Wednesday, December 18, 2013

Uma Fada no Front


O jovem Braga

Muita gente não sabe, mas Rubem Braga, foi, durante quatro meses, redator do jornal Correio do Povo, de Porto Alegre.

Mais do que isso, o certamente maior cronista brasileiro (sempre levando em consideração que essas duas palavras, se não nasceram juntas, andam de mãos dadas) de todos os tempos manteve, nesse mesmo período de tempo, uma crônica diária na Folha da Tarde.

Quando o jovem escritor desceu do Lóide Brasileiro no Cais do Porto, nos primeiros dias de 1939, ele já tinha uma imensa folha corrida de serviços prestados à causa jornalística, em jornal do Rio, São Paulo, Minas e Pernambuco.

Sempre coerente em suas convicções políticas - de esquerda, embora não militante, Braga sempre fazia o arquétipico papel do defensor dos fracos e oprimidos, sempre estando do lado do mais fraco na hora de destilar sua verve no papel – não sem mesmo destilar, quando reclama ou cobra dos superiores, um pouco do seu simpático mau-humor.

Suas posições políticas no entanto, paquidermicamente incomodavam muita gente - ainda mais quando virou redator do semanário Diretrizes, de Samuel Wainer. Já sob a égide do Estado Novo, Braga era alvo da polícia secreta de Getúlio Vargas. Foi acossado pela ditadura que ele resolveu exilar-se no sul.

Mais precisamente em nosso curioso burgo açoriano, como diria Carlos Reverbel que foi quem recebeu nosso herói no cais.

(um parêntese: imagine você morar numa cidade onde os viajantes chegavam de paquete ou navio, e você ia recepcioná-los no cais. Imagine, Porto Alegre foi uma cidade legal)

Ao chegar no entanto, a polícia gaúcha havia recebido ordens de Filinto Miller para meter nosso intrépido cronista no xilindró.

Com a ajuda do dono do Correio, Breno Caldas perante o interventor do Estado, Cordeiro de Farias, o jornalista foi solto. Já em liberdade, Caldas convidou-o para integrar o quadro da extinta Companhia Jornalística Caldas Júnior.

O exílio de Rubem em Porto Alegre, uma quadra de relativo conforto em meio aos atribulados anos políticos do autor, durou quatro meses e 91 crônicas (publicadas na recém inaugurada Folha da Tarde). Uma rescolta desse material foi publicado, em 1994, num volume intitulado Uma Fada No Front*.

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Livro pouco conhecido, se comparado à maioria da obra do jornalista capixaba, ele tem uma peculiaridade: ao serem publicadas seriadamente, respectivamente datadas e em ordem de publicação, elas fogem à linguagem perene das conhecidas coletâneas do autor de O Conde e o Passarinho.

Aqui, a produção do velho Braga está inserido num contexto cronológico e local, já que o cronista glosa o mote das ruas da cidade de uma Porto Alegre bucólica e provinciana que se urbanizava, se industrializava e crescia para o céu (como mancheteia a primeira edição da Folha, de 1936), no final dos anos 30 e começo dos 40.

Mais do que isso, o material de Uma Fada no Front, quem sabe pela primeira vez, mostra Rubem Braga como cronista diário, e não como num conjunto homogêneo de crônicas cujo contexto reside na sua própria estética particular.

No livro, podemos ver a prosa de Rubem singrando uma sequência de fatos, travando conhecimento dos pequenos dramas e demandas do burgo açoriano de seu amigo, Carlos Reverbel e encontramos seu inconfundível estilo em textos que, a rigor, a não ser pelo valor histórico, não seriam destacados para uma coletânea.

Por coincidência, Braga chega às vésperas da Segunda Guerra Mundial, e o reflexo na comunidade tanto de Porto Alegre quanto do Vale dos Sinos é visível em textos como “Coloninho” “Fora do Barulho” “Guerra” e “Arianismo”. Ao mesmo tempo, ele explora esse paradoxo, amalgamando a vida do cotidiano com as notícias do front europeu, sempre com o apelo à paz, em sua nota humanista.

(mais um parêntese: cabe ressaltar que a Folha da Tarde, à época, sob influência da imprensa portenha, foi o primeiro a usar teletipos por aqui**, ou seja, havia uma espécie de comprometimento maior por parte do material factual em detrimento do meramente político, que era a tônica da imprensa porto-alegrense até o Estado Novo)

Contudo, a mais bela crônica do livro é, justamente, “Uma Fada no Front”, que reproduzo aqui:

Desta vez a primavera chegou no começo de setembro às ruas de Porto Alegre. Aí anda florindo pelas ruas batidas de sol, em marchas e cantos. É doce afastar os olhos das negras notícias que os jornais trazem da Velha Europa, é doce desligar o rádio de ondas curtas cheio de palavras de ódio e de mortes e simplesmente sair pela rua, pela nossa rua brasileira onde desfilam meninos, rapazes e moças. Em um escuro minuto do mundo estamos vivendo nesta cidade uma bela e mansa alvorada humana. Há uma ingenuidade matinal nessa festa de gente moça de uma terra moça. É um prazer puro ficar numa beira de calçada vendo esse desfile de rapazes e meninos de todas as raças, de lindas moças que avançam tão felizes no ritmo de sua marcha como se a marcha fosse uma dança simples e sincera. 

Ora, no meio dessas festas de Semana da Pátria eu quero pedir ao homem da rua de Porto Alegre que deixe um momento de acompanhar com os olhos o alegre desfile para contemplar com respeito e amizade essa figura modesta de mulher que faz e renova todo o milagre anti-geográfico da união nacional: a professora pública. Agora que tanta festa se faz com archotes e piras em simbolismos gregos eu quero lembrar essa figura humilde que, silenciosamente, em cada canto perdido do Brasil, vai passando, através dos tempos, para as mãos das gerações que amanhecem, todo o fogo e toda a luz do sentimento brasileiro. É uma fada burocrática, uma fada cotidiana, sempre mal-remunerada, uma fada que se integra na banalidade de nossa paisagem da classe média. Por isso mesmo nem a notamos. É, entretanto, uma fada – e é, hoje, sobretudo no Rio Grande do Sul, uma fada no front.

