Peguei
o O Sol, a Lua e os Rolling Stones, do Rich Cohen (Zahar, 2017) e lembrei de
uma outra biografia de rock, lá dos anos 90, chamada Oh, No! Not Another
Bob Dylan Book. Como se sabe, toda grande banda/artista de rock ou pop tem
dezenas de publicações, seja contando quase sempre as mesmas histórias ou associando
o respectivo objeto de estudo com tudo o que é assunto aleatório: Ozzy e o Satanismo,
Clapton e o delta blues, Beatles e a Swingin London, Elvis Presley e a influência
do gospel, Dylan e a poesia beat, e por aí vai.
Digo que lembrei porque eu resolvi
ler o livro pensando em repassar tudo o que eu já sei sobre a banda, e até o que
eu não sabia até comprar o Vida, do Keith Richards. Porém, confesso que me
enganei. O trabalho do Rich Cohen, que é jornalista da Rolling Stone, vai além
de uma mera biografia, e mesmo que a banda de Mick Jagger seja a preferida dele
em todos os tempos – fato que mais atrapalha do que ajuda em se tratando de encômios
e panegíricos redigidos por fãs da banda. A escritura do texto é, na verdade,
um amálgama de biografia, de livro-reportagem e, dada a relação do autor com os
músicos como repórter, ele tem umas pitadas muito bem dosadas de gonzo.
Esse elemento gonzo que, se não
muito bem administrado, pode colocar tudo a perder num relato, mesmo que seja
um relato ligado a um evento histórico.Afinal de contas, nem todo mundo é o
Hunter Thompson, que era capaz de soar convincente usando desse expediente
abordando assuntos aparentemente irrelevantes (e aqui reside a grande prova de
fogo e a grande arte do repórter por excelência, que o diga Gay Talese), como
um rali de motos ou um simpósio de agentes do FBI.
De uma forma singular, na urdidura
do livro, Cohen mistura a história dos Rolling Stones com a sua própria trajetória,
primeiro como ouvinte e colecionador de rock (e, já em idade adulta, como músico),
nos anos 1970, até a sua formação como jornalista freelancer e, um pouco mais
tarde, como repórter da mitológica Rolling Stone, nos anos 1990. No posto de
repórter da revista, ele é escalado para cobrir o começo da então nova turnê da
banda, em 1994, em Toronto, uma cidade que tem uma ligação história com os
Stones e principalmente com Richards, como se sabe.
Pelo fato de colocar-se e colocar
sua experiência na narrativa como uma espécie de emolduramento da escrita,
Cohen faz com que o livro funcione em vários planos, que se entrecruzam e andam
em paralelas. Ao entrar na intimidade do grupo, entrevistando ora Ronnie, Mick
ou Keith ou Charlie, ele se coloca como a mosca na parede que todos nós gostaríamos
de ser. Mesmo assim, dissimulando sua paixão pela banda, ele consegue um
retrato “sóbrio” do cotidiano dos Stones na estrada e das histórias de uma
banda que, de certa forma, superou tantas crises e problemas ao longo de (então)
mais de trinta anos de discos, de altos e baixos, e de turnês que pavimentaram
a história do rock desde o novo batismo, em 1969, tendo que, ao mesmo tempo,
superar a partida de Brian Jones, que volta daqui a pouco.
Ao abordar a história dos Stones,
no entanto, Cohen, como fã mas também como jornalista, é capaz de ter um outro
olhar que, se é apaixonado no sentido de saber documentar essa história com
todos os detalhes e entrevistas possíveis, consegue ser comedido em colocá-los
numa balança (daí o seu lado jornalista, muito e,borá de fã) e mostrar todas as
contradições, virtudes e defeitos de uma banda que superou todas as previsões
em matéria de longevidade, tanto dos Stones quanto do próprio rock como gênero,que
por sua vez, reluta em não cair na vala comum do nicho, que levou tantos outros
gêneros musicais por aí.
Mesmo como fã, Cohen tem lá as suas
opiniões e teses sobre os Stones, e que naturalmente seriam compartilhadas por
muitos outros admiradores do quinteto, que é fundado em 1962, em Londres. Uma
delas é a de que a grande fase deles é a que vai do lançamento do single “Jumpin’
Jack Flash”, em 1968, até o hoje
incensado (mas na época nem tanto assim) Exile on Main Street, de 1972. Para
ele, o começo foi uma preparação para essa fase “áurea” que, por fim, teria
descambado num longo período onde eles teriam se acostumado ao Jet set e se deitado
nos louros da fama, tornando-se, a partir de então, um pastiche de si mesmos.
Naturalmente que eu
particularmente, embora isso possa surpreender o leitor aqui, não corrobore
essa tese, é sabido que existe uma considerável parcela de fãs dos Stones que têm
esse entendimento. Mas isso para o autor é curioso no sentido de que aquela
banda em 1994 que ele assiste ensaiando para o começo da turnê Voodoo Lounge,
para ele, e Cohen deixa isso claro no texto, não são mais aqueles Stones dos
tempos das produções do Jimmy Miller ou dos dias ensolarados e mediterrâneos da
riviera francesa. Ao mesmo tempo, no plano presente, ao abordá-los, Rich tenta
entender o que se passa na cabeça dos integrantes dos Stones depois de tanto
tempo, de tantos perrengues que quase decretaram o fim do grupo, e o que faz
com que eles mantenham de forma férrea essa longevidade. Uma dessas panacéias,
diz Richards à ele, é o palco. E é a partir desse olhar que Cohen redescobre os
Stones, de como eles superaram todos os problemas, tanto do presente quanto do
passado ali.
