Thursday, November 22, 2018

A Tempestade: pós colonialismo e o 'Brasil invisível'


Batalha da Guanabara, 1560

A adaptação de Otello, o Mouro de Veneza para a ópera por Verdi (1887 libreto de Arrigo Boito) sempre nos provoca a atenção por causa da sua abertura, que se dá em meio a uma tempestade, e essa cena, como um começo, me parece de um efeito dramático impressionante.
É bem sabido que Verdi (1813-1901) era um grande fã do bardo inglês. Tanto que, segundo consta, em sua vila, sua biblioteca se resumia a uma cópia do Lohengrin, do Wagner, e a obra completa do autor de Hamlet.
O que me chamou a atenção foi que, sabendo dessa influência do Shakespeare no compositor da La Traviata está plasmada em sua obra. Além de Otello, Verdi montou Macbeth (1847) e Falstaff (1893), sua derradeira obra, baseada nas Alegres comadres de Windsor e Henrique IV partes I e II.
Na verdade, esse nariz de cera é porque areditamos que essa abertura de Otello, fruto do libreto, foi inspirada, de certa forma, no primeiro ato de A Tempestade (1610-11).
Verdi não adaptou essa que é o canto do cisne do dramaturgo elisabetano. No entanto, dentro das possibilidades poéticas da recriação artística, dentro da teoria que Volcato (2007) chama de palimpesto, poderia estar dentro das diversas influências da peça shakespeareana, motivo de debate desde hoje.
Em sua tese, Volcato vai mais além das chamadas teorias pós-colonialistas, que observam como a escritura de A Tempestade se relaciona com uma época em que a Europa havia não apenas descoberto o novo mundo como repercutivo, através da imprensa (ou de livros) um considerável número de escritos que lidam com o imaginário da era das descobertas.
A teoria do "palimpesto" não tem o objetivo de buscar citações manifestas dentro da peça mas, sim, analisar todo o contexto histórico, tando da era dos descobrimentos, sua repercussão no Velho Mundo (textos como De orbe novo, de Erasmo, ou de Peter Marty e Montaigne, (Sobre os Canibais).
Mais do que isso, o autor pretende em sua tese preencher o que ele entende como "lacunas" que existem nos estudos sobre as influências de Shakespeare em A Tempestade. A sua teoria é a de que o autor inglês conhecia as biografias tanto de Carlos V quanto de um personagem conhecido dos brasileiros, Nicolas Durand de Villegagnon.
Villegagnon, personagem que teria sido redescoberto tardiamente pelos franceses, antes de fundar a França Antártica, em 1554, já era cavaleiro da Ordem de Malta, diplomata, almirante da Bretanha (afundado vários navios ingleses na região) e foi uma espécie de condottiere (mercenário) ao ajudar nobres católicos escoceses a resistir contra a Inglaterra, além de ser responsável pelo rapto da pequena Maria Stuart (futura mãe do rei James, fato que não passaria despercebido por Shakespeare) para a França.
Como observador de campanha, ele acompanhou Carlos V em sua vitória sobre Argel, tendo escrito um relato sobre a expedição, Carolus V Imperatoris Expeditio in Africam ad Argeriam, que foi amplamente difundida na Europa em várias linguas.
Para Volcato, muitos desses relatos sobre guerras e naufrágios dialogam com a concepção de A Tempestade, mesmo que a ilha de Próspero fique em lugar diverso (nas caraíbas).
Ele demonstra que, a despeito de que os primeiros estudos sobre a peça façam uma leitura "metalinguística" (uma peça falando da representação de uma história, algo recorrente em Shakespeare), teorias pós-colonias vêem o enredo como engendrado à todo aquele imaginário.
Caliban, por exemplo, seria anagrama de "canibal", o discurso de Gonçalo sobre uma utopia de um novo mundo ou da relação de Próspero com Ariel e Caliban, personagem que é interpretado por muitos analistas como o protótipo do autóctone irascível, Ariel é vista como o espírito do bom selvícola.
Contudo, além de tais estudos, que fazem parte do quabra-cabeças do palimpesto que está por trás de A Tempestade, Volcato entende que imagens, fatos, geografia, muitas coisas da peça estão interligadas à Carlos V e Villegagnon.
Falando em Mary Stuart, Volcato diz que, mesmo que não seja possível querer cobrir toda a cronologia. Se ela foi raptada com três anos (1545). Se somarmos dize anos, temos 1557, ano da segunda chegada de Villegagnon na França Antártica.
Quando Próspero e Miranda chegam à ilha, Ariel foi libertada depois de doze anos. Com quinze anos, Miranda pretende desposar Ferdinando, filho de Alonso, rei de Nápoles. Com a mesma idade, Mary casava com o delfim filho de Henrique II, que foi o rei que mandou Villegagnon para estreposto colonial no Brasil.
Ao mesmo tempo em que busca revelar tais indícios, o autor tenta demonstrar que Shakespeare, dentro da sua própria agenda, estava omitindo elementos do novo mundo (do Brasil ou da América como um todo) por não ver razão em descrever um novo mundo que não era inglês, embora tratem-se de especulações a respeito dessa 'invisibilidade' da América, que parece falar mais pela "ausência" no texto.
