Em
dezembro de 1942, quando retornava das comemorações de Natal em Canela (onde,
desde junho, desempenhava a função de diretor da construção do Cassino desta
cidade), o arquiteto alemão, naturalizado brasileiro, Theo Wiederspahn foi
preso pelo Departamento de Ordem Política e Social (DOPS) em Porto Alegre. De
seu escritório, tanto documentos quanto sua biblioteca foram confiscados, além
de desenhos de projetos, livros contábeis e livros técnicos. De nada adiantou o
argumento de que era naturalizado. Enquanto ficou confinado por dias, seu
escritório em Canela também foi devassado. Desde que o Brasil havia entrado na
guerra contra o Eixo, a comunidade germânica sofria com perseguições: Theo foi
uma das vítimas desse processo. “durante quase um ano não pude trabalhar”,
escreveu o arquiteto em suas memórias.
Wiederspahn
teve um tratamento execrável e desumano, tratado como um ser ordinário, um
qualquer. No entanto, ele não era uma pessoa qualquer. Chegado da Alemanha,
onde nascera (em Wiesbaden) em 1878, ele chegou à Porto Alegre em 1908. Logo
foi contratado pela firma de construções de Rudolf Ahrons (porto-alegrense, embora
muitos pesquisadores achassem que fosse também).
Daquele
ano até 1915, Theo foi responsável pelos projetos dos mais importantes prédios públicos
(e privados) dessa fase de modernização da capital. Entre eles, podemos listar
a sede do Banco Pelotense, na Avenida Sete, a delegacia Fiscal, hoje o MARGS;
os Correios, hoje o memorial dos Rio Grande do Sul, o Banco Nacional do Comércio
(atualmente o Santander Cultural, concluído por Fernando Corona), a primeira
sede da Caixa Federal (demolida), o antigo prédio da Faculdade de Medicina, o
Edifício Ely (hoje Tumelero), o Hotel Majestic (hoje a Casa de Cultura Mário Quintana)
e o complexo da cervejaria Bopp (depois Continental, Brahma e, hoje, o Shopping
Total), entre outros projetos que foram levados a canteiro tanto em Porto
Alegre quanto no interior do estado. Esse foi o homem preso pela polícia do
interventor Cordeiro de Farias.
O autor
de sua biografia (1), Gunter Weimer, revelou que a idéia de escrever a
trajetória do arquiteto de Wiesbaden surgiu quando ele era catedrático na
cadeira de Arquitetura Brasileira, e concluiu que faltavam subsídios para o
exercício de uma pesquisa histórica sobre o tema. Ele recordava que, no seu
tempo, era comum a repetição de dados de livros de referência que já estavam
ficando datados. Ou, no caso da história da arquitetura no Rio Grande, a
bibliografia era escassa. Somava-se a isso o desinteresse por parte dos seus
professores em relevar a importância do lagado do ecletismo no estado,
considerado ou mera cópia ou um estilo que não se relacionava com a realidade
brasileira.
Weimer
lembra de quando João Vilanova Artigas esteve em Porto Alegre e, entre
intrigado e maravilhado, queria saber quem era o autor daqueles prédios que
seriam como pórticos, na praça da Alfândega. Para Gunter, esse foi o ponto de
partida para a pesquisa em torno daquele que, pelo menos hoje, é considerado o
mais importante arquiteto da história da capital, Theo Wiederspahn.
Ao
periodicizar sua trajetória no estado, o autor a separa em quatro fases: como
funcionário da firma de Ahrons (de 1908 até 1915), como profissional liberal
atuante em Porto Alegre (de 1916 até 1930), como arquiteto perante a comunidade
evangélica (1930 a 1945) e, por fim, em sua fase ‘utilitarista’, associada à
estética do pós-Guerra (1945 a 1952).
Sua
primeira fase, anterior à I Guerra, está associada à grande demanda
habitacional e um considerável incremento do mercado imobiliário em Porto
Alegre. No plano governamental, o
progressivo aumento na arrecadação de impostos iria propiciar um investimento
gigantesco em obras suntuosas. Isso explicaria o boom de prédios públicos nessa
etapa, como a Delegacia Fiscal e os Correios e Telégrafos, além de encomendas
de empresas, como o citados Majestic e a Cervejaria Bopp (cujo primeiro prédio
é de 1910 e a segunda com a torre, é de 1914), pode-se acrescentar à lista o
Colégio Cruzeiro do Sul, a Telefônica Rio-Grandense (de 1908, demolido) e o
Palácio Chaves (na esquina da Ladeira com Andradas, de 1909, demolido) e seu
anexo (1911, na Ladeira, preservado embora descaracterizado, em frente ao
Bradesco).
Todas
essas obras, concebidas sob a ordem eclética, de certa forma representavam um
estado de mudanças imposto pela nascente República e a necessidade de
modernização do centro de Porto Alegre.
