Selo da Lira |
Terminei
de ler o livro História da Música Independente, do Gil Nuno Vaz (coleção Tudo é
História, da Brasiliense, 1988). O livro é interessante de se pensar para
frente e para trás. Para trás porque, ao contrário do que muitos pensam, a
música independente no Brasil não começou exatamente com o álbum Feito em Casa,
de Antônio Adolfo, embora ele seja um marco importante nesse estilo em
determinado momento da história, no final dos anos 70, quando surge uma cena
independente, desde a geração de poetas de mimeógrafo (como bem ilustra Heloisa
Buarque de Holanda no livro Impressões de Viagem) até a cena musical que
vicejou em torno da Lira Paulistana, objeto principal do estudo de Nuno em sua obra,
lançada em 1988. O próprio autor lembra, de maneira bastamente pontual, o caso
pioneiro de Cornélio Pires. Em 1929, o empresário e folclorista foi o primeiro
a registrar música sertaneja em disco. Como as gravadoras não se interessavam
pelo gênero na época, ele bancou a prensagem de “Jorginho do Sertão”, que deu o
pontapé na divulgação do estilo, que passa a gozar de grande popularidade a
partir de então.
Também é importante citar casos como o da bossa-novista
Elenco, de Aloísio de Oliveira que, mesmo estruturada como gravadora, sem
fábrica e com parcos meios de divulgação e distribuição, estava mais próximo do
âmbito do mercado independente do que dos grandes selos – ou até dos
liliputianos. Mas o caso de Antônio Adolfo é um divisor de águas naquele momento,
tanto pelo fato de estar, de certa forma, inserido num contexto de surgimento
de uma cena independente quanto pelo fato de que ele, como produto da era dos
festivais, decidiu partir para a produção “feita em casa”.
Partindo
de depoimentos de integrantes do Lira, Nuno aponta duas linhas de pensamento
dentro do que se convencionou chamar de música independente: uma salvaguarda
estética e uma relação de produção econômica específica. Ele explica que, com
exceção da Lira, a música independente não nasceu como um movimento “como a
bossa nova ou o tropicalismo” (embora esses também não tenham sido concebidos
como tal, de certa forma) mas um “movimento” de “produção musical independente”.
Afinal de contas, como cita Eduardo Gudin, nem trabalhos como o de Adolfo
quanto o do Boca Livre (que foi o primeiro grande sucesso independente) não
traziam nada de esteticamente “novo”.
Ou
seja, o independente não parte, necessariamente, de uma razão estética. Mais do
que isso, fiz Nuno, esse tipo de artista tem uma “natural aspiração aos meios
de produção”. E, dentro do esquema independente, o que se vê um outro e
particular tipo de “dependência”. Num
primeiro nível, há o produtor autônomo total; em segundo, o artista
cooperativado; e, num terceiro, o artista mantém uma relação relativa com o
marcado fonográfico alternativo.
Para o
autor, contudo, o importante a ser considerado em música independente não é
encontrar onde isso começou (se foi com a coleção Discos de Bolso, do Pasquim,
ou com Cornélio Pires, com a Elenco ou a Forma) mas quando essa prática passou a ser realizada de forma
consciente e a partir de quando deixou de parecer exótico para tornar-se comum.
Esse movimento teria se concentrado, a partir dos anos 1970, da necessidade de
se furar o bloqueio provocado pelo boom da produção massiva de discos no
Brasil, que privilegiava uma determinada ‘agenda’ (determinada pela televisão, além
da enxurrada da música internacional que ocorre nesta década, disseminada, em
grande parte, nas trilhas de novelas) em detrimento de uma produção nacional.O
primeiro movimento nesse sentido foi, para Nuno, o Feito em Casa, de Antônio
Adolfo, de 1977, com o selo Artezanal.
Nesse caminho, apareceriam outros selos
autônomos (Nós Lá em Casa, Musiquim e, de certa forma, a Marcus Pereira e
Bemol, de Belo Horizonte). O grande momento do independente, no entanto seria
com o Boca Livre: seu dico de 1980, por exemplo, vendeu mais de 80 mil cópias,
alavancadas pelo sucesso de “Toada”.
O
cooperativismo teria sido um grande passo para a criação de empresas de pequeno
porte que buscavam alternativas entre a produção autônoma e o sistema,
coordenando interesses de forma a fugir de possíveis imposições por parte dos
grandes selos. Nesse sentido, a Lira representaria o corolário dessa demanda,
por parte dos independentes. A Lira, contudo, não teria nascido como agente catalisador
de artistas que iriam despontar em suas hostes, como Arrigo Barnabé ou Itamar
Assumpção, mas como um local de troca de experiências.
