Thursday, November 23, 2017

Balanço Zona Sul


Golden Room do Copacabana Palace, 1950



1. INTRODUÇÃO

A canção brasileira, como lembra José Ramos Tinhorão (1972) tem suas raízes na modinha e no lundu, e viveu uma longa gestação, até deixar suas raízes eminentemente folclóricas até, nos primeiras décadas do século passado, tornar-se um produto de consumo de massas, com o surgimento do compositor profissional. A famosa polêmica do samba “Pelo Telefone” dá conta dessa inevitável transição quando um dos partideiros responsáveis por glosar o tema (que, naquele momento, nos serões dos jovens sambistas da casa da Tia Ciata, não era original, provavelmente de origem remota e apócrifa), Ernesto dos Santos, observando as possibilidades da música, decidiu registrá-la na Biblioteca Nacional, em 1916.

Coincidentemente ou não, naquele mesmo ano, uma famosa revistógrafa, Chiquinha Gonzaga, com um grupo de compositores, fundava a Sociedade Brasileira de Autores Teatrais (SBAT), com o objetivo de manter uma salvaguarda a respeito da questão de direitos autorais. Naquele tempo, a música da Capital Federal fervilhava nos arredores da Praça Tiradentes, no centro do Rio.

Aquela era a pequena Broadway brasileira. A SBAT, guardadas as devidas proporções, nasceu como uma espécie de Tim Pan Alley, um movimento conjunto de compositores com vistas a dar conta da demanda da produção musical que as peças em cartaz — vivia-se o tempo dos teatros cantados, ou de revista. A partir da atitude pioneira da autora de “O Corta-Jaca” (que, àquela altura, já era francamente plagiada em Portugal e em outros países da Europa), surgiram outras sociedades e editoras musicais.

Nesse mesmo momento, enquanto a produção musical se profissionalizava cada vez mais, buscava-se, a partir do gosto do público, uma forma de criar um tipo de canção que tivesse um gosto mais popular, bem diferente do que era comum nessas revistas: cantigas com ionfluências do norte, na maioria muito esquemáticas, para não dizer simples (ou simplórias demais). Muitos compositores populares, os primitivos, de origem popular, ainda estavam presos à um estilo empolado e parnasiano demais, cheio de palavras raras e hipérbatos: faltava um acento mais popular, um tipo de canção com um tipo de letra que facilmente caísse na “boca do povo” ou, por outra, que ficasse na memória das pessoas; que fosse mais ‘palatável’, digerível.



2. MISTURA E TRIAGEM


Também observava-se uma mudança na forma de se fazer canção. Em O século da Canção, Luiz Tatit (2004) lança mão da teoria da triagem e mistura como formas de explicar a evolução da canção brasileira através dos tempos.

Para ele,o processo de mistura transcende o campo meramente étnico da formação de nossa cultura. O semiólogo e compositor diz que a assimilação é avaliada muitas vezes como caso de enriquecimento cultural. Desse ponto-de-vista, essa mesma assimilação pode ser considerada “positiva” ou, de forma diversa, como causa de estranhamento no sentido de “profanação” de crenças e costumes de grupos.

Ao amalgamar melodia, letra e arranjo instrumental, diz Tatit, a mistura constitui um campo hegemônico característico do mundo simbólico. Porém, ao contrário da assimilação, que é um processo natural e contínuo, há ainda a triagem, que tem caráter de intervenção cultural e de demarcação histórica. Ele explica que, no caso da triagem, denota-se que há consciência na intervenção e, a extração, que se manifesta por uma operação de eliminação e seleção de valores.

Nesse sentido, o autor elabora uma periodização de triagens que ocorreram na nossa música ao longo dos últimos cem anos no Brasil.

A primeira, segundo ele, foi uma triagem de ordem técnica, que delimitou o que poderia ou não ser gravado em disco. Isso excluiria manifestações mais primitivas, como a umbigada e o fandango, por exemplo, por causa de sua percussão, que soaria indistinta no registro sonoro. Nesse período, o compositor popular não tinha uma ambição comercial ao fazer esses registros.

A segunda, já em meados dos anos 20 do século passada, dava passagem ao samba (as técnicas de gravação permitiriam o registro de uma percussão mais presente). Aqui, surgem compositores populares mas de pretensão erudita, como Cândido das neves e Catulo da Paixão Cearense. A música é feita para teatros de revista e era comum a temática da música com temas do norte, como “Chuá Chuá” (Pedro de Sá e Ary Machado) e “Luar do Sertão”, de Catulo. A segunda triagem corresponderia à popularização do samba de carnaval (1917) e do samba-canção (1929).

Ainda nesse período, observa Tatit, ocorre uma mudança da “instabilidade” que estavam associados à canção, a começar pelo problema do estilo ainda pomposo de autores como Catulo e a necessidade da busca de uma fala mais oral, cotidiana (p.98). Mas iremos tratar disso mais adiante.

Na terceira triagem, ocorre a ascensão do samba-canção em detrimento da música de carnaval e a caracterização daquele gênero como música de rádio, com seus componentes sentimentais (ou, na acepção de José Ramos Tinhorão, “sambolero”) e tornou-se, segundo Tatit, o padrão único de criação, não fossem as incursões do baião de Luiz Gonzaga. Talvez por conta desse passionalismo típico, o público mais jovem passou a desgostar desse tipo de criação, e estava mais sintonizado com o jazz de artistas como Stan Kenton e Frank Sinatra (como lemos no capítulo “Os sons que vieram do porão”, do livro Chega de Saudade (CASTRO, 1990)), um tipo de música mais “cerebral” e menos melodramática. Para o autor, o corolário dessa terceira fase é a Bossa Nova, em 1959.

Na quarta triagem temos a continuação da “linha evolutiva” da Bossa Nova desaguando no Tropicalismo como forma de eficaz de mistura e triagem que deram à canção popular brasileira um equilíbrio estético nem sempre presente em outras culturas musicais (TATIT, p.104). Ao mesmo tempo, expôs os limites tênues da criação artística ao mesmo tempo que propôs uma revisão de apreciações estereotipadas e de gênero na música.

Ou, como diz Ruy Castro à guisa de conclusão em A Noite do Meu Bem (2012) (do qual falaremos mais tarde) que o próprio samba-canção, depois que misturou-se com o bolero (contra o qual bateu-se José Tinhorão como um tipo arte decadente) acabou incorporada á própria MPB em composições célebres da dupla João Bosco-Aldir Blanc, como “Dois Prá Lá, dois Prá Cá” ou a versão de Elis Regina, já nos anos 70, de “Na Batucada da Vida”, de Ary Barroso e Luiz Peixoto.

O tropicalismo finalmente também seria responsável, de acordo com Luiz Tatit, pela incorporação do rock na MPB e, nos anos 80, do percurso inverso, com a MPB sendo adotada por músicos de rock, cujo caso mais notável é o de Cazuza como cancionista original, fazendo a síntese entre a temática sentimental atávica do samba-canção com a linguagem jovem do rock. Essa quarta triagem contempla o surgimento da música romântica “brega” (embora a expressão seja controversa e rendeu inclusive um extenso livro-ensaio, Eu Não sou Cachorro Não, de Paulo César de Araújo (2002) e, por fim, na década de 90, o sertanejo pop e o pagode.

É importante notar que, se nas primeiras triagens, o mercado do disco já se constituía como pano de fundo nesses processos de extração, observa Tatit, na quarta, já em tempos de uma indústria cultural plenamente implantada no Brasil, ele escolha o consumo como critério principal para a caracterização dos seus modelos (p.107). Nessa fase, os sujeitos da quarta triagem são os representantes das empresas de mídia, que responderiam pelo perfil artístico dos grupos e pelos acordos com os veículos de divulgação. E o auge do jabá no rádio.


3. NASCE O SAMBA-CANÇÃO

No livro Pequena História da Música Popular Brasileira, José Ramos Tinhorão dedica um magro capítulo dedicado ao samba-canção. Difícil saber ao certo quais eram as intenções do autor, já que ele dedica vários capítulos a outros estilos que marcaram a nossa música, como o baião. Sobre o samba-canção, ele estabelece o gênero originalmente como samba de meio da ano, já que esse, mais lento e de temática lírico-amorosa se diferenciava do samba carnavalesco, esse que, por sua vez, popularizou-se a partir do sucesso e polêmica de "Pelo Telefone", de 1917(talvez a polêmica mais conhecida da história da música brasileira).

Para Tinhorão, o samba-canção tem origem no teatro de revista. Assim como o samba de carnaval tem "Pelo Telefone" como sua certidão de nascimento, o de "meio de ano" nasce através da popularização de "Ai Iôiô, de Henrique Voegler.

Caetano Veloso tem uma definição particular do gênero, já em media res, ou seja, na sua fase anos 40 e 50:

O que se chama samba-canção - e que já foi apelidado meio pejorativamente de "sambolero" - é uma espécie de balada lenta em que o ritmo do samba só é perceptível para um ouvido brasileiro treinado para reconhecê-lo em todas as suas variações de andamento e acentuação. Essa modalidade de samba vinha se desenvolvendo desde Noel Rosa - inclusive com interpretações ostensivamente cool de Mário Reis, um cantor de voz pequena e estilo desdramatizado - e chegou a se constituir em parte predominante de uma fase da produção de Ary Barroso e Herivelto Martins, além do Caymmi dos anos 40. Basta ouvir as gravações de Sílvio Caldas de "Maria" ou "Tu", de Ary Barroso, ou "Carinhoso" de Pixinguinha por Orlando Silva - todas dos anos 30 - para saber que o samba domado e refinado dos estúdios e das partituras havia muito se tornara o gênero dominante, sendo os registros de tratamento mais percussivo de samba "de rua" ou de terreiro antes a exceção do que a regra (1998, p.29).


Como no caso de "Pelo Telefone", "Ao Ioiô" também tem uma definição controversa. Luiz Tatit, em Século da Canção, entende que nesse momento, samba-canção se definia ao gradativamente livrar-se tanto do atavismo amaxixado com que essas canções, que popularizavam-se a partir dos espetáculos da Praça Tiradentes, no centro do rio de Janeiro quanto à poética imanente desse tipo de canção.

Letras de espetáculos de revista em geral, por influência de poetas de origem humilde e, por isso mesmo, procuravam compensar essa posição social compondo letras com traços eruditos. Um exemplo esse perfil de cancionista do começo do século XX é Catulo da Paixão Cearense e Cândido Costa.

Costa foi comissionado justamente para pôr letra na música de Vogeler. Segundo Tatit, o maestro rejeitou a primeira versão, achando, com efeito, demasiadamente 'catulista'. Uma segunda versão, criada por outro revistógrafo, Freire Júnior, também foi rejeitada, a despeito de ter sido levada ao disco por Francisco Alves em 1928.

A versão definitiva seria a de Luiz Peixoto. segundo Tatit, Peixoto soube captar o que o gênero precisava: maior espontaneidade, algo que a canção brasileira ainda não tinha, ou então seguia exemplos esquemáticos ainda muito limitados, como nos sambas de Sinhô.

É possível que o grande salto do gênero se daria com o advento do rádio comercial, em 1930, e o surgimento de compositores que captaram o espírito do samba-canção, como é o caso de Noel Rosa, que o levou a um tipo de sofisticação nunca antes visto.

Como diz Tinhorão, o samba-canção passou a representar uma média do gosto nacional, desde o tempo das modinhas (p.159). Também iria revelar-se um sucesso pois, como música para se ouvir e cantar, vinha atender a uma exigência do lazer das massas urbanas, junto a um público sem maiores perspectivas de diversão que os programas de rádio.



