Saturday, December 19, 2020

O expedicionário

 

Paul McCartney em 2020


Eu poderia fazer uma resenha do novo disco do Paul McCartney mas na verdade eu não sou jornalista musical e nem gostaria de cair naqueles clichês típicos. Então, se você acha que eu vou resenhar o McCartney III, pode parar de ler por aqui mesmo, e até. Mas confesso que já escutei o seu novo trabalho umas quantas vezes e posso dizer que nem seria uma questão de gostar, até por duas questões: 1) no alto de sua considerável distinção como compositor, Paul está além de qualquer crítica; 2) ele não tem nada a perder em lançar mais um álbum em sua carreira, muito pelo contrário. Lembro quando do Egypt Station. Ouvi fãs dele falarem naquela época (2018) a respeito do disco que ele era “desnecessário”. De fato, ninguém esperaria encontrar ali “Silly Love Songs” ou “With a Little Luck”. Na verdade, como falei antes, a “necessidade” do novo disco reside no fato de que ele continua compondo e, para um cara como ele, compor é uma segunda natureza. Até acho que, de fato, gente da geração dele, como Dylan e os Stones surpreendem por mostrarem-se prolíficos ainda hoje, mesmo que estejam já distantes de um momento no tempo e no espaço em que eles revolucionaram o campo da música como entendemos hoje. O próprio projeto do McCartney III como o fim de uma trilogia que imagino que, lá em 1970, não fora cogitada (já que, como ele disse, antes da pandemia, sequer o terceiro disco estava estabelecido). O que eu acho interessante é entender a natureza desses três discos como inflexões mais exploratórias em sua discografia, remetendo a uma subclassificação na obra de Paul e diferenciá-lo de Egypt Station para entender quais são as características  particulares da ótica de McCartney em conceber o terceiro disco, agora sim, como uma conclusão dessa variante de sua produção discográfica que, em 2020, fecha um ciclo de meio século. O primeiro McCartney foi duramente criticado quando saiu em 1970 e talvez o seja menos hoje. Afinal, era um disco experimental, feito à revelia dos outros Beatles e lançado como quase como o pivô do fim da banda. Tanto George quando John haviam lançado discos experimentais antes – Harrison lançou o seu dois anos antes, pelo selo Zapple, um trabalho que nenhum fã gostou ou gosta até hoje e que jamais poderia ser reabilitado, já que a transa é em outra praia, que é a música eletrônica. Todos sabem o que o fã dos Beatles pensa de “Revolution 9”. Ou seja, essa é uma questão interessante: um artista pop e consagrado navegando por águas perigosas, porque vão além daquilo que seus ouvintes esperam dele. Os Beatles tinham cacife para colocar uma faixa como aquela no Álbum Branco. Na minha opinião, foi uma atitude corajosa e considero que ela é uma peça importante no corpus do grupo, mesmo que os fãs e os críticos detestem aquilo que tem mais a ver com musica concreta e eletroacústica do que pop. Mas apenas o fato de abordar esse tipo de música e contrabandeá-la num disco comercial é um grande feito – como também foi o de trazer a música indiana para o rock. Se um compositor de música eletroacústica como Stockhausen gravar rock não iria chocar tanto como os Beatles fazendo o caminho inverso. A postura dos Beatles na época coadunava com a atitude da banda, que sempre procurou dar um passo à frente. McCartney, na medida em que se transformou em produtor, também quis, como era de sua natureza, ser um expedicionário do estúdio, e pôr suas idéias na fita, como Les Paul também era. Paul diz que todo esse experimentalismo (ele disse isso numa coletiva sobre o McCartney II) sempre foi algo constante em sua vida. Recordava que, ainda menino, usava o banheiro de seu antigo sobrado em Forthlin Road como câmera de eco. Esse é o começo do Paul da trilogia, do Chaos and Creation ou o Fireman, o Paul que, antes da pandemia, já sabia dar cabo de seu ócio criativo. Existe o Paul entre amigos, o Paul do Wings, dos Beatles, das bandas que ele tocou nas turnês. E existe esse outro Paul, o Professor Pardal, o que vai colocar synth com uma bateria de vaso de banheiro e usar um guia telefônico como tarol de bateria ou um kazoo com a própria voz e mixar tudo com bastante reverb e seja o que Deus quiser. Esses são as duas vertentes de seu trabalho, e que podem ser divididas – isso é visível na sua discografia, independente que o resultado seja, em parte, de qualidade “duvidosa”. É o médico e o monstro - o Paul dos palcos e o Paul do eco no banheiro. 
A frustração do fã que ouve “Maybe I’m Amazed” e “Man We Was Lonely” é a de que se ele jogou o sarrafo longe com a primeira, parece que faltou força para segurar o disco inteiro. Mesmo caso com o II: Paul lança a bela “Waterfalls” e “Coming Up” e ao mesmo tempo “Temporary Secretary”. A reação dos fãs é a mesma. O fã quer as “catchy songs”, as canções cativantes associadas à Paul, não querem nem o John experimental, nem o George experimental, muito menos o Paul experimental. Claro que o trauma deve ser tanto que até hoje outra peça experimental (talvez mais avant garde que “Revolution 9”) que é “Carnival of Light”, acabou solenemente proscrita dos futuros lançamentos dos Beatles porque com certeza os fãs iriam detestar. Talvez. Talvez hoje fosse o momento para que ela fosse lançada, mas só sobreou ela. Mas enfim, as críticas são importantes, as mais negativas também, até mesmo quando elas envelhecem com o tempo e viram motivo de risada, e Paul foi literalmente pichado pelo primeiro McCartney, acusado de falta de criatividade e outros bichos. Claro. Faltam os outros Beatles e Paul pôs o seu na reta em lançar um álbum solo naquele momento, sem proteção, pronto para encarar de frente um torelinho de enragés prontos para acabar com um disco que poderia ser parte do...próximo disco dos Beatles, e ele acabou com tudo aquilo e deixou aquele disco como legado? Um disco que talvez fala mais por aquilo que ele deixa de apresentar, que é a contribuição dos outros três Beatles.  O II pelas digressões tributárias do rock alemão dos anos 70 e do minimalismo, coisas para as quais os fãs de música pop não têm nenhuma paciência. Mas o artista não tem nada a ver com isso. Se uma pessoa como ele tivesse que se repetir a cada álbum, ele teria vendido muito mais discos mas sido muito menos fiel a si mesmo e às suas ambições. Esqueça o Paul de “Silly Love Songs” ou o de “With a Little Luck”. Mas pense no Paul como Stockhausen, Cage, Reich, Les Paul, compositores que  descobriram novas esferas musicais e, querendo ou não, colocaram o bode na sala e nos forçaram a repensar o fazer e principalmente o de ouvir além do conhecido. Acho que somos muito acomodados em matéria de gostos e gente como eles estão milhas na nossa frente mas esperando que sigamos seus passos. E, meu amigo, se você não gosta de “Revolution 9” e de "Temporary Secretary"  meu amigo, você não chega lá. Você não é do ramo.  


Thursday, December 17, 2020

Alma Familiar

Beethoven em 1803, por Christian Hornemann

Lá por 1823, Beethoven era um homem dividido. Ele frequentemente recebia pedidos de peças por parte de editores musicais. Por outro lado, surdo e exaurido após uma extensa batalha judicial para conseguir a guarda do sobrinho Karl, ele se tornara uma figura inescrutável e abissal, distante do convívio com as pessoas. Certa vez, foi preso por desacato numa taverna. Andrajo como estava, rescindindo a cerveja e vinho, com a roupa amarfinhada, certamente de viver dormindo dias a fio com elas, a polícia não o reconheceu como o famoso compositor vienense. Apesar das relações azuis, seu sangue não era da mesma cor. Não conseguindo casar nesses termos, viveu o resto da vida só. Só e incomunicável, desleixado, e frustrado pela surdez que o impediu de reger uma nova apresentação de Fidélio naquele ano. Ele tentou reger sua ópera mas foi demovido a apenas assisti-la (sem ouvi-la). Essa era a sua sina. A Coral, composta um ano depois, ele viu apenas em sua imaginação. Sua produção final morreu junto com seu mundo de silêncio, tão apartado da vida anterior.

Mas Beethoven vivia para música e de sua música. Diferente de seus antecessores, ele viveu o que se poderia chamar de a aurora da indústria musical a partir da Europa. Nessa época, 1823, ele já mantinha contatos com publishers como Anton Diabelli, um dos primeiros grandes nomes do ramo (posteriormente junto com Playel, Breitkopf e Hartel, etc). Diabelli, contemporâneo mais jovem que o mestre de Bonn, seria responsável por uma das obras mais célebres do repertório de Beethoven, as Variações Diabelli, que estariam para o autor da Nona o que a Oferenda Musical está para Bach. No entanto, enquanto Diabelli era um editor imteressado a vender partituras de cunho popular, versões transcritas para piano de árias e cançonetas, Beethoven, como era de seu feitio, não era muito apegado a cunprimento de prazos. A sua "nobraza" lhe permitia tal trato e distinção. Se ele fosse brtânico em matéria de cumprimento da prazos, talvez ele ficasse rico a partir dali - dada a quantidade de oferta que ele recebia para quartetos, óperas e outras peças.     

