Sunday, July 19, 2020

O Largo

Largo dos Medeiros em Porto Alegre (foto: Virgílio Calegari, colorizada pelo projeto Cores da Memória)

Essa foto é bem curiosa. É um flagrante do Virgílio Calegari, que deixou várias imagens da Porto Alegre do começo do século passado. Aqui podemos ver a esquina da Andradas com a General Câmara, no coração do Centro.

Muita gente que olhar a cena hoje deve ficar pensando que ela mostra algo como um acidente, um atropelamento, uma briga ou algo do tipo, dada a quantidade de gentre aglomerada na esquina. No entanto, se você ver bem, não existe gente apinhada nas janelas, ou seja, aparentemente, esse ajuntamento em plena luz do dia é algo normal.

E, por incrível que pareça, era. Importante notar, ou contextualizar aqui, antes de mais nada, que essa esquina era um pára-raios: do outro lado da praça Senador Florêncio, ficava o Grande Hotel, onde muitos políticos moravam. Ao seu lado, ficava a Federação, a imprensa oficial, o Correio do Povo, já nessa época, nas mãos de Dolores Alcaraz Caldas, um jornal de grande distinção na cidade e no Estado

Era a época dos cafés cantantes, das choperias tipicamente alemãs (Nilo Ruschel fala sobre elas em seu livro Rua da Praia *), do turfe (muito antes do futebol), do transporte fluvial de passageiros (a Varig só apareceria a partir dos anos 30), de uma relação mais próxima entre Porto Alegre e a região do Prata. Nessa época, o porto era a entrada da cidade, ligação principal do pequeno burgo açoriano (já cada vez menos açoriano) com o resto do mundo. 

E, nessa esquina da foto, ficavam as grandes confeitarias da Rua da Praia, a Schramm (que tinha dois andares, café cantante e espaço para festas, num prédio onde parte dele foi mal e mal mas ainda sobrevive) e a Central (ligado ao cinema, de mesmo nome, e que marcou época), do outro lado da rua na foto. E a própria General Câmara, como vocês devem lembrar quem leu Os Ratos, do Dionélio Machado, era a rua dos tabelionatos, das bancas de advogados, escritórios em geral - era o cérebro da cidade No topo da Ladeira, naturalmente, tanto ficava quanto hoje ainda fica o coração político da urbe.

Ou seja, independente da hora ou do dia, praticamemente essa esquina catalizava todo mundo que vivia o dia no Centro que, naqueles tempos, antes da descentralização de Porto Alegre, era A cidade (até hoje, quando a gente conversa com pessoas que moram em bairros afastados, é possível ver que existe uma tendência a chamar o Centro de "Porto Alegre").

Nas suas memórias **, Carlos Reverbel, que viveu essa transição da Porto Alegre antiga e a atual, dizia que o primeiro surto modernizador da cidade foi com a Revolução de 30. Importante lembrar que 1930 é o ano do Viaduto da Borges, avenida que, de certa forma, foi a primeira perimetral no burgo açoriano. Com ela, agora havia uma ligação direta entre o cais e a zona sul, sem ser preciso contornar a península do centro.

O viaduto provocou um bota-abaixo em cortiços no caminho, abriu outras artérias, desde a antiga Rua Nova (depois Andrade Neves) até a André da Rocha Ambas eram, até então, regiões de baixa renda, cheia de cortiços e lupanares. Ou seja, a Borges mexeu o centro, e abriu o largo onde hoje fica o prédio do Guaspari-Lebes, com a abertura da José Montauri (para descer a Andradas, até então, a única forma era ou pela Uruguai ou a Marechal Floriano).

Aliás, diz Reverbel, Porto Alegre viveu anos de imobilismo com o intendente Montauri - tanto que a distribuição de energia elétrica pela cidade só começaria de fato na administração Otávio Rocha (1924), interventor que foi responsável pelo viaduto, que leva seu nome, inaugurado pelo seu sucessor, Alberto Bins (1928). É Bins o prefeito nomeado que mudou a cara do Centro, ou seja, da avoenga Porto Alegre de então. 

