Thursday, September 26, 2019

De volta a Abbey Road

Foto alternativa para a capa do disco

Primeira lembrança que eu tenho do Abbey Road é a versão que eu tinha em cassete, daquelas escrita ESTÉREO assim mesmo. As fitas vinham com qualidade de som melhor que os discos em vinil, na maioria das vezes.

Lembro de ouvir, ouvir, e o som não me entrava na cabeça. Não conseguia memorizar o lado B direito, mas era divertido de ouvir. Parecia algo meio improvisado de ouvir. Mas, naquele tempo, eu não era capaz de inferir nada a respeito do disco, mesmo. Mas sentia que ele tinha algo que me prendia. Gostei de cara de "Something". Essa eu tinha certeza que eu tinha ouvido antes, em algum lugar, de alguma forma. Quando eu comecei a ouvir os Beatles, eu ouvia pela música. Não tinha uma noção orgânica ou de conjunto do conjunto da obra ou do contexto geral e da forma como a evolução da banda se relacionava com outras bandas, outras cenas musicais.

Toda bibliografia era muito escassa e o que existia estava esgotada e fora de alcance. Sem falar que, na minha ótica de fã, eu teria que me descolar dessa fissura, palmilhar outros caminhos musicais, aprender inglês, ter noções de música e, depois, retornar aos discos dos Beatles. Me interessei por eles porque eu gostava de rock dos anos 50 e, por coincidência, eles também. Na verdade, os Beatles me conduziram para o resto do espectro da música. Não teria ouvido jazz, música clássica ou experimental ou progressiva se não fosse por eles. Mas então eu empreendi uma longa jornada que me trouxe de volta a eles. Porém, tentando entender outras coisas em sua música, em outras perspectivas. Não mais o fã chato que sabe quantas tomadas eles levaram para gravar determinada música ou em que dia saiu o disco tal (confesso que ainda sei alguma coisa de fã chato). Por exemplo, hoje eu fico pensando como um cara como John Lennon, com apenas vinte e poucos anos, fosse capaz de escrever uma letra como "In my Life". Isso sempre me pareceu uma epifania de uma vida inteira, não de um jovem que, há apenas alguns anos antes, estava destruindo cabines telefônicas em Hamburgo.

Na verdade, eu era fã sem ser fã, porque gostava mais das trucagens de estúdio e bastidores de gravações. E dos bootlegs que mostravam esses detalhes. Essa engenharia genética de como eles criavam uma canção, da influência de determinada canção, da forma como eles gravaram, de como eles descobriram uma nova tecnologia para gravar e montar uma música e de como essa nova tecnologia criou todo um novo ambiente para a criação musical deles. É claro que, nesse momento, eu volto a ser o fa chato, embora acredite que é por uma boa causa.

Eu fissurava muito na fase iê iê iê deles. Mesmo incipientes, eles eram criativos e prolíficos. Achava incrível a capacidade dos Beatles em fazer um álbum de 14 faixas em tempo recorde, tirando música da cartola como se fossem coelhos, e ainda por cima ter que produzir mais duas faixas pra um single para chegar ao topo das paradas, e cada vez mais sofrendo uma concorrência feroz. Se no começo os Fab disputavam com Kenny Linch, Gene Pitney ou Helen Shapiro, anos depois eles tinham os Byrds, Jefferson Airplane, Hendrix, Who, Cream na cola e tudo o mais.

Como banda, Mark Lewisohn (1) destaca, ao descrever a evolução dos Beatles disco a disco que eles jamais pensavam no segundo disco baseado no anterior. Ou decidiam por um disco sem covers, todo autoral, ou passavm a usar outros instrumentos, ou descobriam uma forma de phasing eletrônico, ou quem sabe tocar uma guitarra ao contrário, ou improvisar um pedal caseiro, no melhor estilo professor Pardal. Ou captar um solo com o microfone quase colado nas cordas e com o boost estouradaço. Creio os Beatles são a banda fetiche nesse aspecto de voyeurizar todas essas manias do quarteto em estúdio. Isso é Les Paul. Eles conheciam ele, sabiam que ele era o Pardal mor. Les Paul era o pai do overdub quando todo mundo gravava no acústico, como os músicos de jazz. Ele influenciou Buddy Holly, ele influenciou os Beatles. E Buddy influenciou os quatro também, no sentido de libertar-se do rockabilly e criar uma forma de rock-canção, mais redonda, mais pop, mas sem perder o foco na guitarra. Boa parte do começo dos Beatles está aqui.