Aliás, um capítulo sobre Beethoven e sua relação com a ópera valeria um outro post. Ele, que compôs a duras penas Fidélio, certamente moveu mundos e fundos porque o libreto falava de uma causa nobre. Era uma história de resgate, da vitória das Luzes contra o obsurantismo. Era uma causa que o revolucionário Beethoven defendia de fato. Ou seja, é como se os fins dessa criação singular em seu corpus musical estivessem cifrados num princípio político, mais político do que estético. Posteriormente, no fim da vida, ele chegou a receber propostas de escrever óperas. No entanto, naquele segundo momento da ópera alemã, a influência do começo do Romantismo com Weber e o Franco-Atirador já prenunciavam mais um ideal estético que seria plenamente desenvolvido com Wagner, mas que passavam ao largo dos interesses de Beethoven. 

Grillprazer ofereceu-lhe um libreto de Melusina, texto já apontando para essa tendência da ópera alemã dos próximos anos. É compreensível o desinteresse do compositor pela peça. E isso talvez seja indicativo que, se ele vivesse mais alguns anos, talvez achasse a fina flor do reacionarismo alemão os dramas musicais de Wagner, este completamente tributário do legado do criador da Eroica. O veradeiro ideal de Beethoven não estava em representações mitológicas tão ao gosto do Romantismo posterior. O seu ideal libertário e revolucionário está em Fidélio, nas sinfonias, principalmente na Quinta e na Nona, na Missa Solene e na Sinfonia Coral, com sua celebração à alegria e uma crença inabalável nos ideais de liberdade e de humanidade e de união entre os povos - elemento que está ausente em seus discípulos. Beethoven era da geração da Revolução Francesa. Não tinha parte com todo o reacionarismo que a Europa desenvolveria nas décadas seguintes à sua morte. Ademais, comentando sobre um encontro com Rossini, o grande operista italiano, a despeito de admirar a música do mestre de Pesaro, Beethoven entendia a ópera como “mero entretenimento”.

 É curioso notar que a distinção que ele obteve como compositor não fora abalado pela sua vida particular. O litígio com Johanna mostrara um Beethoven irrascível, obcecado, maquiavélico, no paroxismo de seu ódio para derrotá-la nos tribunais, fez de tudo para confiscar Karl de sua mãe. Ele conseguiu, mas foi uma vitória de Pirro. O rapaz não correspondeu às expectativas do tio, ainda mais quando, como num duplo de seu pai, Beethoven quis transformá-lo num menino prodígio, assim como Johann havia feito com o menino Ludwig. 

Naquelas condições, sendo quem ele era na vida real, querendo projetar no futuro do filho de Johanna um futuro promissor como músico que ele não vislumbrava mais em sua vida. Sua surdez foi uma morte em vida, que ele quis abreviá-la em Heiligenstadt, quando escreveu um famoso testamento (um testemunho desesperado de alguém que, por trás da máscara, revela uma pessoa turturada pelo destino e pelo futuro), que a posteridade iria transformar num exemplo romântico do gênio torturado. Aliás, nos anos seguintes à sua morte, em 1827, coberto de problemas que iam desde a cirrose cavalar à icterícia, a literatura sobre o mestre de Bonn foi pródiga em encapsular essa imagem do “gênio torturado”. Imagem que acabou prevalecendo em detrimento desse Beethoven real que era um outsider mas que se orgulhava de usar sua posição de não austríaco e não ter sangue azul para zombar daquele estabilishment, algo que seria impossível para seu mestre, Haydn – um compositor de libré, que convivia com imperadores e arquiduques mas além de submeter-se à eles, na hora da ceia, ele jantava com os criados. 

Essa imagem de gênio torturado, aliada à de um livre-atirador, um irascível, tosco, quase violento, um ser quase abjeto, como diria dele Carl Maria Von Weber, um subversivo, explorador de novas harmonias no campo musical, de impor mudanças nas velhas formas musicais que poucos ou ninguém ousaria até então, forjaram essa imagem de um compositor como Beethoven que, poderia-se dizer, é a imagem padrão de um artista. Para quem começa hoje a ouvir música clássica, acredito que ele é o começo. É como gostar de futebol a partir da uma paixão particular por um clube. 

Sem esse começo, tudo parece a mesma coisa. Com ele ou com qualquer outro, é possível adentrar nesse imenso casarão que é a música erudita e começar a entender, por sua vida e sua obra, o que é esse gênero tão interessante e começar a mobiliar a sua própria casa com esses novos móveis. Beethoven é um exemplo inefável porque, a despeito de toda a ruína da sua vida pessoal e de toda a mistificação que se criou a partir de biografias romanceadas sobre o autor da Sonata ao Luar que, depois de muito ler, ao ouvi-lo, parece que submergimos a outro mundo, de uma música que, longe do estéril turbilhão da rua, como diria o poeta parnasiano, conta a história, a vida, os sentimentos, o ímpeto e as aspirações de uma outra pessoa, e quase de uma alma familiar. Essa pode ser um caminho para entender o ideal estético de um compositor como Ludwig Van Beethoven, cujos 250 anos de nascimento lembramos hoje. 


Tuesday, December 15, 2020

A Era Glacial

Frankie Lymon
Frankie Lymon 


Lembro que eu comprei aquela biografia do Littrle Richard e fiquei, eu, um joem de uns dezesseis, deveras chocado com toda a putaria que existia em torno do show-biz - já naquele tempo. Como eu era inocente. Não sabia nem que Berlioz usava ópio para compor a Fantástica ou Verlaine enchia a cabeça de absinto para poetar (mas divaguei e me desculpem) Aquele livro ainda me impressiona. Eram cenas de orgias com pó e outros derivados, e ainda mais o Richard entendendo já convertido como pastor que tanto o uso de drogas como o sexo em geral era um caminho sem volta, promiscuidade, etc. Era a visão sincera de um convertido. Mas aquele não era bem um livro para garotos. Era um livro bem pesado mesmo. E eu descobri essa barra pesada do mundo da música talvez cedo demais ou no momento certo. 

Mas depois eu li uma entrevista com o Frankie Lymon. Ele disse que, ainda garoto, no tempo daqueles programas  de juventude, como o American Bandstand, as drogas corriam soltas, às vezes aparecia uma telefonista drug dealer e Lymon, ainda com aquela voz de garoto, havia se tornado viciado em heroína, no meio daqueles programas.  Isso é engraçado para ver como a gente tem aquela visão do pop dos anos 50 como um ambiente de inocência, até quanto eu lembro de ouvir discos das Chordettes, Fleetwoods. Tudo aquilo me evocava um tempo de inocência. Digo isso porque minha fase intermediária até chegar no rock, já com um walkman, nos anos 80, passou por descobrir, a partir do cinema, essas canções que, nos anos 70 e 80 retornaram como numa onda de nostalgia, desde o Loucuras de Verão, de 73 até o Conta Comigo, de 1988. Eu descobri o rock nos anos 80 mas não a partir daquilo que tocava no rádio, mas descobri sabendo por outros, porque não havia internet, que existia um tipo de música legal e cativante que não tocava no rádio. 

Eu já devo ter dito isto várias vezes aqui mas acho que os anos 80, com toda a sua presentificação e urgência de novidades, fez de tudo, consciente ou inconscientemente, de tudo para apagar o passado. Essa  coisa de memória através do tempo e do espaço, como diria Nelson Rodrigues, tem um quê de fluvial em seu lerdo escoamento. Nos anos 80, um artista como Lymon ou Richard, as Chordettes ou Fleetwoods, Neil Sedaka ou Jerry Lee Lewis, era algo tão firmado no passado que sempre chamava a atenção quanto, por causa de uma propaganda ou de um filme, esse passado ressurgisse numa canção que iria , contra todas as expectativas, parar no rádio. Isso aconteceu com Be My Baby, canção das ronettes que tocava sem parar no rádio por causa do filme Dirty Dancing. 

Era algo além das expectativas das rádios, que trabalhavam sempre em função do suplemento musical  das gravadoras, e jamais perderiam tempo vasculhando a própria discoteca em busca de um sucesso do passado, não havia reciclagem. Nos anos 80, um beatlemaníaco era coisa do passado. Hoje você vê garotos com camisetas com o logo da banda, ou tocando instrumentos iguais aos deles. O que era passado há três décadas hoje está na pauta; esse é um exemplo dos fluxos e refluxos da memória. O que me espantava nos anos 80 era descobrir essas canções pop dos anos 50 e não entender porque ninguém mais ouia aquilo se parecia algo tão agradável. Aquelas músicas eram legais, e havia aqui no subsolo da Discoteca, no centro, uma enorme coleção de CDs importados só com pop dos anos 50. Nossa, a minha vontade era de ter todos aqueles discos, e não entendia por que aqui eles não podiam ser encontrados. Também não sabia nada a respeito de todo esse miaginário que existia sobre os anos 50 na música. Eu não tinha cabeça para entender essas coisas. Não havia suporte para isso. Ou então, jamais saber qe gente como Little Anthony ou Frankie Lymon seriam o começo de boy groups dos anos 70, como Osmonds ou o Jackson Five. Não sabia nada disso. Aquilo era a era glacial do pop.  E a minha era glacial como ouvinte e discófilo. Nesa época eu ainda comprava discos em lojas de departamentos, não era beatlemaníaco nem rato de sebo ainda.  