Carlos Reverbel fala que a Andradas era a vitrine da cidade Nela, diz ele, havia lugares reservados a determinados grupos ou pessoas, como lugares em teatros. Observe que colocação interessante: quando vemos a foto lá em cima, podemos começar a entendê-la. "formando inúmeras rodas de palestras, em geral, animadas por afinidades eletivas, essas pessoas entretinham-se em tertúlias ao ar livre, qur podiam se repetir diariamente, o mais das vezes com o expediente pautado pelo horário comercial".

Segundo ele,  as rodas eram diárias e operavam em tempo integral, com os participantes revezzando ao longo do dia. Algo que seria possível comparar com a rotatividade daa do Brique da Redenção, porém diárias, e formadas nas escapadas do dia, intervalo de almoço, fim de tarde. As rodas, diz Reverbel, ficaram famosas justamente nesse ponto aí da foto, na esquina da Andradas com Ladeira, no que a municipalidade mais tarde pasou a chamar de Largo dos Medeiros.

O jornalista conta que assim como as rodas se tornavam antológicas, seus personagens também. Havia tipos que trabalharam como caixeiros, viajavam e retornavam ás rodas de conversa ainda com o pó da esteada para retomá-las como se nada tivesse acontecido. Papos de três meses eram retomados e se misturavam às últimas notícias.

O Largo era, mal comparando, a ágora da cidade. Era onde as pessoas não apenas se encontravam como ficavam sabendo das últimas. Além do Correio e da Imprensa Oficial, na Caldas Júnior, havia ainda o Diário de Notícias, que ficava na época (até o empastelamento, em 1954) logo na subida da Ladeira.

Notícias que apareciam no antigo placar que o Correio mantinha na frente do seu prédio, na época de eventos como a 2ª Guerra (numa época em que as redes sociais eram impossíveis de se imaginar) corriam a praça e logo eram repercutidas pelos presentes, o que faz entender a atração pelo Largo por parte dos porto-alegrenses. "quem deixasse de frequentar a Rua da Praia ficava por fora da vida da cidade e corria o risco de ser zerado na sociedade local", diz Reverbel.

Nas rodas do largo, misturavam-se desde um contrabandista de camisas argentinas com algum procer, um intendente ou até um governador. Diz Reverbel que, numa destas rodas, Getúlio Vargas teria sugerido a criação de um semanário feito aqui no Rio Grande do Sul, para um grupo de jornalistas Pouco tempo depois, diz ele, surgia, quem sabe por ideia do governador, a Revista do Globo.

Em matéria de política, diz Reverbel, tudo passava pelo largo. Tanto que a conspiração que desandaria na refrega que ocorreu na esquina da altura do Exército no começo da Revolução de 30 na capital já era sabido de muitos na esquina da Ladeira. Era a tarde do dia 3 de outubro de 1930. Muita gente saiu do largo direto para a Capital Federal, e muita coisa mudou.

No entanto, o hábito das tardes na esquina da Ladeira continuaram por muito tempo. Com o tempo, aquela geração foi se dissipando no tempo e no espaço. A própria região foi mudando - o Cinema Central foi demolido, o Grande Hotel pegou fogo, o Diário foi transferido para o 4º Distrito, o porto perdeu importância depois do muro, as pessoas foram saindo das ruas e das janelas, o êxodo rural transformou o footing onde todos quase se conheciam de obas e olás numa enorme fauna de gente anônima, com ambulantes e pedintes, a conurbação foi criando outras microrregiões, novos pequenos centros, a cidade foi crescendo e se descentralizando.

Na época do Regime Militar, provavelmente veio o golpe de morte: era proibido que pessoas se reunissem na rua. Mas o fim, de fato, ocorreu quando a Prefeitura resolveu construir o polêmico calçadão. Hoje, ninguém se lembra ou sabe que, um dia, aquela esquina era o umbigo do universo do burgo açoriano que Carlos Reverbel falava para lembrar da Porto Alegre de sua juventude, quando veio de Quaraí para ser jornalista na capital.