O problema é que, esse expediente, os Beatles trocaram naturalmente o público pela mesa de controle. Com o tempo, eles viraram produtores. Já não pediam ao George Martin o que eles queriam fazer. No White Album os Beatles demitiram o produtor. Claro que sem o elemento parental, a coisa desandou para a briga. O Álbum Branco captou o quarteto de forma singular, tão singular que eles não se importavam com muitas pequenas derrapagens na produção deles que, de certa forma, eram propositais. Ou em certas escolhas importantes, como a de emular Stockhausen em "Revolution 9", faixa que os fãs detestam, mas que eu acho que é importante para mostrar elementos de música eletroacústica e concreta para um grande público. Por mais que os fãs detestem, eu acho uma das faixas mais importantes do disco.

O paroxismo dessas 'férias' do George Martin foram as sessões Get Back que, quando elas terminaram, decidiram engavetar tudo. É possível que tenham sentido nostalgia de um produtor controlando o ímpeto deles. E, como quatro filhos pródigos, pediram ajuda ao seu produtor. Martin com efeito talvez soubesse que isso iria acontecer. Por mais rebeldes e independentes que eles fossem, os Beatles sabiam que precisavam de um produtor. O resto eles já sabiam. Quando os cinco se reuniram, depois de tantas idas e vindas, de tantas loucuras e brigas, agora eles eram uma banda adulta, e que, de forma adulta, iam fazer o seu último rock.

Acho que isso é o que tão admirável em Abbey Road, disco que faz 50 anos hoje. É o álbum onde eles plasmam todo o conhecimento adquirido em todos esse anos e é o seu derradeiro trabalho juntos. Esses dias, eu estava ouvindo o lado B e pensando que, por mais genial que seja, ele sempre vai me bater como uma grande despedida. E é. Porém, quando eu ouço algo como o With the Beatles, é sempre aquela sensação de que são os quatro prontos para conquistar o mundo. É o começo da jornada dos heróis. Seus primeiros trabalhos, embora mais simples, têm essa aura da banda no seu começo, com toda a sua vibração, todo seu ouriço, toda a sua energia, toda o seu ímpeto. No Abbey Road, eles são senhores de sua música, eles são pais daqueles garotos que gravaram "Love Me Do", mas eles estão longe do público, eles não irão gravar um disco para sair em turnê. Eles se reuniram para entregar, consciente ou inconscientemente, seu último trabalho para a EMI.

Se o lado A parece ter esse espírito dos velhos tempos, para mim, e acredito que para muita gente, depois de "Because", começa a bater aquela melancolia. Quanto mais surpreendente e genial o lado fica, faixa a faixa, maior é a sensação de que o tempo está passando, e o fim - literalmente - está próximo.

Diferente dos relançamentos anteriores (Pepper's e White Album) a edição especial do Abbey Road não traz tantos outtakes como os anteriores. Isso se explica pelo fato de que, ao contrário dos citados, os Beatles dessa vez adotaram o regime de discos como Rubber Soul e Help: menos tomadas, menos tempo de estúdio. Enfim, um trabalho mais conciso em estúdio. Além do mais, o Álbum Branco era prolífico em demos, desde o material de Esher até as centenas de variações em mono. No caso do Abbey Road, ele foi o primeiro a ser lançado em estéreo apenas. E além disso, o single é extraído do próprio disco o que simplificou o número de faixas trabalhadas.