Essa
fase de Theo associado à Ahrons foi, para Gunter Weimer, a sua fase mais
produtiva e a que mais marcou a história da arquitetura sul-riograndense. Ela se
encerra com a I Guerra, quando o chairman da firma passou a integrar uma lista negra que circulava na cidade e
cuja finalidade, aponta Weimer, era excluir italianos e alemães do mercado de
trabalho. A empresa encerrou suas atividades em 1915. O autor entende que, sem
Ahrons, Wiederspahn não teria sido capaz de realizar obras tão significativas. Afinal,
Rudolf era bem relacionado em todas as esferas da sociedade, dos governos à
maçonaria.
Com
Ahrons, seu primeiro trabalho foi a conclusão do projeto de Otto Menschen para
a Faculdade de Direito da UFRGS (na época, “faculdade livre”) e o último foi a
de Medicina que, no entanto, não chegou a concluir: o prédio que existe hoje,
no campus da Universidade foi concluído de forma diversa à concebida por Theo,
que previa uma gigantesca cúpula (aliás, se olharmos ele hoje, na parte
posterior, tem-se a impressão de que ele não foi concluído).
Na fase
seguinte, sem o aval de Ahrons, Theo é obrigado a concorrer no mesmo nível de
outros arquitetos, muitos ou a quase totalidade deles com formação inferior à
dele. O problema residia no fato de que a Constituição estadual (castilhista,
em seu artigo 64, parágrafo 25) garantia a total liberdade de atividades
liberais. Ou seja, era uma espécie de carta branca para toda uma geração de
rábulas, em todas as áreas imagináveis e possíveis, inclusive da medicina à
advocacia.
Em
razão disso, não havia controle por parte do Estado, no sentido de incentivar
qualquer cuidado com o exercício profissional da arquitetura, por exemplo.
Naqueles tempos, ela era aqui entendida como ocupação e não como profissão,
como anota Weimer. Embora existissem muitos com formação específica, muitos
podiam exercer a função, munidos apenas com diploma de Desenho Técnico ou
topógrafos. A liberdade de exercício profissional provocaria o desregramento da
profissão. O maior revés de Theo nessa fase foi perder o projeto do Banco
Nacional do Comércio em favor do polonês Stefan Sobczac, que reciclou o próprio
desenho de Wiederspahn, sob os auspícios de Hipólito Fabre, fiscal da obra, e
que conseguiu reconhecer licença para Stefan como construtor, coisa que ele não
era.
Em
1916, Wiederspahn abriu sua própria firma. Embora tenha recebido várias
encomendas de particulares, ele foi preterido na esfera governamental. Um
exemplo foi a licitação de ampliação do cais do porto, quando outro projeto foi
escolhido, mesmo que o de Theo custasse bem menos ao erário. Nas suas memórias,
o arquiteto diz que listas negras contra alemães continuavam circulando, mesmo
depois da guerra. Nessa época e depois, ele recebe encomendas de entidades
germânicas: o Turnerbund (depois Sogipa) e de armazéns ao longo da Voluntários
da Pátria (o da cervejaria e maltaria Ritter ainda existe, embora
descaracterizado, na esquina com a Ernesto Alves), o Tumelero e o Palacete
Chaves Barcelos (1922, na Independência com Fernandes Vieira, já demolido).
Outra
clientela importante foi a de bancos privados, que pretendiam construir filiais
no interior do Rio Grande do Sul. Dessa época é a sede do Banco Nacional do
Comércio em Santa Maria (rua do Acampamento com Salvador Isaía) e em Cruz Alta.
Segundo Weimer, nessa fase, a maior demanda de obras é do interior. Ele também
aqui inicia uma fase de parceria com a comunidade alemã (Igreja Luterana e
Batista) e que se estenderia até o fim de sua vida.
Em
1933, em conseqüência de crises econômicas e o crack da Bolsa, de 1929,
Wiederspahn faliu por tabela. Ficou apenas com uma vivenda campestre na Ponta
Grossa, que não lhe foi subtraída porque não estava em seu nome.
Somou-se
a isso a queda vertiginosa na demanda de construções nessa década e
“confrontações ideológicas da época em que estava se armando o cenário da Segunda
Guerra Mundial”, como diz Gunter, isso fez com que o arquiteto passasse a
operar restritamente em regiões de colonização alemã (como Novo Hamburgo),
onde, segundo Weimer, a demanda de obras era grande.
Além
disso, a partir de sua parceria com a igreja Evangélica, Theo pôde realizar
projetos para outras partes do Rio Grande, como Ijui, Canela e Rio Pardo, entre
outras cidades. Contudo, as obras de maior vulto pelas quais ele foi
comissionado foram a Estação de Caça e Pesca e a ampliação do Hospital Alemão
(Hospital Moinhos de Vento), ambas em Porto Alegre.
O
grande obstáculo para Theo Wiederspahn a partir dessa fase (década de 1930)
veio, curiosamente, com a regulamentação do ofício de arquiteto. Isso causaria
problemas para os estrangeiros que, à época, constituíam quase a totalidade de
profissionais em exercício no estado, como observa o autor.
