Thursday, December 26, 2019

Independentes ontem e hoje (e sempre)


Selo da Lira


Terminei de ler o livro História da Música Independente, do Gil Nuno Vaz (coleção Tudo é História, da Brasiliense, 1988). O livro é interessante de se pensar para frente e para trás. Para trás porque, ao contrário do que muitos pensam, a música independente no Brasil não começou exatamente com o álbum Feito em Casa, de Antônio Adolfo, embora ele seja um marco importante nesse estilo em determinado momento da história, no final dos anos 70, quando surge uma cena independente, desde a geração de poetas de mimeógrafo (como bem ilustra Heloisa Buarque de Holanda no livro Impressões de Viagem) até a cena musical que vicejou em torno da Lira Paulistana, objeto principal do estudo de Nuno em sua obra, lançada em 1988. O próprio autor lembra, de maneira bastamente pontual, o caso pioneiro de Cornélio Pires. Em 1929, o empresário e folclorista foi o primeiro a registrar música sertaneja em disco. Como as gravadoras não se interessavam pelo gênero na época, ele bancou a prensagem de “Jorginho do Sertão”, que deu o pontapé na divulgação do estilo, que passa a gozar de grande popularidade a partir de então. 

Também é importante citar casos como o da bossa-novista Elenco, de Aloísio de Oliveira que, mesmo estruturada como gravadora, sem fábrica e com parcos meios de divulgação e distribuição, estava mais próximo do âmbito do mercado independente do que dos grandes selos – ou até dos liliputianos. Mas o caso de Antônio Adolfo é um divisor de águas naquele momento, tanto pelo fato de estar, de certa forma, inserido num contexto de surgimento de uma cena independente quanto pelo fato de que ele, como produto da era dos festivais, decidiu partir para a produção “feita em casa”. 

Partindo de depoimentos de integrantes do Lira, Nuno aponta duas linhas de pensamento dentro do que se convencionou chamar de música independente: uma salvaguarda estética e uma relação de produção econômica específica. Ele explica que, com exceção da Lira, a música independente não nasceu como um movimento “como a bossa nova ou o tropicalismo” (embora esses também não tenham sido concebidos como tal, de certa forma) mas um “movimento” de “produção musical independente”. Afinal de contas, como cita Eduardo Gudin, nem trabalhos como o de Adolfo quanto o do Boca Livre (que foi o primeiro grande sucesso independente) não traziam nada de esteticamente “novo”.

Ou seja, o independente não parte, necessariamente, de uma razão estética. Mais do que isso, fiz Nuno, esse tipo de artista tem uma “natural aspiração aos meios de produção”. E, dentro do esquema independente, o que se vê um outro e particular tipo de “dependência”.  Num primeiro nível, há o produtor autônomo total; em segundo, o artista cooperativado; e, num terceiro, o artista mantém uma relação relativa com o marcado fonográfico alternativo.

Para o autor, contudo, o importante a ser considerado em música independente não é encontrar onde isso começou (se foi com a coleção Discos de Bolso, do Pasquim, ou com Cornélio Pires, com a Elenco ou a Forma) mas quando essa prática passou a ser realizada de forma consciente e a partir de quando deixou de parecer exótico para tornar-se comum. Esse movimento teria se concentrado, a partir dos anos 1970, da necessidade de se furar o bloqueio provocado pelo boom da produção massiva de discos no Brasil, que privilegiava uma determinada ‘agenda’ (determinada pela televisão, além da enxurrada da música internacional que ocorre nesta década, disseminada, em grande parte, nas trilhas de novelas) em detrimento de uma produção nacional.O primeiro movimento nesse sentido foi, para Nuno, o Feito em Casa, de Antônio Adolfo, de 1977, com o selo Artezanal. 

Nesse caminho, apareceriam outros selos autônomos (Nós Lá em Casa, Musiquim e, de certa forma, a Marcus Pereira e Bemol, de Belo Horizonte). O grande momento do independente, no entanto seria com o Boca Livre: seu dico de 1980, por exemplo, vendeu mais de 80 mil cópias, alavancadas pelo sucesso de “Toada”.  

