Wednesday, December 11, 2019

A Metamorfose



Depois de uma noite de sonhos terríveis, ele acordou mendigo. Ao invés daquelas faces rosadas e bem nascidas de desembargador de salário de 80 mil reais, o que ele viu no espelho era um sujeito com as faces chupadas, uma invencível cara de barba por fazer e um corpo esquelético, cheio de cicatrizes antigas. Olhou para as mãos: suas unhas estavam pretas e os dedos cheios de calos, como se ele passasse o dia na enxada. Enquanto admirava perplexamente sua metamorfose, viu, pelo espelho, quando sua mulher, ao tirar o tapa olhos, senta-se na cama e, vendo aquele sujeito estranho diante de sua penteadeira, dá um berro:

Ahhhhhhh! Quem é você? O que você fez com o meu marido, seu pilantra, seu malfeitor? Socorro! Socorro!”

Eudóxia!”, gemeu o homem. “Sou eu, o seu marido, o Ataliba! Eu não sei o que foi que aconteceu, eu acordei assim, desse jeito!".

Mentira Mentira” respondeu ela. “Onde você botou o meu marido seu pilantra? Socorro!”.

Tão perplexo com sua nova situação quanto com a reação de sua mulher, o homem não vê escapatória. Para fugir do vexame e do flagrante involuntário, ainda de pijamas, ele saiu pela janela da casa, andou pelo telhado, pulou até o chão do jardim dos fundos. Foi perseguido por seus dois pastores na corrida, enquanto tentava calcular o salto para o muro. Seu desespero era tamanho que ele nem sentiu os cacos comendo os dedos de suas mãos, nem a mordida forte de um dos cães em sua canela esquerda. Com todas as forças de vida que ele nem supunha que tinha e sem saber o que estava fazendo ou o que estava acontecendo, ele consegue pular o muro, caindo de mau jeito na calçada da rua, ainda escura e deserta.

Depois de correr por umas três quadras e andar avenida abaixo uns três quilômetros, julgou que estava a salvo. Sentou num banco de praça e começou a pensar no que estava acontecendo. Ele era agora outra pessoa, talvez irreconhecível. Não sabia o que fazer.

Pelas horas seguintes, apenas fugiu. Andando pelo centro da cidade, sentiu fome. Um catador de latas o viu, perguntou se ele estava bem. Não saberia explicar o que aconteceu: ninguém acreditaria. Apenas disse que estava com fome. O homem o convidou para que fosse fazer uma refeição no albergue do município, onde ele sempre ceava. Muito a contragosto, ele foi. Jamais havia sequer andado a pé no centro, imagine almoçar num albergue. Mas ele calculou rápido: “se eu ficar assim, vou acabar vomitando de fome”, ou pior, ter que pedir esmola, algo que jamais se dignaria a fazer.

Enquanto comiam, ele explicou que estava perdido na cidade e teria que começar a vida do nada. O catador de latas explicou seu ofício. Disse que era fácil: era só passar o dia ou a noite catando latas, até chegar num limite. Depois amassava tudo e vendia. Com a féria, trabalhando regularmente durante o mês e economizando bastante, no começo ou dormindo na rua ou em albergues, ele poderia juntar dinheiro para morar em uma pensão de uns 300 mangos. “Foi assim que eu comecei”, explicou. Disse que no começo foi difícil mas, com o tempo, foi se acostumando. Explicou que tinha a vantagem de viver sozinho. A família dele o havia abandonado por causa da bebida. Ele então revelou que não conseguir se livrar da bebida. Quando faz muito frio, o jeito é tomar uma daquelas garrafinhas, misturado com borra de café e meter papelão de caixa dentro da roupa para suportar o minuano dormindo na rua.

O desembargador seguiu os passos do amigo. Nunca imaginou que iria suportar uma semana. Sobreviveu por um mês que pareceu um ano. Tempo que fez com que ele aprendesse as manhas da rua, alternando com estadas em albergues. A coleta de latinhas melhorou quando ele roubou um carrinho de supermercado. Às vezes a cota de material reciclado não era suficiente para comer, e ele vivia catando latas, até não suportar o cansaço. Aprendeu que a cachaça servia de relaxante. Ele, que só tomava de J&B para cima, nunca tinha imaginado como Pedra 23 descia redondo quando se estava com o corpo devastado pela exaustão.

Decorridos dois meses, dormia na calçada sem medo. Sabia exatamente quais eram os melhores lugares, e cuidava de acordar antes de tomar alguma mangueirada de algum porteiro de edifício ou achaque de meganha. Ruim para ele era quando uma boa marquisa era, de repente, gradeada, e ele perdia um bom lugar para dormir. Aprendeu com o pessoal do albergue que aquela sacolinha que os moradores colocam na grada de casa tem o apelido de “macaquinho”: em geral, é comida que ao invés de ir fora, é deixada para os moradores de rua. Dava graças a Deus quando o macaquinho rendia uma refeição. Sabia que não podia beber demais e, às vezes precisava se alimentar, embora soubesse que queria economizar. Seu objetivo agora era juntar uma reserva para conseguir um quarto de pensão.