Trata-se de um front sentimental; mas não são os fronts sentimentais que marcam as linhas dos outros. Não se trata, sesse país de muitas terras e pouca gente, de conquistar terras, mas conquistar gentes; e gente só se conquista pelo coração. É gente de nossa terra que essa lutadora está conquistando para a nossa terra. Quando a sua mão passa, ternamente, pela cabeça áspera de um pretinho ou na cabecinha macia de um menino louro, ela está semeando compreensão para as nossas colheitas de ideal. 

Não está ensinando geografia, nem leitura, nem aritmética; está ensinando Brasil.
Recebida, tantas vezes, com prevenção em uma ou outra zona colonial, ela tem de ser, muitas vezes, dentro do Brasil, uma espécie de consulesa do Brasil. 

E Roma não perderia o seu império se o seu império tivesse sido confiado, ao invés de a rudes cônsules guerreiros, a essas suabilíssimas consulesas. E que mesmo quando não seja um prodígio de consulesas. É que mesmo quando não seja um prodígio de cultura pedagógica ou de Inteligência, ela tem, para se orientar, o instinto fundamental de água mansa, de ave lépida, de suave sombra, de árvore boa, de praia preguiçosa e de animal generoso: o instinto d ternura da mulher brasileira. 

Ternura há em todo o mundo e em todo o mundo há mulheres cheias de ternura. Mas cada ternura tem o seu jeito; e é o jeito da ternura brasileira que a fada burocrata vai ensinando.

Pais e mães de meninos do Rio Grande: ajudem essa missionária do Brasil. Aqueles dentre vocês que não são brasileiros, não tenham medo de que seus filhos se tornem brasileiros. Isso não os afastará de vocês, porque ser brasileiro não afasta um homem de nenhum outro homem do mundo. Ser brasileiro é apenas o jeito da gente do Brasil ser humana. Não pensem que, aprendendo a amar esse Brasil tão grande, seus filhos não terão mais espaço no peito para amar também a terra de vocês. Terão sim. Quem aprende a amar uma terra tão grande não sente necessidade em amar, de uma vez, a terra inteira.

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À despeito da pauta sempre vinculada às notícias da Folha, como doação de verba à obras de caridade, construções da Prefeitura, cartas de leitoras aspirantes à poetas, a crônica “Um Clube” alude à fundação da primeira Escola Superior de Jornalismo, no Rio. Não sem ironia, Braga diz que teria “muito a aprender” no curso, porém, entendia que a sobrecarga de trabalho em jornal não lhe franquearia tempo para estudar.

- Não aprendi a fazer muita coisa em jornal e pelo fato simples de que estava trabalhando – diz.

E arremata:

-- Mas o pior é que esses doutores terão como lente os “rábulas” atuais”...

Noutra crônica, ele comenta a respeito do clássico “Um Rio Imita o Reno”, do Viana Moog (que fora editorialista do Correio por breve tempo) achando-o romance de tese demais. Noutra, ele questiona Erico Verissimo, se é possível viver só de literatura. Braga diz que não, e que o autor de “Caminhos Cruzados” é apenas exceção.

(parêntese: é fato, naquele momento exato, Verissimo gozava de extrema popularidade, após o lançamento de “Olhai os Lírios do Campo”, que esgotava sucessivas edições, e compelia os ávidos leitores à outras obras do autor que, por sua vez, até então, à muito custo desencalhavam da gráfica da Globo)

A crônica mais divertida, no entanto, em minha opinião, é “Belém Velho”. Nela, o Braga descreve o dia na fazenda que foi a sua vigileatura pelo arrabalde de Porto Alegre, no bairro de mesmo nome:

- Eu me demorei a contemplar um bode branco que meditava na brisa serena que lhe beijava a barriga – revela.

Rubem diz que o convite partiu do escritor e colaborador do Correio do Povo, Telmo Vergara. Descreve a paisagem do bairro desde a vista do telhado do Hospital Belém que, naquele tempo, era um sanatório, tendo à frente do Dr. Oscar Pereira:

- Vimos de longe Itapuã – revela. – a paisagem é tão ampla e linda que dá ao mesmo tempo vontade de viver e de saltar para a morte, no suave abismo que o vento ondeia.

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Uma Fada no Front saiu originalmente em 1994, mas logo esgotou. Não chegou a ter distribuição nacional, porquanto a Artes e Ofícios é uma editora radicada no sul. Porém, em 2002, a Record o relançou, com o subtítulo "Um episódio em Porto Alegre". Edição esta que está em catálogo e vale muito a pena ler.





NOTAS:
  

* BRAGA, Rubem, Uma Fada no Front. Artes e Ofícios, Porto Alegre,  1994

** RUDIGER. Francisco. Tendências do Jornalismo. EDUFRGS, Porto Alegre, 2002.




 

 

Tuesday, December 17, 2013

O Vampiro do Andaraí


Machado de Assis



Me causou espanto a palestra do professor José Antônio Pasta Jr, a respeito da Metafísica em Machado de Assis. Fazendo um irretocável retrato dos personagens do autor, ele se referiu ao Conselheiro Aires como um “vampiro”.

Vejamos. Procurei em Créméné: Vampiro é um ser mitológico ou folclórico que sobrevive se alimentando da essência de vida criaturas vivas (...), independentemente de ser um morto-vivo ou uma pessoa viva (Mythologie du Vampire, p. 89). Resolvi enveredar pelo lado metafórico, e é possível encontrar a expressão com uma certa conotação moderna ligada à política.

Mas não me serve. Até que descobri o conceito de vampirismo psíquico. Embora não seja um fato reconhecido vamos dizer assim, cientificamente como tal, um psicólogo chamado Albert J. Bernstein, no livro Emotional Vampires se refere ao fenômeno como um parasitismo anímico. Ou seja, pessoas cuja influência exaurem a virtude emocional de outrem.