Ao mesmo tempo, o livro repassa os episódios
que foram cruciais tanto para a consolidação dos Stones, seus altos e baixos, e
do fato de como esses mesmos momentos fizeram com que eles aprendessem e tirassem valiosas lições. Episódios cruciais que ele anota: o primeiro single
em 1963/4 e o surgimento de Andrew Oldham; a gravação de “Satisfaction” em 1965
e o começo da produção autoral; o julgamento por porte de drogas, em 1967; a
morte de Brian, dois anos depois; a prisão de Keith, em Toronto; a separação de
Richards e Mick, durante as sessões do Dirty Work, em 1985.
No caso do primeiro disco, o autor
observa que os Stones nasceram sob a asa de Alexis Korner e que eles eram uma
banda que defendia o purismo do blues. Com Andrew, eles aprenderam que era
crucial dar um passo a frente, como Dylan e os Beatles. Claro que esse passo
poderia ser uma vitória de Pirro: ao largar a cena alternativa, os Stones passaram
a fazer outro tipo de música e para outro tipo de público. Numa perspectiva
conservadora, eles teriam se vendido (dilema que Eric Clapton também
experimentou, embora ele tenha escolhido a alternativa conservadora, no começo).
Nesse processo, Cohen mostra Brian Jones.
Músico precoce e idealizador dos Stones como aquela banda, numa perspectiva
original, isto é, voltada ao purismo do Delta e Chicago blues, ele viu-se tanto
guindado pelas correias do show business quanto deslocado de seu papel de
liderança, na medida em que, com “Satisfaction”, Mick e Keith passam a dar as
cartas na banda. Jones se indispõe com os fatos à princípio, mas o mundo do café
society da Swinging London o atrai como as sereias de Homero.
No entanto, ao invés de diminuir a
importância de Brian nesse processo, primeiro pelo fato de que ele foi se
tornando incômodo ao não se integrar aos “novos” Stones e principalmente não
ser um compositor, aliado à sua progressiva tendência auto-destrutiva depois da
prisão em 1967, Jones era um problema mas, quando ele se foi, sua sombra iria
pairar, segundo Cohen, por muito tempo (talvez até hoje). Na verdade, esse
processo de separação foi difícil para que todos pudessem elaborar e seguir em
pouco tampo. Tudo começa com a morte de Brian, a nova turnê americana, que
terminou de forma trágica, em Altamont (Cohen talvez seja o autor que melhor descreva
aqueles eventos em livro) e o rompimento com Allen Klein, tudo ao mesmo tempo.
Na virada dos anos 1970, os Stones tiveram que aprender com todos esses traumas,
lidar com os próprios demônios e começar do zero.
Esses fatores, que Rich encadeia de
forma muito interessante mostram o fantasmagórico carrossel que representou
para a banda naquela virada, o baque e a necessidade de refundação do projeto
musical deles em novos moldes, cada vez mais profissionais, enquanto Keith,
consciente ou inconsciente, adotaria para si o halo junkie que havia em Brian e se instalou nele, como uma maldição. Todos
esses problemas que a maioria da assistência jovem que vai a um concerto do
grupo hoje talvez nem suspeite – mas que, de certa forma, ilustram muito bem o
papel dos Rolling Stones não só no desenvolvimento do rock como gênero mas também
como negócio, desde na produção dos próprios álbuns quanto na elaboração e
mapeamento das mega-turnês.
Da mesma forma como ele dispõe essa revolução dentro
de si mesmos, Rich tenta juntar os pontos, querendo saber onde a autenticidade
dos Stones enquanto a banda que enfileirava discos clássicos ficou em favor de
uma banda-empresa, onde tudo é meticulosamente um mais do mesmo. Porém, da
mesma forma que ele vislumbra esse algo que se perdeu, percebe o quanto esse
movimento de sobrevivência dos Stones é algo sem precedentes na história da música,
e nem ele e muito menos eu ou você seria capaz de explicar isso.
Quanto à
abordagem dos temas, Cohen usa a sua própria experiência de fã de rock com a de
músico para olhar o fenômeno do gênero a partir dos anos 1950 retransportados
para a realidade da juventude britânica numa cena underground que conquista os
Estados Unidos com uma música de lá que era segregada pelos seus próprios pares,
o autor demonstra ter uma visão sociológica que transcende a mera documentação
de fatos históricos ano após anos.
Quando
aborda a delicada e polêmica questão de Altamont, ele mostra o outro lado,
começa dando voz para os Hell’s Angels, traça uma psicologia do público ianque
nos estertores do movimento contracultural, o desastre da produção e seu corolário,
um erro que os Stones carregaram pelo resto da carreira e, com certeza, essa
meticulosidade empresarial dos Stones nasceu a partir da débâcle do fim da turnê de 1969.
O
documentário (Gimmr Shelter) talvez não mostre, mas Altamont, como os processos
de 1967 (e o racha em Dirty Work, bastante abordado por Keef no Vida, que também
é fonte de Cohen no livro) quase acabaram com os Stones. Ou seja, tais episódios
representaram provas tão grandes para a banda que, ao vislumbrarmos essa
longevidade do grupo de Mick, Keith, Charlie e Ronnie, vemos que eles
sobrevivem nas e pelas contingências da vida. A vida e a trajetória dos Stones
talvez seja tão ordinária e exemplar como a vida de qualquer banda. Contudo, o
testemunho da forma como eles souberam superar tudo isso e o lado tão
demasiadamente humano desses altos e baixos são os altos e baixos de cada um de
nós tentando provar porque estamos aqui lutando para viver nesse mundo e talvez
seja o que os tenha transformado em sobre humanos.
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