Tuesday, August 22, 2017

O Circo: a Commedia dell’ arte em Chaplin



Terceira produção de Charlie Chaplin para a United Artists, O Circo (1928) é um dos mais conhecidos clássicos do ator e diretor inglês.

O filme marca pelo menos dois momentos importantes em sua carreira: o primeiro, o momento em que ele passa a sofrer a concorrência do cinema falado (O Cantor de Jazz, de Al Jolson, talvez o primeiro grande sucesso do novo gênero, havia sido estrelado quando o inventor de Carlitos terminava a produção de seu novo trabalho).

O segundo: Chaplin deixara há muito o puro e simples slapstick — ou pastelão — em favor de enredos mais complexos, transformando o seu insigne herói menos cômico e mais melodramático, característica que já se observava em A Dog’s Life (de 1918) e em The Kid (1921).

A história, ainda que cifrada no estilo do pastelão, e bastante influenciada em Max Linder, cineasta francês que possuía pontos de contato com o estilo do autor de Luzes de Ribalta, permite outras leituras. Uma, mais propícia ao universo que evoca — o mundo circense, parece a moldura perfeita para uma história que tenha vários elementos típicos da commedia dell’arte.

A Commedia

Surgida como companhia de teatro com características atávicas das antigas corporações de ofício, do final da Idade Média, a commedia dell’ arte surge em 1545, em Pádua, já com prospecto de empresa (como diz Benedeto Croce, o conceito de “arte” na idade Média aludia não à concepção moderna, mas a de arte como ofício, mister, profissão). Se no palco, tudo era improviso, nos bastidores, havia toda uma estrutura profissional implícita, tanto quanto á remuneração quanto à assistência médica.

De acordo com Angela Materno (1994), a designação commedia dell’ arte indica, portanto, um tipo de teatro realizado por atores profissionais que viviam do ofício de representar, contrapondo-se, assim, à tradição do amadorismo, predominante até então” (p.52).
Saindo dessa acepção e, ao mesmo tempo, entrando mais nela, Allardyce nicoll estende o conceito de arte dentro do ofício dos comediantes como a possuírem uma ‘habilidade especial’: além de representar, eles também eram acrobatas, bailarinos, cantores e músicos.

Em geral, as trupes tinham média de oito a doze atores (ao contrário do teatro elisabetano, as academias contavam com atrizes) e que, respectivamente, já se ajustavam aos seus papéis (com o tempo, essa mesma convenção que tematizava a atuação no palco seria fator de estagnação da commedia dell’arte, por causa do engessamento da forma teatral em si mesma).

Com a crise econômica do século XVI, companhias e academias teatrais da península abrigariam uma eclética e riquíssima mão-de-obra.

Desde resquícios atávicos de festas carnavalescas medievais até cômicos solitários (como bufões, que como todos, traziam um pouco do seu repertório, suas canções e pantomimas), o estilo entrecruza vários elementos então dispersos na Europa. Essa interpenetração de tendências e heranças sociais diversas seria importante para a sedimentação da commedia dell’arte, tanto na elaboração dos enredos das peças quanto na caracterização dos personagens.

Ao mesmo tempo em que atores vindos do povo traziam seus trejeitos típicos de classe, atores especializados na comédia clássica (Plauto, Terêncio), acrescentavam uma bagagem erudita aos textos. Foi dessa forma que, nessa pororoca cultural, segundo Ciro Ferrone, esses novos comediantes empreenderam uma reforma na base do teatro italiano, em pleno Renascimento, influenciando muitos dos grandes dramaturgos europeus entre os séculos XVI e XVIII.

Como explica Angela Materno, muito do conteúdo daquela produção teatral provinha da experiência e do cotidiano desse imenso e caudaloso coletivo, com o objetivo de uma “fixação de uma memória”. No entanto, mesmo diante de copioso legado, a commedia dell’arte buscava um princípio, baseado num roteiro, o chamado scenario ou canovaccio. A partir desse esqueleto, os atores então podiam improvisar.

O chefe da companhia era um factorum: escrevia, encenava, dirigia, ensaiava e poderia até indicar a música. No scenario, a história era quase sempre a mesma: uma história de amor — um casal que busca ficar junto mas, para tal arte, necessita superar vários obstáculos, entre eles, como quase sempre, um superior, a oposição dos pais, por exemplo.

Para correm em seu auxílio, sempre aparece algum criado — uma ama, um pajem que, com engenho e arte, tentam ajudar o jovem casal a conseguir o seu final feliz.