Hoje, se eu me postar na esquina da Ladeira com Andradas e fizer um "fala-povo" com os transeuntes perguntando onde fica o Largo dos Medeiros, ninguém saberá responder, mesmo estando parado no próprio lugar. Como dizia o próprio Reverbel, na sua coletânea de crônicas, Barco de Papel: a Porto Alegre de antigamente hoje só existe nas páginas do livro de saudades escrito por Nilo Ruschel (lançado pelo Instituto Estadual do Livro nos anos 1970). Ou seja, só restou na memória.


* Nilo Ruschel. Rua da Praia. Porto Alegre: IEL, 1971.

** Carlos Reverbel e Cláudia Laitano. Arca de Blau, memórias. Porto Alegre: Artes e Ofícios, Porto Alegre, 1993.  

Tuesday, July 07, 2020

Completamente Blue

Cazuza na capa do disco Só se for a Dois



Esse é um trecho da polêmica matéria da Veja de abril de 1989:

"Cazuza não é um gênio da música. É até discutível se sua obra irá perdurar, de tão colada que está no momento presente. Não vale, igualmente, o argumento de que sua obra tende a ser pequena devido à força do destino: quando morreu de tuberculose em 1937, Noel Rosa tinha 26 anos, cinco a menos que Cazuza, e deixou compostas nada menos que 213 músicas, dezenas delas obras-primas que entraram pela eternidade afora. Cazuza não é Noel, não é um gênio. É um grande artista, um homem cheio de qualidades e defeitos que tem a grandeza de alardeá-los em praça pública para chegar a algum tipo de verdade".

O trecho, que aparece na biografia do cantor e compositor Cazuza, que morreu há trinta anos, em 7 de julho de 1990, no Rio de Janeiro. Sua grande mágoa ao ler a revista, como afirma Lucinha Araújo, a autora do livro Só as Mães são Felizes (em colaboração com Regina Etcheverria), foi justamente porque a reportagem-entrevista desmereceu sua produção musical.

Naquela época, tanto como hoje, essa comparação era inevitável. No entanto, feita dessa forma, parece desnecessariamente legar Cazuza, ainda em vida, a um lugar menor no reino dos céus da música brasileira. Parece que fica claro quando alguém compara um mito sagrado dos pícaros azulados da MPB com um jovem cantor contemporâneo e que ainda quebrar lanças para deixar seu nome inscrito como compositor.

Claro que, três décadas depois, seria absurdo querer bancar aqui o profeta do acontecido e espinafrar a previsão dos autores do texto. Mas a comparação aqui me permitiria outras divagações a respeito.

Eu lembro do Cazuza dos anos 80 mas, mesmo assim, tenho uma lembrança lacunar dos acontecimentos. Recordo de quando “Pro dia nascer feliz” estourou no rádio (naqueles tempos pré-walkman, eu ainda não ouvia muito FM), do filme Bete Balanço, do sucesso de “Faz parte do meu show” (já na fase walkman, que eu tinha gravada numa fita TDK provavelmente das madrugadas da Ipanema”. Por fim, recordo de “Burguesia”, que tocava nas rádios mas, pensando hoje, soava mais como um réquiem, tanto; que a nota política da letra, tão atual hoje, me passou batido. Falo que os anos 80 musicalmente foram lacunares porue esse disco, como toda a produção de Cazuza, eu só fui ouvir de verdade muito tempo depois. Mas pouco tempo depois de sua morte, a sua música parecia passar por um lento esquecimento.

Por isso que essa comparação de Cazuza com Noel Rosa é bastante interessante. Quando Aracy de Almeida revisitou a obra do Poeta da Vila, nos anos 50, o autor de “Conversa de Botequim” era, como diz Ruy Castro em A Noite do Meu Bem, um compositor esquecido. O Noel de hoje, gravado, regravado, publicado, revisitado e amplamente referenciado em centenas de trabalhos e escritos, acadêmicos ou não, não era o mesmo Noel que Aracy, sua maior intérprete, reapresentava nas notes cariocas do Golden Room do Palace.