O cooperativismo teria sido um grande passo para a criação de empresas de pequeno porte que buscavam alternativas entre a produção autônoma e o sistema, coordenando interesses de forma a fugir de possíveis imposições por parte dos grandes selos. Nesse sentido, a Lira representaria o corolário dessa demanda, por parte dos independentes. A Lira, contudo, não teria nascido como agente catalisador de artistas que iriam despontar em suas hostes, como Arrigo Barnabé ou Itamar Assumpção, mas como um local de troca de experiências.

“O arranque dado pela Lira Paulistana resultou, assim, de uma circunstância aproveitada em toda a sua potencial oportunidade, através da catalisação de uma efervescência cultural que passou a ser conhecida como a “virada paulista”, diz Gil Nuno. Mais adiante, ao associar-se à gravadora Copacabana, o objetivo da Lira era lançar uma série de discos, sempre divulgados em apresentações. Mesmo assim, o boom foi efêmero. A partir de 1984, a produção da Lira praticamente voltava a seus moldes iniciais. O autor, todavia, não vê nisso sinais de estagnação, embora possa-se acrescentar ao contexto o fato de que, justamente, vê-se o surgimento do BRock (e o crescimento das FM nos grandes centros urbanos, algo que recém se ensaiava quando Antônio Adolfo lançou seu disco) como fenômeno massivo, fato que possa ter provocado certa mudança na ‘agenda’ do gosto do público em geral.   

Nuno salienta a importância da geração “Lira” por dois fatores: o primeiro, que eles, de certa forma, buscavam atualizar as conquistas da Bossa Nova e do Tropicalismo. Arrigo se dizia um seguidor de Tom Jobim e  Luiz Tatit, do Grupo Rumo, não cansou de exaltá-los em seus livros, O Cancionista e O Século da Canção. O segundo, que, já que se nas gerações anteriores, eram maestros e arranjadores como Jobim, Cozella, Medaglia e Duprat quem avalizavam e estimulavam seus artistas, a geração da Lira era, ela mesma, o demiurgo de si mesmo. Enquanto Barnabé propunha amalgamar cultura pop e dodecafonismo em música popular, Tatit éo Rumo são pioneiros em experimentar e estudar a MPB sob a perspectiva da semiótica de Charles Pierce evidenciar o caráter entoativo da canção brasileira.

Muito desses estudos encontraram um caminho na interpretação e na produção musical de artistas como Itamar Assumpção e Tetê Espíndola, Neusa Freitas, Eliete Negreiros e Vânia Bastos. Ambos ganhariam visibilidade com o ressurgimento dos festivais (o Universitário, da TV Cultura e o da Tupi, em 1979  e, mais adiante, o MPB Shell e o Festival dos Festivais, ambos da Globo). Itamar, por sua vez, seria um ponta-de-lança do Lira. Já Eliete estaria associada à produção de Arrigo Barnabé como sua intérprete ideal, preocupada tanto com seus elementos timbrísticos quanto à detalhes técnicos de interpretação, tão caros às formulações complexas do compositor de Clara-Crocodilo.

Nuno também chama a atenção para grupos independentes que fizeram seu caminho através da música instrumental. Pegando o exemplo do Zimbo Trio que, oriundo dos conuntos de bossa nova dos anos 1960, tinha uma tendência ao ecletismo e à universalização do seu som. Essa vertente também surge na mesma época do pioneirismo de Antônio Adolfo e do Lira Paulistana, misturando choro e jazz: Pau-Brasil, Nelson Ayres, Grupo Um,Trio d’Alma, Papavento e o Pé ante Pé, com traços de música oriental, próximo do que posteriormente poderia ser rotulado de “world music”.

Por fim, Gil Nuno demarca pelo menos três momentos importantes desta produção independente: a resistência do público, por conta do seu caráter alternativo; o uso de sua visibilidade com forma a estabelecer homologias entre artistas, agentes culturais e gravadoras alternativas – porém, mais como tendência e estratégia do que como potência suficiente para conquistar posições de dominância efetiva no campo da música; por último, a despeito dos revezes, o ‘movimento’ independente pôde colher frutos no sentido de estabelecer uma imagem singular de “vanguarda” no panorama histórico da MPB.

