Saturday, December 14, 2019

Medo e delírio em Ipanema

Capa da edição brasileira


Um jovem jornalista hamburguense obcecado por uma canção vai para o Rio de Janeiro em busca do seu ídolo: essa é a história de Ho-ba-la-lá: à procura de João Gilberto.

Confesso que desconhecia o livro, lançado em 2011. O fato do autor, Marc Fischer, ter morrido pouco antes da sua publicação aumentou mais o mistério de sua leitura, ainda mais pelo fato de que João também partiu, em julho deste ano.

O enredo tem uma estrutura tão original quanto batido: a citação de Gay Talese, nos agradecimentos, já mostra a influência do papa do Novo Jornalismo. Ao ler o livro, é impossível não lembrar da antológica reportagem da Esquire, “Frank Sinatra está gripado”, de 1966. Também vê-se ecos do jornalismo gonzo do Hunter Thompson de “Medo e delírio em Las Vegas”, até pela parceria meio maluca do protagonista, um repórter metido a Sherlock com um parceiro, uma amudante à guisa de Watson, e que faz toda a assessoria a Fischer, com sua quase intransponível barreira do alemão.

O diálogo com Talese está cifrado no fato de que, da mesma forma que na matéria sobre Sinatra, o repórter está imbuído de uma singular missão: tentar travar contato com um artista avesso à imprensa e à jornalistas. Aliás, avesso a todos. Seu círculo de contatos pode ser contado nos dedos. Nem pessoas que mantém contato  amiúde com João Gilberto – o porteiro do edifício da Carlos Góis, no Leblon, e o cozinheiro responsável pelo repasto diário do compositor-cantor –  conseguem falar com ele.

Como acontece com Talese, ao perceber que o contato com a fonte principal é improvável, ele procura por pessoas que mantiveram contato com o criador da Bossa Nova nos últimos sessenta anos: Roberto Menescal, Marcos Valle, João Donato, Miúcha, Joyce, Claudia Faissol, Lulu, Ruy Castro, Nelson Motta, Jorge Cravo, Miele, Anselmo, Otávio Terceiro, Garrincha, Toshimitsu Aono (quem lhe introduz a música de Jreconstrói a trajetória de João em flashbacks.
oão), Ricardo Cravo Albin, entre outros. A partir daí, ao longo da história, Fischer

Depois de esquadrinhar o Rio de Janeiro, Marc Fischer resolve ir à Diamantina, onde o autor de “Bim-bom” viveu por um período sabático, na casa da família de sua irmã, e que, na concepção do repórter, aquele foi o momento em que João Gilberto teve uma epifania final: aprendeu a lidar com sua angústia e a usar a música a seu favor, para o seu grande retorno ao Rio, para finalmente vencer como artista.

A sensação curiosa em ler Ho-ba-la-lá: à procura de João Gilberto é a de como se Fischer, depois de ler o clássico “Chega de Saudade – A história e as histórias da Bossa Nova”, de Ruy Castro, ele resolvesse, vinte anos depois, retomar os passos do autor, e tanto repassar aqueles episódios capitais na história de João quanto reatualizar a trajetória do violonista. Porém, se em alguns pontos ele parece retomar bem essa trajetória, em outros, a despeito de ter conhecimento do conteúdo do livro de Ruy, ele acaba incorrendo em pequenos deslizes.

Por exemplo, trocar o nome de Haroldo Barbosa ao citar “Prá que discutir com madame”, aparentar desconhecer fatos notórios ao perguntar à sua assistente, por exemplo, em é Miéle (claro que é possível entender que ele deve fazer isso como licença poética para explicar ao leitor de seu livro informações que este pode desconhecer) ou, pior, repetir o mesmo mito (já desbaratado e esclarecido por Ruy Castro) de que Tom e Vinícius tivessem se conhecido no Vilarino por intermédio de Lúcio Rangel e que Jobim, na ocasião, tivesse perguntado por “um dinheirinho”.

Talese está nas páginas do livro justamente por conta desse expediente de, ao não ter acesso à João, ele constrói o perfil de seu ídolo. E Thompson também assombra Ho-ba-la-lá: à procura de João Gilberto porque, em sua busca, Marc Fischer interpreta ele mesmo, em meio a digressões e bebedeiras, entrevistas inusitadas e experiências em pontos históricos da história da Bossa Nova. Em sua demanda, Fischer parece que vai ao Brasil empreender a missão de sua vida: travar contato com João ou, ao menos, ouvi-lo cantar.

Ao mesmo tempo, ele ouve tantas histórias que fica em dúvida daquilo que pode ser verdade e o que pode ser lenda em torno de João. Por exemplo, descobre que ele é uma pessoa envolvente, e que é capaz de sugar a virtude das pessoas que vivem ao seu redor, como se fosse um...vampiro. Essa imagem vampiresca e esse círculo impenetrável em parte provocado por João, que por décadas viveu recluso, lhe passam uma imagem sombria de João e que transcende qualquer perfil que tenha sido escrita a respeito dele até então. Ou que, ao contrário que Ruy Castro afirma em seu livro, o violonista continuava um usuário de maconha.

Depois de muitas peripécias, e contato com duas ex-mulheres de Gilberto, Cláudia Faissol e Miúcha, Fischer começa a entender que a barreira que o separa de João é intransponível. Cláudia lhe mostra fotos recentes de João: é o máximo que ele pode chegar dele. Num lance desesperado, já no fim da sua viagem ao Brasil, ele manda um regalo ao seu ídolo numa frasqueira e deixa seu número de telefone num papel. É quando, numa madrugada, ele recebe uma ligação; alguém canta “Ho-ba-la-lá”. Fischer não sabe se é trote ou era o próprio João na linha.  Então o livro acaba, abruptamente.

Fischer retorna à Alemanha naquele mesmo fim de 2010. Logo depois concluir a redação do livro, ele comete suicídio. Sua morte aumenta ainda mais o mistério em torno do livro. Ano passado, o cineasta Georges Gachot lançou um filme baseado no livro póstumo de Fischer, “Onde está você, João Gilberto?”.

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