Sunday, December 15, 2019

Duas Folhas

Capa da Folha da Tarde nos anos 60


Arca de Blau (*) é o nome do livro de memórias do jornalista Carlos Reverbel (1912-1997). Escritas em parceria com a Cláudia Laitano, o livro, que era para ser de recordações de sua vida, na verdade, apresenta um amplo panorama da história cultural e da imprensa no Rio Grande do Sul no século XX. Isso sem falar da prosa deliciosa do autor de “Barco de Papel”, quase em tom de conversa. Sobre o tema imprensa, importante ressaltar que Carlos praticamente viveu dentro das redações da antiga Caldas Júnior. E dentre tantos episódios que ele conta a respeito de sua longa passagem pela Companhia (por 46 anos, de 1934 até 1980), acho interessante seus comentários a respeito de dois momentos na história da empresa: o surgimento dos dois tablóides, a Folha da Tarde, de 1936, e a Folha da Manhã, de 1969.

A Folha da Tarde eu peguei ela no fim. Meu pai assinava o jornal, e a primeira coisa que eu lia eram as charges do Sampaulo e Santiago. Eu tinha uma simpatia inexplicável pelo jornal e lamentei muito quando ele acabou. E lembro de ter chegado em Porto Alegre em 1984, isto é, bem na época da quebradeira da Caldas Júnior. Nessa época, com o que sobrara de papel, a gráfica imprimiu fac-símiles das primeiras edições do Correio do Povo e da Folha. Eu cheguei a pegar vários exemplares e botei tudo fora com o tempo, e não me conformo por ter feito tamanha bobagem.

De acordo com Reverbel, a idéia da Folha da Tarde era ter um vespertino que cobrisse as lacunas deixadas pelo Correio ao longo do dia. Lembre-se que, naquele tempo, o rádio ainda não tinha a proeminência que iria ter de fato nas décadas seguintes em matéria de difusão de notícias. Porém, ao conceber um vespertino, Breno Caldas queria um jornal popular, com “agilidade e a flexibilidade para mudanças que o velho jornal [o Correio] fazia questão de não adotar”.

No entanto, temeroso de que a imagem popular da Folha “abalasse” a sobriedade hierática do Correião, Breno Caldas inicialmente optou por desvincular o novo tablóide da Caldas Júnior. Por conta disso, ele dispôs a redação da Folha em outro prédio, contíguo ao do Correio. O corpo de repórteres também era diverso – mais jovem, embora alguns deles trabalhassem nos dois jornais, como Rivadávia de Souza. Pelo fato de possuir tropas frescas, a nova Folha buscava ousar, coisa impossível nas hostes do “róseo”.

A começar pelo formato tablóide. Consagrado na imprensa gaúcha hoje, em 1936 era uma novidade. Muitos achavam que não iria vingar. Mas a experiência estava estribada no sucesso desse modelo na Argentina, mais precisamente em Buenos Aires. O platense El Mundo lhe serviu de inspiração – como praticamente tudo que vinha de lá, desde a música até o cinema, o desporto e a música inspiravam os pares daqui, do outro lado da banda oriental.

Carlos Reverbel,que participou da equipe nos primeiros anos, diz que a Folha conquistaria um lugar especial na história do jornalismo gaúcho: ela foi, segundo ele, o primeiro vespertino que deu certo na imprensa local: até então, a crença era de que um tablóide não pegaria. Para ele, o novo formato foi um dos fatores que provocaram a adesão irrestrita à FT: diferente dos standards grandalhões, a Folha era uma publicação breve e leve, fácil de levar no bolso ou de ler nos bondes, por exemplo.

Além disso, havia novidades no âmbito editorial, como a cobertura de esportes em geral, incluindo o futebol amador, a cargo de Túlio de Rose e Amaro Júnior, que fariam fama nas décadas seguintes na Caldas Júnior.  Em pouco tempo, o novo jornal alcança a popularidade que buscava, como diz Reverbel, e naturalmente Breno passou a associar a Folha à companhia Caldas Júnior que, em poucos anos, e principalmente, graças à demanda por notícias durante a 2ª Guerra Mundial, consolidaria seu espaço na década de 1940. Como jornal popular, ele se baseava originalmente em pautas como problemas de transporte, falta d’água, preço da cesta básica. Numa comparação meio esdrúxula, pode-se dizer que enquanto o Correio se preocupava com a cotação do trigo, a Folha a Tarde se interessava no preço do pão nosso de cada dia.

O começo, contudo, foi difícil.A primeira edição, dia 27 de abril de 1936, foi quase um fracasso. Apesar da tentativa de por a FT nas bancas às 17 horas, ela só chegaria nas mãos dos leitores seis horas depois, quase no dia seguinte. Mas, aos poucos, o vespertino foi se firmando, tornando-se a publicação do gênero com maior circulação no Rio Grande do Sul, chegando a atingir, no seu auge, a marca de 80 mil exemplares em venda avulsa. Um jornaleiro, por exemplo, chegava carregado para pregoar no abrigo de bondes da Praça XV de Novembro , por exemplo e, minutos depois, tinha que voltar à gráfica para pegar mais exemplares. Em certos dias, a FT vendia cerca de 2 mil exemplares só na região das praças Parobé/ XV.   

