Capa da Folha da Tarde nos anos 60 |
Arca de Blau (*) é o nome do livro de memórias do jornalista Carlos
Reverbel (1912-1997). Escritas em parceria com a Cláudia Laitano, o livro, que
era para ser de recordações de sua vida, na verdade, apresenta um amplo
panorama da história cultural e da imprensa no Rio Grande do Sul no século XX.
Isso sem falar da prosa deliciosa do autor de “Barco de Papel”, quase em tom de
conversa. Sobre o tema imprensa, importante ressaltar que Carlos praticamente
viveu dentro das redações da antiga Caldas Júnior. E dentre tantos episódios
que ele conta a respeito de sua longa passagem pela Companhia (por 46 anos, de
1934 até 1980), acho interessante seus comentários a respeito de dois momentos
na história da empresa: o surgimento dos dois tablóides, a Folha da Tarde, de
1936, e a Folha da Manhã, de 1969.
A Folha da Tarde eu peguei ela no fim. Meu pai assinava o
jornal, e a primeira coisa que eu lia eram as charges do Sampaulo e Santiago. Eu
tinha uma simpatia inexplicável pelo jornal e lamentei muito quando ele acabou.
E lembro de ter chegado em Porto Alegre em 1984, isto é, bem na época da
quebradeira da Caldas Júnior. Nessa época, com o que sobrara de papel, a gráfica
imprimiu fac-símiles das primeiras edições do Correio do Povo e da Folha. Eu cheguei
a pegar vários exemplares e botei tudo fora com o tempo, e não me conformo por
ter feito tamanha bobagem.
De acordo com Reverbel, a idéia da Folha da Tarde era ter um vespertino
que cobrisse as lacunas deixadas pelo Correio ao longo do dia. Lembre-se que,
naquele tempo, o rádio ainda não tinha a proeminência que iria ter de fato nas
décadas seguintes em matéria de difusão de notícias. Porém, ao conceber um
vespertino, Breno Caldas queria um jornal popular, com “agilidade e a
flexibilidade para mudanças que o velho jornal [o Correio] fazia questão de não
adotar”.
No entanto, temeroso de que a imagem popular da Folha “abalasse”
a sobriedade hierática do Correião, Breno Caldas inicialmente optou por
desvincular o novo tablóide da Caldas Júnior. Por conta disso, ele dispôs a
redação da Folha em outro prédio, contíguo ao do Correio. O corpo de repórteres
também era diverso – mais jovem, embora alguns deles trabalhassem nos dois
jornais, como Rivadávia de Souza. Pelo fato de possuir tropas frescas, a nova
Folha buscava ousar, coisa impossível nas hostes do “róseo”.
A começar pelo formato tablóide. Consagrado na imprensa gaúcha
hoje, em 1936 era uma novidade. Muitos achavam que não iria vingar. Mas a
experiência estava estribada no sucesso desse modelo na Argentina, mais
precisamente em Buenos Aires. O platense El Mundo lhe serviu de inspiração –
como praticamente tudo que vinha de lá, desde a música até o cinema, o desporto
e a música inspiravam os pares daqui, do outro lado da banda oriental.
Carlos Reverbel,que participou da equipe nos primeiros anos, diz
que a Folha conquistaria um lugar especial na história do jornalismo gaúcho:
ela foi, segundo ele, o primeiro vespertino que deu certo na imprensa local: até
então, a crença era de que um tablóide não pegaria. Para ele, o novo formato
foi um dos fatores que provocaram a adesão irrestrita à FT: diferente dos standards grandalhões, a Folha era uma
publicação breve e leve, fácil de levar no bolso ou de ler nos bondes, por
exemplo.
Além disso, havia novidades no âmbito editorial, como a
cobertura de esportes em geral, incluindo o futebol amador, a cargo de Túlio de
Rose e Amaro Júnior, que fariam fama nas décadas seguintes na Caldas Júnior. Em pouco tempo, o novo jornal alcança a
popularidade que buscava, como diz Reverbel, e naturalmente Breno passou a
associar a Folha à companhia Caldas Júnior que, em poucos anos, e
principalmente, graças à demanda por notícias durante a 2ª Guerra Mundial,
consolidaria seu espaço na década de 1940. Como jornal popular, ele se baseava
originalmente em pautas como problemas de transporte, falta d’água, preço da
cesta básica. Numa comparação meio esdrúxula, pode-se dizer que enquanto o
Correio se preocupava com a cotação do trigo, a Folha a Tarde se interessava no
preço do pão nosso de cada dia.
O começo, contudo, foi difícil.A primeira edição, dia 27 de
abril de 1936, foi quase um fracasso. Apesar da tentativa de por a FT nas
bancas às 17 horas, ela só chegaria nas mãos dos leitores seis horas depois,
quase no dia seguinte. Mas, aos poucos, o vespertino foi se firmando,
tornando-se a publicação do gênero com maior circulação no Rio Grande do Sul,
chegando a atingir, no seu auge, a marca de 80 mil exemplares em venda avulsa.
Um jornaleiro, por exemplo, chegava carregado para pregoar no abrigo de bondes
da Praça XV de Novembro , por exemplo e, minutos depois, tinha que voltar à gráfica
para pegar mais exemplares. Em certos dias, a FT vendia cerca de 2 mil
exemplares só na região das praças Parobé/ XV.