Outra característica apontada por Vaz é que, de forma capital, a quase totalidade desses artistas independentes tinham/têm formação erudita e ou acadêmica, desde Tatit e Arrigo até os músicos do Premeditando o breque ou eliete Negreiros, que Caito Marcondes. Seria sintomático observar que, dos doze finalistas do I Festival Universitário da TV Cultura teve metade desses candidatos oriundos da USP. Isso demonstra que, se em etapas anteriores, o músico era orientado por um produtor de raiz erudita, aqui os próprios artistas manifestam esse background a partir de sua formação acadêmica/erudita. Restaria saber, anota Nuno, se as propostas apresentadas por eles foram capazes de conciliar com o universo prático da música popular, isto é, se tal produção atingiu esse alvo específico em termos de acessibilidade. O primeiro problema já residiria no fato de que a música independente em seu começo não constituía um movimento mas, sim, numa explosão de várias tendências e propostas.O segundo, e mais curioso, aponta o autor, é o de que essas tendências, em matéria de resultados,  pareciam mais associadas com o destino da produção erudita de vanguarda, cujo distanciamento do público, conclui Gil Vaz, é notório.

No entanto, ao mapear a música independente além da virada paulista e a Lira, o autor abriu espaço para outras tendências em outras praças do país. Pode-se aqui, a título de exemplo, citar o caso (já comentado aqui no blog) do Musipuc e a difusão de uma cena local a partir de uma emissora de rádio de segmento jovem na Porto Alegre dos anos 1970, a Continental. Porém, mesmo que houvesse uma cena independente considerável e uma demanda de publico idem, a mentalidade, de certa forma, ainda era a de encontrar um lugar ao sol no esteio das grandes gravadoras,  em geral de São Paulo e do Rio de Janeiro. Alguns artistas lograram êxito, caso dos Almôndegas e de Fernando Ribeiro; porém, em sua maioria, muita dessa produção não chegou ao disco, e só foi redescoberta décadas depois, a partir de uma bibliografia que buscou documentar esse momento na história da MPG.   

As coisas mudariam com o surgimento do selo Pentagrama/Isaec que, de certa forma, pela primeira vez, deu vazão a uma produção local, lançando álbuns como o coletivo Paralelo 30 (produzido por Juarez Fonseca e retratando uma amostra do que fora essa geração setentista Musipuc-Continental, com nomes como Raul Elwanger, Nelson Coelho de Castro e Bebeto Alves, entre outros). O Pentagrama ainda lançaria outros artistas, como o citado Fernando Ribeiro, Plauto Cruz e Nelson Coelho, que seria pioneiro ao produzir o disco Juntos através de crowdfunding, muito antes dessa expressão virar de uso corrente.

Esses exemplos á demonstrariam o quando uma cidade como Porto Alegre,  tão distante do centro do país, teve uma produção importante porém que historicamente sofreu com barreiras para a sua difusão,mesmo em âmbito local. Ao mesmo tempo, mostra que, por conta dessas mesmas barreiras, artistas locais, como no caso do citado Nelson, ou outros, já na virada dos anos 1980, como Nei Lisboa, Replicantes ou Júlio Reny construíram suas respectivas carreiras de forma independente, com trabalhos de âmbito local, ainda que ambicionando ir além  -  contudo marcando posições no cenário musical. E muitos continuam assim até hoje: a diferença é que, passados mais de três décadas, se antes havia a suprema aspiração de fazer parte do cast de uma grande gravadora, elemento de prestígio e de capital simbólico para todo e qualquer artista, agora isso não é preponderante, ainda mais na medida em que a agenda desses grandes selos, hoje, sustente uma tendência cada vez mais à homogeneização e a simplificação das suas estratégias de produção em função do consumo. 

Importante lembrar de experiências que surgiram nos anos 1990 a partir de selos capitaneados por músicos integrantes de bandas oriundas do BRock, como a Banguela, dos Titãs, e a Rock It, projeto paralelo de Dado Vila Lobos, no mesmo período, que virou uma loja de discos, e lançou várias bandas independentes ao longo da década, como a Comunidade Nin Jitsu e a Ultramen, mas que sucumbiu naturalmente nos anos 2000 como selo, com a massificação da Internet e a pirataria em CD. 

Além do mais, depois do advento e a supracitada popularização da internet, muitas daquelas barreiras foram derrubadas e o que poderíamos chamar de ”cena independente” ou produção alternativa num país continental como o Brasil seja, no presente momento, uma empresa quase impossível de mapear. Ou um livro/tese que discorra, pegando o mote do livro de Gil Nuno (que é de 1988) a respeito da cena independente no Rio Grande do Sul  Mas enfim, esse já é assunto para um outro post.

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