Aires é um diplomata em idade provecta, aposentado e que retorna à Corte, para sua casa, no Andaraí. Veja o leitor que nada é gratuito. O professor Pasta falou em vampiros ao se referir ao conselheiro. Pois fui eu cá pesquisar e descobri que, pela  etimologia a palavra “andara-y” vem do indígena, e significa, pasme: “rio dos morcegos”. Com vocês, o Vampiro do Andaraí.

Ele entra em contato com o casal Aguiar participa sempre dos serões que sempre acontecem na casa deles. É ele quem enfeixa toda a trama de situações que ocorrem à roda desse círculo de amizades, e volta e meia, faz seus excusos à sua irmã, Rita.

Na verdade, fiquei com a idéia fixa de “vampiro” na mente à repassar o livro na memória, de forma a aceitar a tese. E já vejo alguma consistência. O que deve chamar a atenção daquele que lê o enredo é que o Memorial de Aires tem uma atmosfera rarefeita, cheirando a velas e coroas de orquídeas. Toda a ação dos personagens não esconde um elemento que paira no ar, que tem sempre algo de fúnebre, de fenecido.

O romance começa no São João Batista, onde Aires revê os antepassados e conhece Fidélia. No meio do livro, todos vão felizes ao cemitério em ocasião do Dia de Finados. Por fim, a morte do pai da viúva e do corretor Miranda. Fora isso, os aguiares não têm filhos, Fidélia é uma viúva solteira e Aires também é um viúvo sem filhos (Machado naquela altura também o é, e isso não pode passar desapercebido do leitor).

Se aceitarmos a tese do vampirismo de Aires, a história perde aquele ar de romantismo decadentista em favor de uma nota humorística. Até porque somos tomados pela ternura do casal Aguiar e pela devoção dos dois à singela Fidélia, num romance onde todos parecem pios exemplos de dignidade (com exceção da linguaruda da D. Cesária). Aires poderia entrar no rol, mas a verdade é que ele destila o seu fel em alguns momentos em que se encontra à sós com o papel (como ele se refere ao seu manuscrito, nos diários).

Em outras palavras, pegando o mote do vampiro, o conselheiro é, com efeito, um secador. Ele tem atração pela bela viuvinha – a despeito do mórbido paradoxo de que ela em vida se encontra ligada ao defunto, inclusive usando um camafeu com a foto dele (do defunto) e guardando o luto agressivamente em suas vestes inclusive.

Desde o começo, é essa figura ainda desconhecida dele que o liga ao clã dos Aguiar. Tanto que, com a partida do paquete com ela e Tristão, o Memorial termina (às vésperas da República onde, aliás, começa boa parte da ação de Esaú e Jacó). No mais, ele vive em função de enfeixar as atribulações dos personagens que o cercam nesse núcleo, bancando o histriônico às avessas.

O vampiro Aires só quer sugar o íntimo do que se passa aos personagens, supondo coisas, coletando fofocas. O que lhe distrai é o consolo dos aguiares, em adotarem Fidélia e terem em retorno à Corte do jovem Tristão, vindo da Europa.

Como são isentos de filhos, os dois completam a família postiça do casal, que vive de novo tendo-os em seu regaço, retendo os dois com mimos e ternuras.

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A despeito do vampirismo do Aires, cabe ressaltar que o Memorial é, também, uma reflexão de Machado sobre si mesmo (saudade de si, como ele fala na última frase do livro), um painel de memórias onde o personagem do autor se fragmenta nas vozes do romance e se transforma nas pessoas reais de Dona Carmo e Aguiar, uma representação literária do venturoso casal Assis.

A segunda parte da história nos mostra o distraído idílio entre Tristão e Fidélia, união improvável do filho pródigo postiço que foge para além-mar e a eterna Penélope, a viúva Aguiar, que cose todas as noites a mortalha do seu falecido marido, e cujo amor e devoção pós mortem (que pode porventura impacientar o leitor) parece inexpugnável como as pedras do cais Pharoux.

Tristão, nome de personagem da famosa tragédia transformada em drama musical por Richard Wagner, artista de predileção do autor de Iaiá Garcia e que também ele, Tristão, sabe espargir a música do mestre alemão nas teclas do piano nos serões dos Aguiar. O estouvado jovem acaba, tão distraída quanto necessariamente buscando os braços da viúva porém honesta Fidélia.

O Machado velho está no idílio dos Aguiar assim como, de certa forma, está jovem também na paixão de Tristão e (quase escrevi Isolda, ato falho, caro leitor) Fidéia. O Bruxo veio de um casamento improvável, quando conhece a irmã de seu compadre, Faustino Xavier de Novais, Carolina. Ela, culta, inteligente, madura e mais velha, assim como acontecera com o pai do chato do Brás Cubas, conheceu o jovem escritor num dos serões promovidos por seu amigo.

Improvável porque, como se sabe, o Bruxo do Cosme Velho era de família humilde, mulato; a família dela foi contra, exceto Faustino. E o consórcio se deu à revelia dos pais dela, como ocorrera com o primeiro casamento da viúva com o primeiro marido.

Aires, aposentado e solteiro, mal disfarçando (se ele dissimula aos seus pares no romance, não passa desapercebido ao leitor), deseja a triste e bela enlutada jovem, acredita que ela esqueça o morto.
Até que a jovem se apaixona por Tristão.


O conselheiro, que até concebia o amor eterno dela por seu respectivo marido, cujo túmulo visitava amiúde, agora assistia aos arrufos de viúva com Tristão. Em vão, sadicamente torce pelo defunto.

No fim, os dois perdem: Aires perde a sua Isolda que, por sua vez, enterra o marido duas vezes: a segunda, pois, simbólica mas não menos definitiva.

Se a partida de Tristão e Fidélia surpreende a todos (menos Aires, que fica sabendo antes, por intermédio daquele), ao leitor, salvo engano, isso não passaria desapercebido. No amor, não existem culpados. Ou, como na célebre frase do livro: "basta amar para escolher bem; o diabo que fosse era sempre boa escolha".