Diferente trajetória teria a Folha da Manhã. Ela nasceu de uma costela da FT, a Folha
Esportiva, que saía sempre às segundas, com os resultados das partidas de
futebol do fim-de-semana, ela se tornaria um diário em 1969, no auge da
ditadura.Reverbel anota em suas memórias que ela foi uma espécie de “estágio
probatório do herdeiro natural da Caldas Júnior, Francisco Antônio”. Como
editor, o único filho homem de Breno criou um jornal moderno numa época em que
o Correião era um tal de abre aspas e lá vai discurso chapa branca na íntegra,
como dizia o jornalista Antônio Carlos Rezende.
A FM inovava por trazer profissionais de fora do estado, como
José Antônio Severo e Gilberto Pauletti, que vinham de experiências “novas” em
jornalismo, como a Veja e a Realidade. Criou polêmica por dar destaque à
reportagens investigativas numa época em que tanto CP quanto a Folha da Tarde
se aburguesavam e tornavam-se comensais dos governos militares. Nesse sentido,
a Folha da Manhã se transformaria num feudo prafrentex dentro da Caldas Júnior.
Foi nos tempos da FM que surgiram reportagens que marcariam época,
como a de Sérgio Caparelli sobre as más condições do Hospital São Pedro e a polêmica
em torno da Borregaard, hoje Riocell. Como resultado da ousadia, e de seus
editoriais, a redação amiúde recebia visitas da Censura. O editor, José Antônio
Vieira da Cunha, não aceitava recados de censores via telefone.
Como fora no começo da FT, a redação da Folha da Manhã era
formada por cerca de oitenta jornalistas, todos jovens e recém egressos de
faculdades de comunicação. Eis o que os diferenciava da velha geração da Caldas
Júnior. Por conta disso, o clima emgeral era de descontração, e que resultava
em brincadeiras, como foi o caso da famosa barriga do jogo do Fortes e Livres
de Muçum contra a Seleção da Concacaf (quando até jornais do centro do país,
como o JB e O Globo, caíram) e a “morte” de Jorge Mautner, barriga esta transferida
para a rádio Continental (e assunto de uma postagem daqui ano passado).
A Folha da Manhã também se destacaria por ser um laboratório
para o surgimento de uma das mais notáveis gerações de chargistas do Rio Grande
do Sul, e isso numa época em que era impossível publicar uma charge do
presidente da república. Mas como publicações alternativas, como o Pasquim, já
haviam pavimentado o caminho, surgiram aqui nomes como Celso Schroeder, Edgar Vasques,
Rekern e Ronaldo. O sucesso foi de tal arte que até a Zero Hora teve que abrir
espaço para a charge. Porém, a peça de resistência da FM estava na sua origem:
era o caderno de esportes, que era o filé da Folha da Manhã.
Contudo, como não podia deixar de ser, toda essa patusca joie de
vivre não tardaria a incomodar muita gente – em especial, por incrível que pareça,
os assinantes tradicionais do Correião, acostumados com a sobriedade do secular
standard. A despeito de um episódio envolvendo o governo Amaral de Souza ter
sido o estopim da demissão em massa de 1978, a FT estava sendo cozida em pouca água
há pelo menos quatro anos. Para Carlos Reverbel, não foi exatamente o governo
militar que rejeitou o jornal, mas os leitores das outras publicações da Caldas
Júnior, que ameaçavam cancelar suas assinaturas se a empresa continuasse
publicando um jornal como aquele.
Reverbel revela criou-se então um conflito entre os leitores,
que se sentiam traídos pela liberalidade da FT – a mesma distância que,
curiosamente Breno queria manter da Folha da Tarde em seu começo. Neste caso, todavia,
o choque foi inevitável. Além do mais, vivia-se numa outra época, embora o episódio
pareça escancarar o extremo conservadorismo da sociedade gaúcha, mesmo
conservadorismo que rejeitou alternativos como o Pato Macho, em 1971. Carlos
conta que Breno Caldas a princípio quis distância desse conflito, até que
decretou intervenção no jornal. A cimeira da FT foi demitida, entre eles,
estava Ruy Carlos Ostermann, Osmar Trindade, Carlos Urbim e Victor Sperb, entre
outros. Em apoio a eles, outros quatorze jornalistas entregaram os cargos, como
Telmo Zanini, Caco Barcelos e Luís Fernando Verissimo. Muitos deles se
juntariam em outro projeto, o Coojornal.
No lugar de Ruy, Breno colocou Walter Galvani como o
plenipotenciário da FT até 1980, quando ele entrou na redação e anunciou o fim
das atividades da Folha da Manhã. Reverbel diz que sabia que o fim do diário
era puramente ideológico. Porém, o episódio, para ele, era um primeiro sinal de
desarticulação da companhia, até então tida como um empreendimento sólido e
inexpugnável, e justamente envolvendo a figura de Francisco Caldas, aquele que
seria o herdeiro da Caldas Júnior. A partir de então, todas as decisões a
respeito da CJ ficariam centralizadas nas mãos de Breno. Depois de esgotar toas
as tentativas de salvar a companhia, Correio e Folha da Tarde ainda teriam uma
sobrevida de quatro anos: no dia 16 de junho de 1984, num sábado, a Caldas Júnior encerrava suas
atividades.
(*) Carlos Reverbel e Cláudia Laitano, Arca de Blau, Porto Alegre: Artes e Ofícios, 1993.
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