Nas companhias, como dissemos acima, eram marcadamente distribuídos: os velhos (pais ou patrões), os servos (os zanni), os jovens protagonistas (que não usavam máscaras quando protagonizavam comédias de amor. As mulheres, por sinal, nunca a usavam, em hipótese alguma).

O arlequim sempre era o servo (o segundo “zanni”, antecedido por Brighela) e a Colombina (junto com Esmeraldina ou Franceschina) era a serva. Havia, ainda, o elemento farsesco, o “Capitão”, personagem que dissimulava sempre algo que não era.

Dentro dessa diferenciação, as histórias eram variações desses papéis, com nomes idem. E além de conhecimentos cênicos, os atores deviam possuir uma singular bagagem linguística.

À título de caracterização, o douto falava latim; o mercador, veneziano e o falso sábio bolonhês (porque em Bolonha ficava a mais antiga universidade italiana). Já o par romântico, nesse carrossel de convenções, falavam o toscano — a língua da divina Comédia, língua de Dante, o dialeto considerado mais nobre entre os da península.

Aliás, desses, os amantes deviam ter erudição, já que estes deviam usar e abusar de frases de efeito, figuras de estilo e linguagem. Por conta disso, muitos atores obtiveram enorme sucesso: Isabela Andreine, Flamínio Scala e Diana Ponti, por exemplo, antes de atores, eram considerados grande literatos em seu tempo.

A commedia dell’arte sempre foi explicada como um teatro baseado na arte do improviso. No entanto, improvisar para eles, explica Angela Materno, significava reelaborar um infindável repertório de falas e trejeitos que eram emolduradas por uma rigorosa organização interna. Ou, por outras palavras: para ser investido da capacidade de improvisar, o ator devia antes internalizar todo um processo rígido e bem esquematizado.

“A improvisação na commedia dell’arte diz respeito, muito mais, à utilização de uma espécie de ‘técnica de montagem’.
Figura antológica e que, dentre o elenco de apoio, foi o que mais se consagrou através do tempo como o zanni mais desastrado, ingênuo e tolo mas que, no fim das contas, conseguia dar a volta por cima por conta de alguma façanha.

Angela diz que sua roupa típica remonta às festas carnavalescas da Idade Média que, por sua vez, remontam á celebrações ancestrais, como as bacanais, quando invocava-se espíritos subterrâneos. Daí a etimologia de máscara (‘espírito ignóbil’).
Por isso, o arlequim era uma espécie de entidade que mediava o mundo interior e o exterior, como um exu. Ou, por outra, era o próprio demônio. Daí vem sua máscara negra (que virou tema da famosa marcha-rancho de Zé Keti).

O filme

É sabido a influência do teatro na formação do jovem Chaplin. Tanto seu pai quanto sua mãe e irmão trabalharam em números de dança e no vaudeville.

Os primeiros anos no teatro cantado, principalmente em Drury Lane, permitiram que ele aprendesse os maneirismos dos palhaços de cena, como Dan Leno. Segundo Robinson (1986), quem o influenciou de forma decisiva foi Fred Karno, quando ele esteve comissionado em sua Companhia.

O autor explica que a habilidade em amalgamar pathos e pastelão veio a partir das produções com Karno — que também fazia uso de gags que explorado o absurdo em situações cômicas, elemento que seria recorrente nos filmes de Chaplin.
Da fase do cinema, Robinson lista em Chaplin a influência do diretor francês Max Linder — de quem ele, entre conceitos diversos, tirou justamente a ideia de roteirizar um filme sobre o mundo do circo.

Carlitos e o pathos

Carlitos, de acordo com Robinson, inventou o vagabundo do próprio teatro cantado norte-americano. Segundo ele, esse tipo de personagem era muito comum nos palcos de então.
Nos seus primeiros filmes, principalmente os da Keystone, Carlitos era um personagem típico do pastelão, extremamente grosseiro e agressivo, sempre em esquetes simples. Afinal de contas, o espírito do slapstick era a violência gratuita, ainda que cômica.

Por exemplo, em Easy Street (1917), o filme tem todos os ingredientes do slapstick, desde a violência mais do que gratuita até o paroxismo de cenas de uso de drogas (isso antes do Código Heyes, que provocaria uma onde de puritanismo em Hollywood pelas décadas seguintes).

