Thursday, December 19, 2019

Pequena história da música de Natal


Capa do A Christmas Giftfor You (1963), disco coletivo produzido por Phil Spector, clássico do gênero natalino



Para fins desse blog, aproveitando o ensejo das festas de fim de ano, das quais infelizmente não faço parte, pensei em alinhavar uma brevíssima pesquisa sobre as origens e a história das músicas de Natal. Então, à guisa de periodização, pensei em separar essa apresentação em partes: 1) Idade Média; 2)  Dos primórdios da imprensa (1450) até o século 19; 3) do século XX, com a indústria da música e do disco, até hoje.

Eu então começaria dizendo que parece óbvio dizer que o começo está na difusão do cristianismo na Europa. O Cristianismo, na Idade Média, de certa forma, iria mostrar às pessoas em geral uma espécie de mundo interior que ele ainda não havia conhecido. Esse movimento para dentro de si fez com que eles olhassem as coisas de forma diversa de como olhavam antes. A arte musical iria, dessa forma, permitir esse movimento e, ao mesmo tempo, fazer com que eles exteriorizassem sentimentos de integração social através da religião. Pode-se dizer que em momentos especiais do ano litúrgico, como no caso do período adventício, essas práticas se exacerbavam.  

Então eu chegaria até o Século IV: tradicionalmente atribui-se a Ambrósio de Milão a promoção do canto antifonal, um estilo no qual um lado do coro responde de forma alternada ao canto do outro, e também a composição do Veni redemptor gentium, uma antífona que poderíamos chamar de um dos, se não o primeiro hino natalino.

É importante ressaltar que, nesse momento, essa produção estava nas mãos da Igreja. E a Igreja possuía uma divisão do tempo chamada “horas canônicas”. 

Desta forma, havia um ofício específico que devia ser observado pelos clérigos durante o dia, onde em cada respectiva parte fixa do dia são realizadas tarefas específicas, como orações, leituras, etc. Assim como existiam as horas canônicas,eles mudavam em parte em determinados períodos do ano. Naquele tempo (séculos 4 a 7 depois de Cristo) e depois, a parte ‘natalícia’ compreendia o tempo adventício, do dia 1º de dezembro até a véspera de Natal. Muito do simbolismo do Natal, e que pode-se ver até hoje, é tributário do simbolismo da comemoração do advento: as bolas vermelhas dos arranos, as quatro velas, a coroa de louros (que foi depois plasmada em outros símbolos, como a guirlanda). A música, por sua vez, celebrava as figuras do advento: Isaías, o profeta; José, João Batista e São Estevão, cujo dia é 26 de dezembro. O Sederunt Princeps, por exemplo, cântico a quatro vozes (que é citado por Umberto Eco em O Nome da Rosa), composto por Perotin lá por 1200, em Paris (quando ele era associado à chamada Escola (musical) de Notre Dame (que foi redescoberta recentemente por músicos minimalistas dos anos 1970) que, naquele tempo, estava em construção) pode ser considerado um tipo de música adventícia (na verdade, pós), mas associada ao período natalício, ou seja, uma  “proto” música de Natal.

Contudo, essas antífonas e motetos eram compostos a partir de textos em latim. Atribui-se a Francisco de Assis, já no século 13,  a popularização de cânticos natalino em vernáculo, justamente num período em que a própria poesia (primeiro os occitanos, depois Dante e Petrarca) começava a ser produzida em linguagem vernacular. Este pode ser considerado a virada, quando cantigas de Natal passam a serem difundidas entre o povo, na Europa da segunda metade da Idade Média (a baixa Idade Média).

Nessa pesquisa, eu não poderia esquecer, por exemplo, de um abade inglês, chamado John Awdlay, do século 15. Nessa época, ele compila várias cantigas de Natal num códice (uma coleção de canções sob o mesmo tema)  composto de 25 cânticos de Natal, e que originalmente entoados por vassalos pelas ruas e casas de aldeões,  mais ou menos como nós vemos hoje, ainda aqui, no interior ou no litoral, com os ternos de Reis.  

Seria importante anotar também que, nos séculos seguintes, esses cânticos tornam-se cada vez mais populares. Com o surgimento da impressão (desde a partir dos principais centros, como Veneza, Paris e Nuremberg), esses cânticos se difundem pela Europa continental.