4. O AUGE

Com o rádio, surgiram grandes cantores que personificavam esse gênero. se formos pensar em uma periodização do samba-canção, poderíamos dizer que dos anos 30 até o fim dos anos 40 foi a era desses cantores: Francisco Alves, Sílvio Caldas e Orlando Silva, e cantoras como Aracy Côrtes e Dalva de Oliveira. Estes se singularizavam pela forte emissão de voz, uso de vibratos e, na maioria dos casos, dedicavam-se mais ao samba-canção do que o carnavalesco.

Por conta desse tipo de 'personificação' o gênero ficou marcado pela aura de música melodramática, interpretando canções de dor-de-cotovelo. No livro A Noite do Meu Bem, Ruy Castro aponta para uma segunda fase do samba-canção, que de certa forma, ligaria o antigo samba-canção à Bossa Nova.

Esse tipo de 'periodização' é um tanto complicada de se conceber, porque o samba-canção ficou marcado nas ondas do rádio por cantores como Caldas e Chico Alves, além de Dalva que, por sua vez, era a verdadeira síntese, porquanto sua vida pessoal acabaria amalgamando-se com a artística, dado ao seu tempestuoso relacionamento com Herivelto Martins e toda a reprecussão da separação dos dois.

Ao mesmo tempo, teríamos uma vertente de dor-de-cotovelo que foi delimitada de forma exemplar por Lupicínio Rodrigues. Este, provavelmente inspirado na lírica do tango argentino, se notabilizaria por ser quase um gênero particular dentro do samba-canção já que, de certa forma, sua poética é quase toda dedicada à chamada dor-de-cotovelo.

Quando escreveu Chega de Saudade, Ruy Castro pontificava através de compositores como Ronaldo Bôscoli e Roberto Menescal, que a Bossa Nova, de certa forma, havia surgido no panorama da música brasileira, no final dos anos 50 não apenas para modernizar harmonicamente o samba, mas para dar um caráter menos pessimista para o que era o samba-canção naquele período.

Assim, como que para demarcar um estilo musical que iria ganhar o mundo e influenciar até o jazz numa época em que estava relegada ao esquecimento, Castro teve uma postura política ao defender a Bossa Nova. Quase duas décadas depois, ele iria mergulhar justamente nas águas noturnas do samba-canção. No entanto, ao escrever um livro-reportagem sobre o assunto, ele estaria num impasse: afinal de contas, ele teria que abarcar toda a história do samba-canção, inclusive aquilo que mais o escandalizava, que era a dor-de-cotovelo.

Porém, num recorte mais cinematográfico, Ruy Castro conta uma história curiosa. Exatamente no momento em que Tinhorão releva o samba-canção ao transformar-se, segundo ele, em sambolero, atingindo, de acordo com o jornalista, um rebaixamento (grifo nosso) de níveis insuportáveis (p.159), o autor de A Noite do Meu Bem começa a sua narrativa, a partir de um ponto singular, na verdade, uma nota histórica.


5. O SAMBA-CANÇÃO: MISTURA E TRIAGEM

Em 1945, o governo Dutra fecha os cassinos. Se isso não foi um grande problema para os capitalistas que viviam do pano verde, toda a trupe de maitres e músicos súbito viu-se desempregada. A partir da inauguração do Golden Room do Copacabana Palace, toda uma plêidade de artistas descobriu a zona sul do Rio.

Em poucos anos, o bairro de Copacabana viraria o esteio dessa nova geração de músicos que, mesmo despontando no disco e no rádio, não tinham exatamente interesse em obterem os holofotes dos cantores do rádio. E, ao contrário do que afirma Tinhorão, a música que nasceria desse ambiente seria cada vez mais sofisticada e camerística, como é o caso de compositores como João Donato, Antônio Maria, Paulo Soledade, Fernando Lobo e cantores como Dolores Duran, Dóris Monteiro e Lúcio Alves, Mary Gonçalves e Zezé Gonzaga.

Por uma ‘reperiodização’ do samba-canção, a partir do livro de Ruy Castro, que faz uma sutil ligação com Chega de Saudade mas ao fracionar a parte "sadia" do que era produzido nos inferninhos da zona sul. Um elo de ligação entre a antiga e a nova geração poderia ser sintetizada num nome como Johnny Alf.

Pianista jovem e compositor que flertava com o jazz, Alf apareceu no clube Sinatra-Farney e foi descoberto por César de Alencar (o mesmo que, nessa mesma época, para referir-se às fãs dos artistas da rádio Nacional de “macacas de auditório”). Como Tom Jobim, ele começou como músico de inferninhos até que, depois de gravar alguns discos (e ser gravado), no auge da Bossa Nova, da qual ele seria um dos pais, Johnny migrou para São Paulo, onde foi inaugurar a Baiúca, radicando-se lá até sua morte, em 2010.

Alf seria o grande mistério do samba-canção. Mesmo sendo um compositor afinado com a Bossa Nova, a maioria dos seus grandes sucessos, como "Eu e a Brisa", "Escuta", "O Que é Amar" são rigorosamente sambas-canção. Como poucos, ele sintetizaria o tipo de musica produzida nos porões enfumaçados dos bares da Zona Sul. Introduziria a lírica do "amor, o sorriso e a flor" em canções como "Céu e Mar" e "Rapaz de Bem" sem, no entanto, poder ser considerado o momento da ruptura do samba-canção com a Bossa Nova.

Ainda haveria, como podemos ler em A Noite do Meu Bem, uma longa gestação que correspondeu ao auge dos bares chiques de Copacabana. Pensando numa reperiodização, a partir de Ruy Castro (que, no entanto, não concebeu essa tal reperiodização), podemos dizer que, por coincidência, essa nova vertente 'intimista' do samba-canção tipicamente carioca começa quando Dick Farney lança "Copacabana", de Joao de Barro e Alberto Ribeiro.

Como diz Caetano Veloso, em Verdade Tropical ao analisar essa mudança formal nos estatutos da nossa música: “Nos anos 40, Dick Farney e Lúcio Alves, homens muito mais ricos e mais cultos do que Orlando, adaptaram conscientemente procedimentos de Bing Crosby (e, a essa altura, de Sinatra) à canção brasileira”. (p.196).

Apesar de compositores mais estritamente ligados ao mundo do carnaval, Braguinha e seu parceiro foram felizes em vislumbrar, em letra e música, tudo um novo universo que se descortinava a partir dali: uma descrição ensolarada do bairro que agora iria ditar, de certa forma, uma nova moda musical.
Ainda Caetano, a respeito do samba-canção:

[o gênero] deu sentido ás buscas de músicos talentosos que, desde os anos 40, vinham tentando uma modernização através da imitação da música americana - Dick Farney, Lúcio Alves, Johnny Alf, o conjunto vocal Os Cariocas —, revalorizando a qualidade de suas criações e a legitimidade de suas pretensões (mas também driblando-os a todos com uma demonstração de domínio dos procedimentos do cool jazz, então a ponta-de-lança da invenção nos Estados Unidos, dos quais ele fazia um uso que lhe permitiu melhor religar-se ao que sabia ser grande na tradição brasileira: o canto de Orlando Silva e Ciro Monteiro, a composição de Ary Barroso e Dorival Caymmi, de Wilson Batista e Geraldo Pereira, as iluminações de Assis Valente, em suma, todo um mundo de que aqueles modernizadores se queriam desmembrar em seu apego a estilos americanos já meio envelhecidos); marcou, assim, uma posição em face da feitura e fruição de música popular no Brasil que sugeria programas para o futuro e punha o passado em nova perspectiva — o que chamou a atenção de músicos eruditos, poetas de vanguarda e mestres de bateria de escolas de samba (p.28)

Assim como Castro defendia a Bossa Nova contra o que era o pesadelo do samba-canção, agora era esse gênero que despontava mas tendo como o seu antípoda o baião, outro gênero (esse sim amplamente discutido por Tinhorão em seu livro sobre a MPB) que fez enorme sucesso naquele período. Ou seja, de certa forma, a música de Luiz Gonzaga era o inimigo manifesto do samba-canção tipo zona sul, e que grassava de forma impressionante pelas ondas do rádio. Tanto que cantores como Dóris Monteiro e Nora Ney evitavam gravar qualquer coisa do tipo.

É essa a história que Ruy Castro delineia em A Noite do Meu Bem: como aquele tipo de música, produzida entre 1946 (com "Copacabana") (pensando na "periodização") até o que seria o marco zero da Bossa Nova, o 78 rotações "Chega de Saudade/Bim Bom", de João Gilberto, gravado a duras penas e contra a vontade do então produtor artístico da gravadora Odeon, Aloísio de Oliveira.

Antes, porém, além do universo de "A Noite do Meu Bem", ainda temos a temática da dor-de-cotovelo (aliás, personificada pela própria autora, Dolores Duran, ou tra cancionista que misturou vida artística de pessoal), já teríamos Tom Jobim em parceria com Bily Blanco ou Newton Mendonça, produzindo suas próprias canções ainda na fase do samba-canção.


6. ORFEU DA CONCEIÇÃO: O SAMBA-CANÇÃO NO LIMIAR DA BOSSA NOVA



Dois momentos que antecederam "Chega de Saudade" protagonizados por Jobim já prenunciavam, de forma sintética, todo o imaginário zona sul, com suas garçonnieres e desencontros amorosos, o que se veria na Bossa Nova.

Um é o famoso encontro do compositor com o poeta Vinícius de Moraes, na produção da peça Orfeu da Conceição, em 1956 e o lançamento de "Foi a Noite", de Jobim, com Sílvia Telles. Nesses dois momentos, já era possível perceber que havia algo de harmonicamente diverso daquilo que se costumava associar ao samba-canção, mas que não apontava para o que viria a ser Bossa Nova. De qualquer forma, essas canções seriam incorporadas posteriormente à maneira de tocar típica da Bossa Nova, o que causa o estranhamento ao ouvirmos a versão original de "Se Todos Fossem Iguais a Você".

Ao que Ruy Castro simbolicamente sugere, o 'fim' do samba-canção deu-se primeiro com o ocaso da era de ouro do rádio, quando muitos artistas, como Linda Batista ou Dalva de Oliveira, mesmo mantendo grande prestígio já eram consideradas ‘fora de moda’ pelo gosto do público, que não se interessava mais naquele estilo grandilouquente e samboleirado (como diz Tinhorão) que, mesmo assim, ainda era recordista de vendas e público.

A própria Dalva enfrentaria uma longa decadência como artista, nas décadas seguintes, mas ainda parecia ter um enorme público cativo quando gravou seu derradeiro sucesso, a marcha-rancho “Bandeira Branca”, em 1970.

Ao mesmo tempo do ponto-de-vista do samba-canção das boates da Zona Sul passou pela longa decadência dessas mesmas casas de espetáculo, que foram drasticamente mudando para um tipo de frequentador bem menos aquinhoado, diferente do que ocorria em casas como o Golden Room ou o Vogue que, no auge, tiveram cartazes de nível internacional, como Juliette Greco ou Gregório Barrios (no começo, boates como o Golden Room só admitiam artistas de renome internacional. Com o tempo, surgiriam os “furões”, cantores brasileiros “modernos”, e que mudariam os rumos do “fazer” e do “cantar” samba-canção, de forma moderna).

Essas boates tiveram uma sobrevida inusitada com o surgimento da Bossa Nova. Muitos locais, como o Beco das Garrafas, no limite do Leme com Copacabana, viraram o esteio de jovens grupos de samba-jazz instrumental, como o Sérgio Mendes do começo de carreira, bem como Wilson Simonal ou Elis Regina. Em pouco tempo, a despeito de ter nascido no Rio, a Bossa iria mudar-se para São Paulo, onde conquistaria espaço na televisão, na medida em que uma continuação do que era a Bossa Nova transformava-se em música de festival.