Já sobre o pequeno texto de Carolus V Imperatoris Expeditio in Africam ad Argeriam, Villegagnon observa o uso primitivo de algeirs (depois a terra de Sycorax) ou a constante utilização da palavra "tempestade" no relato.
Os cvaleiros de Malta, por sua vez, são mencionados cinco vezes, entre eles Ferrante Gonzaga, vice-rei de Nápoles. Ele, entre outros, a mando de Carlos V comandou o ataque à Argélia em 1541 e, invetido por Carlos, conquistaria o título de governante de Milão até 1554.
Passagens de Villegagnon, por sua vez, teriam similaridades com o retorno de Túnis e uma tempestade que seria aquela que Shakespeare criou no começo de A Tempestade. Ao contrário da peça, muitos pereceram nessa tempestade, e Villegagnon foi testemunha dessa efeméride.
Muitos diálogos da peça, ao mesmo tempo, parecem representações de personagens europeus, no entanto, como observa o autor, parecem falar de uma outra realidade, que ele entende que parecem inspirados pelos relatos sobre geografia, modos descritos pelo frei André Thevet, cosmógrafo do rei da França, quando em missão nas cotas brasileiras.
Já respeito de possíveis relações de nomes ou lugares em Shakespere, muitos críticos mesmo entendendo que o vate inglês não fosse muito preciso com relação à geografia (como nas alusões em Noite de Reis, por exemplo), há muitas possibilidades, no campo das cogitações, de que a ilha de Próspero, dadas as leituras do autor de Rei Lear de André Thevet e de que o protótipo da ilha de Villegagnon seja a França Antártica.
MaIs: nomes de personagens como Ferdiiando e Alonso mais parecem nomes de nobres detentores de cargos nas américas ou de reinos ou ducados da Baixa Europa, numa curiosa hibridização dos personagens em sua caracterização.
O que o autor acredita é que, desde o século XVIII até hoje, os estudos focam o imaginário do local onde a peça ocorre fica nas caraíbas, ou no Mediterrâneo, mas nenhum cogitou o Brasil.
Sobre a escravidão, Volcato entende que, na épca de Shakespeare, a prática havia sido tornada corrente naqueles tempos, mas não se desenvovera nas colônias inglesas senão de forma embrionária, pelo menos na época do bardo elizabetano. Logo, Ariel seria o tipo de "escravo" ou seja, um servo que trabalhava para um senhor por um determinado tempo.
Ao mesmo tempo, ele entende que havia, ao longo do no século XVII, um discussão a respeito de como a sociedade da época via a prática da escravidão, ora legitimada por fontes (como a Política de Aristóteles), ora quesionada pelo fato de não possuir nenhuma base legal, e essa questão estaria, de certa forma, poste em debate em A Tempestade, na figura de Caliban e Ariel.
Um exemplo que Volcato julga sintomático dessa 'invisibilidade' do que seria essa possível localização da ilha de Próspero como situada em terras sul-americanas ele busca em The Tempest Critical essays de Patrick Murphy.
Este autor liga Montaigne ao trecho de Ferdinando como um personagem cuja caracterização parece estar numa feitoria (citações de Miranda e Ferdinando sobre pilhas de madeira para consumo ou fogo), provavelmente especializada no corte e expotação de madeira (presumivalmente o pau-brasil). Do contrário, por que haveria de, no enredo, Caliban de ser tão necessário para o corte de madeira num país tropical como o Brasil (daí a razão do título da tese de Volcato).
Por fim, o que é o cerne do seu pensamento aqui é entender e problematzar, junto com possíveis paralelos históricos na esxritura da peça, essa recorrente 'sublimação' da imagem da experiência da exploração européia em terras sul-americanas, experiência que fora transcriada de forma subliminar na pena de Shakespeare (a partir de todas as possíveis fontes disponíveis na época sobre o tema dos descobrimentos, em crônicas e livros em geral, disseminados pela Europa) e da forma como essa visão européia foi, durante muito tempo e a partir dali, tratada de forma "subliminar" (como uma 'espiral de silêncio', usando uma figura da teoria de comunicação, um desagendamento temático proposital ou negligente), e que isso não pode ser mais negligenciado depois de analisar-se a figura proeminente de Villegagnon e da França Antártica nesse quebra-cabeças.
Próspero, como místico e nobre, em sua ótica parece possuir elementos do lado “negro” de Agrippa, escritor místico ligado à Carlos V, com elementos de Villegagnon em seu respectivo lado negro, como o Caim das américas (relacionado signicamente com Caliban), dado à suas polêmicas religiosas entre o catolicismo e calvinismo na França Antártica. Ambos, aliás, divididos entre credulidade e ceticismo.