No entanto, discos sobre a década eram raros, e cada coisa que aparecia, uma coletânea, uma trilha de filme, era uma forma de recuperar aquela cultura submersa do passado.  Hoje sabemos que tudo está a um clique de distância, mas naquele tempo, era um trabalho de perseverança e de paciência. Tinha na época uma nostalgia nos filmes e esse revival a partir das trilhas dos filmes foram uma espécie de furo que fez com que essas canções voltassem. Acho que um marco foi o filme dos Doors, que fez com que se descobrisse a história daquelas músicas tão atuais naquela irada dos anos 90, e isso viabilizou livros como o Mate-me por Favor, que fez com que bandas como Mc5, Velvet Underground, Stooges reaparecessem como a era glacial do punk. A história estava toda no limbo e descobriu-se que havia um público cada vez mais interessados nessas velharias que não eram tão velharias já que elas dialogavam com desejos e aspirações das pessoas do futuro.  

Esse foi um fenômeno incrível porque se os anos 80 representaram um apagamento em termos de memória, essas sístoles e diástoles, vai e vens do tempo e da memória parecem mudar com essas disposições, com esses marcos. E de como existe tanto a ser conhecido com coisas do passado. Eu de certa forma vislumbrava isso quando, nos anos 80, quando ouvia Bill Haley. Não havia referências, não havia enciclopédias, não havia livros, não havia letras, fotos, nada. A gente formava conhecimento aos poucos, era uma guerrilha paciente; e mesmo depois, com a Internet, eu percebi que o buraco era maior. Havia muito mais a saber e a pesquisar, tanto que esse ainda é um trabalho a ser feito. Aqui, houve a série de tevê Anos Dourados, Bambolê, que fez esse revival pela televisão. Na esteira do programa, apareceram discos que eram coletâneas de canções do passado. Surgiram os discos da Brasidisc, Little Richard, Carl Perkins, Fats Domino, etc. 

Depois, descobrindo os Beatles, eu descobri que esses artistas que eu ouvia faziam a cabeça deles quando eles tinham a minha idade. Então eu percebi que devia estar no caminho certo.  Mas essa é história para outro post.      


Wednesday, December 09, 2020

Coralidade e performance na poesia de Safo

 

Sempre que se fala em Safo, o imaginário que existe em torno dela é de uma poetisa lírica e sensual. Já li autores discorrendo sobre literatura grega que separavam a lírica da épica ao explicar que enquanto esta fala de grandes feitos, é “objetiva”, aquela é o poeta falando de seu próprio eu, mais subjetiva. Porém, estudos recentes mais focados na questão ou, como diz Giuliana Ragusa, um “enfoque intensificado na performance da mélica grega arcaica, e o resultado tem sido a avaliação mais precisa da produção de Safo, e a ampliação da distância das leituras biografizantes e romantizadas, que tanto buscam na poeta o que é estranho à sua poesia e, em verdade, à poesia antiga como um todo: a voz pessoal, o subjetivismo, o intimismo, a privacidade, os sentimentos confessos do “eu”.

Ou seja, para ela, estudar tanto a mélica grega quanto Safo, é preciso desviar-se dessas perspectivas de análise. Creio que a grande questão atualmente é pensar os poetas e os modos de produção poética a partir da performance, a partir do que se propõe o autor e qual é o público a quem ele se dirige.

Existe outra questão a partir desta: toda a produção literária, desde a poesia até o teatro naturalmente esta cifrada a um contexto relativo, para uma situação convencional oral, como diz ela, e para uma “audiência específica”. O contexto daquele tempo não era a do texto impresso, do livro de bolso, que nós lemos em casa ou na biblioteca.  Ela era pensada tendo em vista uma representação pública. Aí teríamos variações, poesia para declamação em simpósios, em eventos esportivos, uma dramatização, como as dionisíacas. A expressão “lirismo” teria sido ressemantizada como uma poesia do coração. Mas a lírica, ou mélica, como diz Ragusa, está essencialmente associada à uma apresentação ou performance, e o mesmo vale para Safo. Esses textos não são propriamente especialidades ou gêneros literários, eles se encontram antes do que seria possível chamar de literatura.

Safo (630-580 a.C.) foi uma poetisa nascida na ilha de Lesbos (nordeste do Mar Egeu), e viveu na mesma época de outro poeta, Alceu. Pouco se sabe sobre sua vida, além do fato de que pode ter sido uma eupátrida de Mitilene. De sua obra restam apenas fragmentos. Além da Canção sobre a Velhice, outro poema conhecido que chegou até nós foi uma ode a Afrodite e a Títono, aquela restante a partir de uma citação de outro autor grego. Destes, Ragusa cita a Canção sobre a Velhice, um fragmento de Safo encontrado em 2005. Ela diz que, no texto, é sua a voz nos versos, a cantar como se, sobrevindo-lhe a velhice, restasse-lhe dançar na canção que tematiza a atividade coral, a qual se faz fonte que viabiliza “a imortalidade poética e a juventude eterna”.

.. (das Musas) de violáceo colo belos dons, ó meninas, ... a lira melodiosa, amante do canto;  outrora tenra (a pele), agora da velhice ... e (brancos) se tornaram os cabelos negros. Pesado se me fez o peito, e os joelhos não me carregam – os que um dia foram ágeis no dançar, como os da corça. Isso lamento sem cansar. Mas que fazer? Desprovido da velhice não se pode ser, sendo-se humano. Pois, certa vez, dizem que Eos, róseos braços, com paixão ...(?) carregando Titono aos confins da terra, belo e jovem que era; mas similmente alcançou-o em tempo a grisalha velhice – ele que tinha imortal esposa.

A respeito da atividade coral, sabe-se que Safo era uma espécie de preceptora de meninas para sua entrada para a vida adulta, como no costume de época. Este texto, diz a autora, é o que resta de um “partênio”, “uma espécie mélica que consiste na canção para performance por coro de parthénoi, como são chamadas as moças ainda não casadas, as “virgens”. Como preceptora dessas meninas, ela ensinava a elas o canto coral. Como coreutas, elas interpretavam essas canções como parte de uma performance a um determinado público.Neste caso, seria algo como um festival cívico-cultual. Cívico diria-se que isso tem a ver com o fato de que essas apresentações, tais como as tragédias, mais do que mera representação teatral, elas faziam parte das atividades e da vida da polis. Todos eram “convocados” a assistir estes festivais.

 Citando André Lardinois, Giuliana explica que o poeta da mélica coral “não apenas compunha as canções, mas preparava e acompanhava o khorós que a apresentava com dança coral – sentido básico do termo grego – e canto coral”. Sobre a natureza da performance, o conteúdo dos poemas, a partir da Canção sobre a Velhice, Ragusa infere que a imagem do texto  “não apenas realça a dimensão coral de sua mélica, mas que indica que Safo teria desempenhado a função de khorodidáskalos junto às meninas a ela associadas, que abarcaria a orientação do desabrochar da feminilidade das parthénoi, futuras esposas a serem preparadas para tal condição (...):

(...) na moldura institucional da performance na competição realizada no festival cívico-cultual em que se apresentam, são apresentadas à cidade, às famílias de seus futuros maridos, dos noivos em potencial. São atestados os grupos de meninas de origem aristocrática, nos quais elas recebiam a formação feminina específica, que incluía a atividade coral – canto, dança, música –, a reafirmação de valores ético-morais – sempre um elemento de força na mélica coral – e o conhecimento da tradição mítica, a preparação para o casamento designado gámos, termo cujo sentido básico é o “sexo” e, na medida em que este a consuma, a “boda”. Tal preparação consiste no exercício da sensualidade, do erotismo, que, reitero, num cenário em que corriam paralelos os mundos feminino e masculino, dava-se internamente, no caso das parthénoi, ao universo feminino (RAGUSA, 2019, p.92).

Nesse sentido, ela observa que qualquer interpretação relativa à homoafetividade nesses poemas corais não passa de uma visão anacrônica.  Ao citar Maria Fernanda Brasete, ela diz que relação entre pessoas de mesmo sexo naquele tempo era algo tão natural que não haveria porque rotulá-lo. Brasete conclui que falar de erotismo grego não é o mesmo que falar de sexualidade, “porque, em primeiro lugar, não se trata de fenômenos atemporais e, por conseguinte, não podem ser descontextualizados das práticas sociais institucionalizadas numa determinada comunidade histórica”. Nesse sentido, Giuliana  Ragusa entende que seria preciso, hoje, fazer uma revisão da obra de Safo de forma a entender, a partir da performance, uma maior atenção à signos que estejam relacionados ao mundo feminino das partenói e, com efeito, à coralidade em si - segundo ela, um elemento subestimado senão ausente nas leituras modernas dos poemas de Safo. 

Essa leitura “moderna”, diz ela, insiste em “tomar por íntima, pessoal e privada a voz de seus versos, nos quais Safo manipula com perícia a linguagem de modo a criar a impressão de intimidade”. Esse “clima” acaba dando (para os ouvintes modernos) essa impressão de canções compostas para um grupo fechado de moças. Ao analisar o corpus de Safo a partir dessa perspectiva, a autora observa elementos presentes nos fragmentos, que apontam para o universo do universo das parthénos: “Entrelaçam-se no mundo do gámos, essencialmente feminino, a coralidade, o erotismo, a beleza. Entrelaça-se estreitamente à mélica sáfica essa trama que sustenta as relações e mesmo a função essencial do grupo de parthénoi, amiúde relacionado à persona de Safo nas composições, de modo coletivo ou individualizado”. 

