Thursday, December 27, 2018

O Código de Hamurabi

Estela do Código, no Louvre


Hamurabi é lembrado por causa do seu código, famoso por causa da lei de talião. Mas além da lembrança das aulas de história do Fundamental, ele foi mais do que o legislador do “olho por olho, dente por dente”.

Mas ele foi bem mais do que isso, como lembra Emmanuel Bouzon, num excelente livro sobre o Código (1987). Além de estrategista e conquistador, 

Hamurabi foi um grande administrador: foi responsável pela reconstrução e ornamentação de cidades vencidas, estabelecendo templos para os deuses locais.

Também foi responsável pela regulagem do curso do Eufrates e construção e conservação dos canais de irrigação numa terra que, como bem lembra Edward McNall Burns (1983), as técnicas desse jaez deveriam ser muito mais complexas do que no Nilo, por exemplo.  

Aliás, por mais paradoxal que possa parecer aos detratores da lei de talião, Bouzon postula que o monarca babilônico foi o seu senso de justiça que o consignou como um dos mais importantes reis do mundo antigo.

O Código

Embora muitos livros (escolares, em sua maioria) atestem, o Código de Hamurabi não é o mais antigo: no terceiro milênio, já havia um códex de um legislador chamado Urukagina. No entanto, suas tábulas versavam mais a respeito de costumes do que propriamente de normas legais.

Em Ur, posteriormente, foi encontrado o corpus jurídico mais antigo, atribuído a Ur-Nammu, em Ur (2111-1094 a.C). O de Hamurabi, porém, em sua época, foi o mais difundido, como é possível perceber nas várias reproduções do texto em tábulas e na famosa estela do Louvre, descoberta por arqueólogos franceses.

Nessa estela, é possível vislumbrar a imagem do monarca recebendo o código de um deus, Samsa. No fim, o texto reitera a observância das leis constantes, e a maldição àqueles que as desrespeitarem.

É importantes observar, como diz o autor, que o Código deve ser entendido como um texto literário, antes de mais nada. Em segundo, apesar de ter uma conotação mítica (ter sido dada aos homens por um deus), muito do que está na lei também reside no universo e na tradição literária do Oriente Antigo.

Ou seja, se com os olhos de hoje a lei de talião nos escandaliza, também cabe ressaltar que esse tipo de legislação estava situada num determinado contexto em que havia a necessidade de controlar um contingente populacional que vivia cifrado numa cultura onde a lei de talião seria menos funesto que viver sem nenhuma lei. 

Se por um lado, em nosso imaginário, Hamurabi seja sinônimo de punição desmedida, por outro, como está plasmado no prólogo e no epílogo da estela, a finalidade do Código está em naturalmente punir quem deve ser punido e intervir, pela mediação sagrada do monarca, em favor da justiça e da ordem da comunidade (1987, p. 28).

Mas mais do que um código, a estela, como bem observa Bouzon, não deixa de transparecer um caráter propagandístico do rei. E o apelo à autoridade que o texto exalta, segundo o autor, tem um caráter mais moral do que propriamente legal. Porém, se formos esquematizar o Código numa perspectiva casuística, podemos resumir o seu corpus, sefundo o autor, da seguinte forma:

1-5: penas impostas em delitos praticados num processo judicial.
6-126: direito patrimonial.
127-195: direito de família
196-214: penas para lesões corporais (aqui entra a de talião que, segundo Bouzon, foi introduzido por atavismo de grupos nômades que estavam na aurora da dinastia de Hamurabi).
215-140: direitos e deveres de classes profissionais.
241-277: regulação de preços e salários.
278-282: leis complementares e sobre a propriedade de escravos.

A despeito do título de codex, o texto não possuía a intenção de ser uma suma, da forma como entendemos uma legislação moderna Como lembra Bouzon, muitas questões passaram ao largo do Código, ou seja, a despeito de serem julgadas pelos tribunais babilônicos, não constavam necessariamente nas tábuas.

Mas, tanto como texto literário (e fonte primária de pesquisa) quanto como lei, o Código permite, e esse é o grande legado de seu texto, vislumbrar como era a sociedade babilônica daquele tempo: o palácio convergindo todas as atividades do reino, uma burocracia centralizada, o governo detentor de grandes faixas de terra (embora não fosse um reino totalmente estatizado), uma economia essencialmente agrícola – e onde os súditos também trabalhavam nos campos reais.

As classes eram divididas em três: o awilum, o cidadão, que ia desde um sacerdote até um famélico camponês. O muskenum, um indivíduo pobre, em situação “de opressão” e os escravos propriamente ditos. Estes, geralmente oriundos de guerras ou escravizados por dívidas, podiam ser resgatados a partir de três anos (importante lembrar que o resgate também aparece no Deuteronônio).

A família era patriarcal, embora a poligamia e o concubinato fossem permitidos. O que não era diferente dos “tempos de Abraão”, como representação de uma figura patriarcal que, como no exemplo do Gênese, tinha uma concubina como escrava (Agar). No entanto, o Código de Hamurabi buscava observar uma salvaguarda de proteção à esposa original contra possíveis abusos por parte do marido ou dos filhos.

O Código também mostra que, apesar de uma economia agrícola, havia a pesca e a criação de animais. A Babilônia de Hamurabi também produzia manufaturas, como perfumes e cosméticos,cujo excedente era trocado com povos vizinhos por metais e madeira, estes muito escassos na Mesopotâmia.

Com o tempo, a figura do comerciante (tamkarum) foi tornando-se cada vez mais desenvolvida, e sua atividade passou a ser controlada pelo estado, na medida em que ele se transformava em banqueiro e financiava expedições comerciais pelo crescente fértil afora. Estas, por sua vez, podiam ser feitas por caravanas ou por barco.

Leis que vão, por exemplo, da 35 a 55 (e além), estão bastante cifradas na questão do uso e do destino de terras devolutas ou pomares, em caso de venda, arrendamento ou abandono, o que mostra a importância capital da questão do uso do campo na sociedade babilônica.  

