Creio
que muito já se falou a respeito do autobiografia da Rita Lee
(2016). Porém,
eu gostaria de abordar uma questão que me intriga, que aparece de
forma meio lacunar no texto e, no entanto, não chega a ser
problematizado a fundo, que é a relação da Rita e dos Mutantes com
a indústria fonográfica naquele período entre o fim dos anos 60 e
começo dos anos 70.
Dada
a largada, nas palavras dela:
Os
Mutantes nunca foram vendedores de disco nem frequentadores das
paradas de sucesso em rádios. Éramos apreciados por nossa
esquisitice visual e sonora. Hoje somos considerados cult, mas, na
época, ganhamos o apelido brega de “os brasiliân bitous”
(escrito assim mesmo), para orgulho dozmano e um certo
constrangimento meu, afinal, ser fã dos Beatles não significava
querer ser os Beatles. Por essas e por outras que começamos a nos
desentender, até que rolou a primeira guerra de verdade e kaput, a
banda acabou (p.95).
Uma
questão interessante é ver como a trajetória inicial da banda está
vinculada aos festivais da canção, de 1967 a 1972, ambos polêmicos
contudo por razões diversas. Ao estarem ligados à eles, os Mutantes
pareceram sempre deslocados do mundo da Jovem Guarda, que seria, em
termos, a música jovem do momento.
Mais
do que isso, ao integrarem o grupo tropicalista, eles estavam, de
fato, mesmo que mantendo alguns pontos de contato, seguindo por uma
outra via que, sendo cada vez mais autoral e carnavalesco, ia contra
aquilo que o gosto comum dos fãs de Roberto Carlos e companhia
vendiam.
A
outra questão é que, enquanto a Jovem
Guarda ficou tematizada no universo do iê iê iê típico da
Beatlemania e não conseguiu sair de lá, os Mutantes justamente já
se integravam ao som pós-66.
Enquanto
a banda acompanhava de perto as mudanças recentes do rock
estrangeiro, a JG se engessava num formato esquematizado e que
permaneceria adiante até desaguar no “cafona” dos anos 70.
Opinião polêmica, pois, entender o “movimento” de Roberto e
Erasmo como o nascimento do pop brasileiro depois chamado de brega.
No
livro, Rita sempre pontua que os discos dos Mutantes foram fracassos
em execução nas rádios, a despeito de suas constantes aparições
no FIC ou no Chacrinha.
A
questão é que, a despeito de serem considerados cult hoje, nenhuma
gravadora investiria num artista se não fosse para que eles
vendessem. Isso explicaria porque a JG vendia e eles não.
Independente de gosto, elas haviam enquadrado o gosto do público e
forneciam um material decalcado em covers de qualidade questionável
se em qualidade, não muito na questão de vendas em
compactos-simples, por exemplo.
Mesmo
tendo um estilo sofisticado e experimental, os Mutantes estavam longe
de venderem bem, apesar da extensa visibilidade que eles gozavam
naquela época. Porém, mesmo além daquela temática piegas tão
cara à Jovem Guarda, a banda parecia ter autonomia para criar na
Polydor e isso é marcante se falarmos de artistas tão jovens como
os Mutantes, quando o que se sabe é que, salvo em alguns momentos,
como Roberto Carlos, nenhum cantor dispunha de tanta liberdade. Como
Rita fala a respeito da sua Divina Comédia: “o trabalho novo foi
sumariamente ignorado pelas rádios (p.87).
A
coisa mudaria quando Nara apresentaria aos Mutantes sua versão de
Joseph, de Georges Moustaki. A fórmula, óbvia no mundo dos covers
brasileiros da época, eram versões de canções de San Remo e do
Eurovision (coisas como “Puppet On a String”, da Sandie Shaw, por
exemplo) ou o pop italiano que fazia muito sucesso no Brasil.
Nada
mais anti-Mutantes do que seguir o que era comum. Porém, á guisa de
carro-chefe de um álbum solo de Rita, a música caiu como uma luva:
contrariando todos os números até então, Rita estourou com “José”.
A ironia é que, a partir de então e até hoje, “José” é uma
piece de resistance em qualquer set de
rádios AM populares em todas as partes do país. Como
diz Rita, o episódio “José” foi um passo atrás e á frente no
sentido de buscar um hit.
Nesse
momento, enquanto André Midani, boss da Philips planejava a carreira
solo de Rita, os Mutantes (Arnaldo e Sérgio) queriam entrar de
cabeça no rock progressivo.
