Thursday, September 20, 2018

Invadindo o Éter

Wolfman Jack


Quem assistiu ao filme American Grafitti, ou “Loucuras de Verão”, (1973) clássico da New Hollywood e primeiro grande êxito de George Lucas, travou conhecimento com um personagem que, mesmo sendo secundário na trama, vale por quase um filme, que é Wolfman Jack.
Aliás, consta que o futuro diretor de Guerra nas Estrelas havia concebido como projeto inicial a realização de um documentário sobre ele. Assim como muitos adolescentes do começo dos anos 60 que viviam na Costa Leste americana, era impossível não ser jovem sem conhecer e ouvir o programa de Wolfman que, durante 1962 e 1964, inicialmente, era transmitido pela mexicana XERB.
Por sinal, o filme brinca também com a lenda de Wolfman Jack. Todos escutavam o programa, mas ninguém sabia quem era. Na história, podemos saber que os pais dos adolescentes americanos execravam o disk-jockey, alegando que fosse negro (talvez pela ênfase no rock ou no rhythm’n blues).
Em geral, o protótipo do DJ ideal aos olhos dos papais e mamães deveria ser algo como Dick Clark e a música respectivamente um água morna como Frankie Avalon ou Johnny Tilotson. E ainda nos anos 60, Wolfman insistia naquele rock da década anterior, tão execrado e jogado no índex. Além disso, não as sabia a partir de onde Jack transmitia. O sinal de sua rádio era tão forte que era difícil deduzir.
Daí decorria toda a sorte de hipóteses, e uma é levantada no American Grafitti, que é a de que o programa fosse transmitido de um avião que voava em círculos. A tese é divertida, tanto que, por muito tempo, realmente muitos ouvintes deveriam acreditar nesses disparates.
A verdade é que a XERB era situada na fronteira do México com o Texas. Ao contrário do que se poderia pensar, não era uma rádio pirata; ou seja, ela operava de acordo com a lei.
A questão é que, situada em determinado país, ela tinha outro por alvo. Um exemplo clássico é a extinta rádio Luxemburgo. Situada na Europa Continental, ela visava as ilhas britânicas numa época em que todo o serviço de rádio era estatal. Com mais de mil kilowatts, ela extrapolava a área de atuação, transmitindo para todo o continente. Ela era o magno exemplo do que em inglês se intitulava de “border blaster”, a explode-fronteiras.
A Luxemburgo teve o auge nos anos 60, por transmitir programas para o público jovem, inclusive, nos anos 50, retransmitindo gravações do DJ Alan Freed. Sua influência durou o tempo que o AM teve o seu auge na Europa (o FM levou mais tempo para florescer na Inglaterra do que nos Estados Unidos, por exemplo, quando começaram as primeiras transmissões experimentais na faixa, de forma comercial, ainda em 1967.
Mesmo que a Luxemburgo fosse uma rádio legal, para os britânicos ela era pirata, pois a emissora extrapolava um nicho que era eminentemente estatal, como nas transmissões de domingo. O problema é que além dela, havia outras, como a Andorra, a Monte Carlo, junto com outras que, por sua vez, eram piratas mesmo, como a Caroline, que irradiava a partir de um navio fora de águas territoriais.
O caso da fronteira dos Estados Unidos com México é outro problema de disputa. Mesmo legalizadas no México, elas transmitiam para o território ianque. Mesmo que o governo americano as repudiasse, muitos políticos e igrejas americanas usavam border blasters para atingir o público de língua inglesa.
O que tanto o Reino Unido quanto Washington conseguiram com o tempo foi restringir a prática de retransmissão de sinal produzido dentro de seus próprios respectivos domínios: assim, era proibido usar qualquer estúdio autóctone com link para uma estação estrangeira retransmiti-la.
Além disso, mesmo que, de forma manifesta, o público-alvo fosse estrangeiro, no entanto, essas emissoras vendiam o peixe como se o alvo fosse a audiência do próprio país de origem.
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caso de Wolfman Jack é notório não apenas por aparecer como uma espécie de moldura no enredo de Loucuras de Verão como ao demonstrar a influência dessas rádios de fronteira na cultura jovem do começo dos anos 60. Uma emissora como a XERB, situada em Ciudad Alcuña, é o típico exemplo de border blaster.
Ela tinha uma potência monstruosa, 250 kw — capaz de rachar na época na União Soviética de noite, e cobrir toda a Costa Oeste americana até o Canadá. Para se ter uma ideia, se uma emissora de Montevidéo transmitisse nessa potência em onda média, ela seria audível no Rio de Janeiro ou arredores sem problema algum.
Ela funcionava com horários locados, ou seja, não havia preocupação de uma programação específica. Poderia o ouvinte escutar um programa religioso (com direito a pastores pedindo dinheiro aos fiéis via correio) e, depois, algum DJ tocando rock (sob a chancela de todo o tipo de produtos estilo placebo, prometendo desde corrigir disfunção erétil quanto emagrecimento progressivo ou combate a caspa ou queda de cabelos).
Mas certamente o mais exótico da experiência de ouvir as borders era o amálgama de estilos numa playlist que ia de Hank Williams até John Lee Hooker, passando por Huey Smith, Joe Tex, rockabilly para todos os gostos e doo ups como Del Vikings, Elegants, Regents, Platters (a própria trilha sonora do filme é uma quase experiência de ouvir um programa do Wolfman Jack com as suas hilariantes intervenções ao telefone), tudo vindo pelo éter de uma rádio de outro país. Não havia limites, rabo preso e payola no sentido de direcionar a programação para o sucesso. Era preciso uma emissora de fora, com um DJ americano, para transmitir a “verdadeira” música jovem ianque numa época em que a separação racial e o preconceito musical dividia o dial norte-americano.
Wolfman, e outros disc-jockeys como Dr. B ou Huggy Boy dividiam a XERB com todo o tipo de apresentadores: feiticeiros, pastores, cartomantes, todos vendendo produtos, crucifixos, poções. Jack vivia dos anúncios, e podia então tocar nas pick ups o que lhe desse na veneta. Desta forma, tanto eles quando ele mesmo ficaram milionários explorando as border blasters.
Claro que muitas dessas rádios ainda existem, embora muita coisa tenha mudado. A lei mexicana baniu praticamente todo o serviço religioso não católico no dial, ao passo que as blasters hoje buscam mais o público chicano nessa região dos EUA (mais de 10 milhões de pessoas) nos Estados Unidos do que a garotada ianque que, há tempos já havia migrado tanto para o FM quanto para a MTV.
Por isso, a XERB, hoje XPRS, saiu das fronteiras do rock em favor de um cardápio musical mais a rigor, com mariachi e arredores para o público das cidades grandes da Califórnia, como Los Angeles, onde a programação é gravada e transmitida desde o México para aquele estado americano. Esse público é o alvo das remanescentes blasters da região de Tijuana, cerca de nove em onda média e cinco Fms. Ao invés de vender elixir para queda de cabelas, eles anunciam desde Seven Up até Mc Donald’s. Outros tempos.
Nos de Wolfman Jack, as autoridades mexicanas eram bem permissivas quanto à qualidade do conteúdo dos programas: segundo ele, para você bastava pagar as taxas e transmitir os programas estatais; em contrapartida, você podia fazer o que quiser diante do microfone. Isso também significava relevar qualquer serviço público ou até mesmo os ouvintes da região de transmissão. Afinal, o alvo era ianque ou até além. 