Vamos e venhamos: seria egoísmo de D. Carmo querer retê-los na Corte apenas por eles dois, sendo que à Tristão lhe aguardava a aurora de uma carreira política em Portugal e, quanto à Fidélia, era jovem demais para morrer só e aos poucos, sendo amorosamente vampirizada por Aires e, de certa forma, amorosamente por seus pais postiços. Como fazem os pais de verdade. Honni soit que mal y pense.

Aires se apercebe disso, e racionaliza: “se os mortos vão depressa, os velhos se vão mais depressa ainda, viva a mocidade!”

Campos não me entendeu, nem logo, nem completamente. Tive então de lhe dizer que aludia ao marido defunto, e aos dois velhos deixados pelos dois moços, e concluí que a mocidade tem o direito de viver e amar, e separar-se alegremente do extinto e do caduco. Não
concordou, — o que mostra que ainda não me entendeu completamente (MACHADO DE ASSIS, 1975, p 217)


Nessa amarga reflexão, o vampiro Aires entende Aguiar e D. Carmo como um casal de mortos vivos (e, sem titubear, bota o mesmo chapéu), vivendo, no cabo de seus dias, a pior morte de amor, pior que a de Tristão e Isolda: a irremediável solidão a dois.

Moral da história (se é que tem alguma moral): Jovens, não envelheçam, apenas vivam.




NOTAS

ASSIS, Machado de. Memorial de Aires. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1975, 219 p

http://portalgeo.rio.rj.gov.br/bairroscariocas/index_bairro.htm. Acessado em 17/12/2013

Monday, December 16, 2013

Pequeno Príncipe e o Ponto-de-vista da Morte


Aquarela de Saint-Exupèry

Final de novembro: uma turma de RRPP da Fabico promoveu um projeto em conjunto com o Dacom, como exercício de uma cadeira da faculdade. O evento, naturalmente, era para o público interno. Então houve várias atrações, como palestras, exposições, e uma troca de livros.
Como eu tinha alguns que queria me desfazer, entre eles, o Terra dos Homens*, que eu tenho em duplicata. Comprei duas vezes achando que havia perdido o primeiro, e logo que comprei o segundo, achei o antigo. Como o evento durou um dia só, eu acabei voltando para casa com a duplicata.
Por uma casualidade, comentei o fato (do tal livro em duplicata) a um amigo, expliquei-lhe como era a história (memórias do escritor quando ele era piloto do correio francês na linha Toulouse-Marrocos pela Aeropostale) e ele quis saber mais sobre a obra (parêntese: o livro já foi comentado neste blog, tempos atrás).
Eu então não pensei duas vezes. Perguntei: "quer o livro?". Resposta positiva, mandei pelo correio (coincidência, não?) o volume (bem difícil de encontrar nos sebos da vida, aliás).
Porém nesse processo, passei os olhos no volume, e fiquei pensando teorias a respeito de duas coisas: uma é como a experiência como piloto e a convivência com as pessoas e o ambiente do norte da África que ele descreve nas suas memórias é o pano de fundo vital do Pequeno Príncipe. Ele escreveu a fábula tendo aquela ambiente, aquelas pessoas, a flora e a fauna.
A fauna aparece na figura da mortal cascavel que mata o principezinho. E a raposinha do deserto, animal resistente e pertinaz, que sobrevive entre a falta de víveres, o calor dos dias e o frio das noites.
A raposa, e aí me lembro das aulas, é o outro na história. É aí que eu elaboro a minha "teoria" sobre a outra coisa: o Pequeno Príncipe, de certa forma, é a fábula de uma pessoa com crise de identidade porém, de certa forma, lúcida a respeito dessa crise. E a história perfaz todo o processo de individuação desse sujeito.

O que é uma fábula? (um parêntese Mas daí ocorre uma confusão, porque existem dois narradores que se fundem, onde o aviador que é o centro da representação, mas que é central porque é a partir dele que vemos os demais e é por ele que conhecemos os outros personagens. Depois ele se torna o apresentador do Príncipe, ao passo que aquele se torna o interlocutor do seu guia, e guarda tudo o que o menino lhe conta.
Esse é o núcleo da narração do autor, e todos os desdobramentos que ocorrem a partir do uso desse expediente. )

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A fábula, como nos explica a Online Encyclopedia é uma aglomeração de composições literárias em que os personagens são animais que apresentam características humanas, ao que chamaríamos prosopopéia. No caso do livro do Exupèry, é uma fábula num sentido mais amplo, já que o caráter didático do conto demonstra possuir uma dimensão bem mais ampla.
O elemento didático aqui assume, por exemplo, fumos de denúncia contra a forma como o próprio ser humano perde o senso de transcendência ao longo da vida, principalmente quando se torna adulto, e deveria abrir-se para o amor, mas abre-se, segundo o autor, para o desencanto, a vaidade e a hipocrisia.
Por isso o protesto bem-humorado de Saint-Exupery ao destratar o próprio amigo na dedicatória: À Leon Werth quando ele era pequenino”. Ou seja, quando ele cresceu, virou apenas mais um grande canalha como todos nós.

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Sem rodeios, pode-se dizer que O Pequeno Príncipe nasce da crise de identidade de um personagem, que não se reconhece num mundo onde o indivíduo é submetido a um contexto humano que tende ao isolamento, à solidão e a despersonalização. Enfim, como na metáfora que o autor usa no final de Terra dos Homens, sobre a metafórica transformação do ser humano em inertes figuras de barro, por conta de sua progressiva despersonalização diante do mundo e das coisas (note-se que é um tema recorrente em Exupery).
Uma crise é com relação ao outro; a segunda crise é o fato de que ele é um ser egoísta, e que não tem consciência de um sentimento amplo de alteridade. No entanto, ele sabe que é preciso empreender uma demanda. A primeira delas é entender esse processo de despersonalização do mundo e das pessoas.