As leis constantes nessa parte do texto com efeito nos mostram perfeitamente como era o cotidiano do uso e dos costumes na utilização da terra naquele tempo.

Outra questão: prata e cevada eram moedas de troca comuns. Negócios, comércio, compra e venda, tudo deveria ser feito com testemunhas, sempre nas portas da cidade (que era o lugar onde esse tipo de trato ocorria, podemos lembra do livro de Rute, no Velho Testamento, quando Boaz compra a terra de Elimeleque). Qual quer negócio, observa o Código, não realizado mediante testemunhas era considerado escuso e qualquer parte poderia ser condenada á pena capital.

Importante lembrar que, numa sociedade daquele tempo, utensílios de metal, como foices ou machados, eram de uso pessoal, facilmente reconhecíveis pelo seu respectivo dono. Eram valiosíssimos e frequentemente podiam ser objeto de furto. Se um awilum fosse acusado de manter utensílios de outrem, aquele que foi roubado poderia acusar o ladrão.

Contudo, a garantia da posse de determinado objeto dependia da testemunha. Naturalmente, aquele que possuísse um utensílio sem prova testemunhal era réu de juízo, e passível de pena máxima, a morte.

Uma curiosidade são os capítulos 108 e 109, que referem-se à conduta de taberneiras. O 108 refere-se à fixação do preço de venda de cerveja. O 109, mais curioso ainda, refere-se à possibilidade de “malfeitores” estarem reunidos na taverna, possivelmente tramando algo contra o rei ou o estado. 

Nesse caso, a lei exige e é imperioso que ela conte o que ouviu (isto é, como espiã, ela deve saber do que eles estariam tramando) e revele ao palácio a natureza da conversa, sob pena de morte.  

Já 195-6 demonstram a lei de talião. Filho que agride o pai terá a mão decepada (na lei bíblica, a pena é de morte). O 196 é o famoso olho por olho: “se um awilum destruiu o olho de outro awilum, destruirão o seu olho”. 

No entanto, é importante observar que esse “olho por olho” variava de classe: um homem livre que “quebrasse um osso” ou “dente” de um homem pobre (muskenum), a pena podia ser paga em dinheiro (em prata, o cálculo era por uma mina de prata, cada uma equivalente a meio quilo) ou açoite (202-205). Ou seja, pena de lesão corporal podia variar de acordo com a classe do agressor e do agredido em questão.

Hamurabi (1810-1750 a.C) tornou-se o primeiro rei babilônio ao conquistar a Acádia e a Suméria a partir de Ur. Sua cidade ficava em Al Hillah, hoje um sítio arqueológico a pouco menos de cem quilômetros de Bagdá. Quando conquistou Mari, ele fez a ligação territorial de Ur ao sul com o Levante, a oeste.


A babilônia assim nasceu de uma cidade que tornou-se um pequeno estado a partir do terceiro milênio. Com a dinastia amorita, ela eclipsou Nippur auto-proclamando-se a cidade santa sucessora da avoenga Eridu. 

O reinado de Hamurabi representaria o auge do império Paleobabilônico, que não resistiu á sua morte, quando suas terras foram conquistadas pelos assírios. A babilônia teria uma “renascença” com os neobabilônios caldeus, entre 612 e 529. A partir dali, os domínios do antigo império caíram em mãos de aquemênidas, selêucidas, romanos e por fim o império sassânida, até a conquista final, pelos sarracenos, na Idade Média. 


Referências:

BOUZON, Emmanuel. O Código de Hamurabi. Vozes, 1987.
BURNS, Mc Nall Edward. História da Civilização Ocidental. Globo, Porto Alegre, 1983. 

Sunday, December 16, 2018

Olhai os Lírios do Campo, 80 anos


Erico Verissimo

2018 marca os oitenta anos do Olhai os Lirios do Campo, do Erico Verissimo. O livro foi um sucesso em seu lançamento, e tornou-se desde então um dos mais vendidos em toda a sua carreira literária. Nas suas memórias, ele nunca soube entender muito bem a razão do sucesso do volume. Ao mesmo tempo, com o tempo, passou a ser um crítico da escritura da obra, achando-a por demais, ingênua ou até inverossímil na caracterização do protagonista, Eugênio.

Interessante observar a popularidade que esse livro teve. Erico ganhou um bom dinheirinho com a venda dos direitos para a adaptação em filme ( Mirad los Lírios del Campo, filme dirigido por Ernesto Arancibia, roteirizado por Tulio Demicheli e Mariano Perla) e pôde até saldas velhas dívidas do tempo de farmacêutico em Cruz Alta. Ele conta, em suas memórias, que uma leitora estava inconsolável ao saber que, na verdade, Olívia nunca existiu. Outro senhor, ao encontrar Verissimo em Portugal, em 59, revelou que seu filho virou médico depois de ler o livro.  

Acho que muito do sucesso e do afeto por parte dos leitores deve-se pela forma como ele abordou os personagens principais. Eugênio que era um médico que tinha um trauma da origem pobre, e que conheceu uma colega de medicina que é uma espécie de eterno feminino na história, a Olívia. Ela morre no começo e isso gera um anticlímax. A personagem principal morre na metade do livro!

Eles se amaram mas ele quis casar uma moça do café-society porto-alegrense, que vive ente saraus e  clubes de leitura. Enfim, se casa pelo dinheiro, pela fama, vira um títere nas mãos do sogro.  Mas ela permanece na vida dela como lembrança.

Ela morre mas essa ausência dela se transforma numa presença dela sob a forma de legado que faz com que ele desista daquela vida fútil, daquela busca pela fama e pelo dinheiro (clichê que depois o Erico iria criticar, no prefácio dos 30 anos da publicação do livro) e, como um franciscano, ele vira um médico popular.

