Friday, October 30, 2020

Uma criança solitária

John Lennon 


Outubro marcou a passagem dos 80 anos de nascimento do John Lennon (dia 09). Não havia pensado em falar nada a respeito mas, na verdade, havia pensado sim. Porém, não havia chegado a nenhuma forma de escrever alguma coisa. Até que li esta tarde uma matéria da Thames & Hudson sobre os 50 anos de lançamento do álbum Plastic Ono Band.  

Antes, uma pequena história. Lembro de minha mãe ter, não lembro como, o disco Imagine. Um dia, ela, que não era grande colecionadora de discos (nesse sentido, ela era, como todo mundo, meio relapsa: não colecionava, não sabia nomes de canções, emprestava e perdia bolachões, etc). Lembro quando ela pôs o disco para rodar. E me narrou o que o John falava nas letras. Não em todas, mas em “Crippled Inside”, “Imagine” e “Jealous Guy”. Mas recordo de ouvir o álbum várias vezes com e sem ela.

Mas, para mim, até então – eu deveria ter uns oito ou nove anos, ele era apenas aquele cara estranho ali, na foto do encarte segurando um porco, e que falava coisas que minha mçãe traduzia das faixas, que ele queria um mundo melhor, que se arrependia de ser ciumento, que de nada adiantava parecer legal se você está arruinado por dentro.  Hoje eu fico pensando nos toques que eu recebi e não sei como eu digeri essas informações. Sei que era para mim uma época de aprender. Lembro que ela descrevia uma canção da Elis, “As Aparências Enganam”. As aperências enganam, diz Tunai na letra, porque amor e ódio se irmanam na fogueira das paixões. Os corações se gelam e depois não existe nada no mundo que possa fazê-los descongelar. E as aparências enganam aos que gelam e inflamam porque fogo e gelo se irmanam no outono das paixões. Quando ela tocava isso - era da trilha sonora da novela Eu Prometo, eu não era capaz de entender nem o que ela queria dizer ao tocar essa canção no toca-disco, nem sacar todo o barroquismo dos paradoxos da letra. Hoje eu entendo. O menino de hoje olha para o menino que despertou para ouvir de novo essa música agora. 

Ela explicava a letra, como ela fazia com as do John. Mas essa ela parecia estar falando de algo que ela estava sentindo pela música. Fico mais recordando do que ela dizia mas na cabeça de quem eu sou hoje, porque não consigo pensar no que eu achava na época, porque eu não achava nada. Não sei dizer o que eu sentia. Só que, pensando hoje, devia ser a primeira vez que eu pensava que existiam mensagens nas canções e essas mensagens eram bastante reflexivas ou qualquer coisa nesse sentido. Coisas que eu era incapaz de entender, como o menino do conto da Missa do Galo, do Machado. Coisas que só o narrador adulto seria capaz de analisar e de entender, e a cabeça de menino não seria capaz de fazê-lo. Como era o caso do comentário social em “Imagine”, a súplica de “Jealous Guy” ou o moralismo maroto de “Crippled Inside”. Ela me disse que o título queria dizer que a pessoa estava "aleijada por dentro". Eu fiquei meio perplexo porque uma canção falava isso dessa forma. 

Naquele tempo, eu acho que só entendia coisas como as músicas do Kleiton e Kledir e da Blitz, que eu ouvia bastante. Mas claro que não entendia além, em canções como “Paixão”, ou mesmo em “Você não soube me amar”, aquele mundo adolescente estava muito distante de um menino de oito ou nove anos. Era como se eu ouvisse meus irmãos mais velhos falando da sorte deles com as garotas ou algo do tipo. Isso justamente neum momento em que o mundo se abre diante de nós e temos tanta curiosidade em saber das coisas.  Hoje, passado tanto tempo, descubro, pálido de espanto, que continuo um neófito mas agora tenho certeza que levarei minha incúria para o umbral.