Sobre a persona do vagabundo, Jérome Larcher (2011) salienta que, ao aperfeiçoá-lo, Chaplin passou a investir Carlitos com elementos de melodrama, preparando-o para tornar-se como um dos personagens mais marcantes da história do cinema, justamente nas suas derradeiras produções: ao invés do agressivo, um herói burlesco e quixotesco — misturando, como salienta David Robinson, pathos (ou seja, sentimento de dó, compaixão ou empatia) e comédia.

A partir de Dog’s Life (de 1918), o enredo dos filmes de Carlitos ganha foros de drama. Aqui, ele tenta ajudar uma moça que é explorada por um dono de bar. Em The Kid (1921), o vagabundo vira a ama seca de um menino abandonado. Na segunda parte de The Gold Rush (1925, já na United Artists), ele ingenuamente tenta cortejar uma dama de cabaré no Klondike. Essa dialética atingiria o seu paroxismo nas derradeiras produções com Carlitos, City Lights (1931), Modern Times (1936) e The Great Dictator (1940)

O Circo e a Commedia dell’arte

Em O Circo, baseado em Linder (The King of the Circus, de 1925)
além de explorar o melodrama no roteiro, Chaplin utilizou muitos elementos na caracterização dos personagens que possuem muitos pontos de contato com a própria dinâmica da commedia dell’arte.

No filme, Carlitos é confundido com um batedor de carteiras porque o verdadeiro facínora havia escondido o produto do roubo em seu bolso para evitar flagrante. Perseguido pela polícia e pelo verdadeiro ladrão, ele adentra o palco do circo de uma feira, e acaba roubando a cena.

O dono do circo (Al Ernest Garcia) percebe que Carlitos tem talento para o picadeiro, porém não sabe que é engraçado. Ou melhor, percebe que o seu humor é, na verdade, involuntário. Ao fazer um teste, ele falha miseravelmente. No entanto, quando é perseguido por um cavalo, ele provoca um pandemônio no show dos outros artistas, provocando o riso da plateia, que pensa que o pandemônio faz parte do show.

Mesmo ciente do talento do vagabundo, como ele faz com todos os funcionários, ele o paga mal e o trata com mão de ferro. Carlitos trava conhecimento com a enteada do dono do circo, Merna (Merna Kennedy), a domadora de cavalos. Ele percebe que ela é maltratada pelo tio, que a deixa inclusive passar fome.

Ele logo apaixona-se por ela, e acredita ser correspondido. No entanto, a moça gosta de outro, Rex, (Harry Crocker), o acrobata da corda bamba — e usa Carlitos como confidente. Ele, que havia comprado um anel para ela, fica arrasado, e mal consegue atuar. O dodo do circo ameaça demiti-lo.

Rex desaparece e Carlitos, a fim de tanto suplantar seu rival quanto garantir sua sobrevivência no picadeiro, decide realizar a performance na corda bamba. O vagabundo sai ileso da experiência e garante o emprego. Porém, ao ver o dono do circo agredindo Merna, ele a defende e é demitido.

Ela foge em desespero. Resignado, Carlitos decide encontrar Rex para que ele se case com ela. Eles então retornam ao circo. Quando o tio decide repreender Merna pela fuga, Rex o impede, dizendo que agora ela é sua esposa. Ambos são finalmente recontratados. À pedido de Merna, Carlitos aceita permanecer com a trupe. Porém, quando o grupo parte, ele fica.
O circo deixa cidade e, desolado, Carlitos resta sozinho. No lugar onde antes ficara o picadeiro — partindo para outra possível aventura.

Diálogos

O primeiro elemento de The Circus que parece dialogar com a commedia dell’ arte é o papel do próprio Chaplin na produção. Como era comum nos seus filmes mudos, ele era o factorum: escrevia, encenava, dirigia, ensaiava e fazia a trilha original de suas produções.
O segundo talvez resida na originalidade de própria concepção de contar a história no mundo da representação, o circo — onde ele pode, ao mesmo tempo, jogar com planos diversos metanarrativos, mostrando, também a relação da arte cênica com a plateia.
Chaplin, como muitos biógrafos explicam, só passou a roteirizar sistematicamente seus filmes falados. Antes, tudo era improvisado.

Porém, assim como na commedia, o diretor tinha todo um esquema em mente — e que não compartilhava com ninguém.
Contudo, é de se imaginar que, como acontece com o teatro italiano, como autor, foi necessário internalizar todo um processo devidamente esquematizado a fim de que se pudesse improvisar ou glosar sobre esse tema — um triângulo amoroso tragicômico que não tem com efeito nada de original.

