Depois
de uma noite de sonhos terríveis, ele acordou mendigo. Ao invés
daquelas faces rosadas e bem nascidas de desembargador de salário de
80 mil reais, o que ele viu no espelho era um sujeito com as faces
chupadas, uma invencível cara de barba por fazer e um corpo
esquelético, cheio de cicatrizes antigas. Olhou para as mãos: suas
unhas estavam pretas e os dedos cheios de calos, como se ele passasse
o dia na enxada. Enquanto admirava perplexamente sua metamorfose,
viu, pelo espelho, quando sua mulher, ao tirar o tapa olhos, senta-se
na cama e, vendo aquele sujeito estranho diante de sua penteadeira,
dá um berro:
“Ahhhhhhh!
Quem é você? O que você fez com o meu marido, seu pilantra, seu
malfeitor? Socorro! Socorro!”
“Eudóxia!”,
gemeu o homem. “Sou eu, o seu marido, o Ataliba! Eu não sei o que
foi que aconteceu, eu acordei assim, desse jeito!".
“Mentira
Mentira” respondeu ela. “Onde você botou o meu marido seu
pilantra? Socorro!”.
Tão
perplexo com sua nova situação quanto com a reação de sua mulher,
o homem não vê escapatória. Para fugir do vexame e do flagrante
involuntário, ainda de pijamas, ele saiu pela janela da casa, andou
pelo telhado, pulou até o chão do jardim dos fundos. Foi perseguido
por seus dois pastores na corrida, enquanto tentava calcular o salto
para o muro. Seu desespero era tamanho que ele nem sentiu os cacos
comendo os dedos de suas mãos, nem a mordida forte de um dos cães
em sua canela esquerda. Com todas as forças de vida que ele nem
supunha que tinha e sem saber o que estava fazendo ou o que estava
acontecendo, ele consegue pular o muro, caindo de mau jeito na
calçada da rua, ainda escura e deserta.
Depois
de correr por umas três quadras e andar avenida abaixo uns três
quilômetros, julgou que estava a salvo. Sentou num banco de praça e
começou a pensar no que estava acontecendo. Ele era agora outra
pessoa, talvez irreconhecível. Não sabia o que fazer.
Pelas
horas seguintes, apenas fugiu. Andando pelo centro da cidade, sentiu
fome. Um catador de latas o viu, perguntou se ele estava bem. Não
saberia explicar o que aconteceu: ninguém acreditaria. Apenas disse
que estava com fome. O homem o convidou para que fosse fazer uma
refeição no albergue do município, onde ele sempre ceava. Muito a
contragosto, ele foi. Jamais havia sequer andado a pé no centro,
imagine almoçar num albergue. Mas ele calculou rápido: “se eu
ficar assim, vou acabar vomitando de fome”, ou pior, ter que pedir
esmola, algo que jamais se dignaria a fazer.
Enquanto
comiam, ele explicou que estava perdido na cidade e teria que começar
a vida do nada. O catador de latas explicou seu ofício. Disse que
era fácil: era só passar o dia ou a noite catando latas, até
chegar num limite. Depois amassava tudo e vendia. Com a féria,
trabalhando regularmente durante o mês e economizando bastante, no
começo ou dormindo na rua ou em albergues, ele poderia juntar
dinheiro para morar em uma pensão de uns 300 mangos. “Foi assim
que eu comecei”, explicou. Disse que no começo foi difícil mas,
com o tempo, foi se acostumando. Explicou que tinha a vantagem de
viver sozinho. A família dele o havia abandonado por causa da
bebida. Ele então revelou que não conseguir se livrar da bebida.
Quando faz muito frio, o jeito é tomar uma daquelas garrafinhas,
misturado com borra de café e meter papelão de caixa dentro da
roupa para suportar o minuano dormindo na rua.