Não menos atrativo do que o material alternativo que a nova caixa promete é a nova mixagem de Abbey Road. Pelo aperitivo que apareceu no Youtube, é para você jogar fora o CD original (ainda mais se for aquele que você comprou lá em 1989 no Carrefour). Parece um outro disco. Mas mais do que isso, a nova mixagem, empreendida por Giles Martin, talvez mostre ao ouvinte o Abbey Road como ele deveria ter sido conhecido, com uma tecnologia de reprodução que nos permita escutá-lo fazendo jus à forma como ele foi concebido: com uma mesa TG 123545, que fora instalada em novembro de 69, e que os Beatles não chegaram a aproveitá-la. Aliás, uma das constantes brigas da banda com a EMI era que, desde 68, havia uma mesa de oito canais empacotada e jogada num canto dos estúdios e que eles não podiam usar. A frustração deles era, às vezes, descontada no próprio staff. Agora, eles tinham um produtor de volta e toda a tecnologia possível para gravar o maior trabalho deles.

De certa forma, com um espectro de som de muito maior alcance, essa mesa  jogou o som dos Beatles em outro patamar. Isso podia ser sentido no vinil mas, com a nova mixagem, é possível sentir o som mais claro, mais branco, mais puro, muito além de que se podia sentir, mesmo com aquele CD do Carrefour. Muitos críticos malharam a produção. Como sempre, achavam que era um disco totalmente tributário de truques de estúdio. E também não gostaram, à época, do uso de moog.  O que não impediu que Abbey Road chegasse a 31 milhões de cópias vendidas em junho de 1970.

Mas quem é da antiga, deve se lembrar daquele famoso bootleg do Abbey Road que foi disseminado pelo fã-clube Revolution, nos anos 80. O disco consistia em outtakes de faixas do álbum, em péssima qualidade de registro, como era comum com os piratas da época. Faixas como "Something" continham uma misteriosa parte; "You never give me your money" com o final original, ainda sem o corte do medley, culminando num rock. Outras faixas eram demos dos tempos das sessões Get Back, como "Sun King" O "Her Majesty" aparecia com o acorde final, que foi solapado no disco original que, curiosamente, tem os dois extremos decepados. Esse pirata ainda contava com uma gravação fora de contexto, com George e Paul Simon tocando "Here comes the sun", já nos anos 70. E, por fim, uma gravação fake de "I want you" que, a despeito de ser falsa, é de repente a melhor faixa desse bootleg. Essa gravação é possível encontrá-la no Youtube.

Mark Lewisohn diz sobre o disco que trata-se do melhor disco da banda. De largada, porque a música colocou toda a animosidade entre eles fora da porta dos estúdios e, assim, eles puderam submergir na própria música. John com sua verve e vocação roqueira; Paul com sua perspectiva sinfônica no medley do lado B e suas baladas; George no auge de sua capacidade criativa como músico e compositor; e Ringo tocando maravilhosamente, explorando, a cada canção, todas as possibilidades da bateria, como nunca. Sobre a produção, ele diz que os Beatles chegavam em estúdio concisamente com a base das faixas na cabeça, sendo que os acréscimos posteriores nas mixagens tratavam-se apenas de detalhes que não os levassem à digressões maiores, com maior perda de tempo, fator que, segundo Mark, foi um problema recorrente no White Album.

George Martin acreditava ser Abbey Road uma retomada da "linha evolutiva" do Sgt. Pepper's. Para ele, o disco pôde ser inovador "de forma controlada", ao contrário do Álbum Branco e o Let It Be, diz ele (naturalmente ressentindo-se de ter sido alijado desses projetos). Também salientou seu papel na elaboração do lado B, no sentido de orientar a perspectiva sinfônica da peça como um todo, inclusive, se pensarmos no retorno do tema de "You never give me your money" no final, dando um caráter ligeiramente rapsódico para o medley, certamente foi sugestão de George Martin.

Phil Mc Donald, um dos engenheiros de som dos estúdios na época, relembra que John era contra o medley, e foi quem sugeriu que suas canções todas deviam ficar no lado A e as de Paul no B. Foi atendido, pelo menos em parte. Essa divisão, de certa forma, faz parte da mitologia sobre Abbey Road.



(1) MARK LEWISOHN. The Complete Beatles' Recording Sessions. Hamlyn, Londres, 1989.