O terceiro: o roteiro possui um tema recorrente no commedia dell’arte: um jovem casal (Merna e Rex) apaixona-se mas precisa passar por várias peripécias para que possam terminar juntos.

Quem corre ao seu auxílio é, justamente um “criado”, Carlitos. Chaplin no entanto joga com a narrativa, dando ao espectador a impressão de que ele seria o par da história junto com Merna.

Mesmo sabendo que ela gosta de Rex, o vagabundo resigna-se e, ao invés de impedir, ele passa a interceder para que o casal possa se encontrar. Pelo intermédio de Carlitos, Rex e casa-se com Merna.

Porém, como o final feliz é o encontro do casal de jovens, Carlitos fica só: mesmo sendo o protagonista da fita, na história, ele está deslocado ao papel do zanni, ingênuo, burlesco, lúcido e desastrado, além de roubar a cena, como é típico dos personagens burlescos (basta lembrarmos de personagens que fugiram do teatro para a ópera, como o Papageno, da Zauberlote, do Mozart).
Carlitos é o arlequim por excelência; Merna pode ser a Colombina, embora Esta também apareça como serva na commedia. Porém, para fazer jus ao triângulo amoroso em The Circus, temos o casal Merna-Rex respectivamente como Colombina e Perrô, enquanto o vagabundo é o arlequim, fazendo jus ao estereótipo do personagem que, mesmo com o coração partido, cumpre o destino dos jovens amantes.

O dono do circo, naturalmente, é a pedra no caminho deles. O drama termina quando eles se casam, e o tio de Merna não pode mais subjulgá-la. Nesse momento, a trajetória de Carlitos/arlequim termina.
Conclusão

Ao contrário das produções anteriores (The Gold Rush, The Kid, A Dog’s Life por exemplo), Chaplin optou por um final “infeliz”. Para o bem do drama, a felicidade ficou deslocada para o casal jovem. A respeito disso, é moeda comum relacionar cenas de histórias de Carlitos com episódios da vida de Chaplin.
Freud certa vez disse que a insistência do Vagabundo em socorrer as mulheres em apuros de seus filmes remete à impotência do jovem Chaplin em salvar sua mãe de ingressar num hospício. A própria imagem da separação de mãe e filho é espelhada na cinebiografia do diretor (Richard Attenborough, 1992).

Jeffrey Vance (2003) entende que The Circus é uma metáfora do próprio papel do diretor britânico naquele momento histórico do cinema. Para o historiador, como no enredo, Carlitos chega no circo e transforma aquele famélico espetáculo numa atração de multidões. Porém, no fim do filme, a trupe está preparando-se para partir, mas sem ele.

“Ele é deixado só no espaço deixado pelo picadeiro. Isso me lembra do papel de Chaplin na história do cinema. O show está partindo mas sem ele. Ele filmou essa sequência quatro dias após o lançamento de The Jazz Singer (o primeiro filme falado de sucesso) em Nova Iorque. Quando ele colocou a trilha sonora em The Circus, em 1928, Chaplin montou a seqüência com “Blue Skies”, a canção que [Al] Jolson tornou famosa, porém Chaplin a tocou lenta e tristemente, como uma elegia fûnebre”.

Referências:

CHAPLIN, Charles. O Circo. https://www.youtube.com/watch?v=M28IMFrkBgw
Acessado em 5/07/2017. EUA, 1928, 71 min.
LARCHER, Jérôme. Masters of Cinema: Charlie Chaplin. London: Cahiers du Cinéma, 2003.
MATERNO, Angela In: BRANDÃO, Tânia (org). O Teatro Através de História. Entourage, 1994, vol. 1
ROBINSON, David. Chaplin: His Life and Art. London: Paladin, 1986.
WEDDLE, David. Nothing Obvious or Easy: Chaplin’s Feature Films.Variety, 2003. p. 6,

Thursday, August 17, 2017

Tom Donahue e a grande revolução do FM


"Big Daddy" Donahue

Tava lendo um livro que é uma tese do Kim Jefferson Simpson, Hit Radio and the Formatting of America in the Early 1970s, um livro sobre economia política da comunicação e sobre a indústria fonográfica e contexto histórico americanos entre o fim da contracultura e os anos 70 na América. É um resgate interessante mas, ao mesmo tempo, é um tema que valeria a pena ser abordado aqui no Brasil. Ou por outra, existe, mas ainda é muito pequena.O livro é sobre contracultura e o começo das FM nos Estados Unidos na perspectiva de economia política e formação de programação musical.