O
desembargador seguiu os passos do amigo. Nunca imaginou que iria
suportar uma semana. Sobreviveu por um mês que pareceu um ano. Tempo
que fez com que ele aprendesse as manhas da rua, alternando com
estadas em albergues. A coleta de latinhas melhorou quando ele roubou
um carrinho de supermercado. Às vezes a cota de material reciclado
não era suficiente para comer, e ele vivia catando latas, até não
suportar o cansaço. Aprendeu que a cachaça servia de relaxante.
Ele, que só tomava de J&B para cima, nunca tinha imaginado como
Pedra 23 descia redondo quando se estava com o corpo devastado pela
exaustão.
Decorridos dois meses, dormia na calçada sem medo. Sabia exatamente quais
eram os melhores lugares, e cuidava de acordar antes de tomar alguma
mangueirada de algum porteiro de edifício ou achaque de meganha.
Ruim para ele era quando uma boa marquisa era, de repente, gradeada,
e ele perdia um bom lugar para dormir. Aprendeu com o pessoal do
albergue que aquela sacolinha que os moradores colocam na grada de
casa tem o apelido de “macaquinho”: em geral, é comida que ao
invés de ir fora, é deixada para os moradores de rua. Dava graças
a Deus quando o macaquinho rendia uma refeição. Sabia que não
podia beber demais e, às vezes precisava se alimentar, embora
soubesse que queria economizar. Seu objetivo agora era juntar uma
reserva para conseguir um quarto de pensão.
Após muito tempo, de virar latas de lixo na madrugada e entrar em
contâineres por muitas madrugadas de frio ou de calor (ou então
aproveitando eventos ao ar livre, onde a “matéria-prima” era
abundante), escondendo o dinheiro suado dentro da meia de um sapato
que era o dobro do tamanho do seu pé, ele tomou um banho num
chuveiro de parque e, com sua melhor roupa (a "menos pior"), pediu uma
vaga numa pensão velha imunda, formada por cabeças-de-porco, em plena zona norte.
Notou
que havia uma ala de moradores de idade provecta, e que moravam ali
há mais de uma década; outros eram trabalhadores de comércio ou
gente que chegava do interior e buscava se estabelecer na cidade e,
quem sabe, arranjar um lugar melhor para morar. Notava pelas roupas
no varal: aventais, jalecos. E havia gente como ele, que estava a um
pé da calçada. Mas havia um pessoal da noite, na maioria jovens, e
que ele logo percebeu que eram traficantes. Havia uma boca de pó na
quadra ao lado. A pensão era bem guarnecida pelo dono, mas este
fazia vista grossa para esses. Havia os usuários e o pessoal do
tráfico mesmo. Enquanto os primeiros podiam apresentar um
comportamento extravagante sob influência da droga, e o interpelar,
vendendo objetos deles, roubados ou recliclados, até mesmo no meio
da noite, quando ele está tentando comer algo na copa, os
traficantes podem não ir com sua cara. Se isso acontecer, todo
cuidado é inútil. Sua sorte era que essa fauna — os não da
antiga, iam e vinham.
Porém,
percebeu que havia gente que tinha relações com facções
criminosas. Quando não havia batida da polícia militar, havia o
perigo de algum bandido pular os muros e executar alguém, por mais
insuspeito que fosse. Executar até mesmo a pessoa errada, nem que
fosse por tabela, por que não? Por isso, tinha medo do bar ao lado.
Ainda mais domingos à tarde. Vai que para uma moto ali, e tudo pode
acontecer?
De
noite, às vezes não conseguia dormir. Depois que a gata da pensão
morreu, os ratos tomaram conta. De madrugada, era possível
escutá-los andando pelo forro, para lá e para cá. E se eles
fizessem um buraco no teto? Ainda bem que ele morava num segundo
andar: no térreo, por causa da fossa, no pátio de entrada, ratos
passeavam á noite, andavam pela cozinha. Mas alguns tentavam subir a
escada.