Aqui
entra o glorioso
capítulo de como ser roqueiro nos anos 70 no Brasil; quando, segundo
Rita, você tinha ou fama de drogado ou de bandido, ou
nas palavras dela: “roquenrou era oposição e tinha cara de
bandido” (p.166). No caso, pelo menos
dois eram os rubicões: um, ou fazer som próprio, como todo mundo na
fase do progressive sound;
a outra, ter um pedaço de pão com manteiga para barrar por cima,
como diria Nelson Rodrigues citando o Eça, e se vender ao circuito
de bailes da Zona Norte, porém tocando sucessos e covers em geral.
Na
primeira opção, você poderia, mesmo que o horizonte não
respondesse, gozar de uma certa reputação a posteriori. Por outra,
você seria apenas mais um fazendo o que todos faziam.
O
outro problema é vender esse mesmo perfil singer-songwriter para as
gravadoras, ainda mais propondo produzir a própria música. A
tendência era você pregar no deserto ou, como no caso dos Mutantes,
perderem o contrato com a Polydor.
Os
Mutantes seguiram sem Rita mas tiveram o A e o Z vetado pela Philips.
Seriam “salvos” pela Som Livre, o braço fonográfico da Globo
que, naquele momento, representava um símbolo da indústria cultural
setentista no Brasil. Com trilhas de novelas, eles haviam descoberto
o mapa da mina e passavam a praticamente a ditar o que tocava se não
em todas as rádios (era inevitável, pois todos viam as novelas),
pelo menos nas emissoras do sistema Globo, como a Mundial do Rio, por
exemplo que, ao ser comprada por Roberto marinho em 1969, á quela
altura já era líder de audiência no estado.
Dessa
forma, com o mercado fonográfico integrado com as demais mídias,
era impossível querer impor um gosto musical aqui como as bandas
americanas e europeias podiam dar-se ao luxo de fazer. A tendência
era ou enquadrar-se (ser enquadrado por um produtor, fazer música
para o mercado, como foi o caso do movimento “made in brazil”,
que vale outro post) ou pregar no deserto.
Isso
explica a vida lacunar de bandas de rock no Brasil. Ou limitavam-se a
um ou dois discos por carreira (geralmente curta), e quase sempre em
gravadoras menores. Mas como dissemos acima, no caso da Som Livre, o
selo àquela época resolveu “ser” uma gravadora com cast
e tudo e chegou a apostar nos Mutantes em seu disco Tudo
foi Feito Pelo Sol, de 74.
No
caso de Rita, no entanto, permanecer na Polydor/Philips implicaria
andar conforme o que eles ditavam num momento em que a gravadora
queria dedicar-se a um cast que
compreendesse o melhor da nascente MPB: Bethânia, Caetano, Chico,
Gil, Edu, Tom Jobim, Elis, Macalé, Gal (Arnaldo lançaria seu
bissextíssimo Loki na Philips em 74, mais pela loucura de Roberto
Menescal em apostar nele. No fim das contas, o álbum acabou virando
cult e,
como aconteceu com o resto do catálogo dos Mutas, ganhou uma vida
posterior eterna).
De
repente, é como se os Mutantes parecessem anacrônicos nessa
viravolta. Ela mesmo conta que, numa reunião (p.133), tentaram
tutelar sua carreira, o que provocou sua saída e a formação do
Tutti Frutti.
Em
seu terceiro disco, Rita gravaria “Bruxa Amarela”, que Raul
Seixas compôs especialmente para ela. Raul deve ter servido de
exemplo de que querer ir além da híbris
de qualquer contratado de gravadora significava o ostracismo. Ele,
como músico e produtor da CBS, já tinha provado do veneno quando do
episódio do disco Sessão das 10, uma aberração para a linha dura
da Columbia, acostumada com robertos, jerrys adrianis e wanderléas.
Mesmo
roqueiro e maluco de carteirinha, Raul nunca entrou nessas de querer
virar um essênio do rock. Suas canções, depois dos kavernistas,
mesmo que falando de uma vida anti-estabilishment, nunca deixavam de
ser pensadas tocando nas rádios e aparecendo em programas como o
Fantástico.
Tanto
forçaram que os
Mutantes forçaram barra e foram defenestrados. Tanto que Rita, por
sua vez, investiu no pop desde o (re) começo e fez grande sucesso
com “Ovelha Negra”, que pavimentaria a sua cada vez mais sólida
carreira solo.
A
coisa se deu quando João Araújo intercedeu por ela no episódio da
prisão e ela, julgando-se no dever de retribuir o gesto, que seria o
compacto “Arrombou a Festa” (parceria com Paulo Coelho). A
beatlemania de Rita iria começar com o disco homônimo, de 1979 e
a sua longa e frutífera parceria com a Som Livre.
Flagra, por exemplo, venderia na época mais de 2 milhões de cópias
e rita finalmente hoje é (como diz o fantasminha) a mulher
brasileira que mais vendeu discos no Brasil.Bibliografia:
LEE, Rita. Uma Autobiografia. Globo Livros, 2016.