Outro fator de que segundo Castro foi o golpe mortal nas boates Zona Sul foi a transferência da Capital Federal para Brasília, afastando todo aquele imenso público endinheirado que era comensal do poder.

Quando ocorreu o famoso Encontro, com Vinícius de Moraes, os Cariocas, Tom João Gilberto, quando 'nasce' Garota de Ipanema", por exemplo, o Au Bon Gourmet já estava no terceiro proprietário, e tentava conquistar um novo público frequentador. Mas como salient Castro, até o fim da década de 60, com o surgimento da Jovem Guarda e das boates de som mecânico, esse ouvinte por ora já via definitivamente aquele ambiente que florescera nos anos 40 e 50 como coisa do passado.

Resumindo: o rock, a fundação de Brasília e o som mecânico solaparam de forma incontornável o mundo boêmio de onde florescera aquela derradeira vertente do samba-canção que, diferente do que era no começo, nos anos 30, já havia incorporado muito dos arranjos sofisticados de maestros como Gordon Jenkins (que trabalhou com Sinatra e Nat “King” Cole, este, um entusiasta do samba-canção, e que chegou a gravar "Ninguém Me Ama" no Brasil, com Sílvia Telles). Isso é notável no disco "Foi a Noite", 78 rotações que foi o carro-chefe do disco de estreia de Silvinha Telles, Carícia, de 1957.

Sílvia foi outro exemplo de cantora que viveu e transitou entre os dois mundos do samba-canção e da Bossa Nova e seus primeiros discos mostram o impasse em que se encontrava a canção brasileira naquele momento. Intérpretes de samba-canção cantavam moderno, em arranjos americanizados, algo que Tinhorão, nacionalista, sem esconder o seu desgosto com essa hibridização (que ele entendia como deturpação) do gênero.

Artistas como Sílvia e Lúcio Alves, por exemplo, como no caso manifesto de Dóris Monteiro, que foi a transição do rádio para a música mais intimista, ja prenunciando a Bossa Nova, não eram cantores de multidões, como no tempo de Vicente Celestino ou Francisco Alves (com exceção de Sílvio Caldas, que acabou adaptando-se ao mundo das boates cariocas, antes de aposentar-se pela enésima vez, no fim dos anos 50) e muito menos grandes vendedores de discos, isso num país que estava ainda em vias de vislumbrar uma indústria cultural massificada, mas apontavam para um novo caminho estético.

Muitos ficaram na fronteira entre samba-canção e Bossa Nova sem, no entanto, abrir-se além, muito embora plenamente identificados, mas como ídolos que serviram mais de padrinhos e precursores, como no caso de Dick Farney. No fim dos anos 40, ele era o sinônimo de moderno, se pensarmos em termos de 'linha evolutiva' da MPB (como preconizava Décio Pignatari no Balanço da Bossa), ja muito além do samba-canção entronizado numa Aracy de Almeida interpretando Noel Rosa, talvez o paradigma mais duradouro do que era o samba-canção até aquele momento.

Essa modernização passava pela interpretação, mais influenciada por crooners americanos, como Dick Haymes ou Frank Sinatra, Farney inclusive tentou carreira nos Estados Unidos mas optou por retornar ao Brasil, em fins dos anos 40. Do pono-de-vista composicional, havia músicos 'modernos', como Custodio Mesquita, que tinha um acento 'americanizado' em seus foxes (Mesquita tinha, mesmo em tempo de samba, o cacoete do fox-canção) , como "Nada Além" ou "Mulher", mas ainda era cantado de forma antiga, na interpretação de um Sílvio Cadas ou um Orlando Silva.

A mudança deu-se com a nova forma cool de cantar, sem vibratos ou arroubos operísticos, e que foi introduzido por Farney, Nora Ney e Doris Monteiro. Aliás, intérpretes que preservavam essa postura cool negando-se a gravar samba de carnaval (já em fase de declínio, se compararmos com os tempos de Lamartine Babo) ou baião, gêneros que uma Dalva de Oliveira cantava.

Diferente de Dalva e Linda Batista, como no caso de Sílvia Telles, mais na fronteira do samba-canção com a Bossa Nova, surgiria Maysa Matarazzo, depois simplesmente Maysa. Seguindo o estilo de Nora Ney e de Dolores Duran, que desaparece em 1959, ele firma-se como um expoente do gênero, tanto pelo fato de, como Dolores, cantar em outras línguas quanto por ser cantora e compositora.

Essa postura cool era a nova forma de fazer canção, 'tanto' que Dick Farney 'suavizou' Caymmi em "Marina", que virou uma signature song bem ao seu estilo, da mesma forma com "Alguém Como Tu" (de José Maria de Abreu) ou "Outra Vez" (de Tom Jobim), tema de um Jobim pré-Bossa Nova, e que seria reinterpetada por João Gilberto no seu segundo disco e na famosa apresentação no Carnegie Hall, em 1962.


7. CONSIDERAÇÕES FINAIS


Observando-se assim, teríamos aqui, a partir do livro de Ruy Castro, A Noite do Meu Bem, a possibilidade de vislumbrar uma crônica de costumes cuja trilha sonora foi o samba-canção já num processo de mistura e a triagem estética que concebeu uma variante mais cool do samba-canção que, noves fora, é o cerne do livro. Ruy castro não tinha como não passar a limpo toda uma geração e tendências e vertentes dentro do próprio gênero mas, sem dúvida, o seu foco está justamente, mesmo não querendo realizar uma tese, em analisar essa vertente que Rocha Brito analisa em Balanço da Bossa (CAMPOS, 1974): o samba-canção da zona sul e a forma como ele iria influenciar a Bossa Nova, de certa forma “positivamente” e “negativamente”.

Positivamente porque, como ele mesmo explica, o bebop influenciaria aqueles intérpretes e compositores nessa fase. Pianista, além de cantor, Dick Farney, segundo Rocha, se designava um cantor de bebop. Mesmo uma década antes da Bossa Nova, ele já parecia “moderno” demais para o que se produzia nos anos 40 (BRITTO apud CAMPOS, p. 18). Como dissemos acima, sues leituras de canções como “Marina” eram, antes de tudo, jazz como samba-canção. Como lemos em Chega de Saudade, mesmo que inicialmente Ruy Castro inicialmente ‘renegasse’ o samba-canção em favor da Bossa Nova, era latente a forma como esta sairia daquela.

Negativamente porque, como muitos músicos disseram, o samba-canção, nos estertores dos anos 50, já havia chegado a um limite onde uma nova música se insinuava e não era naquela moldura de gênero que ela poderia florescer. Muitos compositores, como Bôscoli e Menescal, ao defender a nova música taxavam o samba-canção de quadrado.

Outro fator que não pode ser deixado de lado: muito da lírica, mesmo dos samba-canções “modernos” tinham uma lírica que parecia agradar mais a ouvintes adultos, que tinham condições de comprar long-plays de pés de palito e que transformaram Copacabana em seu reduto carioca justamente porque ela era o recanto da boemia bem vestida. Enfim, um universo boêmio, de casais já na faixa de trinta anos e que necessariamente não eram oficialmente casais, e que saíam das boates direto para garçonieres. Daí decorre tanto o fato de que a zona sul, naquele tempo, tinha essa mística (Ruy Castro, ao comentar “Teresa da Praia” didaticamente pontifica que a letra se justificava, já que o Leblon, que aparece na letra era, naquelas priscas eras, o paraíso do “sexo á milanesa”.

Em 1956, quando Jobim e Vinícius encontram-se “oficialmente” no mítico bar Vilarino (bar que existe até hoje, na rua Calógeras, bairro do Castelo, centro do Rio) e iniciam uma parceria histórica, o samba-canção resistia nesse impasse: havia um elemento modernizante na nova produção mas ela, ao mesmo tempo, havia atingido um limite em termos de gosto de público. O movimento (como quer Tinhorão, ao invés de caracterizá-lo como gênero) Bossa Nova acabou sendo a síntese dessa dialética estética, onde a temática iria mudar — visando propositalmente ou não, mas composto na perspectiva de compositores jovens para um público idem daquela ambiência noturna para o dia, o mar, enfim, uma mudança de imaginários.

A Bossa vingaria como uma substituta ao samba-canção com vias, dentro da perspectiva teórica de Augusto de Campos, de uma linha evolutiva que iria culminar no caldeirão cultural do Tropicalismo? É uma polêmica que, como citamos no começo do artigo, foi pontificada por José Tinhorão: num ensaio de estilo sociológico mas, este sim, segundo Caetano Veloso em Verdade Tropical (1997), algo como um marxismo de pacotilha em que a Bossa Nova aparecia, segundo ele, como submissão cultural ao modelo americano e, por outro, como apropriação indébita
da cultura popular pela classe média.

Era a defesa articulada do ideário nacional-popular e que permeava todos os julgamentos dos esquerdistas brasileiros. Veloso tomou as dores da Bossa Nova e escreveu um artigo questionando as posições de Tinhorão que, ao mesmo tempo em que parecia negligenciar todo um manancial informativo e histórico por conta de um desdém tanto pelo samba-canção (que ele, assim como Adorno investia em Schönberg com relação ao seu dodecafonismo) acreditava que o verdadeiro samba-canção resistia apenas nas composições hebdomanárias de sambistas como Nelson Cavaquinho e Cartola, que só iriam ao disco nos anos 70, já no fim da vida, quando o próprio samba-canção havia se desvanecido na MPB e a sua música restava mais como um atavismo do próprio samba (pela forma como era tocado e interpretado) do que especificamente o que seria o samba-canção “verdadeiro”.

Aliás, se o próprio João Gilberto falasse sobre essa polêmica (ninguém nunca perguntará e ele nunca responderá), ele responderia tocando as músicas do seu primeiro disco, onde desfilam desde coisas “modernas” como as composições de Menescal e Bôscoli como “Lobo Bobo” quanto coisas realmente antigas, como “Aos Pés da Cruz” (samba-canção tradicional e grande sucesso na voz de um ídolo dele, Orlando Silva, revisitado com o “violão gago” que Tinhorão chama à forma do músico baiano de tocar ‘diferente’ ou “É Luxo Só” (Ary Barroso), que é puro samba.





FONTES PESQUISADAS

AUGUSTO, Sérgio. Este mundo é um pandeiro — A chanchada de Getúlio a JK.
São Paulo: Companhia das Letras, 1989.
CASTRO, Ruy. Chega de Saudade. Companhia das Letras, 1990.
_________ . A Noite do Meu Bem. Companhia das Letras, 2012.
CALDAS, Klecius. Pelas Esquinas do Rio — Tempos idos… e jamais esquecidos.
Rio: Civilização Brasileira, 1994.
CAMPOS, Augusto de. Balanço da Bossa e outras bossas. Perspectiva, 1974.
CRAVO ALBIN, Ricardo. Dicionário Houaiss ilustrado — Música popular
brasileira (criação e supervisão geral). Rio: Paracatu, 2006.
LIRA NETO. Maysa — Só numa multidão de amores. São Paulo: Globo, 2007
SILVA, Walter (Pica-Pau). Vou te contar — Histórias da música popular
MARIA, Antônio. Jornal de Antônio Maria. Organização de Ivan Lessa.
Rio: Saga, 1968.
brasileira. São Paulo: Códex, 2002.
MATTOS, Izilda Santos de. Dolores Duran. Experiências Boêmias Em Copacabana nos Anos 50. Bertrand Editorial, 1997.
SEVERIANO, Jairo. Uma história da música popular brasileira — Das origens à
modernidade. São Paulo: Editora 34, 2008.
SEVERIANO, Jairo; HOMEM DE MELLO, Zuza. A canção no tempo — 85
anos de músicas brasileiras. Vol. 1: 1901-1957. São Paulo: Editora 34, 1997.
______. A canção no tempo — 85 anos de músicas brasileiras. Vol. 2: 1958-1985.
São Paulo: Editora 34, 1998.
TINHORÃO. José Ramos. Pequena História da Música Popular Brasileira. Círculo do Livro, 1980.
TATIT, Luiz. A canção: Eficácia e Encanto. Ed. Atual, 1986.
_________ . Semiótica da Canção: Melodia e Letra. Ed. Escuta, 1994.
_________ . O Cancionista: Composição de Canções no Brasil. Edusp, 1996.
_________ . Musicando a Semiótica: Ensaios. Ed. AnnaBlume, 1997.
_________ . Análise Semiótica Através das Letras. Ateliê Editorial, 2001.
_________ . O Século da Canção. Ateliê Editorial, 2004.
VELOSO, Caetano. Verdade Tropical. Companhia das Letras, 1997.