“O
arranque dado pela Lira Paulistana resultou, assim, de uma circunstância
aproveitada em toda a sua potencial oportunidade, através da catalisação de uma
efervescência cultural que passou a ser conhecida como a “virada paulista”, diz
Gil Nuno. Mais adiante, ao associar-se à gravadora Copacabana, o objetivo da
Lira era lançar uma série de discos, sempre divulgados em apresentações. Mesmo
assim, o boom foi efêmero. A partir de 1984, a produção da Lira praticamente
voltava a seus moldes iniciais. O autor, todavia, não vê nisso sinais de
estagnação, embora possa-se acrescentar ao contexto o fato de que, justamente,
vê-se o surgimento do BRock (e o crescimento das FM nos grandes centros urbanos,
algo que recém se ensaiava quando Antônio Adolfo lançou seu disco) como fenômeno
massivo, fato que possa ter provocado certa mudança na ‘agenda’ do gosto do público
em geral.
Nuno
salienta a importância da geração “Lira” por dois fatores: o primeiro, que
eles, de certa forma, buscavam atualizar as conquistas da Bossa Nova e do Tropicalismo.
Arrigo se dizia um seguidor de Tom Jobim e
Luiz Tatit, do Grupo Rumo, não cansou de exaltá-los em seus livros, O
Cancionista e O Século da Canção. O segundo, que, já que se nas gerações
anteriores, eram maestros e arranjadores como Jobim, Cozella, Medaglia e Duprat
quem avalizavam e estimulavam seus artistas, a geração da Lira era, ela mesma,
o demiurgo de si mesmo. Enquanto Barnabé propunha amalgamar cultura pop e
dodecafonismo em música popular, Tatit éo Rumo são pioneiros em experimentar e
estudar a MPB sob a perspectiva da semiótica de Charles Pierce evidenciar o caráter
entoativo da canção brasileira.
Muito
desses estudos encontraram um caminho na interpretação e na produção musical de
artistas como Itamar Assumpção e Tetê Espíndola, Neusa Freitas, Eliete Negreiros
e Vânia Bastos. Ambos ganhariam visibilidade com o ressurgimento dos festivais
(o Universitário, da TV Cultura e o da Tupi, em 1979 e, mais adiante, o MPB Shell e o Festival dos
Festivais, ambos da Globo). Itamar, por sua vez, seria um ponta-de-lança do
Lira. Já Eliete estaria associada à produção de Arrigo Barnabé como sua intérprete
ideal, preocupada tanto com seus elementos timbrísticos quanto à detalhes técnicos
de interpretação, tão caros às formulações complexas do compositor de Clara-Crocodilo.
Nuno
também chama a atenção para grupos independentes que fizeram seu caminho através
da música instrumental. Pegando o exemplo do Zimbo Trio que, oriundo dos
conuntos de bossa nova dos anos 1960, tinha uma tendência ao ecletismo e à
universalização do seu som. Essa vertente também surge na mesma época do
pioneirismo de Antônio Adolfo e do Lira Paulistana, misturando choro e jazz:
Pau-Brasil, Nelson Ayres, Grupo Um,Trio d’Alma, Papavento e o Pé ante Pé, com
traços de música oriental, próximo do que posteriormente poderia ser rotulado de
“world music”.
Por fim, Gil Nuno demarca pelo menos três momentos importantes desta produção independente: a resistência do público, por conta do seu caráter alternativo; o uso de sua visibilidade com forma a estabelecer homologias entre artistas, agentes culturais e gravadoras alternativas – porém, mais como tendência e estratégia do que como potência suficiente para conquistar posições de dominância efetiva no campo da música; por último, a despeito dos revezes, o ‘movimento’ independente pôde colher frutos no sentido de estabelecer uma imagem singular de “vanguarda” no panorama histórico da MPB.
Outra
característica apontada por Vaz é que, de forma capital, a quase totalidade
desses artistas independentes tinham/têm formação erudita e ou acadêmica, desde
Tatit e Arrigo até os músicos do Premeditando o breque ou eliete Negreiros, que
Caito Marcondes. Seria sintomático observar que, dos doze finalistas do I
Festival Universitário da TV Cultura teve metade desses candidatos oriundos da
USP. Isso demonstra que, se em etapas anteriores, o músico era orientado por um
produtor de raiz erudita, aqui os próprios artistas manifestam esse background
a partir de sua formação acadêmica/erudita. Restaria saber, anota Nuno, se as
propostas apresentadas por eles foram capazes de conciliar com o universo prático
da música popular, isto é, se tal produção atingiu esse alvo específico em
termos de acessibilidade. O primeiro problema já residiria no fato de que a música
independente em seu começo não constituía um movimento mas, sim, numa explosão
de várias tendências e propostas.O segundo, e mais curioso, aponta o autor, é o
de que essas tendências, em matéria de resultados, pareciam mais associadas com o destino da
produção erudita de vanguarda, cujo distanciamento do público, conclui Gil Vaz,
é notório.