A nota engraçada nisso era que aquele disco do John Lennon, Imagine, de 1971, tinha uma maçã no selo, e aquela maçã aparecia cortada do outro lado. Lembro que eu achei uma idéia interessante embora idiota. Lembro de olhar aquele selo da maçã rodando e achar aquilo muito idiota. Qual não foi a minha surpresa quando, anos depois, eu ganhei de aniversário um disco duplo branco, que fui saber que era uma banda chamada The Beatles. Eu agradeci embora, na época, não tivesse toca-discos e aquele presente não teria para mim qualquer utilidade. E não teve por muito tempo – até quando eu finalmente descobri quem eram os Beatles e fui enfim conhecer a música deles. Mas a única ligação que estabeleci no momento que abria o disco era notar que as bolachas também tinham aquele selo idiota da maçã. Lembro depois, quando finalmente pude escutá-lo, e achei um disco estranho, para não dizer ruim. E a capa toda branca com aquelas fotos de quatro cabeludos esquisitos só me fez ter terror daquele disco duplo.

Enfim, essa reflexão é só para a gente pensar, e a gente pensa em todo o tempo que andamos sobre a terra, de como a gente vive tanto para aprender tanta coisa e mudar tanto a nossa visão de mundo, a nossa opinião, e de como tudo mundo tanto no tempo e no espaço que parece que nós somos sítios arqueológicos ambulantes que carregam em si cidades esquecidas e enterradas. Existem várias múmias minhas de outras eras da vida que estão enterradas esperando que um Heinrich Schliemann desvende as nossas tróias interiores.

Mas enfim, não era nada disso que eu ia tratar aqui. Ia falar da matéria do álbum Plastic Ono Band. A matéria tem uma citação daquele doutor Janov, que faz a terapia do grito com o John Lennon. Então resolvi escutar de novo esse disco, que eu cheguei a tê-lo em vinil. Nunca tive muita paciência com a carreira solo dos Beatles mas esse disco sempre me chamou a atenção pela crueza dele, produto certamente e isso é documentado, da terapia que o ex-beatle empreendeu no final de 1970. Acho que essa terapia explica muito da forma como ele John tratou de assuntos do passado recente na imprensa naquele tempo, praticamente jogando os Beatles e aquela vida que ele comparou àquela cena do Trimalquião do Satiricon do Fellini literalmente na lata do lixo. Com razão, de fato, a imagem terna dele com Yoko recebendo a luz do sol debaixo de uma frondosa árvore – capa do disco, é bastante simbólica. É como se ele tivesse encontrado uma paz, um caminho com ela, algo que ficou em suspenso naqueles loucos anos mas os descaminhos da vida nos fazem reencontrar com essas lacunas esquecidas. 

Soma-se a isso uma leitura recente minha, a do livro do Hunter Davies sobre os Beatles. O livro é pródigo porque fala bastante da infância do John. Então existe muita coisa encoberta ali, a separação do pai, em seguida da mãe, que se transformaria numa pessoa próxima mas à guisa de irmã, sendo Mimi, sua tia mãe postiça para salvar a “desgraça” de Lennon ser fruto de um casamento desfeito, de uma união que não ‘ocorreu’ como uma família. Tudo na biografia aponta como se John tivesse aceitado a separação dos pais e se adaptado à vida com Mimi que, por seu turno, fez de tudo para que ele fosse uma criança feliz, o que ele não foi. Ele não viveu a vida de família, o papai, a mamãe eo seu pequeno rebento, e virou um adolescente problemático (Clapton teve uma infância escamoteada quase da mesma forma, criada por outros mas talvez de forma mais dolorosa, por ter sido, como ele diz em sua autobiografia, rejeitado pela mãe) depois que finalmente perdeu Julia pela segunda vez, desta vez para sempre. A partir dali, anota Davies, John virou uma pessoa cruel com todos, e com sua futura esposa, Cynthia. Mas o sonho dos Beatles e o sucesso estrondoso, tudo ocorreu numa progressão fulminante , e aquelas traumas ficaram num segundo plano para uma outra história dentro da história enquanto aquelas traumas ficaram esperando por ele. 