Tuesday, November 14, 2017

A Importância de ser Noel


Noel por Noel


Numa de suas aulas de história da música, o professor Celso Loureiro Chaves fez uma comparação que eu nunca inha pensado em fazer: a de associar Gershwin com Noel Rosa. Ele inclusive aludiu ao fato de que os dois eram da mesma geração. Claro que o Gershwin era um pouco mais velho, nasceu em 1898, enquanto Noel era de 1910, muito embora ambos tenham morrido quase ma mesma época, em meados de 1937.

Realmente, essa comparação tem algo de lógico. Muito se compara Jobim ao autor de "Porgy", mas seu duplo brasileiro é o Poeta da Vila.

Não se se é o nosso inexpugnável complexo de vira-latas que nos impede de fazer esse tipo de comparações, considerando-as esdrúxulas, já que um compositor é norte-americano e escrevia números para musicais da Broadway em Nova Iorque, enquanto o outro era de Vila Isabel, no Rio de Janeiro, e era conhecido como aquele rapaz trêfego que sempre batia ponto ora no rádio, ora nos arcos da Lapa ou no café Nice, no centro da Capital Federal.

Noel praticamente definiu o gênero samba canção mas sua música teve que ser defendida com unhas e dentes pelas décadas seguintes pelas suas maiores intérpretes, Marília Batista e Aracy de Almeida, que tanto o regravariam, pelas décadas seguintes. Tanto que a música de Noel ficou eternamente associada às duas. As novas gerações já tinham os seus novos compositores, Alberto Ribeiro, J. Cascata, entre outros.

O próprio Noel Rosa, não me recordo quem disse: no seu tempo, ou, mesmo tempos depois de sua morte, era lembrado não como grande compositor - ou o grande cancionista, como se diz hoje. Era lembrado como um cara de rádio, não mais do que um contra-regras e um notório boêmio.

Aliás, Noel não era o único a sofrer esse tipo de lapso, de esquecimento histórico. Há os que morreram em vida por muito tempo, como Cartola, que só foi ser redescoberto e levado ao disco quase nos últimos degraus da vida (como diria Nelson Cavaquinho), nos anos 70.

A música de Gershwin era da Broadway. Só anos mais tarde é que ela se plasmaria como standards de jazz e como temas imortalizados por cantores como Sinatra. Por conta disso, Gershwin nunca saiu de moda.

Nos anos 50, 60, uma nova safra e um novo estilo de samba-canção parece ter suplantado Noel. Sua música não era reproduzida nas novas gerações como acontecera com Gerswhin. A música de Noel não virou standard nem dos grupos de samba-jazz que surgiram após o advento da Bossa Nova, a partir dos anos 60. Noel era tão fora de moda quanto um soneto parnasiano. Por que Noel não virou standard como Gershwin?

Quando, em 1966, Chico Buarque foi entronizado como o "novo Noel", seus fãs provavelmente não conhecessem um por cento do repertório do Poeta da Vila, cuja produção parecia coisa do passado, restrito ao repertório de intérpretes idem, como Carlos Galhardo, Almirante, Nuno Roland, Mário Reis e outros.

(Um parêntese: Na mesma época, Maria Bethania gravou um extended-play com canções de Noel (RCA, 1965), em parceria com Rosinha de Valença, mas não valeu. Bethânia sempre soube das coisas)

E a própria Bossa Nova, como ocorrera com um Ary Barroso, não o reabilitara: João Gilberto só iria gravar Noel nos anos 90, com "Palpite Infeliz". Quando um songbook do autor de "Feitiço da Vila" surgiu, no fim daquela década, Noel parecia algo como um elo perdido. Talvez o problema não fosse só dele.

De fato, numa época em que se emulava o samba sob a forma de pagode, um samba como "De Babado" ou "Conversa de Botequim" parecia algo pretérito, algo quase com fumos de lenda, de algo mais avoengo e defunto que as modinhas de Caldas Barbosa ou a "Lua Branca" de Chiquinha Gonzaga.

Mas, se sua obra fosse revisitada, talvez descobríssemos que Noel Rosa, muito antes de Alfs, Farneys e outras bossas mais modernas, definiu o gênero samba-canção como ninguém em seu tempo, de tal forma que, se não fosse por ele, o gênero, que ganhou uma nova cara com Aracy Côrtes, talvez, talvez sem Noel Rosa, ainda estivéssemos no tempo de Sinhô, cantando coisas como "Papagaio louro/do bico dourado/tu/que falavas tanto/por que agora vives calado?" ou coisas ainda mais castiças, como "O, pé de anjo/és rezador/tens um pé tao grande/que és capaz de pisar/Nosso Senhor".

Gershwin produzia para o Broadway, sua música ficaria restrita à Broadway. Mas, como a rua 52 não ficava longe dali, não era difícil que aquele tipo de canção, que não era propriamente jazz, acabasse se tornando cavalo de batalha por centenas de milhares de músicos do estilo nos anos seguintes. Gershwin nunca saiu de moda.

Porém, ao mesmo tempo em que ele compunha para aqueles musicais, ele não estava sozinho e havia uma indústria musical por trás dele, ou de Cole Porter. A música deles tinha a capacidade de se propagar de forma espantosa.

No caso de Noel, sua música, ao contrário de Sinhô, não ia para a Praça Tiradentes. Ia para o disco, ou então para o rádio (ou ambos). Porém, não existia uma indústria cultural em formação, como nos Estados Unidos dos anos 40. Como acontecera com as marchinhas dos anos 30, aquela música rapidamente desapareceu nas poucas cópias de discos que restaram ou sumiram pelo éter.

Porém, se o criador de "An American In Paris" foi grande, ele não poderia ser considerado o compositor que definiu um estilo de se fazer canção popular na américa: o catálogo da grande songbook americano tinha uma paternidade diversa. No caso brasileiro, é possível dizer que ele, Noel Rosa, teve, para a canção brasileira, um papel mais decisivo e preponderante do que Gershwin para a música norte-americana. Nem é o caso de querer apontar qual dos dois é o melhor. Isso sim seria tarefa inútil.

A questão é que Noel teve e tem uma importância para a MPB que lhe foi omitida, ao passo que um Gershwin não precisou muito para tornar-se um dos maiores compositores ianques do século passado e, com naturalidade, ter o seu repertório perpetuado de forma natural e duradoura.

De fato, Noel emprestou ao samba-canção uma nova poética, uma linguagem mais popular que um "Ai Ioiô" apenas sugeria. Faltava um compositor que colocasse o gênero num status de maioridade. Ele foi quem nos deu, como diria Gilberto Gil, régua e compasso. Se Sinhô foi o nosso João Batista da música, Noel foi o nosso messias. Para a músic brasileira, Noel foi mais do que o nosso Gershwin. Foi Gershwin, Porter, Irving Berlin, tudo ao mesmo tempo, mas o nosso complexo de vira-latas não foi capaz de detectar.

Que nos desculpe Augusto de Campos, mas não podemos falar de linha evolutiva da Música Popular Brasileira sem Noel Rosa.

Tuesday, November 07, 2017

Asfalto Selvagem: uma parábola



Asfalto Selvagem é provavelmente mais lembrada por causa da primeira parte, que teve diversas adaptações para o cinema e a tevê desde que foi lançada em livro, no começo dos anos 60.

Único folhetim de Nelson Rodrigues assinado sem pseudônimo (os anteriores foram publicados com o nome de Suzanna Flag), a obra, em seus 122 capítulos, é quase que uma suma teológica do autor pernambucano.

Muito do que encontramos tanto na suas crônicas (esportivas, confissões e memórias) quanto em seu teatro, principalmente as tragédias cariocas, e seus contos de A Vida Como É... estão plasmados em Asfalto Selvagem.

A primeira parte, que conta a juventude de Engraçadinha no espítito Santo, tem todos os elementos de uma tragégia. O pai de família, um político importante, tem um filho com a cunhada (eis aí um elemento recorrente no teatro de Nelson Rodrigues), Sílvio. Quando ela morre, ele adota o filho legitimo como sobrinho. Com o tempo, Engraçadinha, sua filha, apaixona-se pelo irmão, numa situação complexa onde ambos estã respectivamente noivos de pessoas diversas, e o patriarca da família idilicamente deseja casá-los na mesma cerimônia.

O desenlace se dá quando Dr. Arnaldo precisa revelar a verdade para Engraçadinha. A partir daí, ela não pode desejar o irmão que, cada vez mais apaixonado, não resiste à nessecidade de estar com ela. Quando ele finalmente descobre que não poderá mais amar sua prima, ele se castra.

Dr. Arnaldo entra em desespero e coloca toda sua sobrevivência e sua reputação abaixo com a perda do filho, que jaz moribundo num catre de hospital. O desespero do personagem tem, por incrível que pareça, um fundo autobiográfico. Em 1929, o irmão de Nelson, Roberto, foi morto por uma vítima de um artigo sensacionalista do jornal do pai de ambos, Mário Rodrigues, A Manhã.

(Nelson retornaria ao mesmo tempo do pai velando o filho morto de forma deseserada com o Dr. Camarinha, o ginecologista do livro O casamento, de 1966)

O calvário de Dr, Arnaldo ao velar o filho à beira da morte é, praticamente, uma recriação do desespero do pai vendo o filho esvaindo-se em sangue. Como acontece com o patriarca de Asfalto Selvagem, Mário não consegue sobreviver à morte do filho; Mário morre de trombose dias depois, fazendo com que sua família desmoronasse, passando por anos de privações e pobreza. dr. Arnaldo comete suicídio.

Num desdobramento surpreendente, Engraçadinha resolve criar uma espécie de contrato nupcial com um noivo que ela não deseja enquanto ele, segundo ela, tem um sentimento vago com relação ao seu afeto. Em suma, ele seria fruto de um típico casamento de conveniência (nem o sogro realmente topa o genro), No entanto, essa conveniência permite que Engraçadinha - grávida de Silvio - parte para a capital do Rio de Janeiro a fim de começar nova vida.

Nos vinte anos seguintes, Engraçadinha sublima seu desejo sexual e a lembrança do amor de sua vida sendo dona-de-casa dedicada e vivendo em função de seus filhos. Esse equilíbrio só é quebrado quando um antigo promotor capixaba amigo do pai de Engraçadinha, dr. Odorico, em pleno centro do Rio, tem a visão de Engraçadinha com roupas de colegial. Ao interrogá-la, descobre que a menina é filha dela, e que sua familia mora em Vaz Lobo, na zona leste da capital.