Sobre questões do novo mundo e a teoria da invisibilidade do Brasil, Volcato diz que, assim sendo, se essa invisibilidade foi criada, reproduzida e perpetuada na peça, conscientizar-se desse fenômeno nos permite exorcizar esse elemento oculto. Da mesma forma, diz ele, ser capaz de reproduzir a possibilidade da existência desse Brasil invisível em A Tempeestade é perceber que temos em Shakespeare 'ecos' não apenas os primeiros americanos nativos mas os primeiros escravos afriicanos também.
Quando ao trabalho, diz o autor, além de dar conta da existência até a presente data de lacunas na percepção dos críticos e também até a respeito da nossa compreensão do processo criativo do bardo inglês e seu manejo de fontes e (seus processos criativos), relações com a realidade histórica da época ora manifestas ora ocultas e, mais especificamente, entende Volcato, sobre o nascimento de A Tempestade, sua pesquisa pode contribuir para que o Brasil “fique menos invisível para os críticos mais insignes de William Shakespeare”.


BIBLIOGRAFIA:
VOLCATO, José Carlos Marques. Pilling up logs in a brave new world: Brazilian invisibility abroad the genesis of Shakespeare's The Tempest. PortoAlegre, 2007.
SHAKESPEARE, William. A Tempestade. Tradução de Beatriz Viegas Faria. LPM, Porto Alegre, 2002.


Wednesday, November 14, 2018

Sonata de Outono



Acordo súbito de madrugada com o ruído do telefone. Achei que fosse hora de acordar, mas eram apenas duas e meia.

Pego o telefone, pronto? Era Beatriz. Me deu a dolorosa nova às duas e meia da manhã, depois de uma ligação do Antônio, soube de um nosso amigo comum: meu amigo Ricardo morreu atropelado saindo de Taquara quando vinha de surpresa para o casamento (casamento da Beatriz, marcado para o feriado), teria dito Antônio, responde Beatriz, aos prantos.