Ele muda a visão de mundo dele, torna-se um médico humanitário, e essa mudança também ocorre quando ele descobre que Olívia tele uma filha com ele.  E a Olívia é uma personagem que, depois de morta, permanece sob a forma de memória.

Esse é o grande wit do Erico, esse eterno feminino de como ela, através das cartas dela que ele encontra, e das lembranças das conversas que tiveram juntos, aí ocorre esse processo de individuação do protagonista.  Olívia é um ser beatífico.

No fim, ele diz que foi ou que conheceu Fausto, Hamlet e Pigmalião. Aí a gente nota a genética do texto: Eugênio é Fausto porque vendeu-se pela glória e o dinheiro. É Hamlet porque ele ele é um ser indeciso, é uma pessoa que protela o que ele deve fazer, tomar as rédeas da própria existência. E Pigmalião porque, ao se casar com a ricaça. ele aceita ser um My Fair Lady às avessas, um pobre que vira rico ao bel prazer da esposa. Essas são as referências explícitas. Mas há as apócrifas. 

Ao mesmo tempo, eu vejo, nesse eterno feminino, o mito da Beatrice do Dante. Ele, como o poeta, teve que descer para obter a purificação, e a jornada de ambos é de purificação. Eugênio tem essa epifania quando ele cai no inferno da vida de médico dos pobres, e ele o desfile de horrores, isso é bem mostrado no livro. E como Dante tem Virgílio, Eugênio tem o Dr. Seixas.

Ele é um cara lúcido mas ele não é capaz de atingir esse estágio de individuação que Eugênio consegue.  E ele consegue por causa da Olívia morta, como Beatriz, que Dante conheceu, ele a reconheceu no Purgatório, e que lhe conduz até o último círculo do céu.

E é uma viagem de profecia, porque Dante acreditava que era preciso que os homens se convertessem, e Eugênio, a partir de Olívia, postula justamente o versículo do Novo Testamento que dá nome ao livro. Essa é a mensagem que ele quer passar agora como um homem despido daquela vaidade e orgulho que, vamos dizer assim, o afastou da 'verdade' e de Olívia.

Olívia, como Beatriz, é a transitividade absoluta para Deus. Eugênio não acredita em Deus diante de tanta desgraça. Olívia faz com que, ao olhar a vida, ele veja Deus (tema de Deus é recorrente na obra do Erico, por sinal, um agnóstico).  Olívia e Beatriz são dois caminhos para o encontro de uma compreensão superior.

Dante julgava que seria possível chegar a Deus pelo intelecto, mas só através do amor é que ele é capaz dessa ascensão. O que a razão não era capaz de atingir, o amor era, Beatriz era o caminho para atingir o inatingível. E é esse último céu o que move o sol e as estrelas. Esse signo do firmamento (no Erico como signo de contemplação) e o sol (como de renovação, do novo dia) é recorrente.

Mas em Dante, esse encontro se dá num plano divino (daí Divina Comédia) enquanto em Eugênio ele se dá pela descoberta das cartas, e pelo plano da mnemosine, da memória, a musa grega que luta contra o esquecimento.

E no livro do Erico existe esse embate constante entre esquecimento e memória, de como as coisas passam e as pessoas esquecem, como Felipe Lobo inaugura o Megatério e sequer lembra da filha morta. Ao mesmo tempo, Eugênio vê que Olívia vai ser fatalmente esquecida por todos. Tem um personagem, um médico russo que, ao morrer, diante de Eugênio, quer doar o dinheiro para um hospital para a construção de um setor para que esse setor ganhasse o nome dele como benemérito.

É um exemplo dessa luta contra o esquecimento. Ao mesmo tempo que, depois de morta, Olívia permanece em Eugênio como uma presença ausente, mas que não é motivo de remorso, mas de exemplo, de um espírito beatífico que vai estar ao seu lado nas belas lembranças e nos olhos da filha deles. Acho que é por esses motivos e tantos outros que o livro chegou aos 80 anos mais vivo do que  nunca. 

Tuesday, December 11, 2018

A Eneida e a outra Lavínia

Enéias e Iulo com Vênus ao fundo



Acho que a Eneida foi o primeiro épico que eu li na vida.  Eu devia ter uns doze anos. Eu explico.

Eu estudava nas Dores e eu tinha uma crush; ela se chamava Lavínia. Um dia eu devo ter pesquisado em alguma enciclopédia a origem do nome dela e descobri que ela era a noiva prometida do herói troiano. Isto é, descobri que tratava-se de um nome de origem literária. Naquele tempo, era comum achar na biblioteca aqueles exemplares da coleção calouro, da Ediouro.

Essa coleção consistia de adaptações de clássicos da literatura para um público infanto-juvenil. Havia uma para leitores um pouco mais velhos, a Elefante e outra para quem estava no Superior, que era a Coleção Universidade. A única coisa que elas tinham em comum era que os livros da ediouro, à medida em que nós gastávamos o exemplar, as folhas iam descolando.

Dessas edições, eu li desde o Dumas pai ao Victor Hugo, Mark Twain, Julio Verne e havia os épicos traduzidos para jovens, a Eneida e a Odisseia. Por muito tempo, eu tive comigo a versão da Odisseia, reescrita pelo Orígenes Lessa. Esse foi o volume que me ligou a vida toda com a leitura de épicos. Me lembro do meu afã em adquirir toda a Calouro, mas não cheguei a ter muitos não.

Eu comprei na Aurora a Ilíada da Universidade Ediouro, mas confesso que nunca li. No entanto, orgulhava-me em ver o livro na minha estante. Era em forma de prosa. Eu, que tive a Ilíada e nunca havia lido até anos depois,  achava que o poema contava toda a guerra de Troia.

A Eneida era uma versão de um cara chamado Alfred Church feita pelo Miécio Tati. Imagine que um piá de doze anos não tinha a menor ideia de que era uma recriação de um grande épico. Para mim, era uma história de aventuras, como os Três Mosqueteiros ou os Irmãos Corsos.