Quando Noel Rosa morreu, ele também passou por um lento processo de esquecimento. Além de Aracy, que manteve a memória do criador de “Com que Roupa” foi seu amigo e radialista Almirante, que apresentava programas de rádio sobre Noel, programas que viraram o livro No Tempo de Noel Rosa, a primeira biografia do sambista de Vila Isabel.

Para seus contemporâneos, como diz Ruy Castro, Noel era lembrado como aquele cara que fazia sambas e que ganhava a vida como um factorum em emissoras de rádio da Capital Federal. Muitos lembravam dele como contra-regras aqui e ali, e sempre habitué dos bares do Centro e da Lapa. O Noel Rosa que conhecemos hoje, e que é citado como o grande criador da canção brasileira, como diz Luiz Tatit, é uma “criação” recente, mas que não deixa de pagar tributo à grande importância de Noel para a consolidação da música brasileira do Século XX.

Onde eu quero chegar com isso? Que a construção do mito de Noel faz parte de um processo que se formou na longa duração da história da MPB, e passou por movimentos de esquecimento e rememoração, e da formação de uma historiografia que colocasse tudo nos seus devidos lugares. A própria trajetória do estudo da canção numa perspectiva acadêmica é muito recente e passou por novas formas e olhar para esse passado e trabalhá-lo numa perspectiva teórica, etc.

A famosa matéria da Veja compara Cazuza com Noel tratando este de “gênio” e comparando a ambos a partir da quantidade de canções escritas (Noel morreu em 1937, com 26 anos). Para a Veja, pesava a favor de Noel a alcunha de “gênio” (a concepção de “genialidade”  hoje já amplamente discutível) e de ter escrito mais sambas. Naturalmente que hoje podemos discutir o Poeta da Vila e Cazuza muito além desses termos: nem genialidade é um indicador válido, muito menos o tamanho do corpus da obra. É possível inferir muita coisa além desses parâmetros.

Da mesma forma como entendemos hoje que Noel representou um papel seminal no curso da música brasileira como o cancionista que estabeleceu o samba-canção num status de grande arte, emprestando-lhe um acento, um sotaque, uma lírica que notabilizou o gênero e faz com que o samba saísse do estágio das letras ou empoladas (do tempo do Catulo da Paixão Cearense) ou meramente esquemáticas (com as de Sinhô, voltadas em geral para o teatro de revista). A partir de Noel, e com seus contemporâneos, o samba-canção se torna o começo da canção moderna brasileira.

Cazuza, por sua vez, muito além de ser gênio ou ter uma produção gigantesca, tinha noção do seu papel no contexto do pop dos anos 80 e refletia bastante a respeito de suas influências e do seu processo de criação em inúmeras entrevistas. Ao fazer a aproximação entre ele e Noel, é possível realizar aproximações com vistas à encontrar pontos de contato entre eles, sem necessariamente se propor a uma gincana de qual é o compositor que lava mais branco, como queria o texto da Veja. Por exemplo, assim, como é válido pensar no Poeta da Vila no processo de formação do samba-canção e da canção brasileira, também é válido pensar em como a produção musical de Cazuza foi importante ao estabelecer uma ligação entre a “linha evolutiva da MPB” (roubando o termo de Augusto de Campos em O Balanço da Bossa) no pós-tropicalismo dos anos 70 (quando MPB e rock tateavam uma integração) entre Tropicália, o samba-canção (ou a canção brasileira) e o rock – uma síntese que poderia ser explicada analisando-se processualmente na longa duração o desenvolvimento dessas vertentes na produção musical urbana da MPB na segunda metade século passado.

A hipótese possível é a de que se a canção, a MPB de festival e a Tropicália (como proposta inicial de síntese) pareciam excludentes entre si ao longo dos anos 60 e 70, a música de Cazuza representou, pegando a “linha evolutiva” da canção (aí puxamos Noel lá dos anos 30), o samba-canção (tão renegado pelos teóricos da Bossa Nova), o tropicalismo (como proposta de reelaboração de vertentes culturais concorrentes) e o rock (que influenciou a MPB dos anos 70 mas que seguiu um caminho particular pela década enquanto buscava uma visibilidade que, como gênero, só encontraria plenamente nos anos 80 de Cazuza).