Mal conseguia falar. Ouvia ao fundo as vozes da irmã dela e da mãe, eis que o noivo dela pegou o gancho. Nervoso, tentou me contar o que ouviu que tinha ocorrido. Disse que o Ricardo parou o carro na estrada e estava tentando ajudar um homem que estava preso nas ferragens em outro acidente quando foi colhido por um caminhão bi-articulado. Teve morte instantânea, confirmada pela Polícia Rodoviária.

Me levanto me sentindo pesado, quase fora do meu corpo, do tempo e do espaço. Tento tomar café, sei que não vou mais dormir mesmo. Resolvo ligar para um amigo comum nosso mas, por um ato falho, acabo ligando para o número de Ricardo.

Ele atende. "Fala, xará (ele sempre me chama de xará, não sei o porquê). Estou na estrada, daqui a pouco eu chego". Espero amanhecer. Ato reflexo, escovo os dentes. Depois, faço espuma para a barba.

Me olho no espelho mas vejo Ricardo. Ele me ri e puxa conversa: "sabe, cara, é engraçado, Há coisa de uns dez anos atrás, eu tinha outra vida, vivia em função de futilidades, enfim, bobagens. Depois que me apaixonei, foi como se toda a minha vida anterior tivesse perdido o sentido.

Foi como se eu, depois dos trinta, tivesse virado adulto. Mas, ao mesmo tempo, me senti inseguro. Sabe? Parecia que eu estava entrando num outro mundo, onde eu queria ser uma pessoa melhor. E eu fiz de tudo para ser uma pessoa assim. Mudei de vida, joguei fora todo o peso extra daquela vida anterior. Mas tinha muito que aprender. Precisava provar para mim e para ela que eu a merecia, era uma batalha pessoal minha.

Mas nosso romance foi breve, e nós nos separamos. Em 2008, lembro que fui no casamento de um parente em Pelotas.

E eu era aquela pessoa posterior, pronta para a festa da vida, com beca e tudo, mas eu me sentia como se eu estivesse vestido como noivo para um casamento onde eu era apenas um convidado. Eu era o único sozinho naquela noite.

Mas eu estava feliz. Me sentia abençoado porque, mesmo só, ela estava dentro de mim, em meu pensamento. Eu ainda estava apaixonado. Tempos depois, eu a procurei, mas ela estava com outro. Então fui embora. Consegui um emprego em Taquara. Peguei os restos de mim. Lembrei do Rilke.
Eu até dei um exemplar para a Bia.

Ela disse que ia ler, mas não deve ter lido. Certamente emprestou o livro para alguém que nem deve ter lembrado de devolver. Você já leu o Cartas a um Jovem Poeta? Leia, é um livrinho curto, mas muito bonito.

Ele fala ao soldado coisas como ter coragem em sentir-se sozinho, de sentir o estranho que mora em nós. Algo assim, muito bonito, parecia até que ele havia escrito aquelas cartas para mim. Era como eu estava me sentindo naquela época. Lá eu li alguma coisa, um verso, onde ele diz: duro é mudares de vida. Não, não é bem isso. É algo assim... não lembro. Bom, o tempo passou, eu nem senti, eu havia mudado de vida.

Era até engraçado, não me via voltando no tempo. e se eu voltasse, a Bia estaria lá. Mas eu voltava em meus sonhos, e nós andávamos juntos nos mesmos lugares de sempre. Aqueles lugares não tinham sentido nenhum. Mas depois que andamos juntos, eles sempre me evocavam ela. Era sempre uma lembrança doce mas dolorosa, mas boa de sentir.

O tempo passou, eu me lembro de ir naquele casamento, eu era o convidado e ao mesmo tempo me sentia o noivo abandonado no altar. Sabe, xará, se quer saber, vou ser sincero com você. Eu sempre sou sincero com você. Não sinto mais nada por ela.