Digo isso porque, mesmo hoje, depois de fechar o volume com o texto original em versão bilíngue (não sei latim taoquei?) e na verdade ficar coma lembrança daquele livrinho o tempo todo. Não sei por que, mas acho que aquela leitura me marcou mais do que essa. Diferentememente de Homero.

Na minha opinião, é sempre uma novidade a cada leitura, a cada versão, até que nós encontremos a ideal. Tinha a do Church com o Lessa mas a leitura do texto original suplantou aquela aventura anterior.

Na verdade, devo confessar que eu tenho uma bronca com a eneida, ainda mais depois de ler e relar Homero. Acho, e todo mundo sabe, que o poema do Virgílio é uma emulação sem fim da Ilíada. Os primeiros cantos, quando ele foge da destruição de Tróia, lembram a Odisseia. Os últimos, quando ele se une a Evandro para conquistar a Alba Longa, a Ilíada.

A Ilíada de Enéias é lutar com os latinos contra os rútulos, que também queriam expulsar os troianos da região. Evandro confia Palante, seu filho, ao heroi, porém ele é morto por Turno. A morte de Palante lembra totalmente a de Pátroclo, uma morte funesta e que e plenamente vingada pelo protagonista, quando Enéias vê parte da armadura do rapaz em Turno, decide matar o suplicante Turno, já desenganado como opositor ao filho de Vênus.

Esse é outro problema na Eneida. O poema termina abruptamente com essa cena. Pra mim, é como se a Odisseia acabasse com o massacre dos pretendentes. Falta em Virgílio um epílogo à Eneida. Muitos não consideram o poema incompleto, mas falta alguma coisa. Ao contrário do estranhamento que muitos sentem ao terminarem a Ilíada, esperando pelo cavalo de pau.

É fácil explicar: o proêmio de Homero já delimita o poema à ira, que é a primeira palavra. Quando Aquiles devolve o cadáver de Heitor, a ira acaba. Se Homero fosse descrever a tomada de Tróia, ele estaria extrapolando o que ficou combinado no canto às musas.

No caso de Virgílio, acredito que, como na Odisseia, seria cabível um epílogo, onde tudo ficasse rearranjado. Acho que nenhum escritor que contasse aquela história terminaria a Eneida daquela forma. O próprio Virgílio declarou que seu épico deveria ser destruído, porquanto estava incompleto. Ele sabia disso, embora muitos o considerem irretocável.

Sobre a Eneida, o crítico literário Arnold Hoog é implacável. Sabendo que o neoclassicismo fez com que sociedades modernas buscassem suas origens em Roma. Sobre isso, ele rejeita qualquer raiz romana na cultura francesa. Citando Michelet, ele entende que a França é filha de si, não de Roma, dos massacradores de gauleses. Ele afirma que os franceses nunca foram romanos, mas sua raiz é céltica, é qualquer coisa, menos romana.

E desce a Eneida na porrada. Chama-a de pseudomitologia, de palavrório.  E entende que, por muito tempo, a literatura francesa foi tributária do que ela achava ser descendente latina. Fala que a verdadeira mitologia francesa é Tristão e Isolda, o Parzifal, Lancelote, não a Eneida.  Não cita diretamente Virgílio, mas dispara: “uma impotência congênita de imaginação valeu-nos essa mitologia de pobres, sem relação com os mitos, esse material de alegorias frias e secas, em que nada mais resta que se relacione com o destino do homem”.

Hoog diz que, sempre que quiseram vincular a França com os latinos, se deram mal. Cita Voltaire, Anatole Framce. Diz que quem recuperou a alma mercurial céltica foram os românticos, os simbolistas e surrealistas.  Esse imaginário que aparece em Chrétien de Troyes, a ‘matéria da bretanha’, ele entende que é cognato não aos romanos, mas à Grécia órfica, e que chegou aos francos através de cristianismo.

Mas é claro que a Eneida tem os seus lampejos de originalidade. Tanto que Dante achava isso. Embora, como lembra o Bernard Knox, o autor da Divina Comédia nunca pôde ler Homero, e esse foi o outro exílio dele. Morreu longe de Florença e virgem de Homero, embora cite os heróis gregos em seu poema.

Virgílio pegou aquele limão, que foi a fuga de Enéias, e liga com a fundação de Roma, um herói derrotado mas que, ao contrário dos gregos, cumpre um destino, sob a égide de sua mãe, Vênus contra Juno, e a gente se lembra que as duas estavam em campos diversos em Homero. A briga continua em Virgílio, que põe Enéias em plena ação, debaixo de uma tempestade, até chegar em Cartago, a inimiga secular da Roma Republicana.

Para Dido, ele conta a sua história, aqui já vemos a lembrança de Homero, com Odisseu na terra dos feácios, quando o protagonista vira o narrador. Seu percurso até a Alba Longa é o percurso do herói, é Odisseu, resumido nos primeiros seis cantos.

No livro VI, ele chega ao templo de Apolo em Cumas, hoje Nápoles. Ali, ele pede à sacerdotisa para rever Anquises no Hades ou Orco. Aqui há também outro momento que lembra Homero. No Hades, Anquises faz algo impressionante: ele junta presente, passado e futuro, mostrando sua descendência até Otávio Augusto, o imperador mecenas de Virgílio. A partir dessa visão, Enéias tem a certeza do seu destino, exatamente no meio da epopeia que, a partir do livro VII, vira a Ilíada latina, quando ele vai lutar contra os rútulos.

Virgílio termina/deixa o poema incompleto com a morte de Turno. Muitos entendem o final como irretocável. No fim da odisseia, que é modelar para o autor romano, após a morte dos pretendentes, temos a cena do reconhecimento de Odisseu por Penélope e o pacto de não agressão entre a descendência dos pretendentes mortos e o herói, pacto franqueado por Palas Atena.