O parthénos, ela reitera, é um termo ligado ao status “transicional na vida feminina, entre a tenra infância e a idade adulta, esta nomeada em gynḗ, termo que indica a participação no mundo do sexo a partir do casamento”. Porém Giuliana diz que na vida das coreutas, esse momento de transição é, também um momento de crise: é o momento em que elas deixam para trás infância e os cuidados de suas mães e entram no mundo de sexualidade, de maternidade. Essa transição era como se fosse uma pequena morte. 

A lembrança daqueles momentos de transição, de formação e as relações interpessoais como parthenós porém representaram momentos importantes que elas carregarão para o resto de suas vidas. “Pela linguagem da coralidade e da poética sáfica se neutraliza o trauma da separação”, diz. Por fim, como diz Giuliana Ragusa, seria importante, pois, entender a poesia de Safo sob a perspectiva performática – e a poesia grega em geral, no sentido de que elas tinham essencialmente por propósito uma performance, ou seja, uma representação  pública, e eram destinadas a declamação – seja por Safo ou por um coral.


REFERÊNCIA 

RAGUSA, Giuliana.  A coralidade e o mundo das parthénoi na poesia mélica de Safo. Aletria, Belo Horizonte, v. 29, n. 4, p. 85-111, 2019 eISSN: 2317-2096 DOI: 10.17851/2317-2096.29.4.85-111.


Tuesday, December 01, 2020

Questão de Ordem

Fascículo da Abril de 1971

Esses dias tava juntando material para falar de contracultura no Brasil e descobri que eu ainda tinha aqueles fascículos do Gilberto Gil e do Caetano Veloso da História da Música Popular Brasileira, da Abril Cultural. Hoje, esses fascículos são raridade mas, olhando em retrospectiva, acho que eles tiveram uma importância muito grande quando a coleção foi publicada, primeiro no começo dos anos 70, depois, no final e, numa última edição, nos anos 80. A importância reside no fato de que esses fascículos conformam a primeira tentativa “séria” de se estabelecer um cânone a partir de levantamento histórico e de debate sobre a MPB num momento em que a sigla começava a servir de palavra-valise para referir-se à produção musical brasileira “moderna”, ou seja, a partir do que o Augusto de Campos cunhou nos anos 60, de “linha evolutiva” da música brasileira, da Bossa Nova ao Tropicalismo, e depois para uma perspectiva mais aberta, a partir dos anos 70 até hoje, onde o tropicalismo ainda é uma referência para a produção musical.

Essa coleção me fascinou porque eu a descobri numa época em que tinha ouvido o primeiro disco do João Gilberto, e isso me fez descobrir a MPB. Até então eu era completamente alienado, e não me interessava por nada do gênero. O movimento que eu fiz a partir da descoberta do disco Chega de Saudade foi no sentido de me sentir estimulado a pesquisar sobre MPB numa época em que a internet não existia e que a bibliografia sobre o assunto era bem escassa. Sobre Tropicalismo, reler esses fascículos hoje é como voltar ao começo, mais como nostalgia dos tempos daquelas primeiras descobertas do que propriamente um grande interesse sobre o assunto, já que eu na verdade já meio que enchi o saco de ler sobre o assunto, muito embora nessa, caso, hoje tenha sido obrigado a retomar alguns temas, mas faço isso com satisfação, da mesma maneira que isso me fez voltar àquelas primeiras descobertas. Hoje existe tanto livro sobre história da MPB, tantas biografias e autobiografias. São tantos livros e teses e dissertações, muitas vezes cifradas em temas recorrentes e por que não dizer tropeçar nas mesmas ematizações, datas e canções, sempre Bossa Nova, Tropicalismo, é tanta coisa que atualmente não é muito difícil empreender pesquisas sobre esses assuntos, com tantas abordagens teórico-metodológicas, ou apenas depoimentos, como o Verdade Tropical, do Caetano.  

O movimento editorial nesses últimos vinte anos foi bastante fértil no sentido de cobrir uma vasta gama de variações sobre o tema da MPB. Por conta disso, e de tantas pesquisas e debates, a gente hoje até acha um pouco de graça dessa história de “linha evolutiva” da música popular brasileira, já que essa idéia de evolução já está, graças à antropologia, meio que pelas caronas. Aliás, sobre essa questão de linha eolutiva, anos mais tarde, Luzi Tatit iria entender esse processo de forma diversa: para ele, o movimento não é propriamente evolutivo, mas se dispõe de maneira dialética, onde o sambafora um momento de "mistura", a Bossa Nova, de "triagem" ou de decupagem, e o Tropicalismo como outro movimento de "mistura". Mas foi o sustentáculo do debate sobre a MPB naquela virada dos anos 60 para os 70, exatamente na época em que surgia uma imprensa musical especializada e que alguns autores, como Augusto de Campos ou Tárik de Souza foram pioneiros em discutir esses assuntos, o Tropicalismo estava em parte no exílio e a Bossa Nova iria entrar num longo inverno de esquecimento até ser reabilitada pelo livro Chega de Saudade, do Ruy Castro, já no limiar dos anos 90. Acho que esse livro também foi responsável por um retorno ao tema.  Lembro disso porque foi exatamente quando descobri aquele opúsculo da Bina Maltz e do Jerônimo Teixeira sobre Antropofagia e Tropicalismo. Foi interessante porque essa relação, que é sugerida, nos primeiros teóricos, Décio Pignatari e o Augusto de Campos, que foram os que meio que introduziram essa idéia antropofágica na teoria tropicalista, justamente ao fazer o grupo baiano se interessar sobre a proposta de reciclar o legado modernista de 22 (também supervalorizadpissimo pelos estudos de literatura) e seus desdobramentos.  Esse foi o começo de como o Tropicalismo começou a ser adubado teoricamente com vista a se tornar num tema solidamente estudado como hoje. 

Mas, olhando no retrovisor, é interessante pensar que houve um momento em que esse debate estava restrito, acho que as perspectivas teóricas representavam barreiras para esse tipo de abordagem mais culturalista da história da MPB. Anos atrás, o próprio disco Tropicália foi referência bibliográfica para Literatura Brasileira na UFRGS e para mim foi uma coisa importante, porque era uma coisa que a gente vinha estudando e lendo e se apaixonando pelo tema já de longa data. Claro que eu acho certas análises meio cansativas, porque acho que, em alguns casos, se pegou desse limão e se fez uma limonada que vai do tropicalismo a teoria alegórica de um Benjamin como em Favretto e o famoso ensaio da Heloísa Buarque de Hollanda ao formalismo russo para achar em Baktin referências para explicar tropicalismo enquanto Roberto Schwarcz criticava o legado tropicalista sob um viés político-ideológico, e acho que o que menos se analisou nesses estudos foi a questão da música. 

Digo isso porque acho que o Tropicalismo, longe dessas questões teóricas sobre artes visuais e plásticas, o teatro do Zé Calso ou o cinema do Glauber – veja que tudo acabou sendo colocado nesse mesmo vatapá, mas eu acho que a transa em questão e que ficou meio de lado foi a de abordar a questão musical, mas mais a musical mesmo. Acho, por exemplo, que existe o papel do Rogério Duprat, que aparece numa entrevista ao Augusto. Eu acho que esse legado do Duprat, da formação dele, do porquê do seu interesse em música popular, da forma como ele fez a cabeça do Gil e dos Mutantes e vice-versa, dos porquês de fazer o que foi aquele happening entre “Questão de Ordem” e “É Proibido Proibir”, cujo objetivo era ostensiamente, como disse Caetano, o de fundir a cuca do júri. Porque assim como o Duprat fala ao Augusto que havia se desinteressado em trabalhar com música popular até descobrir o grupo baiano mostra que ele encontrou neles uma forma de reciclar seus conceitos sobre música contemporânea, música eletrônica, e eu penso que essa virtude do Duprat é meio deixada de lado até pelo próprio desinteresse dos pesquisadores em entender a importância dessa relação dele com Stockhausen ou Varese e todas essas coisas, que também estavam interessando aos músicos de rock inglês na época, à moda dos Beatles, no sentido de fazer um novo tipo de música, mais autoral, menos afeito a clichês e às paradas de sucesso e às regras da arte e até mais “difícil”. 

Duprat e Júlio Medaglia vinham dessa vertente, que era, por exemplo, a mesma do Frank Zappa, que entrou de gaiato de navio do rock mas bebera da mesma  água de Duprat e Medaglia. Era uma outra concepção de música como expressão de arte e aquilo ia totalmente na contramão  do que era a música jovem dos anos 60 na época, que era uma coisa totalmente clichezada, totalmente calcada no clichê mais docilizado dos Beatles do começo da carreira, um som que, nas mãos dos produtores de disco aqui, nos anos 60, se transformou no iê iê iê, que era, com efeito, o produto mais embalsamado vendido para um público docilizado, que era o da Jovem Guarda. Ao mesmo tempo, vivia-se uma polarização absurda entre música brasileira de raiz contra a própria Jovem Guarda, enquanto um movimento outsider como a Pliantragem conseguia vender disco num nível Roberto Carlos, para o desespero dos papas da Tradicional Família Musical (como diz o Augusto de Campos). 