No século 17, a Revolução Puritana bane os festejos de Natal. Porém, após esse interregno, anos depois, na Era Vitoriana assiste-se a um novo interesse a respeito de cânticos de Natal. Nessa época surge uma nova leva de canções temáticas, como "Silent Night", "O Little Town of Bethlehem", ou "O Holy Night". Esses novas canções aqui já passam a tematizar, pela primeira vez, a figura de São Nicolau, ou Papai Noel.

Deve-se também salientar que, nessa época, ocorre a difusão de livros contendo cânticos de Natal. Igrejas da Inglaterra, Europa e de outros países passam a adotar cada vez mais esses cânticos. Ao mesmo tempo, surgem canções que fogem à relação estritamente direta com temas do Natal religioso.

Essas cantigas têm um estilo mais secular, e estão cifradas mais dentro do universo familiar e nacional de cada país, ou seja, ocorre, a partir da segunda metade do século 19 uma progressiva secularização dos cânticos de Natal.

No campo da música clássica, mesmo com a diminuição da influência da Igreja nessa produção musical, muitos compositores dedicam-se á temática natalina. Como exemplo, podemos citar o Oratório de Natal, de Bach (BWV 248), Virga Jesse Floruit, de Bruckner, L'enfance du Christ (1853–54) de Hector Berlioz, o Oratorio de Noël (1858), de Camille Saint-Saëns e o balé Quebra-Nozes (1892) de Pyotr Tchaikovsky.

No terreno popular, cabe acrescentar à uma possível pesquisa que, entre os séculos 19 e 20, surgem centenas de cantigas que tematizam o Natal, como "The First Noel", "Go Tell It onthe Mountain", esta originalmente um negro spiritual, "O Christmas Tree" (O Tannenbaum) e "Jingle Bells". A partir de então, surgem músicas de Natal com autoria definida além de pesquisadores de antigos cânticos medievais, como Ralph Vaughan Williams (1872–1958), que passam a divulgar aquelas canções em livros e com partituras. Essas canções já eram publicadas desde o século XV. Porém, com a popularização da imprensa, a partir da segunda metade do século 19, livros como Christmas Carols, New and Old (Bramley and Stainer, 1871) desempenham um papel capital na difusão das músicas do passado e a consolidação da prática do cântico (caroling). Esses livros, impressos de alcance popular, de forma a estabelecer (e abastecer) o repertório de corais e de igrejas em todo o mundo. Essas publicações continuam sendo impressos e divulgados hoje. 

Com o surgimento de editoras musicais, como ocorre nos Estados Unidos, entre o fim do século 19 e o 20, a partir do Tim Pan Alley, a ascensão de compositores especializados e associados à essas editoras, além da massificação dos espetáculos da Broadway e a popularização da fonografia, a canção de Natal entra numa nova fase. 

Temas como "Santa Claus Is Coming to Town" (Fred Coots e Haven Gillespie, de 1934) ou “White Christmas” (Irving Berlin, 1941, que vendeu mais de 50 milhões de cópias do single na voz de Bing Crosby), com o advento da indústria cultural, tornam-se sucessos massivos, vendendo magotes de discos, tanto nos Estados Unidos quanto em todo o mundo, e rapidamente ganham várias e diversas interpretações, também em gêneros diversos. Os próprios gêneros, de forma cada vez mais segmentada, passam a desenvolver canções natalinas: um exemplo é como o rock se apropriou da temática, com sucessos como"Let It Snow! Let It Snow! Let It Snow!”, "Winter Wonderland," ou "Sleigh Ride". Já com o desenvolvimento do long-play, a partir dos anos 1950, artistas dos mais variados estilos passam a gravar essas canções. 

Com o novo formato do disco, o álbum conceitual natalino torna-se uma espécie de tradição: todo grande intérprete ou grupo grava, pelo menos em algum momento de sua carreira, um disco temático de Natal, que viram uma febre: Freddy Quinn, Júlio Iglesias, Frank Sinatra, Elvis Presley, Johnny Cash, Bob Dylan e a inesquecível Simone, entre outros. 