No
entanto, ao mapear a música independente além da virada paulista e a Lira, o
autor abriu espaço para outras tendências em outras praças do país. Pode-se
aqui, a título de exemplo, citar o caso (já comentado aqui no blog) do Musipuc
e a difusão de uma cena local a partir de uma emissora de rádio de segmento
jovem na Porto Alegre dos anos 1970, a Continental. Porém, mesmo que houvesse
uma cena independente considerável e uma demanda de publico idem, a mentalidade,
de certa forma, ainda era a de encontrar um lugar ao sol no esteio das grandes
gravadoras, em geral de São Paulo e do
Rio de Janeiro. Alguns artistas lograram êxito, caso dos Almôndegas e de
Fernando Ribeiro; porém, em sua maioria, muita dessa produção não chegou ao
disco, e só foi redescoberta décadas depois, a partir de uma bibliografia que
buscou documentar esse momento na história da MPG.
As
coisas mudariam com o surgimento do selo Pentagrama/Isaec que, de certa forma,
pela primeira vez, deu vazão a uma produção local, lançando álbuns como o
coletivo Paralelo 30 (produzido por Juarez Fonseca e retratando uma amostra do
que fora essa geração setentista Musipuc-Continental, com nomes como Raul Elwanger,
Nelson Coelho de Castro e Bebeto Alves, entre outros). O Pentagrama ainda lançaria
outros artistas, como o citado Fernando Ribeiro, Plauto Cruz e Nelson Coelho,
que seria pioneiro ao produzir o disco Juntos através de crowdfunding, muito
antes dessa expressão virar de uso corrente.
Esses
exemplos á demonstrariam o quando uma cidade como Porto Alegre, tão distante do centro do país, teve uma produção
importante porém que historicamente sofreu com barreiras para a sua difusão,mesmo
em âmbito local. Ao mesmo tempo, mostra que, por conta dessas mesmas barreiras,
artistas locais, como no caso do citado Nelson, ou outros, já na virada dos anos
1980, como Nei Lisboa, Replicantes ou Júlio Reny construíram suas respectivas
carreiras de forma independente, com trabalhos de âmbito local, ainda que
ambicionando ir além - contudo marcando posições no cenário musical. E
muitos continuam assim até hoje: a diferença é que, passados mais de três décadas,
se antes havia a suprema aspiração de fazer parte do cast de uma grande
gravadora, elemento de prestígio e de capital simbólico para todo e qualquer
artista, agora isso não é preponderante, ainda mais na medida em que a agenda
desses grandes selos, hoje, sustente uma tendência cada vez mais à homogeneização
e a simplificação das suas estratégias de produção em função do consumo.
Importante lembrar de experiências que surgiram nos anos 1990 a partir de selos capitaneados por músicos integrantes de bandas oriundas do BRock, como a Banguela, dos Titãs, e a Rock It, projeto paralelo de Dado Vila Lobos, no mesmo período, que virou uma loja de discos, e lançou várias bandas independentes ao longo da década, como a Comunidade Nin Jitsu e a Ultramen, mas que sucumbiu naturalmente nos anos 2000 como selo, com a massificação da Internet e a pirataria em CD.
Importante lembrar de experiências que surgiram nos anos 1990 a partir de selos capitaneados por músicos integrantes de bandas oriundas do BRock, como a Banguela, dos Titãs, e a Rock It, projeto paralelo de Dado Vila Lobos, no mesmo período, que virou uma loja de discos, e lançou várias bandas independentes ao longo da década, como a Comunidade Nin Jitsu e a Ultramen, mas que sucumbiu naturalmente nos anos 2000 como selo, com a massificação da Internet e a pirataria em CD.
Além
do mais, depois do advento e a supracitada popularização da internet, muitas daquelas
barreiras foram derrubadas e o que poderíamos chamar de ”cena independente” ou
produção alternativa num país continental como o Brasil seja, no presente
momento, uma empresa quase impossível de mapear. Ou um livro/tese que discorra,
pegando o mote do livro de Gil Nuno (que é de 1988) a respeito da cena independente
no Rio Grande do Sul Mas enfim, esse já é
assunto para um outro post.
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