Nessa busca, ele encontra alguém, um outro. Sobre o outro, uso a acepção de um conhecido linguista **; que explica o termo em seu caráter psicanalítico, buscando o entendimento no campo da linguística: aquela voz social ou individual recalcada e que é preciso desentranhar para que se conheça o outro lado da verdade.



E é nessa outra pessoa (ou nos planos em que gravitam o Personagem (o ponto-de-vista *** do narrador Exupèry, em seus desdobramentos, o aviador e o príncipe) que ele estabelece os diálogos, encontra um estranhamento e, por fim, pode desvendar essa voz social ou individual com vista a saber o outro lado da verdade.
Como se sabe, ele então descobre o amor em sua consumação mais profunda; agora tem uma visão de mundo mais ampla, possui uma consciência ampla de si, de sua finalidade. Esse processo, de certa forma, lhe é traumático, obrigando-o a renascer como ser humano
Quando ele descobre o amor, ele entende a relação adversa dele com a Rosa, descobre que cada um tem a sua individualidade e, por fim, ele consegue enxergar além de si e amá-la como ela é e, de certa forma, entender todas as pessoas como elas são, em última análise (a despeito do caráter de denúncia da fábula, ao apontar, pelo risível, defeitos e contradições de seus interlocutores. de forma caricatural e grotesca).
Nesse plano, não existe alteridade, busca, reconhecimento ou jogo de espelho, mas uma lente distorcida ou deformada onde o menino rebelde se insurge contra o simbólico do outro no campo social: essa deformação vê tudo de pernas para o ar. Aqui, de forma intrusiva, ele quer decifrar esse simbólico, decifrar o enigma.
Enfim, por um plano, ele vai pelo viés da busca do reconhecimento; no outro, ele visa um deslocamento, uma insubordinação contra a ordem instituída.


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O narrador, porém, ao invés de descortinar o era-uma-vez diante dos olhos do leitor, ele perfaz isso no plano da memória.
Por isso, eu acredito que o Exupery fale de forma apócrifa de uma experiência extrema de uma separação definitiva****, e a reconstrução e elaboração dessa perda. Nesse ponto, os planos convergem: a memória é a reconstituição de algo que está morto. O Pequeno Príncipe é uma história onde tudo está morto: todos estão mortos e o narrador pranteia essa morte pelo discurso da memorização e (Barthes, para variar)
É uma fábula que revela um discurso sobre a construção do discurso amoroso sobre algo que não existe mais, no plano da morte - mas, no caso do conto, a questão fica em aberto, já que o leitor não sabe se o principezinho realmente morreu ou partiu para sempre.
O fenômeno é que o Exupery, de maneira hábil, consegue conduzir o leitor a se reconhecer nessa mesma dúvida que desencadeia o processo psicológico do Pequeno Príncipe, projetar-se nessa mesma demanda e, por fim, se reconhecer no percurso dessa inefável auto-descoberta.
Existe um desencanto do mundo, a partir do estranhamento do mundo, e a dispersão da identidade do Personagem; este carrega então cegamente esse espelho aos pedaços pelo mundo, como um cego.
Quem lhe restitui o entendimento, o espelho e a sua visão é a Raposa. Quando ela diz`ao príncipe que a Rosa é única no mundo, esse movimento catártico permite que ele se reconheça, possa identificar o outro e ver a si mesmo novamente.
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Não se assuste o leitor porém, ao ver-me aguar o pagode do blog (sempre relacionado, como se sabe, a amenidades) com essa crônica que virou paródia de ensaio acadêmico. Apenas quero mostrar que a teoria literária nos permite ver (e consequentemente ler) além do senso comum que, no caso deste famoso volume, há muito tempo já rotulou, execrou, denegriu, simplificou, ridicularizou e lançou este pequeno e simpático clássico da literatura mundial na danação do fogo de Hades.
Por fim, mostrar como o estudo da literatura nos apresente essas veleidades. Como se sabe (e Freud já explicava nos oráculos, há 200 séculos atrás), nenhuma fábula é inocente. Não as subestimemos pois, como diria Nelson Rodrigues, elas também guardam lá as suas devidas (amargas) verdades fundamentais...



NOTAS

* Antoine de Saint-Exupèry, Terra dos Homens, Editora do Autor, tradução de Rubem Braga, Rio de Janeiro, 1962

** Afonso Romano de Sant'anna. paródia, paráfrase e cia. Ática, 2001

*** Num conhecido ensaio sobre João SImões Lopes Neto e seu Blau Nunes, Flávio Loureiro Chaves cita o autor Percy Lubbock que concebeu a teoria do ponto-de-vista. Para este, há diversas vozes ao narrar. O leitor, por sua vez, só conhece o que sabe o narrador intercalado na história ou a personagem que conta os eventos ou, ainda, a personagem principal que conta a história na primeira pessoa. Porém, nesse conceito, não se deve confundir "ponto-de-vista" com foco narrativo: o que existe é uma polifonia de personagens que perfazem um mesmo eixo. No Pequeno Príncipe, eles podem ser o aviador (narrador e protagonista) e o menino (interlocutor e protagonista da narração do protagonista)

**** Aqui entendo que, asim como o pano de fundo da história é de raiz autoral, a inspiração da narrativa (que me salvem os biógrafos) também o é

Tuesday, November 26, 2013

Quintanadas


O poeta em seu quarto de hotel

Por causa de um exame de seleção de mestrado, tive que ler Mário Quintana. Não havia indicação de livro - poderia ser apenas uma antologia poética. Porém, como na maioria dos autores relacionados, eu acabei indo além. No caso do poeta alegretense, eu peguei várias obras. Entre elas, um livrinho despretencioso, chamado Ora Bolas - O Humor Cotidiano de Mário Quintana.

Lançado pela Artes e Ofícios, em 1994 (ano da morte do autor), a obra é uma espécie de anedotário contando episódios que se enfeixam pelo viés picaresco do biografado. Embora fragmentário, no todo o livro evoca perfeitamente a figura do autor de Rua dos Cataventos.