Sinto apenas que gostaria de sentir de novo aquela sensação avassaladora da primeira paixão. Eu não vou sentir aquilo nunca mais. Não que eu não vá conhecer outra garota e gostar dela. Mas aquela paixão pela Bia, da forma como foi, eu não vou sentir aquilo nunca mais, aquilo acontece uma vez na vida, é como uma epifania.

Termino a barba. Tive que trocar de aparelho porque o que eu peguei estava cega.
Encontrei Luiz, um amigo comum nosso, cedo pela manhã, num café, no centro. Ele sabia do casamento da Bia, falei do acidente. Ele ficou consternado. ia encontrar Ricardo amanhã, já que ele ia passar o feriado na capital. Juntos iam "relembrar os velhos tempos" do tempo da faculdade.

Falou: "como a vida é estranha, não é? De repente, um infortúnio desses acaba nos juntando. Concordei. Nos despedimos, eu fiquei na mesa do bar. Uma senhora senta na mesa ao lado com a filha.

Então chega Ricardo, senta na minha mesa.

Olha para os lados. Sorri: "eu sempre vinha com a Bia aqui. Não, na verdade, a gente veio aqui só uma vez. Ela estava terminando a monografia dela da Pedagogia. A gente marcou de ir na Eduardo Hirtz ver um filme do Bergman, o Sonata de Outono. Eu estava sem dinheiro, era um garoto perdido e pobre que tinha muito o que aprender...

Ele continua:

"Ela estudava, era bolsista, tinha conta em banco, eu tinha sido assaltado na semana anterior e estava sem documentos. Eu não era ninguém e me espelhava nela, achava ela adulta, resolvida, eu era mais velho do que ela mas tinha muito o que aprender. Ela não iria querer um cara como eu era, não é mesmo? Não tinha dinheiro nenhum mas dei o Rilke para ela de presente, foi aqui mesmo, nesse bar. Faz tanto tempo!

Lembro que antes a entrada era por ali e tinha uma máquina registradora daquelas antigas (aponta para o balcão)...sabe, ela pagou o meu café. Me senti envergonhado. Se me virassem de ponta-cabeça, só cairia o óculos. Mas estava tão feliz de estar com ela.

Depois, voltei muitas vezes aqui sozinho, só para lembrar daquele momento. Depois daquele dia, este é um dos lugares mais bonitos do mundo...".

Paguei o café e fui descendo a Andradas. Entusiasmado, Ricardo continuava explicando os lugares onde eles iam juntos, o sebo, a casa de cultura, o museu, a praça.

Antônio me deixa recado no telefone. Retorno o contato, ele me liga. Diz que o enterro vai ser no São Miguel às cinco da tarde. Por deus, que fim! Subo para o expediente da manhã mas souberam da história e me mandam para casa, não estava em condições de trabalhar mesmo.

Olhei o relógio. Eram apenas dez da manhã, um mormaço de novembro. Não sabia o que fazer com aquele dia pesando nas minhas costas. Entrei no Tuim, e fiquei bebendo até o meio-dia. Tinha bebido demais para um dia de semana, fazia um calor insuportável, mas estava me sentindo leve.

Subi a Andrade Neves até a Duque, estava procurando outro lugar para beber cerveja. Àquela altura da manhã, o centro estava repleto de gente, filas, ambulantes, tráfego.

Ricardo me disse que, dois anos depois, eles haviam retornado contato mas, depois que Bia se formou, era como se ela tivesse estabelecido outras prioridades. Achou que era uma fase dela, porém Bia foi se afastando, mas ele custou a entender, se tivesse entendido, não teria sofrido tanto, mas, como ele disse, ele a amava como um amor pueril, e foi um caminho sem volta, não iriam se falar nunca mais.

Era difícil de acreditar, diz ele, falando para mim mas como quem quisesse convencer a um interlocutor que era, na verdade, ele mesmo.  "É assim que as coisas são, não é? Se não, então como haveria de ser? Todo vínculo, disse ele, é um caminho para o sofrimento".

