos submetidos.

Se eu fosse começar a coleção hoje? Certo que eu ia ser mais um que ouve tudo e não ouve nada. E ia ficar com a discografia oficial. Hoje não tem mais fita gravada. E todas aquelas gravadoras ilegais que prensavam CDs nos anos 90 não existem mais. Na febre dos blogs de música, muita coisa reapareceu, alguns discos foram relançados – mas ironia do destino, são agora cópias piratas dos piratas. Ainda hoje é possível achar material de uma Yellow Dog (como os Ultra Rare Trax) mas prensados por outras pessoas.

Hoje falando essas coisas, pareço repetir-me, proclamando o óbvio. Mas imagino que tratando-se de lembranças que lá se vão quase três décadas, e que é incrível pensar que quem agora tem a minha idade quando comprou o primeiro disco não tem noção do que era ouvir música naquele tempo – que parece que foi...ontem. Não gostaria de voltar ao passado mas como não ser saudosista?


P.S: que fim levou o Capitão Gancho? Cartas para a redação.