No livro, ele revela que o Donahue cansou da estagnação do 40 hit format e resolveu migrar de mala e cuia para o FM ainda experimental. De uma hora para a outra, largou a estabilidade de DJ e partiu em busca de um desafio, que era explorar o FM. O cara podia tocar o que ele quisesse, então ele foi um precursor do free format no FM, ainda experimental, em 67, que descambou para o AOR, e isso foi um movimento que calhou bem na época, combinando o rock progressivo emergente e o começo do FM comercial no segmento jovem.

O AOR — album oriented rock foi o caminho para as rádios progressivas, pois o FM podia tocar discos inteiros em detrimento dos compactos. Aqui no Brasil quem implantou isso aqui foi a Eldorado, quando obteve concessão do FM em 72, progressive rock. Pois sempre se associa o Big Boy ao Wolfman Jack, e ele sempre se identificava com o Jack, mas eu percebo que tem uma ligação estreita com os programadores do FM free format com o Big Boy, que na Mundial estabelecia um padrão 40 Hit e na Eldopop o progressive sound (importante destacar o formato progressive não impede que a programação tenha outros subgêneros do rock, como o hard rock ou o rock dos anos 60) , elaborando sequências em rolo que eram copiadas de discos que muitas vezes eram transmitidos na íntegra, como o Phaedra, do Tangerine Dream que, todos sabem, é uma puta tijolada de 40 minutos direto sem escalas.

Claro que, antes, porém, a Federal AM de Niterói (de onde saiu o Luiz Antônio Mello, da Flu 'Maldita') já tinha programação rock tocando Neu, Tangerine Dream, Faust, Can, Soft Machine, era esse o tipo de música. Como as vinhetas da Eldopop diziam na época: “uma nova experiência sonora", também fazendo um link com música eletroacústica e minimalista, uma verdadeira pororoca musical de novas tendências, muito além das praias do pop.

E o progressivo entrou como uma luva no conceito de FM no começo. No free format eu poderia tocar o A Love Supreme todo, no AM nem a pau. O Donahue concebeu o projeto na KMPX e na KSAN, ambas em San Francisco em abril de 67, ou seja, antes do Pepper’s. Aqui eles poderiam programar um Giant Steps, depois um Days of Future Passed, depois um Eric Satie, era um campo aberto para todas as possibilidades.

O problema é que, enquanto o progressivo, que não tinha espaço no rádio britânico (que só iria desenvolver o FM bem mais tarde), nos Estados Unidos ele foi o esteio do novo formato das FM. E aqui, é provável que o Big Boy conhecesse na época a WNEW-FM, que era a FM progressiva de Nova York. Quando caiu para ele o pepino de implantar uma FM no Rio, ele não pensaria duas vezes em conceber uma rádio progressive que, como diz o Peixinho no documentário do Big Boy, não podia tocar o que tocava na Mundial. Ou seja, não podia retransmitir e nem ter a mesma programação musical, certamente por causa da concorrência direta.

Porém, a verdade é que a Eldopop, enquanto segmento de rádio rock no FM, só teria concorrência a partir de 77.

Assim, por cinco anos, ela criou um modelo de rádio rock segmentada que não só não tinha interferência de qualquer departamento comercial ou de orientação de gravadoras quanto estava introduzindo um tipo de música no Brasil que não tocava em lugar nenhum — ou porque era comercialmente inviável, como no caso do krautrock, que era uma coisa de iniciados — e que era novidade na época, já que aqueles discos tocavam logo quando foram lançados, lembramos que o Phaedra era de 1973, então muita coisa de progressivo que tocava na Eldopop era lançamento mas, em geral, o progressivo tinha uma barreira, que era o descompasso entre a agenda das grandes gravadoras brasileiras, que certamente exploravam mais a música nacional (em português, independente de rotular de brega ou MPB) e teletemas em geral e o desinteresse total dessas gravadoras com o rock, desinteresse que perdurou até o começo dos anos 80. Então, eu acredito que mais do que uma rádio vitrolão de ricos, como podem rotular alguns, ela foi uma experiência que estava colocando o ouvinte brasileiro em contato com a música jovem (e as vinhetas da Eldopop sempre diziam “FM! Estéreo! Jovem!”, ou “Som contemporâneo” da época, longe do sucesso do AM.