Após muito tempo, de virar latas de lixo na madrugada e entrar em contâineres por muitas madrugadas de frio ou de calor (ou então aproveitando eventos ao ar livre, onde a “matéria-prima” era abundante), escondendo o dinheiro suado dentro da meia de um sapato que era o dobro do tamanho do seu pé, ele tomou um banho num chuveiro de parque e, com sua melhor roupa (a "menos pior"), pediu uma vaga numa pensão velha imunda, formada por cabeças-de-porco, em plena zona norte.

Notou que havia uma ala de moradores de idade provecta, e que moravam ali há mais de uma década; outros eram trabalhadores de comércio ou gente que chegava do interior e buscava se estabelecer na cidade e, quem sabe, arranjar um lugar melhor para morar. Notava pelas roupas no varal: aventais, jalecos. E havia gente como ele, que estava a um pé da calçada. Mas havia um pessoal da noite, na maioria jovens, e que ele logo percebeu que eram traficantes. Havia uma boca de pó na quadra ao lado. A pensão era bem guarnecida pelo dono, mas este fazia vista grossa para esses. Havia os usuários e o pessoal do tráfico mesmo. Enquanto os primeiros podiam apresentar um comportamento extravagante sob influência da droga, e o interpelar, vendendo objetos deles, roubados ou recliclados, até mesmo no meio da noite, quando ele está tentando comer algo na copa, os traficantes podem não ir com sua cara. Se isso acontecer, todo cuidado é inútil. Sua sorte era que essa fauna — os não da antiga, iam e vinham.

Porém, percebeu que havia gente que tinha relações com facções criminosas. Quando não havia batida da polícia militar, havia o perigo de algum bandido pular os muros e executar alguém, por mais insuspeito que fosse. Executar até mesmo a pessoa errada, nem que fosse por tabela, por que não? Por isso, tinha medo do bar ao lado. Ainda mais domingos à tarde. Vai que para uma moto ali, e tudo pode acontecer?

De noite, às vezes não conseguia dormir. Depois que a gata da pensão morreu, os ratos tomaram conta. De madrugada, era possível escutá-los andando pelo forro, para lá e para cá. E se eles fizessem um buraco no teto? Ainda bem que ele morava num segundo andar: no térreo, por causa da fossa, no pátio de entrada, ratos passeavam á noite, andavam pela cozinha. Mas alguns tentavam subir a escada.

Um dia, sonhou que estava em casa, numa noite de Natal. Ele era jovem, todos estavam lá, tios, tias, primos. Um vizinho apareceu fantasiado de Papai Noel. Era longa a lista de gente. Faltou luz, ele foi com seu avô até o porão do prédio para religar. Primeiro, a matrona da família fazia as orações. Depois, vinha a hora da entrega dos presentes, que se amontoavam embaixo da árvore. Era grande a algazarra das crianças. A avó anunciava o nome escrito no presente. Em poucos minutos, era um festival de papel-presente rasgado pelo chão. As crianças brincando, os adultos bebendo ponche e cidra. 

No outro dia, acordou bêbado. A luz do quarto de pensão havia queimado. Procurou o barrilzinho de corote debaixo da cama. estava vazio. Nem se lembrava que havia tomado tudo, Agora era mais um dia pela frente, sem dinheiro nem para beber. Aquele sábado interminável seria apenas mais um nunca na sua nova vida. 

Um dia, apareceu um bêbado. Trabalhava dia sim, dia não como porteiro. Cumpria a obrigação no dia de trabalho mas, na folga, ele fazia batida de cachaça com Tang e enchia o saco de todo mundo, especialmente o saco dele. Quando não passava a madrugada cantando falando e chorando pela família. Um dia, de tanto reclamarem, o dono da pensão o mandou embora. Na verdade, não foi tão embora; foi morar debaixo do toldo do posto abandonado na frente da pensão. Tempos depois, sumiu de vez.

Quando ia cozinhar, o fogão era disputado: seis bocas para quarenta quartos. Na hora do almoço, ou ele entrava na fila ou pulava a refeição. Certa feita, estava com o pote de comida para requentar, apareceu um vizinho com uma panela. Olhou para ele e disse: “salguei o arroz”. E ficava repetindo, olhando para todos: “salguei o arroz”. Foi até uma mesa e começou a raspar o conteúdo da panela para um saco de supermercado. Antes, deu uma colherada e ofereceu para o desembargador: “tá salgado, prova!”. Ele polidamente agradeceu, e disse não. Depois de esvaziar a panela, fez menção de jogar a sacola fora quando outro morador o interpelou: “posso provar?”. Meteu sua colher no arroz do saco, experimentou, lambeu os beiços, provou de novo, lambeu novamente os beiços, olhando para o teto, como se tivesse uma epifania. E respondeu: “posso ficar com o arroz?”. O outro: “claro!”. E complementou: “eu como, eu já morei na rua, eu sei o que é passar fome”.