Wednesday, September 25, 2019

O coelho errado




Sobre a polêmica do Mílton Nascimento a respeito das paradas de sucesso atuais, eu gostaria de contar uma história.  Temo que ela não tem muito a ver com o assunto da semana mas que, de certa forma, pode até ter. É a respeito de uns apontamentos  que o André Midani escreveu na sua autobiografia (1) sobre os bastidores do mercado da música que ele, como produtor atuando no Brasil, no México e na França, conheceu mais do que ninguém.

Nos anos 80, a expansão da indústria fonográfica fez com que conglomerados da comunicação comprassem todos os selos independentes, e passaram a ditar as regras. Isso mudou a política das gravadoras, que, segundo ele, trabalhavam exclusivamente em função da formação de um cast.

Antes, o artista era como se fosse criado numa incubadora, levando em consideração inclusive perdas e danos, até que esse determinado artista se consolidasse perante ao público e formasse uma comunidade de fãs. A partir dali, tudo muda.

"Ficou longe a época em que as gravadoras eram dirigidas por quem gostava de música, sendo, ao mesmo tempo, bom administrador", diz Midani. "Ficou longe a era da competição amigável e ética entre as companhias. De súbito, os conglomerados disseram “Fora com os líderes criativos e dentro com os tecnocratas”. Para eles, os contratos artísticos estavam se tornando custosos para deixar a direção dos negócios nas mãos de gente com "paixão pela música".

André Midani dizia que os tecnocratas viviam em sua esfera específica. Quanto mais competentes e quanto mais tudo andasse no azul, maior sua distância com relação aos artistas. "Pouco a pouco, aos olhos da maioria dos tecnocratas", os artistas viraram inimigos, considerados pouco confiáveis, pouco sérios e sem o menor senso de responsabilidade".

Ele lembra a velha política das rádios antes do jabá. Comparando, como as progressive radios americanas dos anos 70, quando o DJ tinha certa autonomia na hora da fazer a programação. Sobre os conglomerados, seu objetivo era a recuperação dos investimentos de imediato; assim,  os lucros se tornaram o único elemento de importância.

A partir desse ponto, ocorre o contrário: se num passado recente, a gravadora vivia em função do artista, agora ocorre o inverso. E o foco passa a ser a canção, e não necessariamente o artista.

Esse vinha por último e, se colar, colou. Midani culpa a adoção desse modelo à prática de programas televisivos de caça-talentos que, como se sabe, existem até hoje (claro que esse agenciamento de novos talentos é anterior aos anos 80). Uma fórmula prática, embora, segundo Midani, guardava seus efeitos colaterais. "o que parecia ser uma solução passou a ser o início da decadência", explica. "A canção de sucesso é imprevisível por natureza — pois a vida de um hit é efêmera, mas a vida do artista, não".

De acordo com ele, trabalhar a música em vez do artista mudou o comportamento da indústria fonográfica e a obrigou a introduzir novas técnicas de marketing. "Quando a música se tornou o fator preponderante, e não mais o artista, o público passou a adotar uma nova postura", anota. "A canção, e não mais o disco inteiro, tinha que ter começo, meio e fim, e se transformar num “jingle da vida” durante os três minutos de sua existência... Todas as estações de rádio foram obrigadas a tocar a mesma música".

Se essa prática virou padrão naquele tempo, imagine hoje, na era do streaming, quando volta a prática do single? Sem contar com a facilidade de lidar com tendências de mercado no mundo da música, qual é a moda do momento para que uma gravadora adote, num perspectiva industrial, a produção fonográfica, que vai desde a adoção de compositores profissionais, lançamento de promos no Youtube e agendamento de shows. Hoje, tudo ficou mais cínico e pragmático. O mercado hoje, cada vez mais, em tempo de oligopólios, concentra cada vez mais. E, quanto mais concentra, mais exclui. E o corolário são as paradas de sucesso. Não é nem uma questão de ser música boa ou má, mas, sim, de existir cada vez mais formulismos e menos diversidade. E quanto a isso, caro leitor, não há o que fazer. 