Dr. Odorico, de certa forma uma espécie de alter-ego de Nelson Rodrigues àquela altura, jornalista da Última Hora e com mais de três décadas de experiência em jornal, usa o personagem como forma de dialogar, de forma bem homorada, com toda a vida intelectual e a opinião pública da época.

Misturando ficção e realidade e personagens idem, ele faz um retrato de época (já que tudo e todos que desfilam na segunda parte do folhetim eram reflexo que se plasmava na opinião pública da época, desde a polêmica do filme Les Amants até o cotidiano de gangues de filhos de ricos (chamados de "juventude transviada") que promoviam festas regadas a drogas como lança-perfume e curras.

Tudo isso passa pelo universo da segunda parte da trama, onde dr. Odorico parece ser o foi condutor: ele é quem descobre Engraçadinha e a faz retornar ao passado enquanto ele tenta um frustrado idílio com ela. Embora apaixonado pela filha do Dr. Arnaldo, ele não deixa de transparecer ao leitor que tem, antes de mais nada, segundas e terceiras intenções: ele tem uma esposa, a qual rejeita, e tenta cortejar Engraçadinha com o único intento de levá-la a uma garçonniere, algo que era muito comum na época, quando ainda não existiam motéis.

Odorico busca a intimidade com ela mas encontra resistência não em Zózimo, marido de Engraçadinha, que a deseja ardentemente mas é frustrado por causa do 'contrato nupcial' onde, ao mesmo tempo em que seu desejo é interdito pela 'frieza' de sua esposa com relação a ele, que é obrigado segundo ele a beber por causa disso, e procurar casos fora do casamento que, com efeito, não despertam ciúme algum em Engraçadinha.

De certa forma, Odorico acaba tornando-se presença constante na vida da família de Engraçadinha. Zózimo, no entanto, não sente ciúme algum ante as investidas do juiz capixaba.

Quem realmente oferece resistência é o filho mais velho dela, Durval que, por fim, termina por escorraçá-lo da vida deles. O rapaz, por sinal, tem os traços idênticos ao do pai Sílvio, como Silene tem a duplicidade em Engraçadinha - tanto que este teme, como ocorrera entre ela e o "primo", que ambos se apaixonem. No entanto, como se fosse um fantasma real do pai (ao contrário do que acontece na primeira parte, o segredo de que Durval é filho de incesto e escondido de todos e sequer Zózimo o suspeita) que se interpusesse entre a mãe o mundo, ele impede que Engraçadinha tenha um novo amor.

Nesse sentido, ele intercede ao expelir Odorico da vida deles por fim, mas nesse trajeto onde Engraçadinha sai de seu casulo auto-imposto pela firme decisão de entregar-se pelo amor dos filhos, ela finalmente apaixona-se não por Odorico, mas por um alto funcionário do Itamraty que a interpela na rua. De forma inusitada (num rapto) ele consegue seduzi-la e fazer com que Engraçadinha finalmente apaixone-se novamente, mas como se fosse a primeira vez. Ela tenta fugir, alegando que é casada e tem filhos mas, por fim, cede (recurso tipicamente rodrigueano, onde os personagens, em geral, tem sempre, como diria Flora Sussekind, um fundo falso).

A única pessoa que descobre a infidelidade é Letícia, prima de Engraçadinha, que estava no Rio à procura dela, por quem nutria um amor desastradamente declarado. Ao ser rejeitada, passa a cortejar Silene. Rica, disposta a auxiliar o namorado da filha da prima, envolvida com um assassinato cometido em legítima defesa, ela promete auxiliar com as escusas da defesa. Contudo, dessa forma Letícia tenta chantagear Engraçadinha como extrema forma de poder tê-la novamente ao seu lado.

Engraçadinha, depois de entregar-se de corpo e alma a um novo amor, já nao vê sentido nenhum na vida que viveu por todos esses tempo, nem pela família, muito menos pelo marido e, obviamente por Odorico que, também de forma extrema, tenta marca um encontro amoroso com ela.

No fim, eles encontram-se no escritório dele. Eles discutem após ele roubar-lhe um beijo. Depois que ela sai, ele jacta-se aos cohecidos de ter possuido-a ali mesmo. Ou seja, este era o gáudio do dutor que usava de toda sorte de carteiraços como escudo de sua posição.

E naturalmente Nelson Rodrigues, como faz abertamente uma debochada crítica à forma estilo A Montanha dos Abutres da imprensa brasileira nos personagens jornalistas do folhetim, como Tinhorão, ele mostra em Odorico, um típico caso de membro da dministração pública que vive de pequenas corrupções e de abuso de poder.

Talvez seja essa a sub-narrativa mais interessante ao melodrama da segunda parte de Asfalto Selvagem, e que faça com que, ao ser cotejada com os dias de hoje, demonstre toda a atualidade tanto do contexto nacional da época quanto às opiniões de Nelson Rodrigues à época, embutidas nas falas dos diversos personagens. Claro que noves fora os ataques gratuitos à desafetos, como Guimarães Rosa (a quem chama o seu Grande Serão a pirâmides de confeitaria), Gustavo Corção (que já havia sido alvo de ataques sutis em A Vida Como Ela É), Alceu Amoroso Lima ( um ginecologista e fazedor de anjos do livro chama-se, justamente, dr. Alceu), além de brincadeiras com amigos seus, como Otto Lara Resende (que teria tal homenagem continuada em peça homônima).

Monday, November 06, 2017

Sabino ou o Édipo Moderno



Publicado em 1966 (apreendido por uma portaria da Justiça e liberado apenas um ano depois), O Casamento, de Nelson Rodrigues é o único romance escrito somente para ser publicado como livro (os anteriores foram originalmente publicados em folhetim).

O livro conta a história da família de Glorinha, noiva de Teófilo, e a famila daquela, às vesperas do casamento de ambos. O personagem principal, no entanto, é o pai da noiva, sabino. Dono de uma grande imobiliária, de repente ele vê sua vida mudar quando move mundos e fundos para levar sua filha menor e preferida ao altar.

Em determinado momento, um personagem diz que toda família possui as suas trevas interiores, das quais e melhor não procurar provocá-las. Algo assim. Isso me lembra uma cena do Édipo Rei onde Jocasta, chocada ao notar que seu marido quer descobrir afinal qual é a sua origem. Com sua intuição feminina, ela diz mais ou menos a mesma coisa: pede para que o rei de Tebas desista de seus intentos.

Pois é interessante se notarmos que, tanto em Édipo Rei quanto em O Casamento, temos justamente essa questão. O protagonista decide desvendar um mistério, depois de instigado por alguém. Na peça de Sófocles, temos Tirésias. Ele e quem afirma: tu és o asssassino. No livro de Nelson Rodrigues, o amigo de Sabino, dr. Camarinha, revela um segredo: o genro do pai de Glorinha é um pederasta. Foi flagrado aos beijos com um ajudante do médico, Zé Honório.

A partir dai, ocorre um processo onde Sabino se vê numa situação de total estranhamento. Descobre que sua filha não ama o noivo de verdade - ama um outro (ela revelaria, no fim da história), seu genro é pederasta. Ao mesmo tempo, sendo considerado (pelo padre amigo da família) um homem "de bem" e, de fato, ele zela pela sua reputação que, ao longo da história, como se numa catarse proustiana, Sabino, em retrospectiva e em flashbacks, demonstre ser justamente o contrário.

Ele seduz a secretária, Noêmia. A convida para um programa numa garçonniere. Durante o encontro, ele inconscientemente declara que ama sua filha Glorinha; também revela, provavelmente influenciado pelo caso de Teófilo e Zé Honório, que teve um caso homossexual - que depois, diz à Noêmia que aquilo que ele disse era tudo fantasia.

Na trama paralela, Camarinha perde o filho, Antônio Carlos, num acidente que, na verdade, é um suicídio. Seu filho, arquetipicamente da geração "juventude transviada" (como eram chamados os jovens ricos que cultivavam uma espécie de hedonismo que, na maioria das vezes, ia parar nas páginas de polícia). Ele descobre, através de Glorinha, que ela fora deflorada por ele numa cena na casa de Zé Honório onde este, afrontando seu pai inválido, faz sexo diante deste, provocando a morte de sei pai. Nelson Rodrigues demostra que, confrontado com o beijo no consultório, a cena é naturalmente muito mais hedionda.

Como acontece em Édipo Rei, aos poucos, Sabino, o heroi, aos olhos do leitor, começa a cair vertiginosamente. Numa passagem, o Monsenhor (que, em seu papel de pároco, divertidamente mais parece uma mímese de rábula psicanalista) diz que, se não fosse nosso sentimento de culpa, estaríamos de quatro uivando para a lua (na verdade, essa frase é um dos leitmotif de Nelson Rodrigues em toda a sua obra).

Ao passo que Sabino é confrontado com todas essas situações, ele passa questionar não os outros, mas a si mesmo. No espelho, ele vê um ser hediondo. É quando Glorinha o convida para um passeio além da Avenida Niemayer (nos anos 50, a região de São Conrado e a Barra eram, como diz Ruy Castro, o paraíso do sexo á milanesa). Na praia, ela "seduz" o pai. Conta que sua mãe, Eudóxia, havia lhe dado um beijo de língua. Diz que ama um homem proibido. Súbito, Sabino beija a filha na boca.

Nesse meio tempo, na imobiliária, Noêmia, a secretária, é assassinada pela amante, Xavier, por ciúmes. Ele, mais tarde, mata a esposa e comete suicídio. Tudo isso às vésperas do casamento, que ocorre normalmente.

Porém, na noite anterior, aos outras filhas de Sabino, chantageiam o pai ao descobrirem um episódio do passado - que ele havia deflorado uma menina que seria a demoiselle na cerimônia, justamente a menina que ele implicara, chamando-a crualmente de "epilética" (fora justamente durante um desses ataques que ele teria abusado da moça).

No fim, o Monsenhor, que seria o padre do casamento, passa na casa de Sabino para avisar que não iria fazer discurso algum, mas diz, como um segundo Tirésias: todos devem assumir a sua lepra. E diz a Sabino: "assuma a sua lepra".

Ao descobrir que Noêmia havia sido assassinada, no último capítulo, Sabino, como um Édipo, assume a sua lepra. Existe um crime mas nao existe o algoz. Então, de forma surpreendente, como se culpado e julgando-se como tal, Sabino "assume" a autoria da morte da secretária. Mas o casamento, a despeito de tudo, acontece. Como diz um personagem do livro: "um casamento não se adia".

Sabino aqui parece funcionar como uma espécie de criminoso retroativo. Ao contrário de Édipo, ele não é o assassino de fato (como de fato já havia Sábato Magaldi analisado a forma como Nelson Rodrigues resolvia certas questões da tragédia onde não existia nessecariamente a mão de uma maldição de família ou do destino) mas decide, no fim das contas, escolher um falso cadafalso para onde possa finalmente expiar sua culpa ou, como diz o Monsenhor, assumir a sua lepra.

Sunday, October 15, 2017

Quixote e o Maluco Imaginário


Dom Quixote por Doré


Acho (começar um texto com "acho" já é altamente comprometedor) que existem várias discussões curiosas na história da literatura, entre elas se houve ou não um adultério em Dom Casmurro ou se Dom Quixote ficou ou não ficou maluco.

Na verdade, penso (melhor que acho) que eu estou sozinho na teoria de que o Cavaleiro da Triste Figura. Acho que centenas de pessoas têm como ponto pacífico que ele ficou maluco. E, de certa forma, a própria conduta dele no romance - sempre envolvendo-se em confusões por conta de sua insanidade, para todos os que convivem com ele, a sobrinha, a criada, o cura, etc, o têm como o maluco e ele age como um maluco.