Acho que Virgílio intencionava fazer algo assim à guisa de epílogo (embora o poema esteja enfeixado perfeitamente em doze cantos, o que contestaria minha teoria) mas, depois da vingança sobre Turno, Eneias abdica o trono da Alba Longa em favor de Iulo, cujos descendentes serão reis, até a fundação propriamente dita de Roma (753 antes de Cristo), filhos de Marte com a genealogia de Enéias.

Essa versão, que aparece com Fabio Picor ainda no século III, ou seja, Virgílio tinha conhecimento desse mito, que poderia ter entrado como epílogo, embora no livro VI, o leitor já tenha tomado conhecimento do destino de Roma pela profecia de Anquises.

Uma curiosidade: há um trecho da Eneida em que o Virgílio fala de Dólon, o troiano que foi espionar os gregos e foi pego na tampinha pelo Odisseu e Diomedes, que matam ele. Ele topou ir espionar para ganhar os cavalos de Aquiles. Aí cita essa cena, que é do livro X da Ilíada.

Uma coisa que Virgílio não sabia obviamente, e virou discussão homérica a partir do século XIX, é que o livro X da Ilíada na verdade é uma adição ao poema, ou seja, não é Homero. Tanto que se tirar o X, o poema não perde nada de essencial

Também porque a cena do livro X se passa durante a noite, e Homero é um poeta do dia, toda a ação da Ilíada se passa de dia, da Odisseia também. Essa é uma das hipóteses que faz com que homerólogos achem e tenham certeza que o X é apócrifo, uma adição posterior

Mas enfim, o Virgílio cita esse trecho, para ver que essa tese é recente. Na época dele, acreditava-se que X fosse original.

E tudo isso por causa da Lavínia das Dores.


Thursday, December 06, 2018

Tragédia e História: Ésquilo e o elogio da pólis grega



 
Orestes mata Egisto, na Electra de Eurípedes


Regina Zilberman tem um estudo na coletânea de ensaios O Tempo e o Vento - 50 Anos que trata do livro do Erico Verissimo mas a análise que ela faz da Oresteia me fez reler a trilogia do Ésquilo e repensar uma outra forma de analisar a história. 
Como diz ela o dramaturgo opera com elementos que podem iluminar relações entre história e poesia. Num primeiro momento, ele faz a crônica da da aurora da época heroica da Hélade e seu fim, na democracia de Atenas. 
 Imaginei que, para um estudo, fosse possível tentar encontrar elementos históricos na peça, que mostrassem o mundo micênico da tragédia, de Agamemnon e Orestes, e cotejá-la com a época do século V, da isonomia, do nomos, da democracia que aparece na última parte. 
Então, no seu enredo, ele espelha, de forma interessante, esses dois mundos, o ocaso do mundo do direito privado e a aurora do direito coletivo e público, celebrado como o elogio da pólis.

Mesmo encontrando elementos que marcassem bem aquela época dos heróis, a verdade é que os homens do século V não tinham noção do que foi realmente aquele tempo histórico. Houve um colapso, no fim do século XII, que marcou o desaparecimento de todo um mundo que havia naqueles costados do mediterrâneo. 
Por exemplo, a invasão dos Hicsos no Egito foi, na verdade, um pequeno episódio de diásporas impressionantes seguidas de desaparecimento de culturas e de civilizações do oriente próximo naquele período, o ocaso da idade do Bronze. 

Vidal Naquet diz que, se por muito tempo acreditou-se que A Ilíada e a Odisseia representavam um retrato fiel do que seria o mundo micênico, a arqueologia e a escrita Linear B tornam hoje essa hipótese insustentável.

Para ele, os poemas podem conter elementos atávicos que os ligariam historicamente ao que seria a  tal época dos heróis, mas que, no tempo em que o poeta compôs as duas narrativas, toda aquela civilização estava totalmente esquecida.

Desta forma, Vidal Naquet entende que esses poemas homéricos constituem testemunhos de seu próprio tempo, ou seja, o século VIII. E sequer poderiam ser considerados retratos fiés daquela época. Da mesma maneira, em Ésquilo, aquela recriação do mundo micênico era, à sua maneira, a forma como aquela época via e entendia o passado, ou seja, são representações.  
Claro que a arqueologia dá pistas sobre como, em parte, poderia ter sido aquele mundo. E que a vida social girava em torno do palácio, cujo soberano exercia um papel religioso, político, militar, administrativo e econômico.  

Ao abordar a Oresteia, Regina Zilberman diz que, ao contrário de Homero, de cuja Ilíada e Odisseia são parte do ciclo de Tróia, é Ésquilo quem narra a história da guerra de Tróia de forma abrangente, articulando suas causas e consequências e a presentando-a, do começo ao final.


 A Oresteia


A Oresteia é parte de uma tetralogia. Na época das tragédias gregas, o dramaturgo apresentava uma tetralogia, sendo três tragédias e uma comédia. Ou seja, a comédia que foi composta junto desapareceu. 

Agamêmnon, a primeira parte da trilogia, é quase toda dedicada à rememoração do conflito e seus antecedentes. Nos diálogos e nos cantos corais, diz a autora, a ação retrocede, voltando ao conflito entre os irmãos Atreu e Tiestes, depois a mirte de Ifigênia em Áulis, que Clitemnestra acusará o marido de matar a filha, assassinando-o por traição na sua volta, perpre3tando o ciclo de mortes na família. 

Nas Coéforas, vemos o retorno de Orestes, dirige-se ao túmulo de Agamemnon. Um grupo de mulheres vai até o local e verte libações a mando de Clitemnestra. Entre elas, ele reconhece Electra e vice-versa. Juntos, decidem vingar-se do herói morto, com o beneplácito de Febo Apolo. No fim da peça, Orestes mata a mãe, Orestes e a irmã separam-se e o deus pede ao jovem que parta suplicar no templo de Apolo e depois ser julgado em Atenas.

