Saturday, December 28, 2019

Rolling Stones além do sol




Peguei o O Sol, a Lua e os Rolling Stones, do Rich Cohen (Zahar, 2017) e lembrei de uma outra biografia de rock, lá dos anos 90, chamada Oh, No! Not Another Bob Dylan Book. Como se sabe, toda grande banda/artista de rock ou pop tem dezenas de publicações, seja contando quase sempre as mesmas histórias ou associando o respectivo objeto de estudo com tudo o que é assunto aleatório: Ozzy e o Satanismo, Clapton e o delta blues, Beatles e a Swingin London, Elvis Presley e a influência do gospel, Dylan e a poesia beat, e por aí vai.

Digo que lembrei porque eu resolvi ler o livro pensando em repassar tudo o que eu já sei sobre a banda, e até o que eu não sabia até comprar o Vida, do Keith Richards. Porém, confesso que me enganei. O trabalho do Rich Cohen, que é jornalista da Rolling Stone, vai além de uma mera biografia, e mesmo que a banda de Mick Jagger seja a preferida dele em todos os tempos – fato que mais atrapalha do que ajuda em se tratando de encômios e panegíricos redigidos por fãs da banda. A escritura do texto é, na verdade, um amálgama de biografia, de livro-reportagem e, dada a relação do autor com os músicos como repórter, ele tem umas pitadas muito bem dosadas de gonzo.

Esse elemento gonzo que, se não muito bem administrado, pode colocar tudo a perder num relato, mesmo que seja um relato ligado a um evento histórico.Afinal de contas, nem todo mundo é o Hunter Thompson, que era capaz de soar convincente usando desse expediente abordando assuntos aparentemente irrelevantes (e aqui reside a grande prova de fogo e a grande arte do repórter por excelência, que o diga Gay Talese), como um rali de motos ou um simpósio de agentes do FBI.

De uma forma singular, na urdidura do livro, Cohen mistura a história dos Rolling Stones com a sua própria trajetória, primeiro como ouvinte e colecionador de rock (e, já em idade adulta, como músico), nos anos 1970, até a sua formação como jornalista freelancer e, um pouco mais tarde, como repórter da mitológica Rolling Stone, nos anos 1990. No posto de repórter da revista, ele é escalado para cobrir o começo da então nova turnê da banda, em 1994, em Toronto, uma cidade que tem uma ligação história com os Stones e principalmente com Richards, como se sabe.

Pelo fato de colocar-se e colocar sua experiência na narrativa como uma espécie de emolduramento da escrita, Cohen faz com que o livro funcione em vários planos, que se entrecruzam e andam em paralelas. Ao entrar na intimidade do grupo, entrevistando ora Ronnie, Mick ou Keith ou Charlie, ele se coloca como a mosca na parede que todos nós gostaríamos de ser. Mesmo assim, dissimulando sua paixão pela banda, ele consegue um retrato “sóbrio” do cotidiano dos Stones na estrada e das histórias de uma banda que, de certa forma, superou tantas crises e problemas ao longo de (então) mais de trinta anos de discos, de altos e baixos, e de turnês que pavimentaram a história do rock desde o novo batismo, em 1969, tendo que, ao mesmo tempo, superar a partida de Brian Jones, que volta daqui a pouco.

Ao abordar a história dos Stones, no entanto, Cohen, como fã mas também como jornalista, é capaz de ter um outro olhar que, se é apaixonado no sentido de saber documentar essa história com todos os detalhes e entrevistas possíveis, consegue ser comedido em colocá-los numa balança (daí o seu lado jornalista, muito e,borá de fã) e mostrar todas as contradições, virtudes e defeitos de uma banda que superou todas as previsões em matéria de longevidade, tanto dos Stones quanto do próprio rock como gênero,que por sua vez, reluta em não cair na vala comum do nicho, que levou tantos outros gêneros musicais por aí.

Mesmo como fã, Cohen tem lá as suas opiniões e teses sobre os Stones, e que naturalmente seriam compartilhadas por muitos outros admiradores do quinteto, que é fundado em 1962, em Londres. Uma delas é a de que a grande fase deles é a que vai do lançamento do single “Jumpin’ Jack Flash”, em 1968, até  o hoje incensado (mas na época nem tanto assim) Exile on Main Street, de 1972. Para ele, o começo foi uma preparação para essa fase “áurea” que, por fim, teria descambado num longo período onde eles teriam se acostumado ao Jet set e se deitado nos louros da fama, tornando-se, a partir de então, um pastiche de si mesmos.

Naturalmente que eu particularmente, embora isso possa surpreender o leitor aqui, não corrobore essa tese, é sabido que existe uma considerável parcela de fãs dos Stones que têm esse entendimento. Mas isso para o autor é curioso no sentido de que aquela banda em 1994 que ele assiste ensaiando para o começo da turnê Voodoo Lounge, para ele, e Cohen deixa isso claro no texto, não são mais aqueles Stones dos tempos das produções do Jimmy Miller ou dos dias ensolarados e mediterrâneos da riviera francesa. Ao mesmo tempo, no plano presente, ao abordá-los, Rich tenta entender o que se passa na cabeça dos integrantes dos Stones depois de tanto tempo, de tantos perrengues que quase decretaram o fim do grupo, e o que faz com que eles mantenham de forma férrea essa longevidade. Uma dessas panacéias, diz Richards à ele, é o palco. E é a partir desse olhar que Cohen redescobre os Stones, de como eles superaram todos os problemas, tanto do presente quanto do passado ali.