Midani porém lembra que a catituitagem é uma antiga prática, e remonta a música lírica. Pessoas eram pagas para aplaudir ou vaiar cantores. E quem lograva sucesso em cidades como Marselha, passando por essa prova de fogo, podia então tentar a sorte em Milão ou Paris. Ou se fracassar, ficar por lá mesmo.

Ele diz que, nos anos 1960, (lembremos: mesmo depois da famosa CPI da Payola que acabou com a carreira de Alan Freed e que enquadrou Dick Clark) era comum contratar promotores de rádios independentes (as grandes emissoras das grandes cidades sofriam o controle da legislação do jabá) para promover seus 'projetos'. A forma de pagamento ia desde viagens para shows até prostitutas, drogas e dinheiro. Como se sabe, isso se transformou numa cultura, até ser institucionalizada.

No caso americano, Midani anota que quando a máfia descobriu que as gravadoras chegavam a pagar cerca de 300 mil Dólares para promover um single, ela se infiltrou no meio desses promotores e enquadrou o esquema a seu favor, com a Network. A partir daí, a Máfia iria doutrinar as rádios estadunidenses. Essas, por sua vez,  passariam a tocar exclusivamente as músicas que esse sindicato indicava.

Para se ter ideia da força desse esquema, diz Midani, a Máfia também se infiltrou nos departamentos de promoção de rádio das próprias gravadoras, chegando a peitar os chairman das majors que os desafiassem.

Em 1979, Dick Asher, então presidente da CBS, resolveu enfrentar a Network tendo como cavalo de batalha o The Wall, do Pink Floyd. A banda lotava estádios e o disco estava na casa dos 2 milhões de cópias vendidas, rumo ao 1º lugar.

Quando a Network soube que Asher instruiu seu staff a não pagar para a execução do single da banda, eles o chamaram. E ele recusou-se a atendê-los. "Diante de sua recusa em recebê-los", diz Midani, "a máfia deixou o seguinte recado: a música passaria, na semana seguinte, para a 10ª colocação, na outra cairia para a 50ª, na outra semana, para a 94ª, até desaparecer para sempre, apesar da demanda do público".

Diante da expectativa provocada pela Network, Asher percebeu, pálido de espanto que o percurso do single seguiu exatamente o trajeto descrito por eles. Foi quando as gravadoras perceberam que não somente a Network podia criar o sucesso, mas também o contrário. "O Dick acabou pagando, e a música subiu imediatamente para o 1º lugar", conclui Midani.

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Peguei esse exemplo a fim de tentar explicar que, quando criticamos um tipo de moda hegemônica no campo musical, em qualquer parte do mundo, sempre sobra para o artista, que tem que passar pelo injusto corredor polonês do gosto popular. Eu muitas vezes observo as pessoas pichando os artistas que fazem sucesso por aí. No caso do Mílton, ele acabou virando uma espécie de 'apelo à autoridade' para que o senso comum se insurgisse contra as paradas, cumprindo o seu papel. Porém, na verdade, quando estamos descendo o malho nos artistas de sucesso da semana, podemos estar tentando acertar o coelho errado. Algo botou eles lá. Nos anos 1970, o governo criou aquele bordão de "música é cultura" a fim de estimular o mercado da música, e que vinha impresso nas contracapas dos discos. Pois bem, de certa forma, não podemos nos iludir porque, no âmbito da indústria cultural, (e posso aqui estar proclamando o óbvio)  música também é dinheiro. Então, quando você vocifera contra o artista que faz sucesso e você não gosta, você é apenas mais um cão que ladra enquanto a caravana passa. 



(1) ANDRÉ MIDANI, Música, ídolos e poder: do vinil ao download. Nova Fronteira, 2006.



Saturday, September 21, 2019

Max Weber e o Pateta no trânsito




Quem via desenhos antigamente ou faz algum curso de direção já deve ter assistido a um desenho, que já é clássico, chamado Motormania ou, aqui no Brasil, Pateta no trânsito, de 1940.