Um dia, sonhou que estava em casa, numa noite de Natal. Ele era jovem, todos estavam lá, tios, tias, primos. Um vizinho apareceu fantasiado de Papai Noel. Era longa a lista de gente. Faltou luz, ele foi com seu avô até o porão do prédio para religar. Primeiro, a matrona da família fazia as orações. Depois, vinha a hora da entrega dos presentes, que se amontoavam embaixo da árvore. Era grande a algazarra das crianças. A avó anunciava o nome escrito no presente. Em poucos minutos, era um festival de papel-presente rasgado pelo chão. As crianças brincando, os adultos bebendo ponche e cidra.
No outro dia, acordou bêbado. A luz do quarto de pensão havia queimado. Procurou o barrilzinho de corote debaixo da cama. estava vazio. Nem se lembrava que havia tomado tudo, Agora era mais um dia pela frente, sem dinheiro nem para beber. Aquele sábado interminável seria apenas mais um nunca na sua nova vida.
Um dia, sonhou que estava em casa, numa noite de Natal. Ele era jovem, todos estavam lá, tios, tias, primos. Um vizinho apareceu fantasiado de Papai Noel. Era longa a lista de gente. Faltou luz, ele foi com seu avô até o porão do prédio para religar. Primeiro, a matrona da família fazia as orações. Depois, vinha a hora da entrega dos presentes, que se amontoavam embaixo da árvore. Era grande a algazarra das crianças. A avó anunciava o nome escrito no presente. Em poucos minutos, era um festival de papel-presente rasgado pelo chão. As crianças brincando, os adultos bebendo ponche e cidra.
No outro dia, acordou bêbado. A luz do quarto de pensão havia queimado. Procurou o barrilzinho de corote debaixo da cama. estava vazio. Nem se lembrava que havia tomado tudo, Agora era mais um dia pela frente, sem dinheiro nem para beber. Aquele sábado interminável seria apenas mais um nunca na sua nova vida.
Um
dia, apareceu um bêbado. Trabalhava dia sim, dia não como porteiro.
Cumpria a obrigação no dia de trabalho mas, na folga, ele fazia
batida de cachaça com Tang e enchia o saco de todo mundo,
especialmente o saco dele. Quando não passava a madrugada cantando
falando e chorando pela família. Um dia, de tanto reclamarem, o dono
da pensão o mandou embora. Na verdade, não foi tão embora; foi
morar debaixo do toldo do posto abandonado na frente da pensão.
Tempos depois, sumiu de vez.
Quando
ia cozinhar, o fogão era disputado: seis bocas para quarenta quartos. Na hora do
almoço, ou ele entrava na fila ou pulava a refeição. Certa feita,
estava com o pote de comida para requentar, apareceu um vizinho com
uma panela. Olhou para ele e disse: “salguei o arroz”. E ficava
repetindo, olhando para todos: “salguei o arroz”. Foi até uma
mesa e começou a raspar o conteúdo da panela para um saco de
supermercado. Antes, deu uma colherada e ofereceu para o
desembargador: “tá salgado, prova!”. Ele polidamente agradeceu,
e disse não. Depois de esvaziar a panela, fez menção de jogar a
sacola fora quando outro morador o interpelou: “posso provar?”.
Meteu sua colher no arroz do saco, experimentou, lambeu os beiços,
provou de novo, lambeu novamente os beiços, olhando para o teto,
como se tivesse uma epifania. E respondeu: “posso ficar com o
arroz?”. O outro: “claro!”. E complementou: “eu como, eu já
morei na rua, eu sei o que é passar fome”.
Apesar
de tantos problemas, nosso herói ainda acreditava que, juntando
dinheiro e vendendo latas, teria condições de mudar de vida. Alegou
que não tinha documentos. Fez carteira de identificação, cadastro
único. Comprou roupas. Ia, quem sabe, tentar emprego como lavador de
pratos ou como estoquista. Mesmo sem experiência, queria conquistar
uma vaga porque achava que podia demonstrar ambição pelo cargo. E tudo está resolvido.