O que chama a atenção é que, pelo menos para este que escreve, se a intenção deste volume é o de fazer o leitor rir, o efeito, de certa forma, acaba sendo o inverso. Como se sabe, Quintana tinha aquela imagem do poeta pachola, simpático, imagem que pode ser resumida naquela famosa foto onde ele posa sentado placidamente entre as casinholas de porta e janela da Travessa dos Venezianos, em Porto Alegre. Aquele é o mito de Quintana: o homem simples, lúcido, pacífico, hábil com as palavras, sempre falando em ruas fatigadas e anjos.

Peguei o Ora Bolas com a intenção pura e simples de cifrar essa impressão, tendo ao meu redor obras como o Apontamentos de História Sobrenatural ou o Caderno H, que é uma forma muito pessoal e original de Quintana em destilar a sua prosa poética.

O livro, como se sabe, caiu de maduro: Mário Quintana era um ótimo personagem de anedotário. Alguém sempre tinha uma história curiosa do poeta para contar. No entanto, depois de ler a coletânea do Juarez Fonseca (me admira eu não ter lido antes, ou seja, leio com vinte anos de atraso) eu descobri um outro Quintana.

Na maioria das histórias, o autor de A Vaca e o Hipógrifo se mostra uma pessoa extremamente arredia, avessa à expor sua biografia, ou seja, quase um misantropo. Claro que é possível observar o seu humor típico de anedota, com tiradas desconcertantes; porém, na maioria das vezes, a rescolta de historietas mostra Quintana sendo impaciente com o trato com as pessoas, e um tanto sombrio.

Ao mesmo tempo, dá para perceber que Mário nos deve uma biografia, sempre negada. Poeta de reconhecimento tardio, temos à mente sua imagem de velhinho sorridente e peripatético pelas ruas de Porto Alegre. Deve causar surpresa ao ilustre leitor que existe um hiato entre sua história desde o retorno à Porto Alegre (ele passou um tempo na antiga Capital Federal, depois de uma primeira estada em nosso burgo açoriano) e a consagração com o lançamento da Antologia Poética, em 1966.

Aliás, episódio que carece à biografia de Mário Quintana é a de que ele é, de fato, um pioneiro na tradução aqui no Brasil, muito antes disso virar quase que uma profissão, franqueada pelas faculdades de Letras. Quem leu o Um Certo Henrique Bertaso, do Erico Verissimo, deve se lembrar: aquela turma da Globo da Rua da Praia estava fazendo história quando traduzia, pela primeira vez, coisas como Platão, a Poética do Aristóteles, até Conrad, Proust, Huxley e afins.

Quintana, muito antes de ser poeta oficialmente, era tradutor - e sem dicionário, como ele mesmo dizia. Mário teve que aprender inglês à força, e aprendeu, até que traduziu Virgínia Woolf. Essa luz sobre o Mário tradutor, é algo que rende muito em matéria de pesquisa acadêmica, e que é, de certa forma, meio subestimada.

Do que se sabe, ele teve uma vida um tanto estouvada por lá, e sérios problemas com a bebida, fato que o afastou de muita gente (diz-se que o seu colega de Província de São Pedro (a revista da Globo) e Correio do Povo, Carlos Reverbel, tinha reservas com relação à Quintana por conta disso).

Sua dependência era crônica (ele bebeu até os 40 anos), a ponto de o poeta ter que internar-se na Pinel, em meados dos anos 50. Daí se depreende que aquela divertida fala arrevezada do escritor do Caderno H era, de certa forma, um atavismo de cachaceiro?


....


Enfim, essas histórias, e o próprio chiste sombrio de suas tiradas cáusticas revelam o inverso do insigne versajador, e o pouco que o Ora Bolas exibe (já que a obra não se quer como uma biografia do autor mas, em última análise, acaba sendo) mostra um Mário surpreendente - pelo menos, para quem o conhecia pelos livros.

Como aquela vez em que Mário viu o então jovem Luiz de Miranda, sem vintém e honestamente morto de fome, e prometeu levá-lo para jantar onde ele podia "pedir o que quisesse". Levou-o ao bandejão do Correio do Povo, onde o único prato era o feito.

Ou a vez em que falou a alguém, reclamando da Mafalda Verissimo. A esposa do Erico, vendo o poeta tão mal vestido e vivendo sozinho, tinha mania de fazer meias de lâ para Quintana. Mário, farto dos mimos, desabafou: "ela deve pensar que eu sou uma centopéia".

Ou das inúmeras vezes em que Quintana dava entrevistas para as normalistas do Instituto de Educação (ele odiava gente que lhe procurava para entrevistas), em plena redação do Correio. Sem paciência para responder sempre às mesmas perguntas, ele variava: "seu Mário, qual o senhor acha que é o grande problema da solidão". Resposta: "o grande problema da solidão, minha filha, é preservá-la".

"Seu Mário, por que o senhor nunca se casou". Resposta: " porque as mulheres são muito perguntadeiras". "Seu Mário, o que o senhor acha do Céu?". Resposta: "Olha minha filha, deve ser muito chato. Porque lá tem os chatos de todos os séculos. Aqui é melhor, porque a gente tem que aguentar só os chatos da geração da gente".

Ou aquela vez que o professor Donaldo Shuller foi à redação do Correio agradecer à Quintana por uma citação no Caderno H. Resposta do poeta: "hum, já que você veio me agradecer, acho que já me arrependi".

Também tem aquela vez em que Mário estava placidamente em sua mesa, no Correio. Eis que, debaixo de bruta chuva, irrompe um rapaz, de gabardina, todo ensopado, se apresenta e diz: "seu Mário, vim trocar umas idéias com o senhor". Resposta de Quintana: "Não aceito! Vou sair perdendo".

E a do poeta bageense que queria distribuir na capital dos gaúchos um volume seu, de edição pessoal, e que tinha um préfacio - justamente - de nosso heroi. Eis:

A vida me ensinou que a gente só gosta de quem é parecido com a gente. Lendo os versos de ..........., vejo que somos muito diferentes. Talvez esteja aí o seu grande valor.