Este desenho, para quem não sabe ou lembra, conta a história de um pacato cidadão que, ao dar a ignição no carro, transforma-se num sujeito prepotente, arrogante e dono da rua. Passa por cima de tudo e todos. Quando ele sai do carro, ao chegar à cidade, ele é atacado por outros motoristas que, por sua vez, diante da direção, assumem a mesma atitude. Quando ele retorna ao carro, sua persona agressiva reaparece, quase como um Médico e o Monstro.

A despeito do caráter de diversão, ou de referir-se a este papel agressivo de todo motorista, Motormania poderia ser considerado como uma aula de sociologia. Aqui, o desenho estabelece uma tipificação, um modelo que existe na sociedade e que pode ser resumido a um tipo ideal, ou um modelo que se repete na sociedade em geral. O conceito do "pateta no trânsito" como tipo ideal nos remete a um dos grandes luminares da sociologia, um senhor chamado Max Weber.

Considerado um dos fundadores da Sociologia, Max Weber (1864-1920) legou uma obra cuja influência tem um vasto espectro —  da economia ao direito e da ciência política a administração. Boa parte de sua produção foi dedicada ao estudo dos processos de racionalização do capitalismo. Texto capital no corpus de sua obra, a Ética protestante e o espírito do capitalismo defende a tese de que o protestantismo influenciaria a progressiva burocratização dentro do capitalismo em sua etapa monopolista.

Para Weber, a sociologia é “uma ciência voltada para a compreensão interpretativa da ação social e, por essa via, para a explicação causal dela  no seu transcurso e nos seus efeitos”.

Ele recolhe dois exemplos que explicam tal entrega: o primeiro se reflete na forma como o sociólogo se coloca diante das questões práticas do dia, como manifestar-se publicamente contra grupos que colocaram-se contra a social-burocracia nos eventos relacionados ao fim da Primeira Guerra Mundial - atitudes que quase transcendem o caráter não-político do sociólogo. O segundo exemplo está na postura teórica da Weber.

Weber dizia que o nome do sociólogo está associado à formulação do conceito capital para a observação histórico-social, o “tipo ideal”. Como expediente metodológico, trata-se de uma forma de orientar o pesquisador diante da interminável variedade de fenômenos sociais.

Apesar da expressão estranha, o tipo ideal não é um tipo idealizado. É um que se reproduz na sociedade. O Pateta no trânsito, lembre que o desenho é de 1940, sempre existiu e sempre vai existir. Sérgio Buarque de Hollanda, por sua vez, um weberiano nato, tinha o seu tipo ideal: o homem cordial. No Raízes do Brasil, ele diz que o homem cordial é aquele que não consegue separar o público do privado. Isso está na medula da sociedade brasileira e, com certeza, sempre estará.

Assim, o tipo ideal seria uma forma de enfatizar traços da realidade, como o burocrata profissional, até tipificá-lo numa expressão pura e consequente, mas que não se apresenta de tal forma em situações efetivamente observáveis. Por conta disso, esses tipos precisam ser concebidos na mente do sociólogo: “existem no plano das ideias sobre os fenômenos e não nos próprios fenômenos”.

O conceito de tipo ideal é discutido por Weber em A Objetividade do conhecimento nas ciências sociais. Para o pensador alemão, a única forma de apreender a realidade aqueles traços específicos que interessam ao sociólogo são “metodicamente exagerados” para, num segundo momento, seja possível formular questões pertinentes a respeito das relações relevantes sobre as relações entre os fenômenos observados.

O Pateta pode ser, pois, uma construção dessa tipificação do cidadão que vira um monstro. O desenho não perde a oportunidade de caracterizá-lo com cores grotescas. Ele provoca o riso no começo. Mas, depois, fica a questão. Esse personagem, que é caricaturado na figura do Pateta, ele é um ser real. Por isso que, como expediente pedagógico, escolas de direção passam Motormania para os jovens motoristas. Para que eles se vejam no Pateta no trânsito. O estúpido "inocente".

Se formos pensar, a guisa de conclusão, é que o Pateta no trânsito não está só diante do volante. Ele está por aí; está na política, ele está nas redes sociais, ele pode estar na frente de você na fila do supermercado. Ele é aquela pessoa pacata que cumpre todos os seus deveres de cidadão, ele cuida do seu jardim, ele posta fotos bonitas no Instagram mas, numa situação singular, ele se transforma. E talvez, como no Pateta no trânsito, essas pessoas nem se deem conta da forma agressiva, prepotente e estúpida como eles agem: acham naturalmente que podem dizer tudo sobre todos.