Importante ressaltar numa pesquisa sobre o tema que, porém, a maioria das canções hoje populares — e que tocam em comerciais, em sistemas de som, na televisão e na Internet afora, em geral remontam ao período relativo entre o século 19 e começos dos anos 1920. 

A maior parte delas, de certa forma, também têm esse desempenho pelo fato de estarem livres de direitos autorais. Em geral, a maioria delas, somadas aos mais conhecidos cânticos, perfazem o que poderíamos chamar de o cânone das canções de Natal, e que, a despeito de serem de origem europeia ou norte-americana, possuem versões para diversas línguas. 

Pois a partir dos anos 1950, a característica das “novas” canções de Natal mudam, ganhando contornos românticos, usando apenas o motivo do Natal como ponto de partida. Ao mesmo tempo, dentro dessa retematização, surgem músicas que exploram características diversas ao estilo de cântico, apelando ou para o humor, o extremo romantismo ou o absurdo (novelity songs): canções que falam do cotidiano dos feriados de Natal e de seus signos, a neve, voltar para casa, troca de presente, esquiar no gelo, o inverno, Papai Noel chegando pela chaminé, bonecos de neve, a “rena do nariz vermelho”, a meia pendurada na lareira, etc. Como exemplo, é possível citar "The Little Drummer Boy" (1941), "Let It Snow! Let It Snow! Let It Snow!" (1945), “Jingle Bell Rock” (1963),  “Blue Christmas” (1957), “Boas Festas” (Assis Valente, 1933). No caso brasileiro, o disco de “Boas Festas”, interpretado por Francisco Alves, também se tornaria um fenômeno de vendas, e isso numa época em que a indústria do disco sequer começava a ciciar.

Da segunda metade do século passado em diante, embora cifradas como canções natalinas, a produção do gênero se caracteriza por estar bem distante do que se convencionou como modelo ou cânone. A temática é, desta forma, apenas uma licença poética. Exemplos não faltam. "Christmas (Baby Please Come Home)” com Darlene Love, do famoso A Christmas Gift for You from Phil Spector, disco que passou batido na época de seu lançamento, mas hoje, junto com o Christmas Album, do Elvis, são dois casos de álbuns natalinos que viraram clássicos.

Aliás, um parêntese: quando Elvis lançou esse disco, o autor de "White Christmas", Irving Berlin, como homem da indústria do disco, fez de tudo para que o disco e o cover fossem banidos das rádios. A estratégia, além denão ter logrado êxito, não deixava de ser curiosa: a versão do cantor para a canção de Berlin era muito parecida com a dos Drifters, lançada em 1955. Ou seja, isso mostra que o compositor se moveu mais pelo preconceito do que pelo arranjo, já que a versão dos drifters fez grande sucesso entre as rádios "negras" dos Estados Unidos, quando então não ocorreu nenhuma sanção contra a gravação daquele grupo. 

Outros exemplos de canções "modernas": "Pretty Paper", com Willie Nelson, "My Favorite Things", do musical A Noviça Rebelde, sucesso com as Supremes (depois recriada por John Coltrane, mas em outra proposta totalmente diversa), a tocante "River" do disco Blue, de Joni Mitchell e "Happy Xmas (War Is Over), com John Lennon e a Plastic Ono Band, apenas para citar alguns.

Por fim, a pesquisa poderia dar conta de adaptações e ou recriações de  canções natalinas. É o caso, por exemplo, de “Go Tell it to the Mountain”, transformada em música de protesto com os Waillers (cantada por Peter Tosh), além da versão de Simon e Garfunkel, do disco Wednsday Morning 3. A.M, e a versão do duo para “Silent Night” (“Silent Night”/7 ‘o Clock News”), esta também como canção de protesto, numa montagem sonora em que a música é cruzada com o áudio de uma resenha jornalística de tevê que fala da Guerra do Vietnã e da morte do comediante Lenny Bruce.

Enfim, para fazer uma pesquisa sobre músicas de Natal, é possível tanto contar uma breve história, pegando esses elementos e outros mais, sendo possível desenvolver mais alguns tópicos quanto, de outra forma, especializar-se em um ou outro tópico, falar dos carols clássicos, ou das canções mais recentes, ou falar das músicas religiosas, ou apenas das profanas, ou do Natal em música clássica. Várias possibilidades de abordagem podem ser feitas a partir daqui.


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