Mário Quintana




Mas o melhor do mau humor (esse seria um bom nome para o Ora Bolas) foi uma polêmica entre o autor e James Amado, na própria (e mítica) Província de São Pedro. Num artigo, o irmão do escritor Jorge criticou o que ele entendia como lirismo água morna de Quintana, e o fato de que ele não era um poeta engajado, entre coisas tais.

Naquele tempo - idos dos anos 40, muito antes do advento das patrulhas ideológicas, já se cobrava engajamento político de todo e qualquer intelectual brasileiro (o supracitado Erico era outro alvo desse tipo de crítica).

Na edição seguinte, Mário rebateu, implacável:

Li com espanto e apreço o ensaio que V. remeteu para a Província de São Pedro e no qual tem a bondade de avisar-me de que tomei o bonde errado em poesia. Apressei-me então em ver o que têm feito os poetas que, segundo V. tomaram o bonde certo. Eis don Pablo Neruda; publica ele, numa revista nossa, uma ode à senhora mãe de Luís Carlos Prestes; abro outra revista e surge-me o senhor Camilo Jesus, com um poema "para Anita Leocádia", filhinha do senhor Luís Carlos Prestes. Desconsolo-me. Vejo que cheguei tarde, muito tarde. Agora, só me restam as tias do senhor Luís Carlos Prestes..."


Moral da história (em sua ótica, naturalmente): uma boa causa nunca vai salvar um mau poeta.

Thursday, November 14, 2013

Beatles no Ar!


John, Paul, George e Ringo, chegando para mais uma sessão na BBC


Depois de 15 anos do lançamento da primeira compilação, a Apple lança o material restante das sessões de gravação que os Beatles realizaram para a BBC de Londres: On Air—Live at the BBC Volume 2.

As gravações, reunidas em dois CDs, chegaram às lojas na última segunda (11) com alguma divulgação. Ao todo, o quarteto participou de 52 programas produzidos pela emissora estatal britânica, entre 1962 e 1965. A maior parte das aparições dos Fab ocorreu nos programas Saturday Club e Pop Go The Beatles, em 1963 e 64. De certa forma, a visibilidade franqueada pelos microfones da BBC foi um passo importante para pavimentar o caminho da banda ao sucesso.

Por outro lado, o contrato com a Beeb (como seus ouvintes a chamam) também estimulou John, George, Paul e Ringo a ensaiar consideravelmente: todos os programas eram gravados ao vivo e, para preencher a parte musical de suas participações, eles se viam obrigados a fazer algo que suas apresentações regulares ao vivo não permitia: revolcar muito do velho repertório do grupo. Coisas do tempo em que eles realmente precisavam ser ecléticos, amalgamando tanto standards de Elvis Presley dos velhos tempos da Sun, como I'm Gonna Sit Right Down And Cry Over You, I Got a Woman ou I Forgot to Remember to Forget (dava para ver que os Beatles sempre apostavam nos lados B do Rei) ou coisas do Tim Pan Alley, como Beautiful Dreamer (não exatamente Tim Pam, mas uma canção do Stephen Forster do século XIX, numa tenebrosa versão ieieiê), Honeymoon Song (lembram de Falling in Love Again ou Red Rails in the Sunset?) ou Till There Was You (essa depois definitivamente integrada ao repertório dos Beatles).

Muitos fãs da banda só travaram contato com esses tapes quando do lançamento da primeira coletânea, intitulada Live at The BBC, lançada em 1994. Fato é que praticamente todo essa material era conhecido dos bootlegers (colecionadores de discos pirata, não oficiais, de artistas em geral) desde o começo dos anos 70. A febre do bootleg apareceu a partir do fim dos anos 60 e cresceu bastante nos anos 70, até o advento do CD.

No caso dos Beatles e a BBC, alguns colecionadores explicam que os tapes das sessões da rádio inglesa já eram prensados ilegalmente desde o disco Yellow Matter Custard. Pertencente à era paleolítica da pirataria, esse é um dos elepês mais raros para colecionadores. Muitas versões de discos feitos com gravações da BBC, no entanto, eram de péssima qualidade, contrastando com outros, com ótima qualidade. Estes, com efeito, eram prensados com matrizes oriundas de rolos oriundos dos próprios arquivos da BBC.

Fato é que, de 1973 a 1994, todos os programas dos Beatles na BBC foram lançados em discos pirata, e das formas mais variadas. A mais célebre, contudo, é a Beatles at the Beeb. Como acontece com a maioria delas, a origem dos masters e a produção é apócrifa. No entanto, a qualidade das edições e o lay-out de capa de cada um deles era de primorosa qualidade. Quem é do tempo deve se lembrar: nunca houve um momento - pelo menos na história da discografia pirata beatle, de se disponibilizar material alternativo do quarteto de forma tão interessante.

O único ponto "negativo" é o excesso de diálogos e a intromissão de artistas que sequer tinham algo a ver com os Beatles (como Bobby Vee). Por sinal, é sabido que a Beeb possui rolos e mais rolos de outros artistas/cantores em seus arquivos. Por exemplo, não se sabe por que os programas dos Rolling Stones nunca saíram oficialmente.

Além disso, o estado de conservação e gravação desses tapes era muito boa a despeito de se tratar de material de qualidade inferior aos discos oficiais. Por isso, muitos colecionadores imaginavam que uma edição oficial possibilitaria ter acesso à produção dos Beatles na BBC em qualidade impecável. No entanto, após ouvirmos o Lve at The BBC, o que se viu foi apenas a masterização daqueles mesmos tapes. O que dava a volta por cima foi o fato de que, a partir de então, os fãs poderiam travar conhecimento com um lado escuro da banda, interpretando muitas canções que ficaram de fora dos álbuns oficiais - além de mostrar o amor eterno de John, Paul, George e Ringo pelo R&B americano, numa época em que os americanos haviam enterrado o rock and roll (como Lennon fala na entrevista à Rolling Stone, em 1970).