Parece que o encontro e a posterior união com Yoko fizeram com que ele tivesse uma epifania, que misturou-se ao torvelinho de outra separação, que foi a de John com Paul, e o fim da relação dele com seus companheiros dos Beatles, é como se essa duplicidade de separação e dor reaflorasse mas ele encontrasse esteio no tratamento e a partir do momento em que John foi capaz de evitar subterfúgios e enfrentar esses traumas de fato – independente se a terapia seja válida ou não, pelo que aponta a matéria, acho que esse momento da vida dele, com esse renascimento do seu eu, da forma como ele se despiu de certos preconceitos e teve coragem de jogar tanta coisa fora naquele momento, e da forma como ele plasmou toda essa dor e teve coragem de expô-la, como em “My Mummy Is Dead”, é como se ele retornasse, ou eu retornasse àquelas páginas do Hunter Davies para tentar descobrir tudo o que ficou escondido, o que não ficou dito, todo o caudal de macaquinhos no sótão que fizeram com que John fizesse uma espécie de ajuste de contas. Por isso eu penso que esse disco, o de 1970, seja tão representativo de um artista, mais precisamente o líder dos Beatles, possa ser lembrado, na passagem dos 80 anos, por todos esses elementos de sua formação. Acho particularmente que esse John Lennon no divã, no Plastic Ono Band, parece me falar mais do que o bragadócio das entrevistas para a Rolling Stone e a Playboy, ou o John pacifista ou político, que creio que são desdobramentos desse novo John Lennon, mas mais do que isso, essa epifania do ex-ídolo do rock no espelho, como o John do álbum de 1970, acho que vale a pena conhecê-lo melhor. 

Segundo a matéria, as recordações do começo de sua vida reapareceram nas sessões com o dr. Janov: objetivada para revisitar e reexperienciar dores de infância reprimidas para eleminar essa dor na idade adulta, o terapeuta acabou dando bastante material para que John Lennon trabalhasse. "A terapia fez com que eu sentisse minha própria dor" (...) "você é obrigado a repassar toda a sua dor, de tal forma que isso te faz sentir medo com seu coração a bater, e tudo é realmente resultado de você mesmo e não de alguém lá em cima, é resultado de seus pais e da sua relação com eles". Por fim, Arthur Janov revelou que o grau de sofrimento que ele sentiu fora enorme: "parecia alguém que era adorado por todo o mundo, mas isso não havia afetado em nada. No âmago de toda aquela fama e riqueza e adulação havia apenas uma pequena criança solitária".

PS: reocmendo a continuação do disco de John, o da Yoko (para mim, são um só).   


Referências: 

Thames & Hudson: John Lennon on life, love, peace and the Plasic Ono Band https://thamesandhudson.com/news/john-lennon-on-life-love-peace-and-the-plastic-ono-band/

Hunter Davies. A Vida dos Beatles. Editora Expressão e Cultura, 1968.   

Wednesday, October 21, 2020

Lembra da MTV Brasil?


Primeira lembrança que eu tenho da MTV Brasil que, se fosse viva, teria completado trinta anos na terça foi ter descncavado em alguma caixa a antena de auréola UHF que estava guardada intacta junto com o manual do televisor CCE que nós tínhamos na sala de casa, na época, um apartamento no Centro.  Eu liguei a antena a um cabo longo e tentei fixá-la no alto da parede, de forma a pegar com o melhor sinal possível. O problema é que eu morava no segundo andar e, mesmo morando num dos pontos mais altos do bairro, na esquina da Duque com a João Manoel, o sotaque era bom mas o semblante era desesperadoramente chuvisquento. Nunca consegui pegar UHF bem ali.

Mas o que compensava era o fato de ter uma tevê nova no cardápio de canais. Naquele tempo a gente assistia bastante televisão. Não era como hoje, que tanta coisa nos prende. Naquele tempo, 1990 ou 1991 – aqui em Porto Alegre a MTV só começou a pegar mesmo mais tarde, era televisão, rádio, uma revista semanal e só. E aquele sensação de colocar no canal 24 era como uma janela para uma outra dimensão. Meu alumbramento é que parecia uma TV pirata, tudo muito improisado, com chroma-key e uns garotos da nossa idade apresentando. Com a popularização do vídeo-cassete e de canais como a MTV é que os nossos hábitos de consumo de tevê estavam gradativamente começando a mudar.  Até então, deenho animado só passava de manhã e clipes apenas em alguns programas, como o Fantástico, o Vídeo Show ou algumas experiências regionais, como o ritmo 20 na antiga Guaíba.