Mas para mim, ele é a metáfora do personagem apaixonado, seja por qual coisa. Paixão por política, por futebol. Quando a gente sai da vida e trava combates pela vida, a gente se esquece da realidade de ser finito e limitado. Se essa loucura é uma forma de sublimar a dor de estar vivo, então ficar maluco como Dom Quixote é uma forma de despertar para uma realidade malucamente salutar. É com ser uma pessoa quixotesca.

É uma pessoa que colocou o coração na ponta da chuteira por uma ilusão, e a sua trajetória, ou a trajetória que Cervantes propõe para ele é de acreditar nos ideais de cavalaria (que todos acham que isso foi por culpa do excesso de leituras, algo que não deixa de ser curioso em Cervantes, porquanto ele tinha noção de que a Inquisição queimava livros da mesma maneira que seus amigos o fizeram com a sua biblioteca, ou seja, Cervantes parece debochar dessa opinião, que existe até hoje, de arte "degenerada" ou que seja prejudicial à alguém ou às pessoas em geral, desculpem pelo parêntese gigantesco).


Dom Quixote vive a realidade dele vivendo o seu imaginário e, para os demais, ele é uma pessoa não vamos dizer maluca (na interpretação delas) mas 'anacrônica', que vive fora do tempo - que eu acho (!) que ele é um maluco mas que vive numa ilusão temporária provocada por algo estranho, que é o amor por Dulcinéia. Quixote cria a ilusão de uma mulher para que ele viva o seu amor cortês mas, no momento em que ele funda essa ilusão sobre isso, ele se torna dependente dessa ilusão.

Tanto que ele incorre em variados feitos, como o de libertar os galeotes (e ser punido por eles por querer que eles declarem à ela a sua façanha). Essa é uma cena engraçada, porque ele apanha da turba, a despeito de ter libertado eles (e um dos galeotes ainda rouba o ruço do Sancho Pança que, mais adiante, é recuperado, graças a Deus).

Pois falando no Sancho, ele resolve entrar na maluquice de Dom Quixote, e comete um engodo que é fundamental para o entendimento do que eu quero dizer. Dulcinéia não existe, mas ele recebe a incumbência de encontrá-la. Sancho naturalmente não a encontra, mas mente a Dom Quixote que a viu. No Livro 2, o ajudante do Cavaleiro da Triste Figura fica na saia justa de levá-lo ela. Ele aponta para uma aldeã. Quixote fica chocado ao descobrir que Dulcinéia é uma reles pessoa do povo.

A partir dai, ele acredita que ela foi encantada. Porém, como se sabe, no segundo livro, Cervantes espelha o primeiro, criando uma ilusão para o leitor, de que a história do primeiro livro foi publicada e que Dom Quixote é um personagem real, uma 'celebridade' e que as pessoas o conhecem por causa da publicação da primeira parte da obra.

Isso não faz muito sentido para o leitor, mas ele vai embarcar na aventura do segundo livro, onde Quixote conhece um rei e uma rainha que leram o livro, sabem do engodo de Sancho e embarcam na história de que ela existe e foi encantada. E são cúmplices em continuar enganando nosso herói, criando uma Dulcinéia fajuta que, encantada, cabe a Sancho ser imolado com centenas de milhares de chibatadas para que ela seja desencantada.

Quixote vive pelo amor à ela e a esperança de que finalmente possa vê-la. Mas, ao passo da leitura, você percebe que tanto isso é uma tarefa inútil para ele, e o leitor já sabe que ele não vai encontrá-la, já que, com efeito, ela não existe. Mas ela existe para ele até o fim.

Aí que fica a questão: onde começa a loucura, termina a imaginação e o imaginário? Dom Quixote ficou louco mas era uma loucura temporária? Ele age como maluco quando confunde um moinho com um dragão um um bordel com um castelo. Mas, fora isso, a conduta dele é 'reta', talvez até mais timorata do que a maioria das pessoas que o cercam (e que queimam livros).

Como disse alguém, ele sonha e viva o real do cotidiano, e o interpreta como signos de uma realidade anacrônica. Poderíamos dizer que ele vive mais um delírio do que a loucura completa.

A decadência final de Dom Quixote acontece quando esse mundo criado pelo seu imaginário se acaba. Ele tem uma epifania quando descobre que Dulcinéia del Toboso, criação do seu delírio, não existe. Ele fundou toda essa ilusão em algo que não existe. Quando ele racionaliza isso, é como se ele puxasse o próprio tapete. A existência dele, ou a sanidade de viver numa ilusão de cavaleiro era fincada nessa realidade que ele criou. A triste loucura final de Dom Quixote, não sei se Cervantes iria concordar comigo, é voltar à razão. Quando ele desperta do sonho, ele morre. É como levar um fora final: a partir dali, a vida do Cavaleiro da Triste Figura não faz mais sentido - inclusive para o leitor que, depois de páginas e páginas, já se acostumara com sua insanidade, e fica tão pendurado no pincel quanto Dom Quixote.

E agora? Dom Quixote é um maluco ou apenas delira de forma sadia diante de uma realidade vazia e opressora?

Tuesday, September 05, 2017

Missa do Galo



Nunca pude entender o fim do conto "Missa do Galo", do Machado de Assis.

Sempre que eu o releio, é como se eu quisesse acreditar que, um dia, o rapaz da história vai entender os sinais de Dona Conceição, declarar-se para ela - e por ela será correspondida. A partir daquela noite, os dois teriam um breve romance e, logo depois da morte do escrivão, iam viver felizes para sempre em Mangaratiba.

Ao mesmo tempo, sempre que repasso a caracterização de D. Conceição, mais eu concordo com o Nogueira: ela era uma mulher boa, muito boa.

Fiquei muito tempo pensando nisso. Até que, certo dia, sem razão aparente, me toca o telefone. "Deixe que eu atendo. Alô?"

"Boa noite, é o senhor M?"
"Sim, que deseja?"
"Aqui é o senhor C".
"E qual seria o assunto?"
"Bem, eu ouvi dizer que o senhor estava procurando uma solução para o seu problema".
"Ué, mas que problema?"
"Ué, o da Missa do Galo".
"Ah", eu ri. Mas logo fiquei perplexo: "ei, mas como o senhor sabe da Missa do Galo?"
"Eu soube que o senhor queria achar uma solução para o caso. Bem, eu tenho a solução".

Claro que bati o telefone na cara do homem. Só podia ser trote. Ou não, já que eu nunca tinha contado essa minha história da Missa do Galo com ninguém.

Fiquei olhando para o telefone, entre arrependido e envergonhado com a pessoa que me ligou.

Eis que toca o telefone. Eu, que estava ainda do lado da mesinha do aparelho, pronto atendi: "alô?"

"Eu sabia que o senhor iria se arrepender de ter desligado na minha cara, então resolvi ligar de novo".

"Espere", respondi, mais confuso do que envergonhado. "Me dê o seu número. Deixe-me reconsiderar e, quando puder, eu ligo novamente, está bom assim?"

"Bom", ele respondeu. "Se é assim, seja como o senhor quiser".

Duas semanas depois eu retornei a ligação, e ele me deu o endereço do consultório. Era na Galeria Malcon, no centro. Quando vi o número da rua bater, pensei: "um consultório desses só poderia ser na Galeria Malcon".

Quando bati a porta, atendeu um rapaz pálido, alto e muito magro, todo de negro, mas muito, muitíssimo parecido com o Cesare do Dr. Caligari.

"O senhor é o senhor C?", perguntei.

"Não", ele respondeu. "Pode entrar".

Qual não foi minha surpresa quando o Dr. C aparece, meio roliço, de fraque, cartola e com uma barba e olheiras de cinema mudo.

No meio da conversa, enquanto trocava as pernas por debaixo da escrivaninha, ele me explicou:

"Eu posso dar a você a chance de mudar a história. Mas você deve entender as consequências disso".

"Ué, e quais seriam as consequências disso que o senhor está qurendo dizer?", perguntei.

Ele foi taxativo:

"Ué, simplesmente mudar toda a crítica literária dos últimos cem anos. O que pode aconteceria com a Ilíada se Aquiles não matasse Heitor?"

"Bem, aí provavelmente. Aí não teria cavalo de Tróia".

"E nem mesmo a Ilíada, nem Eneida, e muito menos Os Lusíadas", completou.

"É mesmo" murmurei.

"E se Orfeu não tivesse olhado para trás quando saía dos infernos?"

"Eita, agora o senhor me pegou" respondi, intrigado.

"Muito bem, mas eu sei que você me entende. Eu tenho a solução para que o senhor mude a história, essa história. Mas cabe ao senhor saber se quer que a história seja mudada ou não".

"Mas Dr. C (quase chamei ele de Dr. Caligari), eu tenho certeza que essa história pode ser mudada (parecia não escolher as palavras) Se o senhor está me oferecendo a oportunidade, então sabe qual é a minha escolha"

Enquando conversávamos, o ajudante do Dr. C parecia estar descendo com a Arca de Noé de um aposento fechado nos fundos do consultório. De repente, ele abre a porta, chega até o escritório e diz, grave, com uma voz de carrilhão:

"Está pronto"

Fomos até o tal aposento. Era uma sala vazia. No fundo, tapando a única janela, havia um grande baú, com uma porção de cabos coloridos entreligados a partir do teto, parecendo um misto de confessionário e aquelas enormes caixas de orgones do Dr. Reich.

"Mas. Mas que diabos é isso", gemi.

"Ah, é uma espécie de máquina do tempo", riu de minha perplexidade o dr. C. ".

"Mas e qual é a finalidade?" quis saber.

"Bem, você pega o livro, e entra. Eu aciono aquela alavanca ali (aponta o braço miúdo para um console mal ajambrado (ou qualquer coisa que o valha à guisa de console) do outro lado do quarto, de onde saem todos os fios que vão parar na cimeira da caixa). Aí você vai parar dentro do conto ou do romance que quiser"

"Olhe, acho melhor eu"

"Veja bem" ele me atalhou. "Se você veio aqui é porque sabe que eu posso lhe ajudar. Se eu procurei o senhor, é porque eu sabia que o senhor sabia que eu poderia lhe ajudar. O senhor não tem escolha. Sei que o senhor irá fazer como naquele dia: vai me dispensar e depois irá arrepender-se. Dessa vez, não poderei fazer mais nada pelo senhor"

"Você está querendo me dizer que qualquer um que entrar ali pode virar personagem de qualquer livro?"

"Mas é claro", ele riu. "Ou você acha que. O que você quer ser? Riobaldo? Orlando? El Cid? Quer conhecer o Paraíso com Virgílio? Ou conhecer a cova de Montesinos com um pangaré? Ou".

"Espere, então eu aceito", respondi. "Mas você tem certeza que eu não vou acabar sendo desintegrado ou. Sei lá, acabar num conto do Murilo Rubião ou pior, num livro de auto-ajuda?"

"Dou-lhe a minha palavra", respondeu. "Você vai para a "Missa do Galo"

Peguei meu pequeno volume de contos do Machado de Assis (aquela coletânea da Ática, que a gente lia no colégio). Dr. C foi até o console. Minha última visão antes de ver um clarão e perder os sentidos foi a figura impassível do (ajudante parecido com o) Cesare me olhando, como se estivesse em transe.