Uma
semana depois de fazer os documentos, um rapaz familiar, que vinha
com outro do lado, em sentido contrário o abordou. Meteu a mão no
bolso dele e arrancou a carteira. Implorou para que deixasse os
documentos. O garoto apanas riu e se foi. Tentou ir atrás,
suplicando. Então o outro o ameaçou. Assustado e vencido, ele então
recuou, a dupla foi embora. Esperou alguns minutos e rondou as ruas
da região, para ver se encontrava a carteira só com os documentos.
Nada. Tava que prestar queixa. E refazer todos os documentos,
perdendo um dia de trabalho catando latas.
Um
mês depois, no lugar do bêbado chato demissionário, chegou um
casal. Ele era traficante (ele notou logo) e ela era usuária de
crack ou qualquer coisa do tipo (viva com isqueiros nas mãos).
Quando ela estava sóbria, era uma pessoa. Quando sob efeito da
droga, ela infernizava a vida dele e vice-versa. Viviam brigando. Ou
ele se trancava no quarto ou vice-versa. Então, ambos faziam o jogo
de gato e rato “abre”, “não abro”, “abre”, “não abro”
, “abre”, “não abro”. Até que um deles (vice ou versa)
subia o tom de voz “ABRE”, “NÃO ABRO”. E começava o momento
da chutação de porta. Azar se fossem três ou quatro da madrugada.
Numa
dessas, o desembargador pôs o nariz para fora da porta. Então viu
um pandemônio. O dono da pensão, o seu filho, o ajudante, uma
vizinha, mais adiante dois meganhas. Ele saiu do quarto e assistia
embevecido a cena. Um vizinho passa a pequena multidão pelo corredor
estreito, com os olhos esgazeados, e diz: “quer pó, vizinho?”. “não,
obrigado”. O vizinho então olhou para ele, olhou para o bate-boca, olhou de novo para ele, para o bate-boca e falou:
“acontece cada coisa por aqui, não é?”.
Meses
depois, nosso herói finalmente tinha condições de comprar roupas
melhores. Refez os documentos e ia procurar emprego no comércio. Com
o pouco que podia dar ao luxo de gastar, foi tomar guaraná num
boteco assistindo a um jogo de futebol. O jogo acabou tarde. Ruas
vazias, ele voltou sob a luz amarela dos postes que faziam o asfalto
molhado da chuva miúda da noite brilhar.
Eis que, quando
estava a poucos metros da porta da pensão, alguém se jogou nas suas
costas. Perdendo o equilíbrio, ele caiu no chão, de cara, mesmo
tentando apoiar as mãos. Foi logo imobilizado; teve os braços
puxados para trás. Notou que havia mais dois comparsas. Quando um
deles meteu a mão no seu bolso com a carteira, ele gritou por
socorro, mas o bandido que o imobilizava tapou sua boca. Mesmo assim,
ele berrava e tentava se desvencilhar da gravata, inutilmente. Quando
o outro comparsa começou a puxar sua mochila, onde realmente estava
o seu dinheiro, ele virou fera, conseguiu desvencilhar a mão direita
e meteu a mão no bolso, onde havia um canivete. Um deles (ele não
conseguia ver as caras) atalhou sua reação, o imobilizando com o
pé; o terceiro chutou sua mão até que ele largou a arma, ainda
fechado. Então sentiu o próprio canivete entrando pelas suas costas
em uma, duas, três, quatro, cinco, enfim, incontáveis estocadas.
Depois que eles foram embora, sentia o calor do sangue abraçar o seu
corpo, como se fosse sua avó materna o cobrindo na cama com seu endredom de criança, com desenhos de avião, quando ele era pequeno, antes de fechar a porta do quarto, lá nos recônditos de sua infância profunda.
Então finalmente dormiu.
No
outro dia, cedo pela manhã, o pessoal que se ajuntava debaixo do
abrigo da parada de ônibus (por causa da insistente chuva miúda que agora começava a aumentar e estragar aquela modorrenta e macabra segunda) não entendeu quando viu
aquele senhor alinhado e circunspecto, vestido de terno e usando uma toga, como um desembargador, de borco, com a
cara enfiada numa enorme poça de sangue.
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