Nas Eumênides, instigado pelo fantasma da mãe, Orestes é perseguido pelas Erínias. Como suplicante, pela ajuda de Apolo que, sendo um deus posterior às Fúrias, não consegue interceder perante sua vingança. O deus envia então o filho de Agamêmnon à Atenas. A deusa declara que Orestes será submetido a um julgamento.

Apolo defende Orestes diante do júri que, no fim chega a um impasse. Em caso de empate, o voto final de Palas Atena seria a favor do réu. As Fúrias posteriormente são transformadas em eumênides (que dá nome à última parte), entidades abençoadas da cidade. Declara que, no futuro, em caso de empate, o voto final seja prla absolvição do réu.


Tragédia e História Familiar

De acordo com Regina, a “crônica de guerra” plasmada na trilogia esquiliana é, antes de mais nada, uma crônica familiar. E Ésquilo soube engendrar a história dos Atridas à história da própria Grécia: se o conflito entre Atreu e Tiestes e seus descendentes tem causas internas, este não pode ser dissociado de um plano mais geral, de natureza política e militar.

Afinal, diz Zilberman, Agamêmnon vai à Tróia defender a honra de Menelau, sendo obrigado a sacrificar sua filha para a tropa aquéia possa receber os ventos dos favores divinos — o que, por fim, custa a sua vida. Se esse ato, diz a autora, é de cunho político e religioso, Clitemnestra entende como o crime que ela busca vingar, dez anos depois (2000, p.28).

Cúmplice da esposa de Agamêmnon, Egisto pretende vingar a morte do pai, Tiestes, apunhalando o general aqueu enquanto se banhava. O crime e o adultério, por sua vez, colocam o amante de Clitemnestra no comendo de Micenas, onde se transforma em tirano até ser vingado por Orestes.

Regina Zilberman entende que, a um só tempo, a tragédia de Ésquilo amalgama a saga familiar à história política de uma pólis, quando a Oresteia é apresentada ao público ateniense pela primeira vez (p. 29).

A história política, diz a autora, conta a passagem da tirania à democracia, pois Orestes, considerado culpado pelas Erínias, é inocentado pelo areópago reunido sob à égide de Palas Atena, a deusa protetora da cidade, que assim comemorava coletivamente “a adoção de um sistema que a diferenciava perante as outras pólis da Grécia (idem).

De acordo com ela, a outra narrativa é a da instalação da Justiça Civil, com efeito, exercida e executada por um tribunal que ouve o réu, em vez de eliminá-lo, julgando Orestes a partir de argumentos favoráveis e contrários à sua ação.

Em lugar do privado e do individual, que move as atitudes intestinas da amaldiçoada dinastia dos Atridas, conclui Zilberman, esse é admirável mundo novo do público e do coletivo.

Esse novo mundo repreende a reprodução do trágico, superado pois ao final da trilogia, quando os juízes atenienses submetem até mesmo as próprias Erínias que, por fim, tornam-se entidades abençoadas e protetoras da cidade.

Regina Zilberman explica que saga familiar é feita de sangue e morte, legando aos descendentes a tarefa de punir os culpados, vivendo á margem da justiça. São Orestes e Electra que rompem o ciclo, porque se particularizam ao constituirem um par diferenciado pelo sexo, por manterem-se castos e por vingar o pai, ou seja, sua ação remete ao passado,e não ao presente (2000, p.30)
.
Ambos são substituídos por outra forma de governo, a democracia. Aqui, a saga familiar se encerra com a “eliminação” da família ou da primazia do direito privado em favor do estado, o direito público.

Na Orestéia, diz a autora, Ésquilo dá uma lição de poética histórica. Ele mostra como lidar com temporalidade e cronologia. Também mostra como, numa trajetória do passado ao presente, é possível interpretar a atualidade para os sujeitos que fazem parte dela.

Contudo, mais do que isso, diz a autora, ele mostra como tratar, de forma simultânea, de figuras míticas e entidades históricas, como nas Eumênides. Para Zilberman, ninguém antes de Ésquilo ousara, com tanta naturalidade passar do mítico para o histórico e voltar, sem desfigurar nenhum dos dois. Nesta trilogia, diz ela, o tragediógrafo opta por dar um passo a frente, “reunindo tempos diversos e entidades de natureza distinta” (2000, p.32).


A respeito da Oresteia, poderíamos dizer que a trilogia trabalha com elementos que podem iluminar também relações possíveis entre história e poesia.Em primeiro lugar, como diz Zilberman, o tragediógrafo faz a crônica da Grécia, com seu começo na guerra de Tróia e o corolário na formação da democracia ateniense.

Para isso, ele faz uso de drama e narração que, segundo ela, estaria plasmado no estilo adotado pelos cantos corais, que resumem e relembram o passado, ao mesmo tempo em que os articulam com a ação presenciada pelo público no palco.

A dialética passado-presente se funde no âmbito do drama que, ao mesmo tempo, manipula com o que está acontecendo. Neste amálgama, Ésquilo explica aos atenienses sua própria história, desde o tempo dos heróis até a consolidação da pólis (2000, p.31).

Conforme Santos (2005), o surgimento da tragédia grega está imbricada a um estado particular de articulação entre o mito e o pensamento jurídico, que está em processo de gestação (p.47).

Ele observa que são duas tendências a defrontarem-se no palco, numa dicotomia entre o passado mitológico e o presente da pólis: a transição de um conjunto de símbolos religiosos, valores do oikos, o lar e a nova realidade dos valores da democracia.

Nesse momento, estamos diante de um momento em em que os valores coletivos da pólis recém fundada imperiosamente se sobrepõem aos valores individuais da aristocracia (idem ibidem).

Aqui, diz ele, o homem grego se volta ao passado mítico que, embora passado, ainda está presente no que podemos entender no trânsito do imaginário, quando entram em pauta as discussões a respeito dessa nova ordem social.

Nas Eumênides, por exemplo, podemos entender o dilema de Orestes, para além da justiça divina e/ou dos homens, a representação de uma personagem de extração aristocrática onde seus valores são colocados em questão.