Com influências desde a velha guarda (Cartola, Herivelto Martins via Dalva de Oliveira e outros), passando pela MPB e a contracultura setentista e toda uma geléia geral alhures (Billie Holiday, Kerouac, Waly Salomão, Novos Baianos, Caetano, Gil, Macalé, Luiz Melodia, Secós e Molhados) e o rock (Janis Joplin, Beatles, Stones), tanto no Barão Vermelho quanto em sua carreira solo, Cazuza pode ser considerado como um dos grandes compositores brasileiros que realizaram, mesmo que sem essa pretensão em termos de um projeto, uma síntese nunca antes vista, que uniu MPB e rock. Então, pegando o mote de Arthur Dapieve, que cunhou o termo “Brock”, Cazuza foi além, e estabeleceu um compósito que poderíamos chamar de “MPBrock”.

Aqui poderíamos estabelecer paralelos entre Noel e Cazuza no sentido que ambos, cada um a seu tempo, souberam ter visão de campo e foram capazes de sintetizarem tendências e elementos que, como diria Sinhô, estavam voando no ar, e elaborarem algo novo e apontarem para o futuro. Noel morreu e foi esquecido, depois revisitado e mitificado. Porém, o que ele deixou a curto prazo foi importante para a maioridade do “samba” no sentido de que agora existe uma lírica, existe um autor, existe um compositor, e existe uma forma de falar na música, existe um sotaque. Noel jogou o sarrafo lá na frente. Se depois surgiu um Evaldo Gouveia, um Herivelto Martins, um Tom Jobim, isso passou pela “primeira síntese” que estabeleceu a canção via Noel.

A questão do Cazuza é diferente, pois mesmo propondo que ele foi o agente que sintetizou várias vertentes do passado e do presente na sua música, existe um contexto e uma longo período onde a MPB caminhou quase meio século e passou pelo fenômeno de consolidação de indústrias culturais, globalização etc. Ou seja, existe muito a ser levado em consideração.

Mas a idéia é que se todas essas estéticas e tendências andaram soltas e quase engalfinhando-se pelo longa duração do tempo, olhando em retrospectiva, hoje,  é como se houvesse uma tendência à síntese desses elementos, ou que um dia eles teriam que se encontrar em alguma esquina da vida (como diria Noel). A música de Cazuza, ao mesmo tempo em que pode ser entendida como um agente-síntese dessas tendências dentro da música brasileira, agora no âmbito do gênero do rock, num segundo momento, ele representa a consolidação da “mpbização” do rock ou da “rockização da MPB” nesse compósito, ao mesmo tempo que representa, também, num movimento no sentido de dar um status de maioridade para o rock brasileiro que, até pouco tempo, ainda insistia em ser associado à Jovem Guarda.

Curiosamente ambos, Noel e Cazuza inicialmente pensavam trilhar outras carreiras e acabaram na música. Enquanto o primeiro, estudante de Medicina, tinha um grupo, o Bando de Tangarás, o segundo, que ensaiou Comunicação e Fotografia, entrou para o Barão Vermelho para, depois, encetar carreira solo. No começo, como ele fala em entrevistas, Cazuza não se pensava como músico profissional, sequer se considerava um roqueiro. A música veio por parte de mãe, que era cantora e fã de artistas da Era do Rádio, influência importante em sua poesia.

Por sinal, se no começo ele até se considerava um quebra-galhos e entendia que havia uma distância entre a poesia e a letra de canção, com o tempo, Cazuza passou a valorizar sua produção, na mesma medida que acreditava que poesia e letra eram contíguas. Mas mais do que isso, ;quis o destino que ele semeasse sua música dentro do rock, num momento de abertura política (e cultural), tornando-se figura de proa no Brock.