O que me chamava a atenção era que a programação musical era muito diferente daquilo que a gente ouvia nas paradas de sucesso do rádio. Na antena, nós estáamos sob a égide daquele tipo de agenda proposta pelas rádios musicais e gravadoras, então era um tipo de esquema, com muita música brasileira, ainda mais numa época, final dos anos 80 e começo dos 90, onde havia muitos ritmos dançantes e sertanejo na tevê, naquele período onde o rock nacional entrara em decadência e o pop que tocava no rádio era aquele maneirismo Roxette, Paula Abdul, Gerard Joling, Right Said Fred, era um pop farofa com gosto de jabá. E a MTV Brasil, que estava conectada com o que estava acontecendo lá fora, refletia um outro contexto, uma outra cena musical. A gente já tinha ali o boom do rock alternativo, o shoegaze, enfim, todo aquela movimento indie que iria explodir de vez com Pixies, Nirvana e arredores, e que iria ter desdobramentos aqui, porém, mais tarde.

Claro que  a MTV também mostrava o top do mainstream. Por exemplo, quando eu finalmente consegui fixar o canal naquele dia quando eu instalei a antena de auréola na parede, o que passava ali era o “Black or White”, do Michael Jackson, que era já um blockbuster, era a música do momento, porque era o Michael Jackson, porque o clipe tinha efeitos especiais. Mas isso contrastava com o de “Under the Bridge”, do novo disco do Red Hot Chilli Peppers. Prá mim, isso é o começo, o começo do que eu me recordo. Acho que foi a primeira leva de clipes que pareciam emergir da MTV e ganhar as rádios daqui também. Contudo, sempre havia uma distânca muito grande entre o cardápio musical da MTV, bem mais internacional do que o rádio. A nossa jabazera era uma coisa mais com gosto de pastel de quiabo. 

Isso mostra que, desde sempre, desde muito tempo, existia um descompasso enorme entre o que acontecia no mundo do pop e o que era agendado para que nós víssemos ou ouvíssemos. Mesmo em plenos anos, por incrível que pareça, ainda havia esse descompasso. Daqui a pouco, nos anos 80, tinha um DJ farofa local que nos fazia ouvir um eurodance massivamente brega, uma cafonália com lamé cópia mimeografada de um Pet Shop Boys vendido como se fosse o estado da arte do pop, mas que era uma coisa que sequer passava nas paradas norte-americanas ou adjacências. Eu não era um fã do que estava acontecendo no pop daquela época e muito menos aceitava sem reservas o que a MTV produzia. No entanto, era impossível não perceber a diferença entre o que ela oferecia e o que nós estávamos consumindo por aqui antes dela.

É inegável que a história da música e da forma como ela se conformaria ao longo dos anos 90 seria tributário dessa influência. Era o shoegaze e o subpop virando mainstream e prenunciando uma nova onda de rock a partir de cenas alternativas, cujo paroxismo foi o mega-sucesso do Nirvana, banda que nasceu e morreu na MTV. O Acústico deles, de 1994, certamente é um dos, se não o maior momento da história da música pop registrado pela MTV. E, de forma simbólica, creio que nós entramos nos anos 90 com o Nirvana. Porque, na minha visão, existia um pop antes deles e depois deles.

A própria MTV não seria mais a mesma depois do famoso trio de Seattle. A despeito da moda passageira do grunge, no sinuelo do Nirvana todas as cenas alternativas tomariam de assalto para o que seria um novo levante do rock nos anos 90. Parece que Cobain e seus amigos reabilitaram a guitarra sem a pompa, ciscunstância e bodosidade pretensiosa do hairy rock dos anos 80.  A partir dali, uma nova cena de rock nacional surgiria, com bandas como Skank, Raimundos, Cidade Negra, O Rappa e outros e essas bandas encontrariam seu caminho pela MTV, enquanto outros artistas jovens há mais tempo, como Titãs, Rita Lee e Paralamas remoldariam suas respectivas carreiras a partir do Acústico. Foi quando a MTV de fato começou a ganhar uma cara brasileira, o que a diferenciava do começo, quando o pop internacional e bandas desconhecidas da gente apareciam mais. 