O tropicalismo musical, muito além de teorizações plásticas, cênicas, epistemológicas, era uma resposta e uma síntese a esse impasse, mas num nível sincrônico, isto é lidando com a música de seu tempo, muito longe, ao meu ver, desse papo sobre Oswald de Andrade, que está dado nos postulados tropicalistas, mas o debate aqui, com Duprat, Mutantes e Gil era no sentido de acertas os relógios da estética musical jovem com os do rock internacional, e tendo que passar a caravana diante dos cães furibundos que defendiam os valores do samba, da música nacional, enfim, o tinhorãozismo da crítica da época. O Duprat, no papo com o Augusto, fala tanta coisa interessante no âmbito musical de como essa música experimental iria encontrar o seu caminho na sua relação com Gil e os tropicalistas no sentido de transcender tanto o debate violão versus guitarra quanto o produto datado da Jovem Guarda que, guardadas as proporções e os afetos de quem viveu o movimento como fã, era uma versão barata embora dentro de um contexto específico, que era o do Brasil dos anos 60, ainda atrasado com relação às novidades do pop, enfim, barreiras de época, tanto que o que podemos chamar de contracultura no Brasil foi um fenômeno que aconteceu no Brasil no começo dos anos 70. Isto é, o Brasil caminhava atrás de resto do mundo ainda em tempos de pré-mundialização. 

Claro que esse acerto de horários culturais não se deu de forma pacífica. Foi preciso que imprensa, gravadoras e crítica se interessasse pelo rock, e isso foi um longo caminho. Outra questão, pegando MPB e rock é que, como observam alguns pesquisadores, por causa do Tropicalismo, MPB e rock nacional caminhavam de mãos dadas no começo dos anos 70. E não se sabe porque (se sabe, como veremos adiante) um dia resolveram separá-los. É só ouvir os discos da Gal, a embaixadora da Tropicália no Brasil quando este estava no exílio com Caetano e Gil: ela é MPB e rock. Nos anos 80, como diz Fernando Muratori Costa, quando a imprensa brasileira quis agendar o noo rock dos anos 80, o fez, como ele demonstra em sua pesquisa, na contraposição entre MPB e rock, acusando aquela de ser “bloated”, ultrapassada e que o novo rock da Blitz, da “nova” Rita Lee fase Som Livre foram vendidos como a novidade do rock oitentista, intelectual,alegre, cara limpa (para melhorar a imagem de bandido que  Tradicional Família Musical Brasileira tinha dele), contra a MPB borocochô de produções mastodônticas, ultrapassada. Essa pesquisa é interessante para que se veja o papel da imprensa no agendamento do BRock, algo que, por exemplo, no rock dos anos 80, sem o mecenato simbólico das revistas e jornais, sem as FMs e mal difundido e divulgado nos anos 70, não iria conquistar a mesma visibilidade. 

A verdade é que, e isso se descobre à medida em que a bibliografia avançou nos últimos anos, existe toda uma genética a ser desvelada nessa longa duração do rock brasileiro e da MPB. Ao retroagirmos, chegamos a esse ponto anterior à inflexão, onde MPB e rock andavam relativamente juntos sob o guarda-chuva tropicalista. É nessa perspectiva que me parece que é importante retomar a questão do tropicalismo, mostrando suas relações “dialógicas” com o contexto de fora do Brasil no sentido de superação estética do rock que representava a Jovem Guarda, que era, ao mesmo tempo, a nêmesis e referência, já que era a partir dela que os tropicalistas podiam quebrar lanças contra a Tradicional Família Brasileira. Da mesma forma, lendo a entrevista do Duprat, é possível perceber como o happening de “É Proibido Proibir” e da hendrixiana “Questão de Ordem”, mais do que mera água no chope do ambiente de festival, foram momentos importantes na história dos certames, nesse sentido, mais importantes, como diz Duprat, que “Domingo no Parque” e “Alegria, Alegria”. “Questão de Ordem” é Duprat sendo Duprat. Quem ouve, mesmo hoje, essa gravação do Gil, fica perplexo com o fato de que ele inscreveu a canção no festival. Duprat revela que, quando Gil mandou a fica com a música, ele mandou o registro da gravação “normal”, como voz e violão. No palco, ele fez o que fez, e depois registrou oficialmente em disco. “Questão de Ordem” ficou como um momento desviante no Festival da Canção, onde todos os olhos estavam postos para Vandré contra o “Sabiá”. Mas, por exemplo, se não fosse “Questão de Ordem”, não haveria Macalé e “Gotham City”. Naquele momento, o que interessava a essas cucas era marcar posição no sentido de uma nova conformação da música pop no Brasil, sem amarras, sem preconceitos, entrando e saindo de todas as estruturas, para mim, esse é um debate a ser feito nas futuras abordagens sobre Tropicalismo em música, pegando esses aspectos em sua longa duração.  

 

 

Friday, November 27, 2020

Missa em G


George Harrison em 1970

 

Sempre que vem à baila a discussão a respeito do All Things Must Pass, álbum do ex-beatle George Harrison que hoje completa cinqüenta anos (de lançamento nos Estados Unidos, na Inglaterra saiu dia 30), eu sempre ouço que é, de longe, o melhor trabalho solo de todos os quatro em suas carreiras-solo. O melhor disco solo de todos eles em todos os tempos é All Things Must Pass.  É uma bonita opinião. Longe de querer questioná-la. Eu preferiria analisar o disco no âmbito da própria carreira solo do George, carreira que é bastante irregular, e de um músico que sempre correu por fora do show-biz, principalmente depois que livrou-se das obrigações contratuais com a EMI, em 1976. A partir dali, sua carreira-solo é lacunar e distante da indústria da música e, principalmente, dos palcos. 

Escolha pessoal? Talvez. Eu diria que totalmente. Sempre admirei George pela escolha que ele fez, a escolha? A renúncia a uma carreira-solo e, mais do que isso, ele certamente nunca quis competir com seus pares dos Beatles. Lembro de John falar, certa feita, que George ainda estava por escrever a sua obra-prima. Ou seja, para Lennon, All Things Must Pass não é tudo o que dizem ou pensam. Acho na verdade complicado porque dizer que esse é o melhor disco solo dos ex-beatles implicaria dizer que é o melhor trabalho solo dele. Ou seja, é como se todo o resto da discografia do George fosse um mero anticlímax do que foi o All Thing Must Pass, como se ele tivesse vivdo eternamente, além da sombra dos Beatles, à sombra do seu primeiro trabalho solo (descontando os anteriores, Wonderwall e o Eletronic Sound, que ninguém entendeu, mas eu gosto muito desse). Então, essa afirmação, na medida que é uma provocação aos outros ex-parceiros (por parte dos fãs, lógico, a polêmica é válida), essa afirmação acaba desmerecendo todo o resto da produção de George como músico solo. Então, é melhor ir com cautela nessa transa aí. 


Acho que nessa época, começo dos anos 70, eles estavam ainda marcando suas posições. Harrison juntou-se a nada menos que Badfinger, Derek and the Dominos de Clapton e amigos. O disco, triplo, parece ser uma resposta aos seus ex-colegas. Transformados em inofensivos duendes, Ringo, Paul e John pareciam insignificantes demais. John entendeu a mensagem. Estrilou Quem não conhece George poderia pensar que tratava-se de uma vendeta estúpida. Bobagem, Harrison era cáustico por natureza, não iria perder a oportunidade de perder o amigo sem no entanto deixar a piada passar. Harrison como uma espécie de hortelão sentado no gramado inglês de Friar Park e seus três amiguinhos insignificantes. E o disco? Eu sempre digo que levei muito tempo para escutá-lo na íntegra. 

Ainda hoje, posso dizer até que não sei se cheguei a ouvi-lo a ponto de conhecer suas faixas de cabo a rabo, como conheço os discos dos Beatles. De fato, a culpa não é do George ou desse álbum especificamente. Eu realmente não consigo topar a carreira solo deles. Talvez seja por isso que eu não entre no debate bizantino sobre qual é o melhor trabalho solo dos quatro, como se a trajetória deles depois dos Beatles fosse uma gincana para saber quem fez o melhor disco solo. Realmente, eu vejo isso como papo de fã-clube. 

Penso no All Things Must Pass como um grande movimento para um homem como George. O disco é a sua libertação, é o seu decálogo, é quase uma cantata pop, um catecismo religioso. Quando George canta “My Sweet Lord” com a produção etérea de Spector, é como se ele cantasse do topo de uma montanha. O que me impressiona no disco é que, estribado na produção, o conteúdo do álbum é quase religioso. Isso me leva a pensar que em seu credo, Harrison está tão cifrado em sua mensagem que, em alguns momentos, chega a ser meio caturra de tão proselitista, que ele até mesmo se esqueceu quem ele era e de onde ele havia saído. De fato, George quis ser proselitista em All Things Must Pass

Muitos podem ter achado que era parte do espírito de época. Ele mesmo encontrou problemas na divulgação da música de Shankar. George, de fato, queria ser um pastor da boa nova. Ele de fato chegou a um nível de entendimento e de sabedoria que o conduziu para além das fronteiras do show-biz. Creio que esse foi o seu grande dilema: George se desinteressou rápido pelo que ele fazia. Quando teve as portas abertas para ser um grande artista, ele, apesar das boas produções posteriores, como Gone Troppo ou o Extra Texture, nunca conseguiu ir além do evengelho de All Things Must Pass. E penso que muitos que celebram a excelência e o estado da arte de All Thing Must Pass nunca pararam para pensar – ou ouvir- o restante da produção do ex-beatle, que muitas vezes se viu com acusações de falta de qualidade ou criatividade, como no caso da briga dele com a gravadora para lançar Somewhere In England

Seu maior sucesso nos lacunares anos 80 é um cover, excelente, aliás, Não diria que Harrison acabou virando refém do sucesso de All Things Must Pass mas, se compararmos com a trajetória de Paul McCartney, a carreira solo do George foi desinteressada e sem maiores ambições. Claro, fica o músico George e suas escolhas. De fato, como refletiu Clapton quando de sua turnê com o amigo nos anos 90, quando Eric disse em sua autobiografia que George estava no palco apenas de corpo presente. Seu espírito, na verdade, não estava ali. Acho que existe uma grande necessidade de se construir uma versão sobre o George solo que nem ele faria questão de corroborar. 