Ao
requererem a validação de seus diplomas, a burocracia governamental usava como
base o fato de que a escola de Belas Artes ministrava cursos de seis anos
enquanto estrangeiros, mesmo com carga horária de curso muito maior, colavam
grau em média com apenas três anos. No fim das contas, profissionais como
Wiederspahn eram titulados como “arquitetos” ou “construtores” licenciados,
mesmo que possuindo também formação de Engenharia Civil ou alhures. Enquanto
isso, diz Gunter, profissionais brasileiros que tinha, sinecura recebiam
titulação sem qualquer tipo de limitação de trabalho. Se antes qualquer um
podia ser profissional, depois qualquer um vindo de fora do Brasil e de
formação superior era rebaixado com outro estrangeiro totalmente rábula ou que
jamais tivesse pisado num curso superior.
Mais do
que isso, anota Weimer, um arquiteto como um Otto Menschen poderia ser
substituído por um desenhista da Escola Parobé. Tal expediente de “acobertamento”,
diz ele, foi exercido por integrantes do Conselho de Engenharia e Arquitetura
da época. “Através desses processos”, diz o autor do livro, “esses
profissionais haviam ocupado a posição dos profissionais estrangeiros aos quais
não sobravam outras alternativas senão as de trabalhar no interior”.
Ou
então aceitar ser contratado como desenhistas em construtoras, coisa que
Wiederspahn, que, a Alemanha, teve formação superior também em Filosofia (como
requeria às universidades de seu tempo), jamais se submeteria. Ao contrário,
ele optou por virar um arquiteto marginal, se eximindo, com todas as forças, de
legalizar sua atuação profissional. Ele seguiu ilegalmente até aceitar o
encargo de dirigir a construção do cassino de Canela, em junho de 1942.
Nesse
caso, não lhe coube alternativa para a atividade senão a de fazer registro no
Conselho como “construtor licenciado” e com todas as contingências e limites
desta ocupação. Foi quando, seis meses depois, o CREA, que antes fazia vista
grossa com relação à fiscalização de obras no interior do estado, foi acossado
e trancafiado pela polícia em pleno Natal daquele ano (cabe lembrar que o
Brasil havia entrado na Guerra e a caça às bruxas contra a comunidade alemã
estava no auge).
Proibido
de exercer suas funções por dois anos e meio, Theo sobreviveu fazendo um
projeto para a Escola Comercial Alberto Torres, em Lajeado e exercendo a
profissão de apicultor, em sua vila, em Ponta Grossa. Só pôde voltar a
trabalhar como arquiteto depois do conflito europeu, em agosto de 1945. Tinha
ele 67 anos.
Data
dessa última fase dezenas de obras realizadas com o auxílio da Comunidade
Evangélica pelo interior do Rio Grande do Sul. Em 1946, ele seria comissionado
a executar projeto de uma capela para o Leprosário da Colônia Itapuã.
Esse
projeto, realizado de forma remota (um outro arquiteto no local executaria a
obra), ao contrário do material que lhe foi subtraído (e provavelmente destruído)
em 1942 sobreviveu até hoje e é um dos documentos mais importantes a respeito
de Theo Wiederspahn que chegaram até nós, dada a riqueza de detalhes (até o
galpão de obras foi desenhado), desde o estudo de perspectiva da igrejinha até
o desenho da armação de talas. Fato que,por si só, demonstra, como observa o
autor, que ele era alguém que levava os conhecimentos adquiridos na
Universidade om “tanto rigor para a vida profissional” como poucos.
Um fato
curioso sobre Theo é que ele só se converteu à confissão Luterana quando da
ocasião do seu segundo casamento. Até então, ele era católico. Uma separação,
nos estertores do século XIX, tinha fumos de escândalo. Esse casamento foi um
dos motivos pelos quais ele se viu forçado a mudar de ares. Pois foi essa
conversão que acabou selando seu destino: é de se pensar do que seria de
Wiederspahn no Brasil se não fosse esse mecenato concedido pela Igreja local,
ainda mais depois de sua falência, no começo dos anos 1930.
Ele, que foi figura
de proa em seu ofício no começo do século passado, foi expurgado pelas
entidades que foram teoricamente criadas para lhe dar apoio e lhe garantir
segurança profissional. “submetidos a uma sistemática campanha de descrédito
realizada através da imprensa e à um insidioso programa de delações realizadas
por profissionais nacionais que, em muitos casos, nem competência tinham para avaliar
a qualidade dos projetos realizados, esses profissionais foram excluídos do mercado profissional da
forma mais humilhante”, diz Weimer. Isso explica o caráter marginal do trabalho
posterior de Theo: dos 81 projetos que realizou até sua morte (de 1931 a 1952),
apenas oito se destinaram à capital, sendo que um desses, era para sua filha.
(1). Gunter Weimer, Theodor Wiederspahn. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2009.
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