Nessa época, em fins dos anos 90, eu não precisava mais brigar com a antena de auréola UHF: nós já tínhamos recém assinado a NET e a imagem da MTV estava impecável. Mas em 1994, quando Cobain se matou e a MTV passava o dia todo o Unplugged deles, ainda ainda assistia ao canal com aquele chuvisqueiro característico dos primeiros tempos.  

Para mim, o grande momento foram esses primeiros anos. Eu confesso que tinha uma implicância com eles porque eles não passavam Beatles (e nem pareciam gostar deles). E só conseguia assistir ao canal de fato de madrugada, quando eles passavam clipes antigos. Lembro que vibrava quando aparecia um trecho do Concerto de Bangladesh com o George tocando “Here Comes the Sun”. Hoje isso tudo está no Youtube.

Essa fase inicial muito louca, muito cool, de chroma-key, com aquela cara de tevê pirata era a ideal. Infelizmente os tempos mudam e nem sempre para melhor. O paradoxo é que finalmente quando eu pude assistir a MTV com qualidade de imagem o conteúdo não me interessava mais. E a internet, a partir dos anos 2000, passaram a mudar o foco da gente, em especial o meu, que foi gradativamente deixando de ver tevê. E hoje, com a Internet, nem o rádio musical mais tem essa capacidade de prender os ouvintes, que cada vez mais comandam a sua dieta musical, dispensando disc-jóqueis ou VJ. A própria MTV acabou se vendo na necessidade de, à medida em que sua audiência se renovava e a televisão também, a optar cada vez mais por programas ao vivo ou de auditório. Da última vez que eu me lembro de assistir à MTV, parecia que eu estava assistindo a um canal qualquer. Mas fica a lembrança da velha MTV Brasil daquele começo dos anos 90, quando acabou com a farofa do jabá dos rádios daqui e acabou com aquele descompasso entre o pop daqui e o do mundo, em pleno processo de globalização, um assunto que se discutia muito naquele tempo mas que hoje soa meio redundante.  


Wednesday, October 07, 2020

A Grande Liquidação


Eu seguido leio matérias ou artigos (CINCO RAZÕES...2019) falando a respeito do fim do CD. Acho que muito dessa visão mais parece discurso de colecionador de discos em formato digital. Pelo menos, para mim que, longe de ser tecnófilo da era do streaming, o CD morreu há muito tempo atrás. Na verdade, no caso do Brasil, este país aqui, sua implantação se deu de uma forma peculiar, e fala mais do que era o mercado fonográfico na época da sua, vamos dizer assim, implantação.

Recordo a primeira vez que ouvi música em formato digital. Foi lá por 1988 ou 89. Eu tinha ido levar meu toca-discos, um DDS-99 da Gadiente no conserto. Enquanto esperava o atendimento, parado no balcão, notei que havia um som ambiente, algo como uma abertura de ópera do Mozart. Intrigado, porque não parecia som de rádio (nenhuma FM tocaria aquilo e naquela hora da tarde por exemplo) . Até que perguntei o que era aquilo e a atendente parou o equipamento na minha frente, e abriu a portinha. Então saiu o disco dourado, com aquele selo amarelo característico da Deutsche Grammofon.

Era um CD, o som era incrível, fresco, como se eu estivesse ouvindo o suco de uma audição ao vivo, com todos os detalhes. Semanas depois, com o meu toca-discos em casa, notei que Haia uma distância enorme em termos de definição e e sensibilidade da forma como se poderia equalizar o som de um vinil e de um CD. Na época, as próprias rádios estavam passando para o digital e ainda avisavam: ouça isso no mais puro som digital, etc. Ao comparar o som do rádio com a mesma música no vinil, a diferença era da água para o vinho. Tanto que eu comecei a realmente ficar frustrado com isso. E naturalmente fui convencido pelos fatos de que o futuro era o compact-disc. De fato, a nova tecnologia se vendia dessa forma: o CD era indestrutível, o arquivo ficava intecto por anos, não sofreria com o desgaste do tempo em razão do armazenamento diferenciado ou por causa do uso contínuo da agulha nos sulcos da elepê.