Ao mesmo tempo, o livro repassa os episódios que foram cruciais tanto para a consolidação dos Stones, seus altos e baixos, e do fato de como esses mesmos momentos fizeram com que eles aprendessem e tirassem valiosas lições. Episódios cruciais que ele anota: o primeiro single em 1963/4 e o surgimento de Andrew Oldham; a gravação de “Satisfaction” em 1965 e o começo da produção autoral; o julgamento por porte de drogas, em 1967; a morte de Brian, dois anos depois; a prisão de Keith, em Toronto; a separação de Richards e Mick, durante as sessões do Dirty Work, em 1985.

No caso do primeiro disco, o autor observa que os Stones nasceram sob a asa de Alexis Korner e que eles eram uma banda que defendia o purismo do blues. Com Andrew, eles aprenderam que era crucial dar um passo a frente, como Dylan e os Beatles. Claro que esse passo poderia ser uma vitória de Pirro: ao largar a cena alternativa, os Stones passaram a fazer outro tipo de música e para outro tipo de público. Numa perspectiva conservadora, eles teriam se vendido (dilema que Eric Clapton também experimentou, embora ele tenha escolhido a alternativa conservadora, no começo).

Nesse processo, Cohen mostra Brian Jones. Músico precoce e idealizador dos Stones como aquela banda, numa perspectiva original, isto é, voltada ao purismo do Delta e Chicago blues, ele viu-se tanto guindado pelas correias do show business quanto deslocado de seu papel de liderança, na medida em que, com “Satisfaction”, Mick e Keith passam a dar as cartas na banda. Jones se indispõe com os fatos à princípio, mas o mundo do café society da Swinging London o atrai como as sereias de Homero.

No entanto, ao invés de diminuir a importância de Brian nesse processo, primeiro pelo fato de que ele foi se tornando incômodo ao não se integrar aos “novos” Stones e principalmente não ser um compositor, aliado à sua progressiva tendência auto-destrutiva depois da prisão em 1967, Jones era um problema mas, quando ele se foi, sua sombra iria pairar, segundo Cohen, por muito tempo (talvez até hoje). Na verdade, esse processo de separação foi difícil para que todos pudessem elaborar e seguir em pouco tampo. Tudo começa com a morte de Brian, a nova turnê americana, que terminou de forma trágica, em Altamont (Cohen talvez seja o autor que melhor descreva aqueles eventos em livro) e o rompimento com Allen Klein, tudo ao mesmo tempo. Na virada dos anos 1970, os Stones tiveram que aprender com todos esses traumas, lidar com os próprios demônios e começar do zero.

Esses fatores, que Rich encadeia de forma muito interessante mostram o fantasmagórico carrossel que representou para a banda naquela virada, o baque e a necessidade de refundação do projeto musical deles em novos moldes, cada vez mais profissionais, enquanto Keith, consciente ou inconsciente, adotaria para si o halo junkie que havia em Brian e se instalou nele, como uma maldição. Todos esses problemas que a maioria da assistência jovem que vai a um concerto do grupo hoje talvez nem suspeite – mas que, de certa forma, ilustram muito bem o papel dos Rolling Stones não só no desenvolvimento do rock como gênero mas também como negócio, desde na produção dos próprios álbuns quanto na elaboração e mapeamento das mega-turnês. 

Da mesma forma como ele dispõe essa revolução dentro de si mesmos, Rich tenta juntar os pontos, querendo saber onde a autenticidade dos Stones enquanto a banda que enfileirava discos clássicos ficou em favor de uma banda-empresa, onde tudo é meticulosamente um mais do mesmo. Porém, da mesma forma que ele vislumbra esse algo que se perdeu, percebe o quanto esse movimento de sobrevivência dos Stones é algo sem precedentes na história da música, e nem ele e muito menos eu ou você seria capaz de explicar isso.

Quanto à abordagem dos temas, Cohen usa a sua própria experiência de fã de rock com a de músico para olhar o fenômeno do gênero a partir dos anos 1950 retransportados para a realidade da juventude britânica numa cena underground que conquista os Estados Unidos com uma música de lá que era segregada pelos seus próprios pares, o autor demonstra ter uma visão sociológica que transcende a mera documentação de fatos históricos ano após anos.

Quando aborda a delicada e polêmica questão de Altamont, ele mostra o outro lado, começa dando voz para os Hell’s Angels, traça uma psicologia do público ianque nos estertores do movimento contracultural, o desastre da produção e seu corolário, um erro que os Stones carregaram pelo resto da carreira e, com certeza, essa meticulosidade empresarial dos Stones nasceu a partir da débâcle do fim da turnê de 1969.

O documentário (Gimmr Shelter) talvez não mostre, mas Altamont, como os processos de 1967 (e o racha em Dirty Work, bastante abordado por Keef no Vida, que também é fonte de Cohen no livro) quase acabaram com os Stones. Ou seja, tais episódios representaram provas tão grandes para a banda que, ao vislumbrarmos essa longevidade do grupo de Mick, Keith, Charlie e Ronnie, vemos que eles sobrevivem nas e pelas contingências da vida. A vida e a trajetória dos Stones talvez seja tão ordinária e exemplar como a vida de qualquer banda. Contudo, o testemunho da forma como eles souberam superar tudo isso e o lado tão demasiadamente humano desses altos e baixos são os altos e baixos de cada um de nós tentando provar porque estamos aqui lutando para viver nesse mundo e talvez seja o que os tenha transformado em sobre humanos.

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