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Quando acordei, estava deitado num catre, num quarto em estilo colonial. Levantei-me, procurei um espelho. Nem pude acreditar: eu havia me metamorfoseado em Sr. Nogueira! Ou seja, estava em 1862, na casa do escrivão Menezes. Olhei para o relógio. Quase onze horas! Não sei se era realidade ou eu estava sonhando. Mas a verdade é que eu estava dentro do conto do Machado de Assis!

Meti-me na sala de frente e fui-me às aventuras. Eis que, sem que eu esperasse, irrompe D. Conceição, de roupão branco, mal apanhada na cintura. A visão que eu tive foi indizível. Ela era mais bonita na realidade do que no livro!

"Ué, o senhor não foi?"

"Ué", respondi". "É cedo ainda, mas a hora vai chegar".

Fiquei pasmado, olhando D. Conceição. Os mesmos olhos de quem dissimulava o sono, provavelmente esperando por mim.

"Que cousa estranha ficar acordado na Noite de Natal. Não tem medo de fantasmas?"

"Bem, acho que não"

"E o que você está lendo? Não é o Dumas Pai"

"Ah, não, esse aqui é uma coletânea do Machado de Ah, não, esse aqui? Acho que é do Dumas Pai, mesmo, que cabeça a minha!"

"Então gosta de livros?"

"Claro"

"Já leu a Moreninha?"

"Ah, li no colégio há muitos e muitos anos!"

"Como, se ele saiu faz pouco tempo?"

"Ah, não, é que eu li como se tivesse livro há muitos anos"

"Ah, bom"

"Eu gosto de ler mas não tenho tempo". E ficou me olhando. Eu fiquei olhando para ela.

"Devo estar atrpalhando"

"Não, não, não! Muito pelo contrário"

"Se perder a noite, não vai acabar dormindo de dia?", perguntou.

"D. Conceição", respondi. "Tenho sonhado acordado todos os dias"

"Ah, se eu não dormir não funciono de dia. Estou ficando velha!"

Não, d. Conceição, a senhora ainda é muito jovem, tem a vida pela frente"

Ela sorriu; súbito, levantou-se e pôs-se a flanar pelo soalho. Enquanto parecia fingir arrumar aqui e acolá alguma desordem pela sala, não reparou que eu havia ficado vermelho. Então voltou, ainda sorrindo.

"A senhora sabe, nunca pude sair de noite aqui na Corte. Seu Menezes vive indo para o teatro e acho que, no fim, isso é meio sem sentido. Então achei que hoje fosse uma ocasião especial. Mas."

"Mas?"

"Mas é que, quando a senhora saiu, eu cheguei a conclusão que todas as missas são iguais. A senhora não concorda?"

"Também acho"

E ficou me olhando, curiosa, com o rosto entre as mãos e os cotovelos na mesa. A vista não era incomum para mim. Mas sei que, como que numa transfiguração, aquela seria a visão mais bela que eu jamais teria presenciado.

Longo silêncio. Então ela me perguntou:

"Você parece bobo, parece apaixonado. Gosta de alguém?"

"Quem, eu? Não"

"Ninguém?"

"Bem, gosto, ou acho que gosto. Na verdade, gostava, mas acho que ela não gosta de mim, deve me achar muito criança..."

"Ué, e como ela é?"

"Bem, ela parece uma personagem do dr. Macedo. Tem olhos bonitos, que olham bem nos olhos da gente, como se lesse os pensamentos.

"E o que mais?"

"Ela parece. Parece sonhadora mas tem um espírito bastante maduro para a idade mas, ao mesmo tempo, tem uma candura de menina, de menina que espera...”


Silêncio. Ela sorri. “E que mais?”



Bem, ela tem uns olhos grandes, uns olhos castanhos e enormes de moça que sonha, que adivinha, que indaga, que parece não saber de nada, mas certamente sabe de tudo e de tudo que gira à sua volta. Ela é tão sábia que eu diria que parece que entende até a linguagem das gaivotas. Tão apaziguada, tão invisível, mas que parece guardar um segredo no coração. Ou parece resignar-se com a vida que vive, mas sabe que existe um mundo inteiro lá fora á sua espera”.

“Hum”, diz Dona Conceição, como se retesse as palavras que ouvira. “Então ela realmente deve ser muito bonita, não é?”


Eu sorri.

“Bem, Dona Conceição”, respondi. “Ela é bonita... Mas. Mas ela não se compara à senhora...”

Nisso, seu rosto mudou, como que perplexa, quase que transfigurada. Ficamos os dois olhar perdido no do outro. Eis que, de repente, alguém bate na janela:

“Missa do Galo, Missa do Galo!”

“O seu amigo chegou”, respondeu, ainda com a expressão exangue.

“Mas”

“Missa do Galo, Missa do Galo!” insistia o vizinho.

“Não se faça esperar. A culpa foi minha, que retive o senhor aqui. Adeus”

Tudo acontecera num átimo. E lá se foi ela rumo a seus aposentos, pisando mansinho.

Ainda chocado e confuso, ganhei a rua e achei o vizinho que esperava. Guiamos dali para a igreja; eu, como um condenado pela segunda vez.


Desculpe, Dona Conceição. Dessa vez, a culpa foi minha.

Tuesday, August 22, 2017

O Circo: a Commedia dell’ arte em Chaplin



Terceira produção de Charlie Chaplin para a United Artists, O Circo (1928) é um dos mais conhecidos clássicos do ator e diretor inglês.

O filme marca pelo menos dois momentos importantes em sua carreira: o primeiro, o momento em que ele passa a sofrer a concorrência do cinema falado (O Cantor de Jazz, de Al Jolson, talvez o primeiro grande sucesso do novo gênero, havia sido estrelado quando o inventor de Carlitos terminava a produção de seu novo trabalho).

O segundo: Chaplin deixara há muito o puro e simples slapstick — ou pastelão — em favor de enredos mais complexos, transformando o seu insigne herói menos cômico e mais melodramático, característica que já se observava em A Dog’s Life (de 1918) e em The Kid (1921).

A história, ainda que cifrada no estilo do pastelão, e bastante influenciada em Max Linder, cineasta francês que possuía pontos de contato com o estilo do autor de Luzes de Ribalta, permite outras leituras. Uma, mais propícia ao universo que evoca — o mundo circense, parece a moldura perfeita para uma história que tenha vários elementos típicos da commedia dell’arte.

A Commedia

Surgida como companhia de teatro com características atávicas das antigas corporações de ofício, do final da Idade Média, a commedia dell’ arte surge em 1545, em Pádua, já com prospecto de empresa (como diz Benedeto Croce, o conceito de “arte” na idade Média aludia não à concepção moderna, mas a de arte como ofício, mister, profissão). Se no palco, tudo era improviso, nos bastidores, havia toda uma estrutura profissional implícita, tanto quanto á remuneração quanto à assistência médica.

De acordo com Angela Materno (1994), a designação commedia dell’ arte indica, portanto, um tipo de teatro realizado por atores profissionais que viviam do ofício de representar, contrapondo-se, assim, à tradição do amadorismo, predominante até então” (p.52).
Saindo dessa acepção e, ao mesmo tempo, entrando mais nela, Allardyce nicoll estende o conceito de arte dentro do ofício dos comediantes como a possuírem uma ‘habilidade especial’: além de representar, eles também eram acrobatas, bailarinos, cantores e músicos.

Em geral, as trupes tinham média de oito a doze atores (ao contrário do teatro elisabetano, as academias contavam com atrizes) e que, respectivamente, já se ajustavam aos seus papéis (com o tempo, essa mesma convenção que tematizava a atuação no palco seria fator de estagnação da commedia dell’arte, por causa do engessamento da forma teatral em si mesma).

Com a crise econômica do século XVI, companhias e academias teatrais da península abrigariam uma eclética e riquíssima mão-de-obra.

Desde resquícios atávicos de festas carnavalescas medievais até cômicos solitários (como bufões, que como todos, traziam um pouco do seu repertório, suas canções e pantomimas), o estilo entrecruza vários elementos então dispersos na Europa. Essa interpenetração de tendências e heranças sociais diversas seria importante para a sedimentação da commedia dell’arte, tanto na elaboração dos enredos das peças quanto na caracterização dos personagens.

Ao mesmo tempo em que atores vindos do povo traziam seus trejeitos típicos de classe, atores especializados na comédia clássica (Plauto, Terêncio), acrescentavam uma bagagem erudita aos textos. Foi dessa forma que, nessa pororoca cultural, segundo Ciro Ferrone, esses novos comediantes empreenderam uma reforma na base do teatro italiano, em pleno Renascimento, influenciando muitos dos grandes dramaturgos europeus entre os séculos XVI e XVIII.

Como explica Angela Materno, muito do conteúdo daquela produção teatral provinha da experiência e do cotidiano desse imenso e caudaloso coletivo, com o objetivo de uma “fixação de uma memória”. No entanto, mesmo diante de copioso legado, a commedia dell’arte buscava um princípio, baseado num roteiro, o chamado scenario ou canovaccio. A partir desse esqueleto, os atores então podiam improvisar.

O chefe da companhia era um factorum: escrevia, encenava, dirigia, ensaiava e poderia até indicar a música. No scenario, a história era quase sempre a mesma: uma história de amor — um casal que busca ficar junto mas, para tal arte, necessita superar vários obstáculos, entre eles, como quase sempre, um superior, a oposição dos pais, por exemplo.

Para correm em seu auxílio, sempre aparece algum criado — uma ama, um pajem que, com engenho e arte, tentam ajudar o jovem casal a conseguir o seu final feliz.

Nas companhias, como dissemos acima, eram marcadamente distribuídos: os velhos (pais ou patrões), os servos (os zanni), os jovens protagonistas (que não usavam máscaras quando protagonizavam comédias de amor. As mulheres, por sinal, nunca a usavam, em hipótese alguma).

O arlequim sempre era o servo (o segundo “zanni”, antecedido por Brighela) e a Colombina (junto com Esmeraldina ou Franceschina) era a serva. Havia, ainda, o elemento farsesco, o “Capitão”, personagem que dissimulava sempre algo que não era.

Dentro dessa diferenciação, as histórias eram variações desses papéis, com nomes idem. E além de conhecimentos cênicos, os atores deviam possuir uma singular bagagem linguística.

À título de caracterização, o douto falava latim; o mercador, veneziano e o falso sábio bolonhês (porque em Bolonha ficava a mais antiga universidade italiana). Já o par romântico, nesse carrossel de convenções, falavam o toscano — a língua da divina Comédia, língua de Dante, o dialeto considerado mais nobre entre os da península.

Aliás, desses, os amantes deviam ter erudição, já que estes deviam usar e abusar de frases de efeito, figuras de estilo e linguagem. Por conta disso, muitos atores obtiveram enorme sucesso: Isabela Andreine, Flamínio Scala e Diana Ponti, por exemplo, antes de atores, eram considerados grande literatos em seu tempo.

A commedia dell’arte sempre foi explicada como um teatro baseado na arte do improviso. No entanto, improvisar para eles, explica Angela Materno, significava reelaborar um infindável repertório de falas e trejeitos que eram emolduradas por uma rigorosa organização interna. Ou, por outras palavras: para ser investido da capacidade de improvisar, o ator devia antes internalizar todo um processo rígido e bem esquematizado.

“A improvisação na commedia dell’arte diz respeito, muito mais, à utilização de uma espécie de ‘técnica de montagem’.
Figura antológica e que, dentre o elenco de apoio, foi o que mais se consagrou através do tempo como o zanni mais desastrado, ingênuo e tolo mas que, no fim das contas, conseguia dar a volta por cima por conta de alguma façanha.