O futuro era o CD. A melhor qualidade de som, a orquestra em sua casa. A era dos elepês mal prensados em duofênico que nem as melhores picapes salvavam (sem contar as prensagens brasileiras, quase sempre terríveis). Tudo dentro daquele disquinho ourado que a gente olhava contra a luz e quebrava a cabeça para entender como é que cabia tanta música e de qualidade tão boa dentro. 

O problema era o preço. E o fato de que ainda há ia a espera dos lançamentos e relançamentos nesse formato e, mais ainda, contando com a realidade do mercado de discos no Brasil. Na virada dos anos 80 para a década seguinte, e por mais alguns anos, o preço era impraticáel, tanto da unidade com o álbum quanto do aparelho, que na época era acoplado como parte do system, como um reprodutor de mesa. Como aconteceu com os toca-discos no começo dos anos 70, compact-disc era uma curtição de audiófilos endinheirados. Ia levar algum tempo até que a tecnologia se popularizasse e finalmente entrasse numa dinâmica de portabilidade (CD no carro, em mini-systems e discman). Isso aconteceria ao longo dos anos 90. Contudo, a implantação do CD batia de frente com a realidade do mercado. Não bastasse o preço alto, o indústria de discos estaa numa entressafra devido à recessão pós pacotes da era Sarney, e a economia só iria melhorar depois do Plano Real.

Mesmo assim, como observa Eduardo Vicente (2002) o CD salvou a indústria fonográfica nos anos 80. Pela primeira vez, "CDs possibilitaram tanto o relançamento dos catálogos antigos das grandes gravadoras quanto um aumento nos preços dos produtos vendidos, de modo que em 1988 – quando a indústria já se mostrava em franca recuperação – o número de CDs vendidos mundialmente superava pela primeira vez o de LPs" (p.27). O futuro era promissor. Hoje podemos ver como o sonho do reinado de mil anos do CD foi tão breve como um voo de galinha ou do 14 Bis.  

Nesse meio tempo, as gravadoras tiveram que dar conta do catálogo e dos suplementos de discos a serem lançados aqui. A solução de muitas delas foi investir em lançamentos de ocasião quanto às novidades; com relação ao catálogo antigo, o jeito foi investir numa coisa que sempre deu certo na época do vinil: a coletânea. Para quem lembra, a segunda metade dos anos 90 foi a época da coletânea de CD. Todas as gravadoras atolaram as lojas com elas. No final da década, coletânea era disco de balaio. Quando nós íamos aos lojões ou grandes magazines, sempre havia na entrada o balaio. Isso foi bem na época da moda do saldão de 1.99. Os discos eram vendidos misturados, entre sobras e encalhes, sempre a preços baixos. Era a melhor pedida para amigo secreto. Ou seja, parafraseando aquele filósofo da Escola de Frankfurt, o CD no Brasil virou uma grande liquidação.

Por outro lado, havia a questão de que o CD como objeto, como artigo, como signo, era um herdeiro do CD. Herdeiro da própria cultura do que se tornou o long-play na longa duração, desde seu surgimento, no final dos anos 40 até os anos 80, quando ele passou a competir com seu filho maldito, o compact-disc. Nessa longa duração, o disco virou arte, tanto de capa quanto de conteúdo. O disco também era um documento, era a prova de que um artista havia gravado um trabalho e lançado oficialmente. O músico ainda hoje vai se considerar músico de fato quando ele tem um trabalho lançado no mercado ou lançado de alguma forma, mas com esse status de oficial. Se ele tem um disco na praça, ele não é um aspirante. Ter um disco sob a chancela de uma grande gravadora (ou pequena) é o documento que prova que você chegou lá.

