Thursday, August 16, 2018

Gricel

A musa de Contursi



Antes um parêntese: eu comecei a ouvir tango meio de brincadeira. Lembro de um tio que tinha uma discoteca gigante e diversificada, e ele tinha alguns discos de música platina que eram, por assim dizer, álbuns brasileiros que mais pareciam aquela visão que as pessoas em geral têm do tango: algo muito associado à dança, e sempre calcado nos temas mais conhecidos. Talvez por conta disso, eu sempre achei um estilo chato e desinteressante.

Uma dessas bolachas, porém, me chamou a atenção. Era uma coletânea de 8 rotações da orquestra do uruguaio Francisco Canaro, pioneiro da história do disco, o músico granjeou fama e catalisou toda uma geração de jovens músicos e cantores nos anos 30 a 50 que é possível chamá-lo de o maestro do período clássico do tango.

Claro que tudo isso eu soube muito depois. Antes, contudo,  havia esse disco, com uma capa engraçada, um bandoneón com dois olhos. A coletânea era curiosa, porque as chapas originais eram de 78 rotações e o álbum foi relançado até meados dos anos 70 pela antiga Odeon.

Não ouvi o disco até que, num desses movimentos curiosos, eu acabei ganhando um lote, que ia de sambas até quase todos os Roberto dos anos 70 e, por incrível que pareça, aquele disco do Canaro.

Muitos daqueles vinis eu acabei passando adiante. Mas, por conta da oportunidade de poder finalmente matar a curiosidade e escutar o disco me fez ficar com ele. E a verdadeira experiência da audição é aquela quando nós colocamos o disco ou o CD na vitrola e ouvimos por conta própria. A audição passiva - típica do ouvinte de rádio, por exemplo, não sedimenta essa relação do ouvinte com o artista.

Lembro que pus o Canaro na vitrola e achei aquilo muito engraçado. Tinha um som muito antigo, disfarçando o mono de gravações de mais de três décadas num falso estéreo muito mal feito, mas eram as chapas originais.

O divertido é que, naquele tempo da Guarda Velha, os temas eram apresentados como nas orquestras tipo Toomy Dorsey: uma longa introdução instrumental e o cantor entrava quase no final, fazendo com que, muitas vezes, a letra do tango não fosse cantada inteira. Ao mesmo tempo, os crooners ainda tinham aquele atavismo do canto lírico, sempre forçando um pouco os vibratos, algo que Gardel não fazia muito, o que o transformava, na minha opinião, num cantor moderno mesmo que ele fosse inclusive anterior àquelas gravações do Canaro (entenda-se aquelas do disco, porquanto sua carreira começou com o disco, ainda nos anos 10).

De tanto ouvir aquele disco, eu comecei a procurar em sebos outros álbuns do tipo. Tudo muito difícil. A grande produção daqueles tempos do Canaro na Odeon foi sendo relançado em coletâneas pelo Cone Sul mas, aqui, no Brasil, à medida em que nos afastávamos historicamente daquela relação com a cultura platina, a indústria fonográfica no Brasil passou a se desinteressar em relançar esse catálogo antigo.

Diferente da relação 'platina' com o tango, onde os audiófilos se relacionam bastante com o catálogo antigo, aqui optou-se por aquilo que expus acima: discos que exploram, à feição do ouvinte brasileiro moderno, em álbuns que são meras arapucas.

Á medida em que fui realmente entrando nesse mundo do tango gravado (a Guarda Velha, antes do Piazolla), eu fui me interessando tanto como ouvinte audiófilo especificamente do tango como ouvinte "platino", nem como um nostálgico do tempo dos meus avós, quando a cultura platina vicejava em Porto Alegre, influenciando o esporte (turfe), a música (tango, milonga) e até a imprensa (o tablóide).

Ou seja, não se trata de saudosismo mas, sim, a necessidade de tentar entender onde acabou essa integração da nossa região sul com os outros países e por que o Brasil resolveu ficar de costas para o Prata. Poderíamos dizer que a necessidade de integração nacional, operando em vários níveis mas mais em nível político e, num segundo momento, com a urgência de uma indústria cultural onde toda a produção acabou sendo, em tese, estandartizada em todo o Brasil, de tal forma que, de uma forma mais sintomática, houve uma 'separação' entre as duas partes.