Na verdade, diria que o que ele realmente gostava era de algo como os Wilburys – e, se formos pensar, seus grandes momentos foram cercados de amigos, como nos Wilburys e em All Things Must Pass. O álbum, que completa meio século hoje merece ser ouvido, não como o melhor disco solo dos quatro Beatles. Mas como testemunho que um músico que um dia partiu em busca de iluminação e chegou lá. Noves fora, acho que All Things Must Pass não poderia ser o melhor disco solo do George nem em retrospectiva, porque o disco é uma promessa de artista solo que, em minha opinião, não se cumpriu. Fico com a opinião de John, uma opinião bastante forte vinda de quem veio. Afinal, Lennon era o mestre de George. 

Mas John também cometeu algumas derrapagens em sua respectiva carreira solo – e quem diz isso não sou eu. Eu seguidamente, em tempos de streaming, ouço aleatoriamente as faixas do disco. Confesso que não o ouço inteiro, duvido que alguém o faça. Ele tem grandes momentos, como “What is Life”, que não saberia dizer se ele fala para Deus como um Agostinho ou fala para Pattie. O resultado seria o mesmo. “All Things Must Pass”, a faixa, que quase se tornou uma canção de um disco dos Beatles. Eles chegaram a tocá-la mas, analisando bem, assim como “Cold Turkey”, era anti-beatles demais. No contexto da separação da banda e do próprio álbum, ela cala fundo, é profética e profundamente religiosa. “Awaiting on You All” parece daquela safra do “Sour Milk Sea”, um papo meio “read the book” ou “Within You, Without You”, um momento proselitista com direito a alguma iconoclastia. “It Isn’t a Pity”, que teria sido escrita em 1966, também no contexto do disco soa totalmente diferente, me parece o mais perfeito réquiém para os Beatles, a melhor trilha sonora para o fim de uma relação que parecia ser eterna. 

O final, parafraseando “Hey Jude”, deixa isso mais do que evidente. “Beware of Darkness”, “Hear Me Lord”, “Art of Dying” e “My Sweet Lord” seriam as outras partes da missa ecumênica de George. As outras, como “I’d Had You Anytime”, “If Not For You” e “Behind That Locked Door” parecem deslocadas para um contexto mais country-rock e que poderiam fazer parte de um outro disco paralelo em All Things Must Pass, esse sim, com influências de country-rock, uma tendência que George abraça nesse álbum mas que, no entanto, não desenvolve nos trabalhos posteriores, o que é uma pena. Mas, no final das contas, eu confesso que gosto desse cult following do All Things Must Pass como o melhor disco solo dos quatro Beatles em todos os tempos. Na verdade, me assombra o fato de que ele parece ser muito mais do que é, mais do que mais um disco, ele me parece uma grande experiência sonora e religiosa. A nota religiosa do disco, aliás, é a sua maior virtude e o que o sustenta. Não engrossaria aqui o coro, seria desnecessário aliás, de que este é o melhor disco das carreiras solo dos Beatles. Mas certamente que se eu fosse me inspirar em algum trabalho deles para fazer um disco, o escolhido certamente seria All Thing Must Pass.  


Tuesday, November 24, 2020

Sobre o tempo


Um ano atrás meu note queimou. Eu, que não tenho celular nem relógio e não tinha rádio, fiquei perdido. Me orientava pela luz do sol. Isso durou umas duas semanas. Fui me acostumando com o silêncio. Na madrugada, aprendi a me guiar com o canto dos pássaros, sabia mais ou menos a hora pelo canto deles, tanto de manhã quanto de tarde, além do galo do vizinho que, a despeito e ser meio desregulado, sempre cantava lá pelas onze.

Lembrei da experiência lendo um texto do Peter Burke sobre o tempo. Ele fala que antes do tempo mecânico, ordenado pelo relógio, havia o ecológico. A experiência do dia está relacionada ao ambiente local, ao curso do sol, ou seja, também pode mudar com as estações. Agora, por exemplo, quando entramos no verão, o dia começa muito cedo. Os bichos naturalmente acordam com a claridade, acordam mais cedo do que nós, que fingimos que não amanheceu e fechamos as janelas como se fosse possível protelar a marcha inexorável do dia.

No texto, ele fala do povo nuer, no Sudão. Lá, eles organizaam o tempo a partir do trabalho com os animais. O tempo era ordenado pelas tarefas do dia. Fiquei pensando que ele está falando de uma cultura muito antiga, que remetesse aos tempos homéricos. Quem lê a Ilíada sabe que lá a vida acontece de dia. Nada acontece de noite. A noite é a negação do dia, como o mar aberto é a negação da terra firme. Com exceção do famoso canto décimo do poema, que muitos entendem ser uma interpolação do texto original de Homero, já que nada na Iliada acontece de noite. Enfim, mudei de assunto. Voltando: o povo nuer tinha o seu relógio, era o ‘relógio do gado’. O ciclo de tarefas inteiro girava em torno do trato com os animais. Pois Burke fala, ou melhor, lembra para nós que esse tempo já foi o tempo universal. Com o tempo, o relógio permite o fracionamento do tempo em horas, minutos, segundos. A luz artificial permite que as pessoas possam expandir suas atividades noite adentro. E as restrições naturais, diz ele, foram sendo paulatinamente substituídas pelas culturais.

Burke também pensa em termos de geografia do tempo. Hoje todos seguem relógios, o fuso horário, o diabo. Mas, e antigamente? Por exemplo, há 7 mil anos atrás, apenas os sumérios fracionavam o tempo. Em outras partes, o tempo era o dos bichos, o do sol. A semana de sete dias como conhecemos hoje surge na Babilônia. Foi em 1930 que o antropólogo E. Evans Ptritchard conheceu os nueres (e que rendeu três livros clássicos sobre o tema), e viu que, em pleno século 20, eles ainda se guiavam pelo sol, pelo trabalho. Naturalmente que ele não foi o único a ter esse choque cultural. Na época dos descobrimentos isso seria comum – descobrir dezenas de culturas do tempo diferentes. No Japão do século 14, por exemplo, a semana tinha dez dias e os anos, como todos sabem, eram descritos em termos de animais. 

Ainda nessa época, diz Burke, as culturas diversas que habitavam a Europa que entrava na Renascença tinham a sua cultura do tempo particular, muçulmanos, cristãos, cristãos ortodoxos e judeus. Le Goff fala que, por essa época, começa uma outra querela religiosa na Europa, mas não era sobre as investiduras, era sobre o tempo. Havia o tempo da Igreja mas também havia o dos mercadores. A Igreja queria impor o tempo sagrado (ocês já ouviram falar das horas canônicas? Essa era a norma da Igreja). Enquanto o tempo dos padres era sagrado e litúrgico, o dos mercadores, como diz o velho adágio, é dinheiro. Claro que a Igreja finalmente deve ter concordado com o adágio: em 1582, o Papa Gregório XII instituiu o calendário Gregoriano. O que não significaria dizer que ele foi automaticamente adotado por todo o mundo a partir dali. Pense no tempo que isso deve ter levado para acontecer. A Turquia só iria adotá-lo em 1926.  

Se o tempo pode ser calculado, ele pode ser ganho ou ser perdido. A modernidade é que cuidou de prover um tempo universal e um calendário idem. Até por uma questão de ordem. A hora de Greenwich, diz Peter Burke,  surge na Inglaterra em 1848, chegando no Brasil apenas em 1914, nas vésperas da guerra mundial. 

Essa comparação com os diversos tempos é bastante fértil, se pensarmos que, a despeito da tecnologia e da inclusão digital, ainda existem culturas, por exemplo, no interior, onde existem culturas do tempo. Por exemplo, a famosa hora da sesta:  em algumas cidades, o comércio fecha no começo da tarde. Existe o tempo dos sinos das igrejas e, naturalmente, existem aqueles que se guiam pelo cantar do galo, que levantam com a claridade e não conseguem ficar de pé quando a noite chega, o famoso “dormir com as galinhas”. Pois então, eis aí um tempo “cultural, o das galinhas. Seria o tempo “camponês”, o tempo do peão, o tempo da Ana Terra lá no começo do O Tempo e o Vento, de pessoas que, mesmo hoje, são tributárias dos movimentos da natureza. Que é um tempo rural. Existe o tempo industrial, o tempo das fábricas que, segundo Burke, surge com a Revolução Industrial na Inglaterra e, dali, como Greenwich, ai conquistando todas as plagas do globo terrestre. Ao mesmo tempo, surge o tempo das carruagens, o tempo das viagens. 