Admirei-me do seu novo espírito metódico. Ricardo havia mudado, trabalhava, sentia-se responsável, independente, e sempre dizia que foi a Bia quem mudou ele e ele era muito grato à ela. Porém sofria, porque o rompimento deles havia sido um ponto sem retorno e o tempo os havia afastado definitivamente.

Dizendo isso, ele parecia exorcizar os fantasmas dele, e isso me deixava feliz por Ricardo; mas eu sabia que ele não havia mudado. Ele queria um dia encontrar uma oportunidade de revê-la, como amigo, e contar essas coisas, e dizer o quando ela foi importante para ele. Então o casamento da Beatriz seria o momento oportuno, pegou a estrada para Porto Alegre, a fim de fazer uma surpresa.

Resolvi não ir ao enterro. Nada fazia sentido naquela hora do dia.  Eu estava cada vez confuso e aterrado, e fazia muito calor. Desci a João Pessoa e vi que tinha sessão no cinema universitário. Era um ciclo do Bergman. Ia passar o Sonata de Outono. Pensei: dane-se, vu ficar aqui e vou ver o filme.

Depois de muita demora, e muito calor, muito embaraçado, o senhor da projeção explica que o ar condicionado da sala estragou, então a sessão teria que ser adiada
.
Mais confuso, voltei à rua, atravessei a João Pessoa. Vi o Van Gogh aberto.  Entrei e, na penumbra, no fundo do salão, longe do estéril turbilhão da rua, pedi outra cerveja. No meio da garrafa, toca o telefone. Era o Luiz, do velório: "cadê você, cara? Tá todo mundo aqui!". Eu: "estou chegando". Agora eu teria que ir.

Saio até a calçada, com o peso do dia nas costas, olho para o curso da avenida, até a cordilheira do morro da Polícia contra o azul fatigado da tarde. Fui até a fila dos táxis,


Ali estava Ricardo à minha espera.

Parecia mudado: mais jovem, alegre, muito bem penteado, muito bem trajado, com um avoengo terno preto e uma flor branca na lapela, como um Proust santo. A corrida foi breve.
No caminho, tentou lembrar de algo como um trecho do Rilke enquanto a Redenção corria devagar do meu lado da janela.

"Por que não pensar que a nossa divindade não é aquilo que está por vir, o que se encontra... não não é isso". Pensou. E tentou novamente: "o que impede de projetar o nosso nascimento nos tempos que estão por vir, de modo a que pensemos a viver a nossa vida como um hino, ou um dia quente e doloroso na história de uma grande gravidez? Tudo o que acontece conosco é um grande começo".

Então chegamos. Luiz tinha razão. Ricardo tinha muitos amigos, estavam todos ai, foi muito comovente.
Ficamos ambos olhando tudo em silêncio. Então perguntei:

- Para onde você vai?
- Vou dormir. E você?
- Não sei - respondi-lhe.
- Adeus, então, xará (mal tentava eu disfarçar as lágrimas).

Porém, antes de partir, estalou os dedos.
- Ah, lembrei daquela citação completa do Rilke.
- Qual é?
- Na verdade, é do Torso Arcaico. É assim: "se não fosse assim, seria pedra e não mera pele de fera, seus limites não encontraria desmedida, como estrela, pois ponto ali não há, que não te mire. Força é mudares de vida".


Sunday, November 11, 2018

Helter Skelter





Fazendo uma clipagem do que saiu sobre o relançamento do White Album. Duas coisas me chamaram a atenção.

Uma foi a repercussão de entrevista do Giles Martin tentando refutar a tese que os Beatles estavam separados durante o processo de produção do disco.

A outra é um texto do Rob Sheffild na Rolling Stone desse mês sobre uma epifania que ele teria tido ao ouvir a versão embrionária de "Good Night"

Martin disse que, ao ouvir todo o material, ficou com a impressão de que, a despeito de brigas entre os quatro, que ele entende que ocorreram, o resultado é um trabalho rico, que seria pouco possível num clima de guerra no estúdio.