Quer dizer, o mercado ainda explorava massivamente o AM e subestimava o rock nacional, o que não dizer do internacional? Basta lembrar o veto que os Mutantes levaram do seu O A e o Z e a agonia do Vímana em conseguir lançar um disco pré-produzido pronto em 1977 e que, no fim, virou um único single, “Zebra”, e que passou batido. Eram tempos em que o rock e a indústria fonográfica no Brasil ainda não andavam de mãos dadas.

Agora, pegando o livro do Kim Jefferson Simpson, a gente percebe que lá não havia esse descompasso, e o progressivo e o hard rock eram mainstream. O que existia era a divisão entre o progressive format e o MOR, ou middle-of-the-road, que era onde tocava o cocktail music ou o soft rock, e o Simpson fala que o soft rock foi uma espécie de reação ao contexto marcadamente negativo dos Estados Unidos com mortes em Kent, Nixon, Vietnã, que nasceu como um lenitivo, um soporífero aos ouvidos daqueles dias políticos. Ao mesmo tempo em que o bubblegum pop foi uma reação das gravadoras, criando grupos como Archies, Osmonds, Box Tops (!) para combater o pessoal do rock que estava fazendo rock freak AOR para vender ao público pré-adolescente/adolescente da época (fim dos anos 60).

No caso de Donahue, ao lançar mão do free format, seria possível incluir na programação um tipo de música que jamais havia tocado no rádio. Para tanto, basta pegar o caso do Sgt Pepper's Lonely Hearts Club Band. O disco foi praticamente banido na BBC e nenhuma das faixas fora concebida como single. Paradoxalmente, o trabalho mais incensado dos Beatles não tinha espaço no AM. Mesmo assim, Sgt. Pepper's foi o gatilho que deflagrou a mudança na estética do rock, de focar no formato conceitual de álbum em detrimento do single. A partir dessa concepção, muitos músicos podiam dar-se ao luxo de produzir canções para o Top 40 e dedicar o álbum para voos mais altos.


Tuesday, August 08, 2017

Brailovski e o especialista



Tive há bastante tempo um disco do pianista ucraniano Alexander Brailovsky. Sempre que eu passo no Mercado do Bonfim eu me lembro dessa capa. Brailovsky era especialista em Frederic Chopin. Ele se radicou nos Estados Unidos e gravou dezenas de álbuns com peças do compositor polonês.

Aliás, eu tinha uma coleção curiosa, porque esses discos eram daqueles que poucos procuravam, e eu comprei um lote de um colecionador, e a pessoa provavelmente não apenas sabia o que comprava como também parecia conhecer todos os selos quentes, com os melhores intérpretes. Hoje, acho que a única que entrou na era da internet foi a Deutsche Grammofon. dos outros, que fim levaram aqueles masters da CBS, da Phiilps, Melodia russa ou da RCA Victrola?

Esses álbuns são do tempo em que intérpretes de música clássica gozavam de relativo sucesso comercial em lançamentos de discos - algo improvável hoje em dia, já que não existem mais seções de música erudita em lojas de discos.

É impensável pensar hoje que existiu, ainda mais aqui, no Brasil, um mercado tão grande e prolífico de venda de discos de música clássica. Impensável mesmo, porque há algum tempo eu estive numa loja — a Saraiva do Praia de Belas, e lembrei que, quando ela foi inaugurada, lá por 1999, ela tinha uma seção especializada em música clássica e jazz.

Imagine que, hoje, quando você chega lá, percebe que os poucos discos que estão expostos à venda naturalmente no interior da loja mal servem como amostragem dos diferentes artistas e estilos. Dificilmente você encontra algo que você queira ali. Lojas lixam-se em manter fisicamente um estoque que hoje está na Internet. Sinal dos tempos. Até porque, por causa disso, o próprio público-alvo dessas obras encontra-se nas lojas de shoppings.

Aliás, se alguém for pensar, aparelhos de som hoje têm entrada para USB e os notebooks que v~em de fábrica hoje sequer tem entrada para CD. Eu mesmo aproveitei a leva de discos que passei adiante para livrar-me dos meus CDs. Nem o quesito valor afetivo se salva: eu realmente não tenho o que fazer com os disquinhos, eles realmente ocupam espeço e são um peso morto em mudanças. E o pior, além da facilidade com que os estojos quebram/riscam, os CDs correm o risco de mofaram, mesmo bem guardados: ao contrário do vinil, quando podemos de repente pôr um peso no braço da agulha, o único destino de um disquinho mofado é o lixo.