Pois bem: vinte anos depois, a Apple desembarca o derradeiro lote de canções da BBC. Dessa vez, restaram covers em sua maioria; ou seja, não existe muita novidade. A não ser a inclusão de Lend Me Your Comb - que não saiu em 1994 mas foi listada inexplicavelmente no CD 1 do Anthology 1. Outra foi a aparição de I'm Talkin' Bout You. Cover de Chuck Berry, por conta da precariedade da gravação, ela foi deixada de fora do original Live at the BBC por conta do impoluto Sir George Martin, que a achou com péssima qualidade de gravação. Já o cover dos Beatles, por sua vez, é excelente (e melhor que a dos Stones!).

O que faltou dessa vez foi uma outra versão de I Got to Find My Baby (melhor que a apresentada no CD de 94) e uma segunda versão (mais rápida) de A Shot of a Rhythm'n Blues. Destaque para outro cover de Sure to Fall, uma versão de Roll Over Beethoven bem centrada, com a bateria "fechada" e Sir Paul (do tempo em que ele tinha voz, e que voz!) berrando o clássico de Chan Romero (e grande pedida dos tempos do Cavern) The Hippy Hippy Shake.




O curioso é que, na época da aparição da primeira coletânea, a potoca que haviam criado era a de que alguém havia "encontrado tapes esquecidos dos Beatles na BBC" - quiçá com o objetivo de transformar o lançamento em fato novo. Na verdade, requentando aqueles tapes que, por sinal, não eram esquecidos de maneira alguma: a BBC tem horas e horas de programas com artistas pop gravados e em boa qualidade (diferente do que acontece no Brasil, por exemplo, onde se fazia palimpesto de rolos e cartucheiras de rádio). A bola da vez foi fazer uma base de dados em cima de possíveis gravações realizadas porventura por ouvintes da Beeb. Na verdade, não vá se iludir: todo esse material está preservado na BBC de Londres. Aliás, sempre esteve.

Para quem nunca ouviu, fica a lição de como esses quatro sujeitos, a despeito de todas as limitações (deles como músicos, e de estúdio, sem falar de instrumentos), conseguiam ensaiar e tocar direitinho ao vivo, e ainda conseguiam transmitir charme e segurança em suas interpretações. John Lennon - naquela mesma entrevista supracitada à Rolling Stone, havia dito que as melhores performances ao vivo dos Beatles não foram gravadas. Bem, pelo menos, do rol de bootlegs ao vivo da banda, os dois discos dos Fab na BBC de Londres dão uma idéia do que era assistir a uma meia horinha de programa de rádio com esses quatro caras legais.

Thursday, October 17, 2013

Uma Biografia contra o Ostracismo


A Capa

Não tinha intenção de tocar no assunto da querela das biografias no Brasil. E nem irei, pronto.

Mas me lembrei de um fato interessante sobre esse assunto polêmico, e que serve mais como um depoimento pessoal do que uma opinião abalizada e sincera sobre o assunto, mas talvez o meu tiro saia pela culatra (espero que sim). A impressão é que estão desqualificando aqueles que defendem a produção desse tipo de gênero literário que, alás, e mais antigo que vocês pensam. Lembram-se das Vidas Paralelas, do Plutarco? Pois então. Mas não era bem isso o que eu queria dizer.

Eis o que eu quero dizer: para vocês terem uma pequena idéia da importância da produção e da publicação de biografias: lançado em 1994, O Anjo Pornográfico (Ruy Castro, Companhia das Letras) foi, a um só tempo, capaz de recuperar a memória do maior dramaturgo brasileiro de todos os tempos e provocar o interesse pela (então subestimadíssima e desconhecida do grande público leitor) obra jornalística do autor de Vestido de Noiva.

Aliás, a bibliografia do Nelson Rodrigues, lançada de forma esparsa e em tiragens pequenas, inverossímeis de tão liliputianas, estava esgotada há mais de vinte anos. Me lembro de caçar um exemplar de A Cabra Vadia, seleção de crônicas dele, nos sebos de Porto Alegre. Não encontrando, tive que xerocar uma edição que estava na Biblioteca do SESC (ainda deve estar lá) ver, ilustre leitor: de repente, havia apenas o Nelson dramaturgo.

Imaginem que o Nelson tinha pelo menos uns quatro livros publicados só de crônicas, e tudo estava esgotado. Ele morreu em 1980 e viveu um esquecimento de uma década e meia. E, hoje, toda a sua fortuna crítica recente, todos os estudos literários em nome dele, tudo isso aconteceu porque O Anjo Pornográfico foi publicado. De repente, descobriram que o Nelson dramaturgo está no mesmo nível do Nelson jornalista; que o Nelson cronista estava injustamente apartado do panteão dos grandes criadores do gênero no Brasil.

Sem contar que quem teve a oportunidade de ler as suas memórias, reunidas num livro chamado A Menina Sem Estrela, descobriu, pálido de espanto, como no soneto, que o autor de Vestido de Noiva tinha uma vida romanesca e tão trágica quanto seus contos e peças. Além disso, havia o carisma do próprio Nelson ao longo da biografia do Ruy Castro. Depois de ler a última linha, acredito que todo mundo queria ler toda a obra desse "autor desconhecido". Quando O Anjo saiu, em 1994, Nelson estava no ostracismo até nas provas de vestibulares.

Tudo isso e mais: a descoberta dos folhetins, contos, romances, memórias, confissões e crônicas esportivas tanto de Nelson Rodrigues, tudo foi por causa desse livro. Isso sem me perder aqui em digressões a respeito da consequente redescoberta do espólio literário de seu irmão, o também genial Homero do futebol brasileiro, Mário Filho.

Tudo, tudo isso só foi possível por causa de O Anjo Pornográfico. Esse foi o primeiro livro que eu li na faculdade (lembro-me da professora Eliana mandando a gente resenhar o livro e ninguém a fim de ler o livro, ah, maldito primeiro semestre!), minha primeira resenha e mote para a minha monografia de conclusão de curso em Jornalismo, em 2000.