Essa questão é mais sintomática ainda quando o Vítor Ramil publicou a 'Estética do Frio' (2) e que fala um pouco disso (embora não fale exatamente disso). O manifesto, que não é exatamente um manifesto (publicado no primeiro Nós os Gaúchos), como ele mesmo pontifica, mais do que tematizar a respeito de uma cultura própria a partir do Prata, o texto pode dar pistas para que possamos entender esse atavismo platino e da forma como isso se perdeu - e quando ele teve o epifania ao observar, fora do sul, de como ele estava mais distante do do que estava, ao analisar a questão a partir do centro do país.

O que eles consideravam o fim do mundo era o começo de um outro pólo cultural, com uma linguagem comum, e como se esse estranhamento nosso residisse num erro de perspectiva, ainda mais dificultado pela barreiras de língua e fronteira. Porém, como entende Adriana Dorfman num interessante ensaio sobre a literatura de fronteira e representações (3), essas manifestações se enquadrariam no que poderíamos chamar de comarca cultural do pampa, como uma negação da congruência entre cultura e nacionalismo, onde a fronteira nacional delimitaria práticas culturais e língua.

Contudo, no caso gaúcho, observa Adriana, a fronteira é o marcador, o símbolo de uma cultura, uma especificidade em relação ao Brasil. A partir daí, ela infere que a literatura, e poderíamos sinalizar, a produção cultural como um todo, e esse é o ponto de contato com a observação de Ramil em sua 'estética', carrega a ambiguidade de ser transnacional, compartilhada por Uruguai e Argentina.

Tudo isso seria eu olhando em retrospectiva ao reouvir aquele mesmo disco do Canaro: de como que eu, ao ouvir esse tipo de música, me torno deslocado, por que deslocado? Por que nós nos desinteressamos em ouvir tango como se ouvia antigamente? Claro que, falando a partir de Porto Alegre, hoje, ainda mais para quem vive na fronteira, não existe lá muito estranhamento.

Mas acho que a questão mais curiosa é que historicamente houve uma relação cultural que se perdeu, e esse hábito de ouvir tango passa por isso. Porque, fora desse âmbito, o tango é música de turista brasileiro em Buenos Aires. E a impressão que eu tenho é que esse esse é um sintoma dessa falta de perspectiva.

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Agora sim, de saco para mala:


O disco de tango em questão é Adiós Pampa Mia. O álbum é uma coletânea muito provavelmente dos anos 60, lançado em capa-sanduíche, que era um formato muito comum da gravadora naqueles tempos. Eu confesso que sempre achei bizarro demais aqueles vocais, depois eu descobri que aquilo era o estilo de época, o crooner, embora sempre muito expressivo, vinha sempre depois do diretor de orquestra (paradigma que seria quebrado pelo Sinatra ainda nos anos 40). Mas fui me acostumando e procurando outras dessas coletâneas.

A maioria dos 78 dessas compilações foram registradas entre 1939 e 1950 e, raras exceções, já eram regravações que Canaro havia feito antes mas que, devido à tecnologia precária dos primeiros tempos do disco, isso fez com que o maestro regravasse muita coisa, como "El Entrerriano" por exemplo.

Lógico que tudo isso eu fui saber depois de descobrir livros especializados, escritos por audiófilos como José Lino Grunewald (1) e depois do advento da Internet, que me fez também descobrir o nome daqueles cantores dos bolachões do Canaro. Isso para ver o que havia de informação a respeito das gravações, e que muitas vezes eram sonegadas ainda que de forma involuntária, nessas coletâneas, feitas sumariamente para vender.

Depois descobri que muitos dos temas daquele disco eram clássicos, como "Envídia", "Una Lagrima Tuya", "Confessión" e duas que me chamavam a atenção: "Gricel" "en esta Tarde Gris".

O livro do Grunewald tinha uma função de ser um dicionário para neófitos no assunto. O problema é que, quando ele saiu, aquelas gravações, mais especificamente as do Gardel, eram inalcançáveis. Assim como o Canaro, com muita dificuldade era possível achar alguma compilação do Morocho do Abasto já que a produção dele é anterior ao long-play. O que existia estava já esgotado e nas mãos de colecionadores. Isso dificultava e dificultou, por muito tempo, que fosse possível conhecer essas gravações.

O fascinante em tangos é que tudo vira assunto. Uma rua, um bairro, um gato de porcelana. E muita dor-de-cotovelo. Aliás, uma das provas dessa atávica integração entre platinos e gaúchos está na lírica de um Lupicínio Rodrigues.  Enquanto a música é samba-canção, a letra dele é de tango. É um caso a ser estudado, a de um cancionista brasileiro gaúcho que misturou, de forma singular, sambas com letras de tango.