Lembrei do Brailovski porque ele era de um selo azul da CBS, que era especializado em lançamentos de clássicos. Não sou um entusiasta do vinil (embora o pareça) mas, daqui a alguns anos, vão espocar teses que darão conta do que foi a bolha cultural do século do vinil. Longe de ser mero fetiche, era uma época quando gravadoras contratavam até artistas eruditos ou de jazz e que tinham quase que total autonomia na hora de gravar, e que mantinham um mercado gigantesco, que ia do artista ao vendedor especializado da loja.

Hoje ele é uma espécie extinta e parece até piada imaginar, mas toda grande loja de discos (como a Pop Som, da foto acima) que se prezasse tinha um atendente especializado inclusive num gênero específico, como eram os balconistas de seções de clássico/jazz. citando o fim da Tower Records, nos Estados Unidos, o jornalista Andrew Keen, no Culto do Amador, refere-se à perda da "aura" do especialista também nas lojas de discos. em geral, ele servia como um mediador — aquele que tanto sabia qual música nós assobiávamos para tentar decifrar aquela música que ouvimos no rádio e ele achar o disco específico — quanto saber qual seria o disco especial para aquela pessoa idem, nem que essa pessoa fosse você mesmo.

Claro que, ao contrário do que parece, ele não quer soar saudosista, mas apenas pegar esse exemplo para mostrar como a Internet (ou, como ele se refere, a web 2.0) matou com uma cajadada o especialista da loja de discos junto com eles mesmos, os discos. Hoje, em 2017, vemos que o catálogo das grandes gravadoras sobrevive agora no streaming e é o robozinho do site quem direciona ou não os nossos gostos. São outros tempos. Mas, mesmo assim, como não é bem uma mídia colaborativa mas, sim, um grande esquema mediado entre os barões da indústria fonográfica e os donos dos sites, muita coisa ainda está de fora e nunca vai entrar no streaming.

A verdade é que existe uma rede polissemica (e colaborativa) de gente que, indo pela contramão da folksonimia típica do Youtube, que faz um tralho distraidamente arqueológico em ripar material de álbuns que certamente nunca vão aparecer num Spotify da vida. E essa é uma das coisas que me fazem ainda ficar preso ao Youtube: aqui eu posso encontrar de repente um disco que eu tive, entre tantos, de música clássica até, já que existe um catálogo gigantesco que existe fisicamente em algum lugar mas que ainda está prestes a ser digitalizado.


Digo isso porque, para felicidade minha, encontrei aquele disco de polonaises do Brailóvski na Internet — ripado do vinil, e foi uma surpresa (o Brailovsky tocou aqui em Porto Alegre, no Theatro São Pedro, há muito tempo atrás. Só não me perguntem o ano). Fallando da capa do disco, eis:



Thursday, August 03, 2017

Rusty Rock



O radialista Big Boy tinha um tino para sacar música na programação de rádio que ia desde aquilo que era o mainstream na Europa e nos Estados Unidos, e que ele ajudava a lançar aqui no Brasil, nos anos 70, quanto era capaz de cavar compactos obscuríssimos de artistas idem e que não só fizeram sucesso a partir dos seus programas, baseados na Mundial, quanto muitos desses discos estouraram por causa dele e, mesmo hoje, decorridos mais de quarenta anos da sua morte, ainda estão associados à memória dos tempos da Superquente. Muita coisa, por sinal, virou lenda urbana, e sequer se têm notícia da origem desse material.

Boa parte dele acabou se perpetuando porque o Big Boy lançou três álbuns ligados tematicamente aos seus históricos bailes da Pesada, e um, um pouco mais conhecido, é um pirata nacional ou pretensamente relançamento de um selo obscuro, chamado Napoleon, e que trazia marte de uma apresentação dos Beatles no Hollywood Bowl em 1964.

O lado B do disco, no entanto, era o melhor do álbum. Como sempre, com faixas obscuras, atribuídas ao Tony Sheridan, mas muitas faixas eram do começo da carreira do Capitain Beefheart, então ainda militando pelo eletric blues — outro achado de Big Boy, já que Beefheart sequer era conhecido no Brasil dos anos 70, que pouco se interessava por rock (menos do que agora, por exemplo). O tal disco virou collector item para os fãs dos Fab Four, muito embora o álbum seja, a rigor tão desinteressante hoje.