Diferente trajetória teria a Folha da Manhã.  Ela nasceu de uma costela da FT, a Folha Esportiva, que saía sempre às segundas, com os resultados das partidas de futebol do fim-de-semana, ela se tornaria um diário em 1969, no auge da ditadura.Reverbel anota em suas memórias que ela foi uma espécie de “estágio probatório do herdeiro natural da Caldas Júnior, Francisco Antônio”. Como editor, o único filho homem de Breno criou um jornal moderno numa época em que o Correião era um tal de abre aspas e lá vai discurso chapa branca na íntegra, como dizia o jornalista Antônio Carlos Rezende.

A FM inovava por trazer profissionais de fora do estado, como José Antônio Severo e Gilberto Pauletti, que vinham de experiências “novas” em jornalismo, como a Veja e a Realidade. Criou polêmica por dar destaque à reportagens investigativas numa época em que tanto CP quanto a Folha da Tarde se aburguesavam e tornavam-se comensais dos governos militares. Nesse sentido, a Folha da Manhã se transformaria num feudo prafrentex dentro da Caldas Júnior.

Foi nos tempos da FM que surgiram reportagens que marcariam época, como a de Sérgio Caparelli sobre as más condições do Hospital São Pedro e a polêmica em torno da Borregaard, hoje Riocell. Como resultado da ousadia, e de seus editoriais, a redação amiúde recebia visitas da Censura. O editor, José Antônio Vieira da Cunha, não aceitava recados de censores via telefone.

Como fora no começo da FT, a redação da Folha da Manhã era formada por cerca de oitenta jornalistas, todos jovens e recém egressos de faculdades de comunicação. Eis o que os diferenciava da velha geração da Caldas Júnior. Por conta disso, o clima emgeral era de descontração, e que resultava em brincadeiras, como foi o caso da famosa barriga do jogo do Fortes e Livres de Muçum contra a Seleção da Concacaf (quando até jornais do centro do país, como o JB e O Globo, caíram) e a “morte” de Jorge Mautner, barriga esta transferida para a rádio Continental (e assunto de uma postagem daqui ano passado).

A Folha da Manhã também se destacaria por ser um laboratório para o surgimento de uma das mais notáveis gerações de chargistas do Rio Grande do Sul, e isso numa época em que era impossível publicar uma charge do presidente da república. Mas como publicações alternativas, como o Pasquim, já haviam pavimentado o caminho, surgiram aqui nomes como Celso Schroeder, Edgar Vasques, Rekern e Ronaldo. O sucesso foi de tal arte que até a Zero Hora teve que abrir espaço para a charge. Porém, a peça de resistência da FM estava na sua origem: era o caderno de esportes, que era o filé da Folha da Manhã.

Contudo, como não podia deixar de ser, toda essa patusca joie de vivre não tardaria a incomodar muita gente – em especial, por incrível que pareça, os assinantes tradicionais do Correião, acostumados com a sobriedade do secular standard. A despeito de um episódio envolvendo o governo Amaral de Souza ter sido o estopim da demissão em massa de 1978, a FT estava sendo cozida em pouca água há pelo menos quatro anos. Para Carlos Reverbel, não foi exatamente o governo militar que rejeitou o jornal, mas os leitores das outras publicações da Caldas Júnior, que ameaçavam cancelar suas assinaturas se a empresa continuasse publicando um jornal como aquele.

Reverbel revela criou-se então um conflito entre os leitores, que se sentiam traídos pela liberalidade da FT – a mesma distância que, curiosamente Breno queria manter da Folha da Tarde em seu começo. Neste caso, todavia, o choque foi inevitável. Além do mais, vivia-se numa outra época, embora o episódio pareça escancarar o extremo conservadorismo da sociedade gaúcha, mesmo conservadorismo que rejeitou alternativos como o Pato Macho, em 1971. Carlos conta que Breno Caldas a princípio quis distância desse conflito, até que decretou intervenção no jornal. A cimeira da FT foi demitida, entre eles, estava Ruy Carlos Ostermann, Osmar Trindade, Carlos Urbim e Victor Sperb, entre outros. Em apoio a eles, outros quatorze jornalistas entregaram os cargos, como Telmo Zanini, Caco Barcelos e Luís Fernando Verissimo. Muitos deles se juntariam em outro projeto, o Coojornal.

No lugar de Ruy, Breno colocou Walter Galvani como o plenipotenciário da FT até 1980, quando ele entrou na redação e anunciou o fim das atividades da Folha da Manhã. Reverbel diz que sabia que o fim do diário era puramente ideológico. Porém, o episódio, para ele, era um primeiro sinal de desarticulação da companhia, até então tida como um empreendimento sólido e inexpugnável, e justamente envolvendo a figura de Francisco Caldas, aquele que seria o herdeiro da Caldas Júnior. A partir de então, todas as decisões a respeito da CJ ficariam centralizadas nas mãos de Breno. Depois de esgotar toas as tentativas de salvar a companhia, Correio e Folha da Tarde ainda teriam uma sobrevida de quatro anos: no dia 16 de junho de 1984,  num sábado, a Caldas Júnior encerrava suas atividades.



(*) Carlos Reverbel e Cláudia Laitano, Arca de Blau, Porto Alegre: Artes e Ofícios, 1993.

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