Entre muitas histórias,"Gricel", por exemplo, é um tango que tem uma história que valeria por si só um post inteiro. A música é uma espécie de, mal comparando, uma "Layla" portenha. É uma história de amor eternizada como tango.

O compositor José María Contursi conheceu Susana Gricel em 1935. Ela viva em Córdoba na época e foi à Buenos Aires assistir a uma apresentação de Nelly Omar, amiga dela, na rádio Stentor. O locutor da emissora na época era Contursi (também filho de Pascual Contursi, autor de "Mi Noche Triste", que inaugurou o tango-canção quando Gardel a interpretou no Teatro Empire, em 1915) que, apaixonou-se por ela instantaneamente. Porém, ele já era casado e tinha uma filha. A paixão foi correspondida, mas ela acabou voltando para sua cidade natal.

Eles mantiveram contato por cartas. Tempos depois, com problemas de saúde, Contursi foi tratar-se numa estação em Córdoba. Nelly, a amiga de Susana, ao saber do estado de saúde precário de Contursi (tinha febre intestinal numa época sem antibióticos e o médico ordenou-lhe que mudasse de ares). Ela o procurou e disse: "lembra de Gricel? Os pais dela tem uma estação de águas em Córdoba".  O idílio durou até que ele pôde recuperar-se e voltar para a capital.

A separação aparentemente definitiva fez com que Catunga definhasse em tangos que se tornariam clássicos, como "Sin Lágrimas":

 Ya ves, mis ojos no han llorado
Para qué llorar lo que he perdido
Pero en mi pecho desgarrado, sin latidos, destrozado
Va muriendo el corazón

"En Esta Tarde Gris", com parceria de Mariano Mores na música, que inclusive toca magistralmente na versão de Canaro:

Qué ganas de llorar
En esta tarde gris,
En su repiquetear
La lluvia habla de ti.
Remordimiento de saber
Que, por mi culpa, nunca,
Vida, nunca te veré.
Mis ojos al cerrar
Te ven igual que ayer,
Temblando al implorar
De nuevo mi querer.
Y hoy es tu voz que vuelve a mí


A mesma parceria gerou em 42 "Gricel", que transformou susana na "moça do tango".


No debí pensar jamás
En lograr tu corazón
Y sin embargo te busqué
Hasta que un día te encontré
Y con mis besos te aturdí
Sin importarme que eras buena
Tu ilusión fue de cristal
Se rompió cuando partí
Pues nunca nunca más volví
¡Qué amarga fue tu pena!”.


A paixão de Contursi valeu uma ciranda de tangos inspirados por Susana: "Garras", "La Noche Que te Fuíste", "Cristal",  "Sombras Nada Más" (que viraria sucesso com Javier Solis no México anos depois) e "Cada Vez Que Me Reuerdes".

A história ganhou mundo. Porém, enquanto ele se desesperava, Gricel viu-se forçada a casar com um certo Jorge Camba, em 49. O casamento (só no civil) durou pouco, dado às saídas dounjuanescas dele, que logo acabou abandonando Susana com uma filha.

Muitos anos depois, Gricel soube da ruína de Contursi, através de Ciríaco Ortiz, quando passava por Córdoba: viúvo há anos, acabava-se bebendo hectolitros na confeitaria El Molino.

Foi lá que Susana encontrou Catunga, vestindo gris e entornando parati. A partir dali, ela ia constantemente a Buenos Aires, a fim de mantê-lo longe da bebida. Mas para que ficassem juntos, ele disse a ele: "nós vamos subir para Córdoba mas o uísque fica aqui". Em 67 eles finalmente se casaram, ele com 56 anos e ela com 47. A união durou até a morte dele, em 72.


Notas:


(1) GRUNEWALD, José Lino. Carlos Gardel, lunfardo e tango. Nova Fronteira, Rio de Janeiro, 1994.
(2) GONZAGA, Sergius (vários). Nós, os gaúchos. Ed. da Universidade/UFRGS, 1998.

(3) DORFMAN, Adriana. Representações, normas e lugares: contos de contrabando da fronteira gaúcha. Revista Para Onde? Programa de Pós-Graduação em Geografia UFRGS. Volume 6, número 2, 2012 

Tuesday, August 07, 2018

Maria Fumaça


Estação de Pedro Osório-RS



Tem um artigo da Wikipedia em inglês que lista músicas cuja temática de trem.
Por exemplo: "Orange Blossom Special", imortalizada por Johnny Cash; "Tuesday's Gone", do Lynyrd Skynyrd. Outras: "The Ballad of Casey Jones", "Hey Porter", "Rock Island Line", "The Night They Drove Old Dixie Down", "Love In Vain", "Take This Hammer", "Night Train", e muitas outras tantas.