Sobre sua arte, Gilberto Gill disse certa vez: “[Cazuza] era um poetaço, admirável. Quando ouvia suas músicas, sempre embaladas no rótulo do rock, tomava enormes bofetadas. Nesse sentido, só Rita Lee me provocou emoção igual. Tinha uma coisa totalmente despretensiosa, um modo corriqueiro de dizer coisas profundas. Era um belo observador do ser humano e tinha a ousadia de universalizar sua individualidade. Cazuza tinha também a dimensão da tragédia muito explícita, muito almejada, desejada e produzida pela dinâmica vital”.

Essa “universalização da individualidade” é possível vislumbrar em Noel Rosa à sua maneira, no sentido que ele deu voz a um eu lírico que era ausente antes do Poeta da Vila. Antes, com Sinhô ou outros sambistas de roda, não poderíamos imaginar uma letra como a de “O Orvalho vem caindo”, onde Noel exala uma visão chapiliniana da vida enquanto expõe a nota social dos párias da sociedade.

Assim como Noel emprestou densidade poética para o jovem samba, Cazuza também soube investir sua música, no esteio do rock, de uma densidade que contrastava com a simplicidade que o rock propõe, como num wit singular. Ou, como diz Gil, um “modo corriqueiro de dizer coisas profundas”, algo que Noel sabia fazer. Esse pode ser, de certa forma, um exemplo de aproximação fértil que  podemos fazer entre os dois compositores.  Os exemplos são muitos e não caberiam nesse texto para lá de despretencioso e introdutório.

Cazuza dizia que era "filho da Tropicália" e da Jovem Guarda. Quando morou nos Estados Unidos, somou-se a isso o contato com o rock internacional de fato. Porém, como ele diz, quando voltou e entrou no Barão, percebeu que não havia ninguém jovem fazendo música brasileira: “todo mundo é roqueiro, não tem ninguém que faça samba-canção, precisamos redimir a música brasileira”.

Como experiência particular, além da mãe fã de Dalva de Oliveira, ele tinha um pai executivo de gravadora, o que lhe encurtou o contato com os artistas de seu tempo.  

Os Novos Baianos acamparam lá em casa”, disse ele, “dormiam, iam comer, porque na época eram fodidos, não tinham onde ficar, e meu pai estava produzindo o primeiro disco deles. Só fui curtir rock, Janis Joplin, meus ídolos dos Rolling Stones, lá pelos 14 anos, quando dei uma pirada. Mas antes, o máximo que curtia era coisas do tipo 'Alone again (naturally)', água com açúcar. Nessa época aos 14 anos, passei umas férias em Londres com um primo mais ajuizado. E foi mais uma abertura. Então passei a ouvir Janis Joplin o dia inteiro. Quando comecei a compor, acabei misturando tudo isso. Do menino passarinho com vontade de voar (Luiz Vieira) a Janis Joplin. Mas com uma diferença. A dor-de-cotovelo da MPB, mas dando a volta por cima. 'Ah, você não gosta de mim? Então, foda-se também, eu estou aqui e sou mais gostoso.' O rock da turma nova veio amenizar o lance down, meio negro, de Lupicínio, do pessoal da antiga, que era a falta de esperança no amor. O importante não é cantar a perda, mas o amor. Afinal, como dizia Dalva de Oliveira, 'o amor é o amor’.

Cazuza disse que vislumbrava o rock como a “idéia de eterna juventude”. Se a influência da MPB era um código vital, o rock era o canal essencial para essa síntese, era a música da sua geração. O rock podia ser um modo de vida e uma forma de encontrar-se, de encontrar um sotaque próprio e o fato de ser roqueiro não exclui as demais influências. Ele foi pródigo em saber que podia negociar com essas duas vertentes em sua música. Mesmo dizendo-se estranho ao rock, até pelo fato de se considerar mais velho que Frejat e seus colegas de banda, quando virou solo, ele sabia que não podia seguir apenas como um artista de MPB e, ao mesmo tempo, queria ser um intérprete (“eu sempre fui meio cantor de churrascaria”, dizia). Foi fora do campo do rock que ele percebeu que aquilo era parte integrante de sua persona como performador e cancionista. Por isso que ele sempre usou a linguagem do rock na fase solo quanto sempre dependeu da parceria musical de seus pares do rock nos discos pós-Barão.