O irmão de Electra é, pois, como sintetiza Santos, um símbolo do universo lendário, do mundo dos palácios, e se caracteriza pelos valores decadentes dessa classe (p.48).

Com relação entre história e tragédia, Vidal Naquet diz que, ao cotejar o diálogo entre pensamento jurídico e a narrativa, trata-se de um fundamento prévio que deve reconduzi-lo ao texto e ao seu mundo, a fim de explorar "certas dimensões que, sem esse desvio pelo terreno do direito, ficariam dissimuladas na espessura do texto” (1999, p.9).

Santos (op cit) coloca que além disso, mesmo que mimetizando a imagem de um julgamento, não está em discussão um direito ancorado em princípios, mas as discordâncias de um pensamento jurídico inconcluído, não fixado e questionável" (p.48).

A tragédia aqui aparece, a um só tempo, como expressão crítica de um desequilíbrio manifestação e a estética do incerto momento de constituição de um equilíbrio novo (p.48). A Oresteia é, de certa forma, no pensamento filosófico de Ésquilo, como arepresentação mais perfeita desse equilíbrio novo.

Em Agamêmnon, por exemplo, Ésquilo recria o mundo micênico: no começo, temos um sentinela solitário. O coro representaria o conselho de anciões. Ao discutir com Clitemnestra sobre a sorte dos heróis em Tróia, o coro adverte: "é perigosa a voz de uma cidade magoada, a maldição de muita gente".

Quando o atrida retorna, Clitemnestra ordena às criadas que coloquem um tapete para que ele possa passar. Ainda estamos no mundo dos palácios. Ao representar tais cenas, o tragediógrafo recria um mundo que resistiu simbolicamente através dos mitos, já que nem Homero, nem Ésquilo tivessem condições de reelaborá-lo historicamente.

Na discussão tanto entre o coro e Clitemnestra quanto entre ela e o rei de Argos, vemos o que Santos entende como sintoma de desequilíbrio: " o herói trágico grego apresenta-se para os espectadores daquele momento como um ser problemático, induzindo-os a um processo de reflexão (Santos, p.50).

Agamêmnon é assassinado e segue-se uma altercação entre os anciãos. Ela afirma contradizer-se em suas palavras anteriores e apresenta o seu propósito: vingar Ifigênia. Não aceita a opinião do coro, alegando que o rei era tão réu de juízo quanto ela. "pela justiça feita em nome de uma filha, pelo Destino, pelas Fúrias vingadoras a quem dedico o sacrifício deste homem", diz ela.

Segue-se outra altercação do coro agora com Egisto. Os anciãos dizem: Que mão será capaz de remover daqui a origem de tamanhos males? A raça está atada á perdição!".

Contra o ato criminoso, confrontam-lhe ameaças. Nas Eumênides, peça que serve como um andante entre os dois allegros da sinfonia esquiliana, Argos vive sob paz armada. Electra é marginalizada por sua mãe e por Egisto. Clama aos deuses por vngança, que lhe aparece na figura do irmão, após o reconhecimento.

Ésquilo não exploraria tanto o ambiente rural do oikós como Eurípedes, que ambienta a filha de Agamêmnon numa choupana, casado com um campônio (elemento que será criticado por Nietzsche na Origem da Tragédia). à argem do palácio, ela é rebaixada por um casamento mal consumado, que a coloca sob a posição de plebéia.

Porém Eurípedes também evoca outro elemento simbólico do mundo mítico (ou histórico dos palácios) quando da cena em Egisto vai sacrificar uma rês, elemento que o mostra como o rei ancestral de Vidal Naquet, quando o monarca micênico tmbém exercia um papel religioso. Enfim, cenas representadas por outros tragediógrafos porém não por Ésquilo que acreditamos, nas Coéforas, concentrar toda ação na relação com o coro.

Nele, esse elemento não é tão explorado nem por Sófocles), e ela serve, junto com o coro, que tem papel preponderante ao infundir nos irmãos o sentimento de vingança e a morte da rainha. Mas, na cena dos do terceiro ato, vemos cenas do palácio: os escravos, o porteiro, um aposento aos estrangeiros.

Nas Eumênides, chegamos ao mundo da pólis. Implacáveis, as Fúrias, "descendentes da negra Noite", acusam apolo de defender um suplicante infame: "És deus, e nos roubas um matricida! Quem pode ver justiça em tudo isto?". Ao corifeu, Atena diz: "Estão aqui neste momento duas partes e ouvi apenas a metade dessa história".

A deusa apela ao Areópago, depois de escolher os melhores entre todos os cidadãos de Atenas. Dada a apresentação das Erínias acusatórias e do corifeu e as palavras de defesa de Fabo Apolo e Orestes, as Fúrias decidem esperar pelo veredicto.

Dada a absolvição ao jovem Atrida, o coro enfurece-se reiterando a validade da "ordem antiga" ou a "ancestralidade do poder das Erínias como lei antiga".

Atena apela ao coro que julgue pelo bem da terra: "Que vossas bocas furiosas nunca mais lancem sobre este solo fértil maldições capazes de matar tudo que existe aqui".

Em seguida, prevê um bolo futuro à pólis. E reitera: "se não concordardes, sereis certamente iníquas, deixando cair sobre a cidade ódio, rancor e males contra os habitantes", conclamando as Erínias a unirem-se ao futuro da pólis como deusas benéficas, jurando: "Jamais possa a discórdia insaciável vociferar possessa na cidade".

As Eumênides narra, a um só tempo, crítica racional a insistência na figura de uma ordem antiga, a do olho por olho, vinculada ao signo das parcas, de um réu cujas ações passadas necessitam de um defecho numa nova ordem, a da pólis.