Sheffild, ao ouvir o outtake da última faixa do álbum, que John Lennon compôs para Ringo, entende que a canção era, na verdade, uma berceuse para seu filho Julian. O processo de separação dele com a primeira esposa e a união com Yoko era público e notório.

Para Rob, John fez a música para o filho, mas sentia-se fragilizado em tocar ou cantar nela. O processo de elaboração do arranjo, diz ele, mostra, como diz Giles, um momento de união da banda, principalmente no momento em que todos fazem vocalizações juntos.

Claro que, num momento de celebração como este, não convém mexer em velhas feridas. Além do mais, a gente sabe que uma união num conjunto de rock não é um mar de rosas.

Mas é interessante voltar a Abbey Road em 68 lendo, por exemplo, o Complete Recording Sessions, do Mark Lewisohn que, ao contrário da maioria dos biógrafos, resolveu passar o dia-a-dia do quarteto a contrapelo.

É curioso notar que havia tanto otimismo quando eles decidiram embarcar para a Índia. Mesmo que musicalmente produtivo - eles compuseram quase a totalidade do repertório dos próximos discos, o corolário não foi bom, a começar pela comida, que provocou a deserção de Ringo.

Ringo que seria o pivô de uma separação da banda no meio da urdidura do Álbum Branco, mas a sua deserção do estúdio foi, na verdade, o cúmulo e um processo lento que, como mostra Lewisohn ao entrevistar o staff do estúdio naqueles tempos.

Na verdade, ele não foi o primeiro. No começo das sessões, o pai de Giles coordenava a banda mas, com o tempo, viu que eles eram indomáveis. Resolveu sair em férias, e deixou instruções para Geoff Emerick que, em pouco tempo, também largou o projeto.

Nesse meio tempo, por causa de demandas dos Beatles proteladas pela EMI, entre elas uma mesa melhor, fez com que eles, segundo Lewisohn acabassem, mesmo que sem querer, descontando no pessoal da produção. Ou seja, se havia briga entre os quatro, havia ali um cúmulo de situações estressantes - além do lançamento do selo Apple, no meio do ano.

Como qualquer baterista, Ringo era o músico mais requisitado (e sobrecarregado) de quase toda banda. Esse foi um fator de disensão entre ele e os quatro (embora, no Anthology, todos acreditassem que cada um deles, respectivamente, estava sendo subestimado pelos demais).

Ou ele era obrigado a trabalhar de maneira incessante ou, na parte de mixagem, ele realmente não tinha o que fazer nos estúdios. Ao mesmo tempo, o uso contínuo e constante de overdubs fragmentava o trabalho em grupos. Não era uma banda em estúdio, como nos velhos tempos mas, sim, grupos de trabalho enxertando tapes o tempo todo.

O próprio Eric Clapton, quando foi fazer sua parte em "While My Guitar Gently Wheeps", estranhou que, ao contrário do Cream, os Beatles passassem tanto tempo enfurnados gravando. Clapton dizia que ele e seu trio ensaiavam constantemente fora,  gastando pouco tempo em estúdio, como nas velhas bandas de jazz, que gravavam elepês sem mixagens ou ensaios, matando a sessão em poucas horas.

O processo de escolha de George em colocá-lo como músico de estúdio foi, também, como forma de fazer com que John e Paul prestasse atenção em suas canções. Como aconteceria novamente, quando ele convidou Billy Preston, a banda resolveu comportar-se bem.

A maioria das faixas mostra quem eram os produtores. Se Martin trabalhou com eles, sua participação data de 23 de agosto, justamente quando Ringo foi comprar cigarros e não voltou. Nesse meio tempo, tiveram que revezar-se em faixas como "Back in USSR". Ele retorna justamente na noite em que a banda apresenta-se no programa David Frost, e grava os promos de "Revolution" e "Hey Jude".

Por outro lado, se havia brigas entre os quatro, esse processo de compartimentação de trabalho protelou o que seriam as sessões do documentário Get Back, que foram a gota d'água do que vinha acontecendo há meses.