No começo Cazuza dizia não se considerar um cantor, mas um “cara que canta, que gosta de palco”. 
Mais tarde, ele passa por processo de valorizar o próprio trabalho. Se antes se sentia deslocado por ser o letrista de fossa do Barão, mais tarde ele reconhece isso como uma virtude. Nas últimas entrevistas, ao olhar para trás, se reconhece como um ouvinte de MPB mas que ao misturar, rock, estava ainda preso ao pop da sua geração. “sou um cara que ouve muita música brasileira, relevou. “Eu não conheço os grupos lá de fora, não conheço o rock internacional. Conheço Janis Joplin, blues, Stones, Beatles. Estou super por fora do new wave, pós-punk, etc. Sou um cara mais ligado nas coisas daqui do que nas de fora. Então, minha influência do rock veio a partir de Rita Lee, Jovem Guarda, Raul Seixas. Eu me coloco dentro de um rock que já está sendo feito há muito tempo, um rock mais genuíno”.

Ao falar da questão da fossa nas suas letras de rock, Cazuza não deixava de falar de sua influência, não deixava de falar de velha guarda, uma influência singular, e que o singularizava entre seus pares. Isso não vinha de sua geração mas, sim, de suas influências, era o que havia de pessoal e intransferível em sua obra: “  acho até que, atualmente, poucos compositores falam da dor. 
Antigamente, tinha aos montes: Dolores Duran, Lupicínio Rodrigues, Noel Rosa, Cartola, Maysa e tantos outros. Depois disso, pintou uma fase em que era cafona e antiquado falar do sofrimento. Não estou sendo pretensioso, não, mas vários estudiosos da música popular já me disseram que eu trouxe essa coisa da dor-de-cotovelo de volta. É claro que isso aconteceu com a moldura mais epidérmica do rock. Todo brasileiro, todo latino-americano, é pego um pouquinho pelo pé nisso de mexer na ferida do amor. E sempre gosta de temas relacionados a uma paixão que não deu certo. Esse é o lado diferente e talvez polêmico do meu trabalho”.

Essa fala de Cazuza é importante porque ao falar de suas influências e da forma como ele captava a essência do que aquelas compositores do passado traziam de novo em sua visão, ele era um cancionista ou autor que ia além até da visão daqueles que, num primeiro momento, saudaram movimentos como a Bossa Nova como o novo em contraposição ao velho como o samba-canção dos anos 50 ou a velha guarda.

Se os ‘modernos’ excluíram a fossa na triagem da canção no tempo, Cazuza, nos anos 80, trouxe tudo de volta porque, segundo ele, aquela fossa era o blues à brasileira, era a forma como se cantava blues em Português. Esse achado, além de reabilitar boa parte do que foi feito no passado e faz parte do imaginário da música brasileira, ainda transcende a visão reducionista ou maquineísta daqueles que trocavam o velho pelo novo sem a sensibilidade necessária para vislumbrar o todo. Podemos dizer até que essa visão de jogo que Cazuza teve, esse wit foi tão fundamental para sua música e o seu papel em sua geração quanto a de Noel em seu tempo. 

Esse olhar sintético tem uma matriz, que é o tropicalismo, ou em suas palavras: “Não sou um poeta aleatório, e, depois, como bom filho da Tropicália, não consigo admitir a barreira que as pessoas traçam para distinguir o que é e o que não deixa de ser MPB. “Não sou um poeta aleatório, e, depois, como bom filho da Tropicália, não consigo admitir a barreira que as pessoas traçam para distinguir o que é e o que não deixa de ser MPB." (...) "Eu sou letrista de rock por acaso. Se houvesse pintado um grupo de samba, em vez do Barão Vermelho, eu estaria compondo sambas. De qualquer forma, sou muito latino, muito passional, e minha poesia reflete isso. Posso tentar caminhar no estilo Joy Division, mas quando vou ver o resultado, está muito Cartola”.