Hoje, diz o historiador, somos todos arrastados pelo tempo padronizado, o tempo mecânico, que nós introjetamos e cujo impacto no ser humano, conclui Burke, pode ser profundo e, na pior das hipóteses, irreversível. Ou não, no meu singelísismo caso. Falando nisso, de uns tempos para cá, o galo do vizinho parou de cantar. Não sei se ele morreu ou foi exonerado por negligência. Afinal de contas, cantar fora do horário pode dar justa-causa...


Friday, November 20, 2020

Anistia

Fitinha do OMD

 

Domingo passado eu estive no Colégio das Dores para votar. É sempre curioso voltar a um colégio que você estudou há tanto tempo que tudo o que aconteceu lá mais parece um sonho, quase pura ficção se misturando com lembranças que, quando eu as tento evocar, me parece que eles saem melhor agora, ainda mais quando confronto as impressões do passado com minha interpretação no presente, quase uma testemunha imaginária mas falando do real vivido. Gostaria de lembrar de mais coisas, de ter tido quem sabe uma vida escolar mais interessante para contar mas, na verdade, acho mesmo que todas são iguais para todo mundo. Porém, quando algo ou alguém se reporta aos anos de escola, sempre se desfralda para cada um enorme pavilhão azulado de memórias inoluntárias.

Olhei para o pátio, enquanto estava nas filas de minha zona eleitoral. Lembrei da hora do recreio. É incrível pensar se é delírio ou se era verdade, mas eram muitos alunos, eram muitas salas de aula, muita gente no pátio, outros na cantina, mais ali alguns jogando vôlei do lado das escadas. Lembrando hoje, parece que as Dores tinham alunos demais. A hora do recreio era cheia de alunos para todos os lados.

Lembrei também que o SOE tinha um daqueles aparelhos de som 3 em 1 e um sistema de som relativamente potente, então as horas do recreio eram quase sempre embaladas com música. Contudo, eu lembro que a maioria dos discos e fitas que eles tocavam, muitos eram cedidos por alunos que levavam fitas e discos para a senhora do SOE,  à guisa de DJ, botava o som para rolar naqueles serões de intervalo.

Aquela época era engraçada: era o boom do rock nacional dos anos 80, havia a moda dos io-iôs da Coca-Cola, havia as comemorações do sesquicentenário da revolta de 1835. Eu lembro do pessoal da Coca-Cola dando show com os io-iôs, só eu que nunca consegui aprender a brincar com ele, e vivia enrolado as cordas. A música que tocava, em geral, eram os sucessos do rádio: RPM, Ultraje a Rigor. A gurizada medonha preferia Camisa de Vênus. Havia a gurizada que, cor incrível que pareça, levava discos do Pink Floyd. Eu nunca levei nada porque meu gosto musical estava mudando naquela época, e eu acho que eu não gostava de nada daquilo. Eu perdi as contas de recreios com música. Mas lembro de tocar Scorpions com aquele sucessão do “Still Loving You”. Eu achava aquilo a barbárie em termos de música. Gostava de rock mas com moderação. Em 85 eu não tinha walkman e não ouvia FM. Essas músicas tocavam por aí mas eu não ouvia. 

Só quando comecei a colecionar discos, ali por 1987, que eu comecei mesmo a prestar atenção em música para valer, como algo que tivesse a ver comigo. Até porque o walkman japonês que eu tinha um som ótimo e gravava bem. Eu tinha uma tomada então vivia ouvindo ele. Ali foi o começo do telefona para o pessoal da rádio tal e pede tal música e, depois, aquela grande epifania quando você se apaixona por um determinado artista ou banda. É como gostar de futebol. Em geral, as pessoas gostam de futebol a partir de uma identidade particular. Enquanto a gente ouve por ouvir, não consegue diferenciar eus e outros na música, tudo parece igual. Quando a gente vira fã, aí veste literalmente a camiseta, o som que você gosta é tudo e o que os outros gostam é ruim ou quadrado. É a partir daí que a gente começa a desenvolver teses, e estabelecer fronteiras de gostos, enfim, nós construímos toda uma identidade a partir desse reconhecimento. Enfim, o Jon Savage saberia explicar isso melhor para você do que eu nessas memórias num velho computador, como diria o Ritchie.

O que eu ia dizer e esqueci e lembrei agora era que, lá por 85, teve a famosa febre o RPM. E era incrível porque nós, garotos, odiávamos eles, por qualquer razão; mas a maior delas era que, sempre que tocava RPM no intervalo das Dores, a meninas urravam, era tipo uma beatlemania. Era só tocar RPM que era uma gritaria geral. Eu ouvia por tabela todo aquele movimento de rock nacional desde o começo mas só fui gostar mesmo quando os Paralamas lançaram o Selvagem. Era uma as poucas coisas que eu curtia naquele mar de sucessos espontâneos que apareciam o tempo todo na tevê e no rádio. Era uma coisa difícil de explicar hoje que música como audição se transformou numa coisa quase que totalmente on demand: todo mundo escutando de fonezinhos. Naquela época, shows de bandas de rock atraíam milhares de pessoas, shows com divulgação de FMs e que lotavam ginásios e mobilizavam tanta gente que gostava de coisas e bandas, cenas comuns. Não quero ser saudosista, não existe forma de voltar ao passado mas, naquele tempo, não sei se éramos felizes e não sabíamos, como diz a frase, mas a vida era eterna.

Bom, eu lembro que quando veio aquela onda eurodance, tipo Fancy, OMD, eu não podia acreditar que aquele pessoal não tocasse um violão, era tudo eletrônico, bateria eletrônica. Era um suplício ouvir OMD e coisas do tipo. Pra mim, aquilo não era música. E isso que, naquele tempo, do auge desse tipo de música, eu ainda não era roqueiro fanático. Na verdade, ao contrário que pareça, nunca fui e do  muito pouco que eu sei, se eu pareço ser, a farsa sou eu. Na verdade, eu gosto mesmo é de música clássica. Nesse caso, eu abro uma exceção à minha chatice.

Mas o engraçado dessas lembranças, voltando ao começo, é que eu acabo confrontando meu gosto musical daquele tempo, que era algo quase nulo com hoje, e tenho que discordar de mim. Acho que, em primeiro lugar, eu era um chato porque não gostava de nada, então não havia forma de me enturmar. Em segundo lugar, quando eu comecei a gostar de um determinado artista – descontando ritchies e Michael jacksons que foram chuvas de verão – mas quando a gente começa a gostar de música e virar fã, vira chato, chato demais. 

Não tem nada mais chato que estar naquela fase do que eu gosto é bom e o resto não existe. Enim, tem gente que morre pensando assim. Mas eu, de certa forma, tenho vergonha daquele chato que eu era. Mas é da vida, a gente nunca vai ter o discernimento eo pensamento aberto e estar aberto para ouvir outras coisas, descobrir que vai se apaionar por outras coisas enquanto estivermos por aí vivendo, e essas mudanças são tão incríveis numa duração que é a longa duração da vida que lembranças imemoriais como essas parece que falam de outra pessoa. É engraçado porque parece que os anos 80 musicalmente fizeram de tudo para esquecer a década anterior. Depois, nos 90, era como se todos nós estivéssemos com desejo de expurgar lembranças dos anos 80, de lembrar que éramos fãs do Menudo e arredores. Os anos 80 era aquela coisa totalmente camp, como os Titãs no Chacrinha. Porém, os anos 90 foram tão heterogêneos e os 2000 foram tão vazios para nós que fomos daquela geração de parada de sucessos, de walkman, de música no recreio e outros alhures e é inevitável olharmos com olhos dardejantes de saudade daquela caixinha de música maluca dos anos 80. Eu já anistiei os anos 80, e espero que eles me anistiem também. E o OMD também.   


Friday, October 30, 2020

Uma criança solitária

John Lennon 


Outubro marcou a passagem dos 80 anos de nascimento do John Lennon (dia 09). Não havia pensado em falar nada a respeito mas, na verdade, havia pensado sim. Porém, não havia chegado a nenhuma forma de escrever alguma coisa. Até que li esta tarde uma matéria da Thames & Hudson sobre os 50 anos de lançamento do álbum Plastic Ono Band.  

Antes, uma pequena história. Lembro de minha mãe ter, não lembro como, o disco Imagine. Um dia, ela, que não era grande colecionadora de discos (nesse sentido, ela era, como todo mundo, meio relapsa: não colecionava, não sabia nomes de canções, emprestava e perdia bolachões, etc). Lembro quando ela pôs o disco para rodar. E me narrou o que o John falava nas letras. Não em todas, mas em “Crippled Inside”, “Imagine” e “Jealous Guy”. Mas recordo de ouvir o álbum várias vezes com e sem ela.