E existe a cultura do consumidor e do colecionador de CD. Aí nós podemos entrar em questões como cultura material (MILLER, 2007), isto é, a forma como essas coisas fazem parte de nossa vida e de como nos apegamos a coisas, um chapéu, um jogo de panelas, um penico, uma coleção de selos, uma panelinha de ovo poché. Aqui entra a questão da cultura material. Um objeto é um objeto mas pode Sr rmais que um objeto. É a história da vida de uma pessoa, enfim, os objetos também contam histórias de nós e dos outros. E os discos têm essa coisa. Mesmo que uma coleção de 10 mil discos possa ser reduzida a pendrives hoje, as pessoas que viveram essa geração material do disco vão morrer abraçados em coleções de discos (e livros) que podem dependendo do caso, ocupar quartos, banheiros, corredores, apartamentos. O cidadão tem um apartamento só para socá-lo de discos e de livros. Ou se casa, se muda mas a coleção fica na casa da mãe, do pai, etc. É como se simbolicamente você tivesse um cordão umbilical ligado a todas essas coisas.

Mas não era bem isso o que eu queria dizer. O que eu queria dizer é que é normal  (ou não, diria Freud) que as pessoas juntem coisas, colecionem coisas. O CD já havia entrado no mercado de forma enviesada aqui nos anos 90 primeiro como artigo de luxo e depois como outlet de pacotilha, vendido de forma simplificada e barata no final. Nessa mesma época, os CDs em lançamentos que apareciam no mercado eram pirateados enquanto a cultura hacker descobria uma forma de troca e disponibilização desses arquivos de forma compacta e remota (WITT, 2015).

O Mp3 já havia matado o CD lá no final dos anos 90 com o advento do Napster e, depois, com seus desdobramentos. A questão é que essa cultura da música digital em termos de acesso, de popularização, difusão e plena portabilidade só se desenvolveria de fato depois da Web 2.0, a fase da internet que viabilizou o Youtube, as redes sociais, até chegarmos no paroxismo da portabilidade com os smartfones e o pleno desenvolvimento de sites de streaming como o Spotify, quando as grandes gravadoras finalmente puseram as mãos no controle dessa distribuição de música.

Quando o mp3 era uma cultura “hacker”, quase alquimia para iniciados, essas majors ainda se agarravam ao CD. Afinal de contas, ele era o suporte físico que lhes garantia o café e o pão com manteiga no fim do mês. Elas lutaram muito, derrubaram sites de distribuição de música digital em massa, como o rapidshare e outros, uma perseguição macartista de cachorro grande só comparada à guerra das editoras musicais contra a payola, no final dos anos 50. As gravadoras venceram a batalha quando esmagaram essa ‘cultura hacker’ mas só venceram a guerra quando aprenderam a ganhar dinheiro com o streaming. E mataram todos os coelhos com uma cajadada: transformaram o escambo de mp3 num trato quase fantasma nas redes, e atraíram o grosso da população que consome música, enfim, os ouvintes de ocasião, o pessoal que comprava um CD por causa de uma música.

É natural que, de posse e controle do streaming e vendo as audições de Spotify, Youtube e arredores viraram dinheiro nas suas contas, e da forma como as pessoas de hoje e do futuro abraçam e abraçarão a música pelo streaming, o CD deixou de interessar às gravadoras. Eu lançaria um CD hoje para dizer que eu lancei um novo trabalho, pelo prazer de ver minha cara na capa. Claro que eu sou produto dessa cultura do long-play, do álbum conceitual. Se eu quero fazer um disco agora, eu quero que seja, no mínimo, nos moldes do Close to the Edge, com aquelas capas e faixas extensíssimas. Faço questão da arte de capa. Porque é a cultura da época, é na qual fomos feitos, é a cultura que aprendemos a amar, é  a cultura naqual estamos imersos, nós, que viemos de lá. Essa cultura não existia nos anos 1930 e provavelmente não existirá mais daqui a um século. Na longa duração, nós fomos um aposto, um momento na história da eternidade.  

O CD acabou?  Vai voltar? Foi e já volta? Existe sempre um milenarismo nessas idéias. O efeito colateral do streaming é que, pelo menos em matéria de catálogo, ao contrário da distribuição irregular da época de vinil e do compact-disc, hoje está quase tudo a um clique de distância. A música hoje e provavelmente no futuro vai vai ser digital. Só não existe um consenso com relação a isso porque existem ainda aqueles que colecionam discos e CDs: afinal de contas, esta ainda é uma cultura recente. É para esses que as gravadoras ainda engambelam com esses lançamentos especiais, comemorando 30 anos do disco tal ou 50 daquele outro disco ou uma caixa com a coleção completa do fulano. Elas porém sabem que existe um teto de vendas para esses produtos. E, por muito tempo, eles irão existir. Afinal, tem gente ainda hoje que ouve discos de 78 rotações da época do Caruso. Aí nem Freud explica.