Nas últimas entrevistas, Cazuza já tinha esse pensamento tropicalizante de atualização da fossa, de ser um autor e intérprete jovem abordando o tema da fossa e outros temas que pode-se dizer que são e eram caros à esfera da MPB. Até como contraponto a uma tendência da crítica e público de tentar emoldurar um clichê do lirismo ligeiro e castiço do pop, ao fazer a ligação entre o novo e o velho, ele une MPB e rock num momento em que aquela perdia terreno no campo musical para o este: mpbistas como Ney Matogrosso, Caetano e Gal, que tiveram que reconfigurar suas carreiras nos anos 80, encontram em Cazuza (antes e depois do Barão) como um momento de reconhecimento de sua vel;ha arte no novo rock dos anos 80 com ele. O caso de Gal é sintomático: depois de gravar Sullivan e Massadas com Tim Maia, ela encontra um retorno à temática social interpretando “Brasil”. Ou Ângela Maria, que gravou “Tapa na Cara”.

Sobre isso, essa fala de Cazuza fala por si:

Atualizar Lupicínio, trazer essa tradição da poesia brasileira através de uma abordagem mais moderna, mais próxima de nossa realidade, nosso 'hoje'. Não posso, por exemplo, repetir Noel Rosa. Os tempos dele eram mais românticos, as pessoas pediam xícara de açúcar emprestada. Hoje, as pessoas nem se olham na cara. Houve a mudança do universo comportamental, e do referencial imediato. Mas o referencial básico fundamental, essencial, para mim, para minha alma, ainda é o mesmo." "De cara fiquei meio constrangido por dividir o prêmio da Associação Brasileira dos Produtores de Discos de melhor letrista da MPB com o Chico Buarque. Sou tarado pela obra dele, acho seu trabalho incomparável. Mas depois pensei melhor e achei que não devia menosprezar assim o meu próprio trabalho.

É o momento em que o círculo se fechou. A MPB consagra o jovem roqueiro e este empresta vitalidade àquela. O próprio ciclo de Cazuza, que começa em “Bilhetinho Azul” simbolicamente se completa na fase solo, quando faz parcerias com Gil, Rita Lee, Renato Ladeira, o que mostra como ele foi o mediador que sintetizou todas as pontas soltas na música num caminho e pavimentou esse mesmo caminho para que outros intérpretes e cantores pudessem fazer o mesmo. É imaginar carreiras como as de Marisa Monte, Cássia Eller ou Nando Reis (pós Titãs) sem essa influência, mesmo que indireta, de síntese entre o pop o rock a MPB e a canção brasileira. Mas com Cazuza, isso é possível de se imaginar.

A despeito de comparações, inevitáveis ou não, Cazuza morreu sabendo que havia chegado lá:
“Acho que entrei para o primeiro time, não tô mais na reserva. Tô no time principal, que é o sonho de todo jogador – chegar à primeira divisão." "É que eu descobri que é uma caretice você achar que poesia e letra são coisas separadas. Você pode ser um poeta musical – são gêneros de poesia: tem a poesia musical, tem a poesia que vive sem a música. Acho que minhas letras sobrevivem às músicas. Algumas, pelo menos." "Tem muita coisa que eu não gravei, muita coisa inédita. Mas no dia em que eu morrer algumas pessoas vão na minha gaveta e pegam. Mas eu acho que vou deixar até um testamento para rasgarem, queimarem tudo, porque eu acho uma sacanagem quando um cara morre e deixa uma obra – não tô falando que eu tenho uma obra, porque eu ainda não tenho. Daqui a dez anos eu vou ter uma obra...”.

Enfim, o mote da comparação entre Noel e Cazuza é interessante porque pode ser ampliada dentro de uma pesquisa sobre música que possa lidar com a produção deste dentro do que ele tem de próprio e aquilo que o torna parte de um processo mais amplo, e isso permitiria um estudo muito mais fértil do que uma mera comparação apressdada, preconceituosa e fora de contexto. 

Em oito anos de carreira, segundo levantamento de Lucinha Araújo, Cazuza deixou 126 músicas gravadas por ele, sendo trinta e quatro por outros intérpretes e mais de 60 inéditas.

Referências


Lucinha Araújo e Regina Etcheverria. Cazuza - Só as Mães são felizes. Globo, 1997.