Nesse mundo, diz Santos, do direito, da ordem plenamente aceita, o herói mítico, na verdade, já representa o mundo anterior, aristocrático, em que crimes deviam ser vingado pela parte de quem sofrera, obrigatoriamente mediante a ação de consangüíneos ou de descendentes (op. cit, p.54).


Por fim



Analisando a trilogia de Ésquilo, dá para ver que, na democracia, o 'herói mítico' representado na Oresteia (cabe notar que Ésquilo soube passar do tempo mítico, atemporal, para o tempo 'histórico' do presente da escritura da peça de forma diegética, sem perder o ritmo dinâmico da narração) passa a ser representado pelos seus atos.

Como anota Santos (sem no entanto referir-se explicitamente à Oresteia)o seu sacrifício representa a "anulação do velho direito do mundo titânico e o prevalecimento de uma nova ordem". Dessa forma, diz ele, o papel representado em cena pelo herói trágico é o de bode expiatório a ser imolado diante de uma comunidade, a fim de que esta ordem possa dominar de forma segura (Santos, op. cit, p.55).

Nesse sentido, Regina Zilberman (2000) pontifica que o estabelecimento do Estado como entidade responsável pelo funcionamento da sociedade corresponde ao enfraquecimento do poder e influência da família, que abre mão da faculdade de arbitrar sobre os problemas tanto internos como externos ao alcance da sua órbita de atuação.

Essa passagem vai corresponder, diz autora, na obra de Ésquilo, à transferência do mundo mítico para o mundo histórico: o atrida Orestes, o herdeiro que descendia dos deuses dá lugar aos juízes anônimos, e Palas Atena gerencia a mudança (p.38).

Já Wunenburger (2005), ao falar do imaginário como instância capaz de dotar os homens de memória, fornecendo-lhe relatos que reconstroem o passado e justificam o presente, entende que a fundação das cidades (no caso de Ésquilo, de uma nova cidade, isto é, a pólis democrática) é inseparável dos mitos de origem. Eles, diz o autor, de alguma forma fixam seu destino e legitimam sua história e suas instituições.

Dentro dessas constantes, o autor enumera elementos mitogenéticos, como a filiação do espaço urbano com o mundo dos deuses. A fundação é, quase sempre atribuída a um herói (como Teseu e Rômulo), que cumprem uma promessa sobrenatual (fundação de Roma por Enéias).

Em segundo lugar, a fundação torna-se um rito sagrado, mediante a instauração de um mundo que testemunha que a aventura humana só pode adquirir sentido integrado a uma simbologia sagrada (p.64).

Para o autor, a cidade inaugura uma mudança ontológica na vida de seus habitantes, modifica suas relações com os deuses, expõem o indivíduo a vivências estranhas ao comum do habitat e da sociabilidade (idem, ibidem).

Por fim, o nascimento da cidade é, no entender de Wunenburger, comtemporâno de uma violência assumida (aqui, no caso, a maldição dos descendentes de Atreu) e superada (pela Justiça pública), como se a nova ordem só pudesse resultar de uma ampla desordem vencida (p.64).

Entendemos a Oresteia como uma obra que pensa, de forma global, nesse processo - da poesia à história, do mundo da era micênica e dos palácios e da aristocracia de ascendência mitológica cifrada na formação da cidade, com elementos enraizados na tradição e no imaginário grego.

Ésquilo, por sua vez, ao estabelecer os dois universos, o dos mitos e o da violência e o da ordem, da cidade, contra uma mundo de ódio e um lugar estéril, como diz Palas Atena em seu apelo, nas Eumênides.

Ou, como diz Vernant (1972) percebe-se, nesse momento da pólis como uma relação social assimilada a um vínculo contratual (Erínias versus Orestes, aristocracia versus "corrente de espírito democrático") e não mais um estatuto de domínio e submisão (p.102). Contratual como no termo da Oresteia, quando por fim estabelece-se a paz entra as duas 'correntes'.

Porém, sobretudo, como um momento de reflexão sobre essa instabilidade do herói, como diz Santos e essa instabilidade provocada pela hybris, a desmedida, a necessidade do Estado em estabelecer um contrato com seus respectivos cidadãos em favor da ordem e da paz contra a violência.

Enfim, um contrato social onde a democracia torna-se um espaçod e negociação entre os grupos políticos, e acreditamos que a trilogia é um exemplo perfeito dessa aspiração da pólis do século V.

Como afirma, à guisa de conclusão, ao analisar a Oresteia, Regina Zilberman diz que, ao se instaurar o mundo da história e do acontecimento, suplantando o do mito, o que significa anunciar a realidade do progresso e da modernidade, não há mais lugar para o privado (p.41).

Ao mesmo tempo em que ela convida as Fúrias a superarem as desavenças estabelecidas como donas da tradição e da lei, entidades míticas que querem impor a sua ordem, como deusas antigas, Atena as convida, e por extensão, Ésquilo conclama também a platéia, e aqui trata-se da platéia das tragédias como um evento da cidade, a fazerem parte do admirável mundo novo da democracia.





Bibliografia Consultada



ÉSQUILO. A Oréstia. Tradução de Mário da Gama Khoury. Zahar, 1990.

MELLO, Leonel Itaussu Almeida, COSTA, Luiz César Amad. História Antiga e Medieval. Abril, 1985.


RIBEIRO, M.C.L. Electra e Orestes: reconhecimento e espaço na tragédia grega. Revista do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 20: 251-276, 2010.

SANTOS, Adilson dos. A tragédia grega: um estudo teórico. Revista Investigações. v. 18, n. 1. Recife, 2005 (pp. 43-67).


VIDAL NAQUET, Pierre e AUSTIN, Michel. Economia e Sociedade na Grécia Antiga. Lisboa : Edições 70, 1986.

WUNEMBURGER, Jean Jacqes. O Imaginário. Loyola, 2005.

ZIILBERMAN, Regina. Saga Familiar e história política. In: GONÇALVES, Robson Pereira. O Tempo e o Vento: 50 anos.  EDUFSM/EDUSC, 2000.