Ou seja, é um tema recorrente no repertório americano, dado que este meio de transporte se mistura com a própria formação e a história daquele país.

Basta lembrar que o tema aparece na literatura também. Não preciso lembrar de Jack Kerouac que, como seu amigo Cody/Dean, trabalhou como guarda-freios na Califórnia e, como a maioria dos vagabundos e os desesperados okies do livro do Steinbeck da primeira metade do século passado, pegava carona em vagões vazios, uma cena também recorrente em toda a sua obra. Ou seja, o trem faz parte da paisagem e do imaginário americanos mais especificamente.

Por isso que no Brasil, que é um país sem trens, usá-lo como tema causa certo estranhamento. Por exemplo, quando ouvimos "Sob um Céu de Blues" ou "Expresso do Blues (quem lembra dessa?). Ela fala sobre alguém que foi abandonado numa estação de trem, uma coisa bem "Love In Vain". Grande licença poética, porquanto é o cenário perfeito, mesmo que seja difícil ambientar uma cena dessas por aqui. Porque não tem trem.

Como se sabe, a ditadura sucateou a rede ferroviária federal nos anos 70 para pavimentar o caminho para as empreiteiras transformarem o Brasil no país do asfalto. Então não dá pra fazer música de trem porque não tem trem, é algo ligeiramente anacrônico.

O que restou da malha hoje está cedida a empresas particulares.

Se o leitor for à Cruz Alta, e espero que vá, irá conhecer a estação de trem da cidade (fica atrás do museu Erico Verissimo). É como voltar no tempo. A estação está lá, muito bem conservada, mas só para visitação. Os trens são todos da América Latina Logística (ALL). Uma estação de trem na Europa é uma estação de trem. Aqui, é pura nostalgia ou saudade de um tempo que muitos viveram no passado, mas que nós não vivemos.

"Sob Um Céu de Blues", por exemplo, pode ser considerada anacrônica, já que foi engravatada numa temática típica do rock, mas num ambiente fora do tempo. Mas existem canções de trens do tempo que andávamos sobre trilhos. Por exemplo, lembrei-me de "Maria Fumaça", que é do primeiro disco da dupla Kleiton  & Kledir.

Lembrei dela por acaso e, ao mesmo tempo, lembro também da minha infância, quando tínhamos o disco gravado numa fita Philips (na verdade uma miscelânea dos dois primeiros álbuns, feita com carinho com um amigo nosso que era fã de música regionalista) e sempre ouvíamos os primeiros discos do Kleiton e Kledir nas nossas viagens e passeios de carro. Sempre que eu ouço "Maria Fumaça", lembro das longas vigileaturas entre Curitiba e Porto Alegre.

Ela tem todos os elementos da canção de trem, a começar pelo ritmo que mimetiza o andar da locomotiva. A música conta, como um crônica não sem uma boa dose de humor e nostalgia (para nós) as atribulações de um noivo que vai de Porto Alegre a Pedro Osório para casar antes que o padre resolve colocar outro em seu lugar, como diz a letra. No fim, achando que não vai chegar à tempo, perora que vai querer indenização da Rede Ferroviária Federal (RFFSA).

A letra faz menção à linha que ligava Rio Grande a Bagé, e que existiram até pelo menos 1980 (época de lançamento do disco). Também fala de um passageiro que seria de Canguçu - onde havia um histórico ramal que ligava Pelotas até Santa Maria, até os anos 60.  Já a citada linha de Pedro Osório continuaria ativa até o começo dos anos 90.

Já a RFFSA citada em "Maria Fumaça", representou a união de todas as linhas do país, e existiu por meio século, até a sua extinção, em 2007, há pouco menos de uma década. Contudo, nessa época, o transporte ferroviário de passageiros formalmente já não existia há décadas no país. Quando o governo federal concedeu as linhas públicas à iniciativa privada, as empresas não se interessaram pelo transporte de passageiros.

O restante da malha ativa pertenceu depois à America Latina Logística, que é o logo que vemos nos vagões da empresa quando vamos visitar a estação de Cruz Alta. Chega a ser curiosamente fantasmagórico quando, de madrugada, é possível ouvir apitos de trem pela noite da pequena cidade do noroeste gaúcho.

Acabou o trem e acabou a poesia, só temos agora a infinita highway...