Mas, para mim, até então – eu deveria ter uns oito ou nove anos, ele era apenas aquele cara estranho ali, na foto do encarte segurando um porco, e que falava coisas que minha mçãe traduzia das faixas, que ele queria um mundo melhor, que se arrependia de ser ciumento, que de nada adiantava parecer legal se você está arruinado por dentro.  Hoje eu fico pensando nos toques que eu recebi e não sei como eu digeri essas informações. Sei que era para mim uma época de aprender. Lembro que ela descrevia uma canção da Elis, “As Aparências Enganam”. As aperências enganam, diz Tunai na letra, porque amor e ódio se irmanam na fogueira das paixões. Os corações se gelam e depois não existe nada no mundo que possa fazê-los descongelar. E as aparências enganam aos que gelam e inflamam porque fogo e gelo se irmanam no outono das paixões. Quando ela tocava isso - era da trilha sonora da novela Eu Prometo, eu não era capaz de entender nem o que ela queria dizer ao tocar essa canção no toca-disco, nem sacar todo o barroquismo dos paradoxos da letra. Hoje eu entendo. O menino de hoje olha para o menino que despertou para ouvir de novo essa música agora. 

Ela explicava a letra, como ela fazia com as do John. Mas essa ela parecia estar falando de algo que ela estava sentindo pela música. Fico mais recordando do que ela dizia mas na cabeça de quem eu sou hoje, porque não consigo pensar no que eu achava na época, porque eu não achava nada. Não sei dizer o que eu sentia. Só que, pensando hoje, devia ser a primeira vez que eu pensava que existiam mensagens nas canções e essas mensagens eram bastante reflexivas ou qualquer coisa nesse sentido. Coisas que eu era incapaz de entender, como o menino do conto da Missa do Galo, do Machado. Coisas que só o narrador adulto seria capaz de analisar e de entender, e a cabeça de menino não seria capaz de fazê-lo. Como era o caso do comentário social em “Imagine”, a súplica de “Jealous Guy” ou o moralismo maroto de “Crippled Inside”. Ela me disse que o título queria dizer que a pessoa estava "aleijada por dentro". Eu fiquei meio perplexo porque uma canção falava isso dessa forma. 

Naquele tempo, eu acho que só entendia coisas como as músicas do Kleiton e Kledir e da Blitz, que eu ouvia bastante. Mas claro que não entendia além, em canções como “Paixão”, ou mesmo em “Você não soube me amar”, aquele mundo adolescente estava muito distante de um menino de oito ou nove anos. Era como se eu ouvisse meus irmãos mais velhos falando da sorte deles com as garotas ou algo do tipo. Isso justamente neum momento em que o mundo se abre diante de nós e temos tanta curiosidade em saber das coisas.  Hoje, passado tanto tempo, descubro, pálido de espanto, que continuo um neófito mas agora tenho certeza que levarei minha incúria para o umbral.

A nota engraçada nisso era que aquele disco do John Lennon, Imagine, de 1971, tinha uma maçã no selo, e aquela maçã aparecia cortada do outro lado. Lembro que eu achei uma idéia interessante embora idiota. Lembro de olhar aquele selo da maçã rodando e achar aquilo muito idiota. Qual não foi a minha surpresa quando, anos depois, eu ganhei de aniversário um disco duplo branco, que fui saber que era uma banda chamada The Beatles. Eu agradeci embora, na época, não tivesse toca-discos e aquele presente não teria para mim qualquer utilidade. E não teve por muito tempo – até quando eu finalmente descobri quem eram os Beatles e fui enfim conhecer a música deles. Mas a única ligação que estabeleci no momento que abria o disco era notar que as bolachas também tinham aquele selo idiota da maçã. Lembro depois, quando finalmente pude escutá-lo, e achei um disco estranho, para não dizer ruim. E a capa toda branca com aquelas fotos de quatro cabeludos esquisitos só me fez ter terror daquele disco duplo.

Enfim, essa reflexão é só para a gente pensar, e a gente pensa em todo o tempo que andamos sobre a terra, de como a gente vive tanto para aprender tanta coisa e mudar tanto a nossa visão de mundo, a nossa opinião, e de como tudo mundo tanto no tempo e no espaço que parece que nós somos sítios arqueológicos ambulantes que carregam em si cidades esquecidas e enterradas. Existem várias múmias minhas de outras eras da vida que estão enterradas esperando que um Heinrich Schliemann desvende as nossas tróias interiores.

Mas enfim, não era nada disso que eu ia tratar aqui. Ia falar da matéria do álbum Plastic Ono Band. A matéria tem uma citação daquele doutor Janov, que faz a terapia do grito com o John Lennon. Então resolvi escutar de novo esse disco, que eu cheguei a tê-lo em vinil. Nunca tive muita paciência com a carreira solo dos Beatles mas esse disco sempre me chamou a atenção pela crueza dele, produto certamente e isso é documentado, da terapia que o ex-beatle empreendeu no final de 1970. Acho que essa terapia explica muito da forma como ele John tratou de assuntos do passado recente na imprensa naquele tempo, praticamente jogando os Beatles e aquela vida que ele comparou àquela cena do Trimalquião do Satiricon do Fellini literalmente na lata do lixo. Com razão, de fato, a imagem terna dele com Yoko recebendo a luz do sol debaixo de uma frondosa árvore – capa do disco, é bastante simbólica. É como se ele tivesse encontrado uma paz, um caminho com ela, algo que ficou em suspenso naqueles loucos anos mas os descaminhos da vida nos fazem reencontrar com essas lacunas esquecidas. 

Soma-se a isso uma leitura recente minha, a do livro do Hunter Davies sobre os Beatles. O livro é pródigo porque fala bastante da infância do John. Então existe muita coisa encoberta ali, a separação do pai, em seguida da mãe, que se transformaria numa pessoa próxima mas à guisa de irmã, sendo Mimi, sua tia mãe postiça para salvar a “desgraça” de Lennon ser fruto de um casamento desfeito, de uma união que não ‘ocorreu’ como uma família. Tudo na biografia aponta como se John tivesse aceitado a separação dos pais e se adaptado à vida com Mimi que, por seu turno, fez de tudo para que ele fosse uma criança feliz, o que ele não foi. Ele não viveu a vida de família, o papai, a mamãe eo seu pequeno rebento, e virou um adolescente problemático (Clapton teve uma infância escamoteada quase da mesma forma, criada por outros mas talvez de forma mais dolorosa, por ter sido, como ele diz em sua autobiografia, rejeitado pela mãe) depois que finalmente perdeu Julia pela segunda vez, desta vez para sempre. A partir dali, anota Davies, John virou uma pessoa cruel com todos, e com sua futura esposa, Cynthia. Mas o sonho dos Beatles e o sucesso estrondoso, tudo ocorreu numa progressão fulminante , e aquelas traumas ficaram num segundo plano para uma outra história dentro da história enquanto aquelas traumas ficaram esperando por ele. 

Parece que o encontro e a posterior união com Yoko fizeram com que ele tivesse uma epifania, que misturou-se ao torvelinho de outra separação, que foi a de John com Paul, e o fim da relação dele com seus companheiros dos Beatles, é como se essa duplicidade de separação e dor reaflorasse mas ele encontrasse esteio no tratamento e a partir do momento em que John foi capaz de evitar subterfúgios e enfrentar esses traumas de fato – independente se a terapia seja válida ou não, pelo que aponta a matéria, acho que esse momento da vida dele, com esse renascimento do seu eu, da forma como ele se despiu de certos preconceitos e teve coragem de jogar tanta coisa fora naquele momento, e da forma como ele plasmou toda essa dor e teve coragem de expô-la, como em “My Mummy Is Dead”, é como se ele retornasse, ou eu retornasse àquelas páginas do Hunter Davies para tentar descobrir tudo o que ficou escondido, o que não ficou dito, todo o caudal de macaquinhos no sótão que fizeram com que John fizesse uma espécie de ajuste de contas. Por isso eu penso que esse disco, o de 1970, seja tão representativo de um artista, mais precisamente o líder dos Beatles, possa ser lembrado, na passagem dos 80 anos, por todos esses elementos de sua formação. Acho particularmente que esse John Lennon no divã, no Plastic Ono Band, parece me falar mais do que o bragadócio das entrevistas para a Rolling Stone e a Playboy, ou o John pacifista ou político, que creio que são desdobramentos desse novo John Lennon, mas mais do que isso, essa epifania do ex-ídolo do rock no espelho, como o John do álbum de 1970, acho que vale a pena conhecê-lo melhor. 

Segundo a matéria, as recordações do começo de sua vida reapareceram nas sessões com o dr. Janov: objetivada para revisitar e reexperienciar dores de infância reprimidas para eleminar essa dor na idade adulta, o terapeuta acabou dando bastante material para que John Lennon trabalhasse. "A terapia fez com que eu sentisse minha própria dor" (...) "você é obrigado a repassar toda a sua dor, de tal forma que isso te faz sentir medo com seu coração a bater, e tudo é realmente resultado de você mesmo e não de alguém lá em cima, é resultado de seus pais e da sua relação com eles". Por fim, Arthur Janov revelou que o grau de sofrimento que ele sentiu fora enorme: "parecia alguém que era adorado por todo o mundo, mas isso não havia afetado em nada. No âmago de toda aquela fama e riqueza e adulação havia apenas uma pequena criança solitária".

PS: reocmendo a continuação do disco de John, o da Yoko (para mim, são um só).   


Referências: 

Thames & Hudson: John Lennon on life, love, peace and the Plasic Ono Band https://thamesandhudson.com/news/john-lennon-on-life-love-peace-and-the-plastic-ono-band/

Hunter Davies. A Vida dos Beatles. Editora Expressão e Cultura, 1968.