Wolfman Jack conta que, em noites frias, bastava molhar as antenas a fim de obter mais magnetização, e era possível chegar rachando no som em Chicago (Motown, Chess) ou na antiga União Soviética, algo notável para uma época quando não havia internet e a onda curta, além de como se sabe ter uma recepção tributária do dia, da hora e da posição do sol, ela em geral na esfera dos governos, dever manter uma programação mais controlada e voltada para formação (?) dos seus ouvintes.
As borders começaram com o surgimento da rádio comercial, nos anos 30. Porém, foi com a eclosão do rock, nos anos 50, que elas passaram a ganhar espaço por buscarem o público jovem. Nesse momento, elas tornaram-se ao mesmo tempo outsiders e mainstream. Mais do que isso, enquanto rádios “brancas” empurravam Pat Boone para a patota, ela podia ligar nas emissoras X e encontrar R&B. O próprio pessoal de Chicago, que paradoxalmente tinha seus discos banidos da programação local, ouviam Muddy Waters e Marvin Gaye de noite por conta das border blasters. O próprio ecletismo dessas históricas transmissões acabaram influenciando tanto o gosto da audiência quanto o estilo das bandas que surgiriam naquela região, misturando tex-mex com blues, hillybily e a aurora do rock, quando o gênero ainda estava identificado com a cultura jovem.
Enfim, eram DJ que agiam como lobos solitários, não tinham respaldo de grandes anunciantes, não militavam em grandes rádios, mas tinham considerável autonomia na programação e influência decisiva em vastas regiões dos Estados Unidos. No caso de Wolfman Jack, mesmo que não declaradamente, ele era o anti-Dick Clark, o anti-estabilishment, o anti-bunda-molice; mesmo antes de alguém usar o termo contracultura.