Por fim, hoje, não apenas o aparato físico do CD ou vinil mas a própria cultura do álbum está com os dias contados. Cultura, digamos assim, todo o imaginário que surgiu em torno do álbum conceitual, do disco de um artista como se fosse um livro como um conceito estético imanente nessa produção. E isso acontece justamente por causa da nova cultura do streaming. Talez isso venha a moldar a cultura de produção e comsumo de música nas próximas décadas.  

Em matéria recente sobre a explosão do sertanejo nas paradas de setreaming no Brasil, profissionais explicam que artistas usam o expediente do EP ou extended play. Curto para um álbum e grande para um single, ele amalgama mais conteúdo sem o "incômodo" das "filler songs", ou seja, músicas para encher linguiça. Ou seja, quem, nesse novo ambiente fonográfico, pensaria em produções como as dos anos 70, ainda calcadas no modelo do long-play, em discos temáticos ou conceituais como o Bitches Brew ou o Fragile? Com o EP ou o single de volta, a tendência seria um retorno aos tempos dos supracitados 78 rotações, quando os discos não tinham capa ou arte de capa, os lançamentos estavam limitados a um punhado de canções. O álbum seria um atavismo do tempo do vinil e que sobreviveu no formato do CD mas, e de agora em diante? Como dizem alguns, o vídeoclipe é o novo álbum? Depois do reinado do disco conceitual, voltamos aos singles?

A gente sabe que muitos ouvintes compram um disco por causa de uma canção. Logo, por que não resumir um lançamento? A ideia hoje é lançamentos de dois em dois meses. Uma música bem trabalhada nessa dinâmica pode durar até noventa dias (MONOCULTURA, 2020). E isso já dá mostras que não é uma tendência restrita a um gênero musical específico. Podemos dizer que, para finalizar, o debate em torno do fim de CD é o argumento ludista de defesa de uma prática secularizada contra um processo cujos dados já foram lançados. A discussão seria, a partir de agora, cogitar ou saber exatamente qual será a cultura que sairá dessa prática nesse novo ambiente midiático daqui por diante.

Por último, o CD não vai acabar porque, como aconteceu com o vinil, vai seguir comercializada em sebos. Sobre os discos raros e abastecimento de catálogos, enquanto pequenos selos ainda se dedicam a lançamentos desse tipo. Além disso, ao contrário do long-play, trata-se de uma mídia fácil de ser pirateada. Muitos não sabem, mas há uma quantidade considerável de counterfeits (imitação de material oficial) circulando por aí. Inclusive, é provável que esse fator seja preponderante para que as grandes gravadoras ainda não abram mão de prensá-los totalmente. Só que, dependendo do produto, a tendência é que CDs em sebos passem a terem valor de raridade, custando mais. Mas isso é assunto de daqui para o futuro. 


  

Referências

CINCO razões que explicam porque o CD se tornou obsoleto. Veja, 23 set. 2019. https://veja.abril.com.br/cultura/cinco-razoes-que-explicam-por-que-o-cd-se-tornou-obsoleto/#:~:text=Por%20quase%20duas%20d%C3%A9cadas%2C%20o,na%20estante%20que%20os%20LPs . Acesso em 22 de abril de 1500.

MILLER, Daniel. Consumo como cultura material. In: Horizontes Antropológicos, ano 13, n. 28, p. 33-63, jul./dez. 2007.

MONOCULTURA Musical: como e por que a música sertaneja se tornou popular de norte a sul do Brasil. TAB UOL, 5 out. 2020. 

WITT, Stephen. Como a música ficou grátis: o fim de uma indústria, a virada do século e o paciente zero da pirataria. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2015.

VICENTE, Eduardo. Música e disco no Brasil: A trajetória da indústria nas décadas de 80 e 90.  São Paulo, 2002, 349f.. Tese (Doutorado em Comunicação) – Escola de Comunicações e Artes, da Universidade de São Paulo,