E é só no momento em que eles logam nas redes sociais. Depois, voltam para o seu jardim e para as fotos no Instagram. Essa é uma tipificação singular, no sentido que, através do espaço e do tempo, em qualquer situação, no trânsito ou na Internet, todos agem dessa forma. A rigor, eles não são assim o tempo todo. Mas numa determinada situação, todos agem da mesma forma.

Por que nós somos patetas no trânsito?


Referência:

GABRIEL COHN. Max Weber. Sociologia. Ática, 2003. 


Lawrence da Arábia contra o etnocentrismo

Peter O Toole como T E Lawrence


Tem uma cena do filme Lawrence da Arábia (David Lean, 1962) quando o protagonista, depois de ganhar roupas de beduíno, integrar os árabes e tomar Ácba, pondo os turcos para correr e atravessar o deserto até chegar em Cairo, quando depara-se com um guarda na entrada do seu QG, não é reconhecido. O guarda barra-lhe a passagem e diz: "para onde você pensa que vai, mustafá?
Numa cena anterior, quando Lawrence diz que quer retornar ao Egito, é criticado pelo personagem de Omar Shariff. Ele diz: "lá vai você dizer que andou com um bando de beduíno com roupas ridículas não é?".

Interessante ver como nessas duas cenas nós podemos entender o que os antropólogos chamam etnocentrismo. Segundo o antropólogo Rafael José dos Santos, ele consiste numa atitude que nós tomamos nossos valores e nossa cultura como medida para julgar as práticas dos outros. Ele diz que, ao basearmos em nossas crenças para julgar os outros, nós não somos capazes de enxergar o outro.

Enfim, o que se defende aqui é que nós assimilamos nossos valores desde o começo, e isso exerce uma influência grande em nós, de julgar como absolutas coisas que, na verdade, são relativas.

A antropologia, ou o estudo antropológico se estriba no fato de que é preciso entender a relatividade entre as coisas de nossa cultura e da cultura do outro. Esse é um passo fundamental para entender os processos de estudos antropológicos.

Nós também sabemos que o etnocentrismo está arraigado no senso comum. É possível ver como as pessoas julgam as diferenças dos  outros pelos seus valores até mesmo no preconceito contra pessoas do interior ou de outros estados, só para pegar um exemplo aleatório.

O senso comum é implacável. Você sabe que é etnocêntrico quando comete esse tipo de olhar o tempo todo. Ter noção de que somos etnocêntricos e que, na maioria das vezes, cometemos essa derrapagem ao achar que determinado grupo é errado e o que fazemos é o certo. O importante, como diz Rafael, é que reconheçamos isso, saibamos que isso existe - não só eu com relação ao outro mas, também, o outro com relação a mim - e sabermos lidar com essa dificuldade no "reconhecimento do que nos é estranho".

Quando os valores de determinado grupo ou sociedade superiores a qualquer outra, corremos o risco de querer impor nossos valores nesse outro.

É o caso do Lawrence. Para os ingleses, que ocupavam militarmente o Egito durante a Primeira Guerra Mundial, os árabes eram um bando de beduínos sem rumo  ou direção, selvagens e ignorantes. Eram, enfim, mustafás. Na fala de Shariff, ele entendia a diferença e certamente, como se pode depreender de sua fala, sentia o preconceito, ou a visão etnocêntrica dos ingleses com os árabes.

Este militar inglês, que também era antropólogo, relativizou a relação entre essas diferenças. Ele entendeu os árabes como eles eram, e soube fazer o que os demais britânicos não conseguiam: uni-los contra o inimigo comum: os turcos.  O exemplo do filme de David Lean, um belíssimo filme, é mostrar a grandeza dessas lições nos pequenos detalhes do roteiro.


Referência
SANTOS, Rafael. Antropologia Para Quem Não vai ser Antropólogo. Tomo Editorial, 2005.