Ken Scott, que ficou encarregado de tomar conta dos rapazes com a defeção branca do politiburo da produção, diz que, quando ficou a sós ao ser apresentado à Paul McCartney, ele respondeu: "é você quem vai ficar conosco? Então tudo bem mas, se não quiser ficar, então foda-se".

Com os Beatles no comando, o disco ficou menos "refinado" se comparado às produções de Martin. Na filosofia deles, parecia haver sempre um ponto de não retorno. O próximo disco não poderia ser igual ao anterior.

A própria capa é a ausência de significação ou parece ser a significação pela ausência de algo ou "algos", isso algo que fica em aberto para o ouvinte (quando discos tinham capas e havia arte nelas, enfim).

Com isso, o restante das sessões foi cada vez mais autoral, mas as faixas parecem ser o tempo todo paródias ("Back In USSR") ou auto-paródias ("Glass Onion") humor negro dylanesco ("The Continuing Story of Bungalow Bill", "Happiness is a Warm Gun") ou imitação de outros estilos, como vaudeville ("Martha My Dear", "Honey Pie"), english blues ("Yer Blues", um gênero que passou ao largo da carreira dos Beatles) e hard rock (Helter Skelter"), quando não John imitando Paul em "Good Night" ou o contrário ("Why Don't we Do It on the Road?), talking blues ("Rocky Racoon"), folk ("Blackbird") e experimentalismo com música concreta ,ou seja, um disco liricamente ao avesso de tudo o que eles haviam feito.

 como que um prelúdio à carreira solo dos quatro. John compondo coisas cada vez com a cara dele, como "Yer Blues", "Julia" e "Dear Prudence" e Paul tentando ser o "one man band", George com seu lirismo indiano e Ringo entronado como um crooner.  Suas colaborações aqui pareciam já desenhar o que eles fariam com o fim da banda.

Scott fala que eles reclamavam constantemente do equipamento dos estúdios, o que os fazia requisitar o Trident, que tinha, na época, uma mesa melhor. Em dado momento, John teria descontado a raiva no staff mas, depois, voltou a si e completou: "desculpe, não e como você, é com eles (o pessoal da EMI).

A despeito do clima aparentemente alegre em Esher, quando da gravação dos demos do White Album, parece que ao entrar em Abbey Road, o estresse era realmente constante.

O que não quer dizer que não existissem afetos entre eles, como nas sessões de "Birthday", quando tudo virou celebração, com direito a drogas lícitas, ilícitas e muita loucura ou nas conhecidas fotos do Mad Day Out, a sessão de fotos (de junho de 68) que mostra os Beatles quatro meninos felizes por estarem juntos, como no começo da carreira, talvez pela última vez.

O Mad Day Out parece, na carreira deles,  um exemplo sintomático que, se havia amizade entre eles, havia a certeza que aquela era da inocência estava morrendo e eles não podiam fazer nada contra isso, a não ser, encarar a vida adulta. É possível que isso, no campo das conjecturas, fosse esse motivo inconsciente de cisão, um reencontro que era, na verdade, uma despedida.

Quando eles retornaram para fazer seu último trabalho, tanto os quatro quanto George Martin e Emerick estavam ali como que comissionados do que como um grupo.

Dessa vez, eles não eram a outra banda, a do Sargento Pimenta, mas estavam fantasiados de Beatles para seu canto de cisne.

Claro que é um processo triste que ocorreu na vida de todos eles, de todos os envolvidos no processo. E como disse acima, a celebração do meio século do disco não seria o momento propício para comentar desses 'baixos'. Mas, ao contrário, isso de certa forma nos conforta, pois mostra o quanto eles eram humanos e tão próximos da gente. Que venha outros 50 anos.


PS: o box irá agradar aos fãs em geral porque muita coisa que aparece como outtake era desconhecido até pelos bootlegers mais empedernidos. Outros fãs, mais roxos, irão estranhar mudanças deliberadas em certas faixas do disco original, como os mixes de "Wild Honey Pie" e de "Long, Long, Long".