Apesar de tantos problemas, nosso herói ainda acreditava que, juntando dinheiro e vendendo latas, teria condições de mudar de vida. Alegou que não tinha documentos. Fez carteira de identificação, cadastro único. Comprou roupas. Ia, quem sabe, tentar emprego como lavador de pratos ou como estoquista. Mesmo sem experiência, queria conquistar uma vaga porque achava que podia demonstrar ambição pelo cargo. E tudo está resolvido.

Uma semana depois de fazer os documentos, um rapaz familiar, que vinha com outro do lado, em sentido contrário o abordou. Meteu a mão no bolso dele e arrancou a carteira. Implorou para que deixasse os documentos. O garoto apanas riu e se foi. Tentou ir atrás, suplicando. Então o outro o ameaçou. Assustado e vencido, ele então recuou, a dupla foi embora. Esperou alguns minutos e rondou as ruas da região, para ver se encontrava a carteira só com os documentos. Nada. Tava que prestar queixa. E refazer todos os documentos, perdendo um dia de trabalho catando latas.

Um mês depois, no lugar do bêbado chato demissionário, chegou um casal. Ele era traficante (ele notou logo) e ela era usuária de crack ou qualquer coisa do tipo (viva com isqueiros nas mãos). Quando ela estava sóbria, era uma pessoa. Quando sob efeito da droga, ela infernizava a vida dele e vice-versa. Viviam brigando. Ou ele se trancava no quarto ou vice-versa. Então, ambos faziam o jogo de gato e rato “abre”, “não abro”, “abre”, “não abro” , “abre”, “não abro”. Até que um deles (vice ou versa) subia o tom de voz “ABRE”, “NÃO ABRO”. E começava o momento da chutação de porta. Azar se fossem três ou quatro da madrugada.

Numa dessas, o desembargador pôs o nariz para fora da porta. Então viu um pandemônio. O dono da pensão, o seu filho, o ajudante, uma vizinha, mais adiante dois meganhas. Ele saiu do quarto e assistia embevecido a cena. Um vizinho passa a pequena multidão pelo corredor estreito, com os olhos esgazeados, e diz: “quer pó, vizinho?”. “não, obrigado”. O vizinho então olhou para ele, olhou para o bate-boca, olhou de novo para ele, para o bate-boca e falou: “acontece cada coisa por aqui, não é?”.

Meses depois, nosso herói finalmente tinha condições de comprar roupas melhores. Refez os documentos e ia procurar emprego no comércio. Com o pouco que podia dar ao luxo de gastar, foi tomar guaraná num boteco assistindo a um jogo de futebol. O jogo acabou tarde. Ruas vazias, ele voltou sob a luz amarela dos postes que faziam o asfalto molhado da chuva miúda da noite brilhar.

Eis que, quando estava a poucos metros da porta da pensão, alguém se jogou nas suas costas. Perdendo o equilíbrio, ele caiu no chão, de cara, mesmo tentando apoiar as mãos. Foi logo imobilizado; teve os braços puxados para trás. Notou que havia mais dois comparsas. Quando um deles meteu a mão no seu bolso com a carteira, ele gritou por socorro, mas o bandido que o imobilizava tapou sua boca. Mesmo assim, ele berrava e tentava se desvencilhar da gravata, inutilmente. Quando o outro comparsa começou a puxar sua mochila, onde realmente estava o seu dinheiro, ele virou fera, conseguiu desvencilhar a mão direita e meteu a mão no bolso, onde havia um canivete. Um deles (ele não conseguia ver as caras) atalhou sua reação, o imobilizando com o pé; o terceiro chutou sua mão até que ele largou a arma, ainda fechado. Então sentiu o próprio canivete entrando pelas suas costas em uma, duas, três, quatro, cinco, enfim, incontáveis estocadas. Depois que eles foram embora, sentia o calor do sangue abraçar o seu corpo, como se fosse sua avó materna o cobrindo na cama com seu endredom de criança, com desenhos de avião, quando ele era pequeno, antes de fechar a porta do quarto, lá nos recônditos de sua infância profunda. Então finalmente dormiu.

No outro dia, cedo pela manhã, o pessoal que se ajuntava debaixo do abrigo da parada de ônibus (por causa da insistente chuva miúda que agora começava a aumentar e estragar aquela modorrenta e macabra segunda) não entendeu quando viu aquele senhor alinhado e circunspecto, vestido de terno e usando uma toga, como um desembargador, de borco, com a cara enfiada numa enorme poça de sangue.


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