Cito o caso dos Buoys, que tocaram muito no começo dos anos 70 na Mundial com uma gravação, chamada "Timothy", uma letra infame sobre canibalismo, mas com uma pegada pop e um vocal estilo Crosby, Stills e Nash. A faixa saiu no primeiro elepê Baile da Pesada, junto com muita coisa de funk — muita coisa boa, diga-se de passagem, mas que é difícil de achar na Internet — apesar da Internet ser um lugar onde é difícil não achar qualquer coisa. Tem Abrahan And The Casanovas, Meters (com o Chicken Strut e Kool & The Gang). esse disco é um achado. É tão bom que foi ripado em formato digital e se você não achar em mp3, faça o rip do Youtube.

Discos como o dos Beatles e a série dos bailes da pesada, estes lançados pelas Top Tape, saíam quase como bootlegs. Não tinham indicação de fonogramas, o que leva a crer que eram editados sem o copyright, como nos discos de novelas. Mesmo assim, tocavam na programação da Mundial, não só nos programas do Big Boy mas na programação geral, incluindo o Show dos Bairros. Uma que tocava era "People Of The World" (Lord John), que ficou conhecia principalmente por causa do Big Boy. Outra é "Copacabana" (The Salvation), com um riff tipo "On Broadway") que tudo indica que é um conjunto brasileiro.

O disco Big Boy Show, por sua vez, saiu por uma gravadora grande, a RCA (curiosamente, esses projetos do Newton não eram lançados pela Som Livre), e muitos desses áudios aparecem no excelente documentário-tributo que seu filho produziu, nos anos 2000, sobre Big Boy.

O caso mais clássico, sem dúvida, é o do "Charley", do Whisky David. A faixa, incluída no acima citado Big Booy Show, (originalmente do álbum Rusty Rock (Ariola, 1975) e a banda até hoje é motivo de debate sobre a sua origem. Só muito recentemente é que lançou-se alguma luz a respeito deles (já que o próprio Big Boy parecia manter tudo na obscuridade mesmo). Tudo indica que, como ocorrera com Long John ou os Buoys, "Charley" foi uma sacada do Big Boy que acabou virando não apenas um sucesso local naquele ano quanto uma referência á memória do próprio disc-jockey da Mundial até hoje.

O "Whisky David" foi, na verdade, um cara chamado David Waterston. Nascido em Paisley, na Escócia, que era roadie dos Yardbirds. durante uma turnê pela Espanha, em 1966, ele conheceu os membros de uma espécie de Beatles espanhóis, o Los Brincos (antes Los Shakers, mas nada a ver com os uruguaios Shakers). Waterston resolveu ficar, e integrou o projeto do líder dos Brincos, Fernando Arbex — que, dez anos depois, noauge da febre Disco, fundaria o Barrabás, que faria muito sucesso também aqui no Brasil.

Nos anos 70, David fundou a Whisky David, cujo nome se dava não só porque ele era escocês (a referência seria por demais óbvia) mas porque, ao contrário do que manda o bom tom, os demais membros da banda eram abstêmios. E, de fato, a insistência rebarbativa á bebida escocesa sempre foi um charme a mais na banda, pelo menos para mim que, dado aos vocais bêbados de David (que mais parece um misto de Bon Scott com Dercy Gonçalves), parece ser possível sentir o blend de scotch saindo das caixas acústicas quando ouvimos o primeiro e único registro da banda, Rusty Rock.

David era autodidata (tocava harmônica, embora não toque o instrumento no Rusty Rock) e começou solo, com "Tina", em 1973. Nos anos seguintes, tocaria com os Shakers e o Whisky David seria uma fusão de vários projetos que, a um só tempo, juntava muito dos poucos malucos que se dedicavam ao rock no país. E a banda, por sua vez, segundo ele, era uma forma de criar uma cena blues rock na Espanha.

De acordo com o necrológio do el País, de abril de 2011, David era co-proprietário e professor de tênis num um camping em Altea, Alicante (no litoral mediterrâneo, no sudeste espanhol) e, nas horas vagas, tocava numa banda chamada Tonky Blues Band. Ainda segundo o obituário, ele havia perdido seu irmão há pouco tempo, e havia caído em depressão, o que fezx com que voltasse a beber. Morreu dormindo, dia 26 de abril daquele ano.