Angela diz que sua roupa típica remonta às festas carnavalescas da Idade Média que, por sua vez, remontam á celebrações ancestrais, como as bacanais, quando invocava-se espíritos subterrâneos. Daí a etimologia de máscara (‘espírito ignóbil’).
Por isso, o arlequim era uma espécie de entidade que mediava o mundo interior e o exterior, como um exu. Ou, por outra, era o próprio demônio. Daí vem sua máscara negra (que virou tema da famosa marcha-rancho de Zé Keti).

O filme

É sabido a influência do teatro na formação do jovem Chaplin. Tanto seu pai quanto sua mãe e irmão trabalharam em números de dança e no vaudeville.

Os primeiros anos no teatro cantado, principalmente em Drury Lane, permitiram que ele aprendesse os maneirismos dos palhaços de cena, como Dan Leno. Segundo Robinson (1986), quem o influenciou de forma decisiva foi Fred Karno, quando ele esteve comissionado em sua Companhia.

O autor explica que a habilidade em amalgamar pathos e pastelão veio a partir das produções com Karno — que também fazia uso de gags que explorado o absurdo em situações cômicas, elemento que seria recorrente nos filmes de Chaplin.
Da fase do cinema, Robinson lista em Chaplin a influência do diretor francês Max Linder — de quem ele, entre conceitos diversos, tirou justamente a ideia de roteirizar um filme sobre o mundo do circo.

Carlitos e o pathos

Carlitos, de acordo com Robinson, inventou o vagabundo do próprio teatro cantado norte-americano. Segundo ele, esse tipo de personagem era muito comum nos palcos de então.
Nos seus primeiros filmes, principalmente os da Keystone, Carlitos era um personagem típico do pastelão, extremamente grosseiro e agressivo, sempre em esquetes simples. Afinal de contas, o espírito do slapstick era a violência gratuita, ainda que cômica.

Por exemplo, em Easy Street (1917), o filme tem todos os ingredientes do slapstick, desde a violência mais do que gratuita até o paroxismo de cenas de uso de drogas (isso antes do Código Heyes, que provocaria uma onde de puritanismo em Hollywood pelas décadas seguintes).

Sobre a persona do vagabundo, Jérome Larcher (2011) salienta que, ao aperfeiçoá-lo, Chaplin passou a investir Carlitos com elementos de melodrama, preparando-o para tornar-se como um dos personagens mais marcantes da história do cinema, justamente nas suas derradeiras produções: ao invés do agressivo, um herói burlesco e quixotesco — misturando, como salienta David Robinson, pathos (ou seja, sentimento de dó, compaixão ou empatia) e comédia.

A partir de Dog’s Life (de 1918), o enredo dos filmes de Carlitos ganha foros de drama. Aqui, ele tenta ajudar uma moça que é explorada por um dono de bar. Em The Kid (1921), o vagabundo vira a ama seca de um menino abandonado. Na segunda parte de The Gold Rush (1925, já na United Artists), ele ingenuamente tenta cortejar uma dama de cabaré no Klondike. Essa dialética atingiria o seu paroxismo nas derradeiras produções com Carlitos, City Lights (1931), Modern Times (1936) e The Great Dictator (1940)

O Circo e a Commedia dell’arte

Em O Circo, baseado em Linder (The King of the Circus, de 1925)
além de explorar o melodrama no roteiro, Chaplin utilizou muitos elementos na caracterização dos personagens que possuem muitos pontos de contato com a própria dinâmica da commedia dell’arte.

No filme, Carlitos é confundido com um batedor de carteiras porque o verdadeiro facínora havia escondido o produto do roubo em seu bolso para evitar flagrante. Perseguido pela polícia e pelo verdadeiro ladrão, ele adentra o palco do circo de uma feira, e acaba roubando a cena.

O dono do circo (Al Ernest Garcia) percebe que Carlitos tem talento para o picadeiro, porém não sabe que é engraçado. Ou melhor, percebe que o seu humor é, na verdade, involuntário. Ao fazer um teste, ele falha miseravelmente. No entanto, quando é perseguido por um cavalo, ele provoca um pandemônio no show dos outros artistas, provocando o riso da plateia, que pensa que o pandemônio faz parte do show.

Mesmo ciente do talento do vagabundo, como ele faz com todos os funcionários, ele o paga mal e o trata com mão de ferro. Carlitos trava conhecimento com a enteada do dono do circo, Merna (Merna Kennedy), a domadora de cavalos. Ele percebe que ela é maltratada pelo tio, que a deixa inclusive passar fome.

Ele logo apaixona-se por ela, e acredita ser correspondido. No entanto, a moça gosta de outro, Rex, (Harry Crocker), o acrobata da corda bamba — e usa Carlitos como confidente. Ele, que havia comprado um anel para ela, fica arrasado, e mal consegue atuar. O dodo do circo ameaça demiti-lo.

Rex desaparece e Carlitos, a fim de tanto suplantar seu rival quanto garantir sua sobrevivência no picadeiro, decide realizar a performance na corda bamba. O vagabundo sai ileso da experiência e garante o emprego. Porém, ao ver o dono do circo agredindo Merna, ele a defende e é demitido.

Ela foge em desespero. Resignado, Carlitos decide encontrar Rex para que ele se case com ela. Eles então retornam ao circo. Quando o tio decide repreender Merna pela fuga, Rex o impede, dizendo que agora ela é sua esposa. Ambos são finalmente recontratados. À pedido de Merna, Carlitos aceita permanecer com a trupe. Porém, quando o grupo parte, ele fica.
O circo deixa cidade e, desolado, Carlitos resta sozinho. No lugar onde antes ficara o picadeiro — partindo para outra possível aventura.

Diálogos

O primeiro elemento de The Circus que parece dialogar com a commedia dell’ arte é o papel do próprio Chaplin na produção. Como era comum nos seus filmes mudos, ele era o factorum: escrevia, encenava, dirigia, ensaiava e fazia a trilha original de suas produções.
O segundo talvez resida na originalidade de própria concepção de contar a história no mundo da representação, o circo — onde ele pode, ao mesmo tempo, jogar com planos diversos metanarrativos, mostrando, também a relação da arte cênica com a plateia.
Chaplin, como muitos biógrafos explicam, só passou a roteirizar sistematicamente seus filmes falados. Antes, tudo era improvisado.

Porém, assim como na commedia, o diretor tinha todo um esquema em mente — e que não compartilhava com ninguém.
Contudo, é de se imaginar que, como acontece com o teatro italiano, como autor, foi necessário internalizar todo um processo devidamente esquematizado a fim de que se pudesse improvisar ou glosar sobre esse tema — um triângulo amoroso tragicômico que não tem com efeito nada de original.

O terceiro: o roteiro possui um tema recorrente no commedia dell’arte: um jovem casal (Merna e Rex) apaixona-se mas precisa passar por várias peripécias para que possam terminar juntos.

Quem corre ao seu auxílio é, justamente um “criado”, Carlitos. Chaplin no entanto joga com a narrativa, dando ao espectador a impressão de que ele seria o par da história junto com Merna.

Mesmo sabendo que ela gosta de Rex, o vagabundo resigna-se e, ao invés de impedir, ele passa a interceder para que o casal possa se encontrar. Pelo intermédio de Carlitos, Rex e casa-se com Merna.

Porém, como o final feliz é o encontro do casal de jovens, Carlitos fica só: mesmo sendo o protagonista da fita, na história, ele está deslocado ao papel do zanni, ingênuo, burlesco, lúcido e desastrado, além de roubar a cena, como é típico dos personagens burlescos (basta lembrarmos de personagens que fugiram do teatro para a ópera, como o Papageno, da Zauberlote, do Mozart).
Carlitos é o arlequim por excelência; Merna pode ser a Colombina, embora Esta também apareça como serva na commedia. Porém, para fazer jus ao triângulo amoroso em The Circus, temos o casal Merna-Rex respectivamente como Colombina e Perrô, enquanto o vagabundo é o arlequim, fazendo jus ao estereótipo do personagem que, mesmo com o coração partido, cumpre o destino dos jovens amantes.

O dono do circo, naturalmente, é a pedra no caminho deles. O drama termina quando eles se casam, e o tio de Merna não pode mais subjulgá-la. Nesse momento, a trajetória de Carlitos/arlequim termina.
Conclusão

Ao contrário das produções anteriores (The Gold Rush, The Kid, A Dog’s Life por exemplo), Chaplin optou por um final “infeliz”. Para o bem do drama, a felicidade ficou deslocada para o casal jovem. A respeito disso, é moeda comum relacionar cenas de histórias de Carlitos com episódios da vida de Chaplin.
Freud certa vez disse que a insistência do Vagabundo em socorrer as mulheres em apuros de seus filmes remete à impotência do jovem Chaplin em salvar sua mãe de ingressar num hospício. A própria imagem da separação de mãe e filho é espelhada na cinebiografia do diretor (Richard Attenborough, 1992).

Jeffrey Vance (2003) entende que The Circus é uma metáfora do próprio papel do diretor britânico naquele momento histórico do cinema. Para o historiador, como no enredo, Carlitos chega no circo e transforma aquele famélico espetáculo numa atração de multidões. Porém, no fim do filme, a trupe está preparando-se para partir, mas sem ele.

“Ele é deixado só no espaço deixado pelo picadeiro. Isso me lembra do papel de Chaplin na história do cinema. O show está partindo mas sem ele. Ele filmou essa sequência quatro dias após o lançamento de The Jazz Singer (o primeiro filme falado de sucesso) em Nova Iorque. Quando ele colocou a trilha sonora em The Circus, em 1928, Chaplin montou a seqüência com “Blue Skies”, a canção que [Al] Jolson tornou famosa, porém Chaplin a tocou lenta e tristemente, como uma elegia fûnebre”.

Referências:

CHAPLIN, Charles. O Circo. https://www.youtube.com/watch?v=M28IMFrkBgw
Acessado em 5/07/2017. EUA, 1928, 71 min.
LARCHER, Jérôme. Masters of Cinema: Charlie Chaplin. London: Cahiers du Cinéma, 2003.
MATERNO, Angela In: BRANDÃO, Tânia (org). O Teatro Através de História. Entourage, 1994, vol. 1
ROBINSON, David. Chaplin: His Life and Art. London: Paladin, 1986.
WEDDLE, David. Nothing Obvious or Easy: Chaplin’s Feature Films.Variety, 2003. p. 6,

Thursday, August 17, 2017

Tom Donahue e a grande revolução do FM


"Big Daddy" Donahue

Tava lendo um livro que é uma tese do Kim Jefferson Simpson, Hit Radio and the Formatting of America in the Early 1970s, um livro sobre economia política da comunicação e sobre a indústria fonográfica e contexto histórico americanos entre o fim da contracultura e os anos 70 na América. É um resgate interessante mas, ao mesmo tempo, é um tema que valeria a pena ser abordado aqui no Brasil. Ou por outra, existe, mas ainda é muito pequena.O livro é sobre contracultura e o começo das FM nos Estados Unidos na perspectiva de economia política e formação de programação musical.

No livro, ele revela que o Donahue cansou da estagnação do 40 hit format e resolveu migrar de mala e cuia para o FM ainda experimental. De uma hora para a outra, largou a estabilidade de DJ e partiu em busca de um desafio, que era explorar o FM. O cara podia tocar o que ele quisesse, então ele foi um precursor do free format no FM, ainda experimental, em 67, que descambou para o AOR, e isso foi um movimento que calhou bem na época, combinando o rock progressivo emergente e o começo do FM comercial no segmento jovem.

O AOR — album oriented rock foi o caminho para as rádios progressivas, pois o FM podia tocar discos inteiros em detrimento dos compactos. Aqui no Brasil quem implantou isso aqui foi a Eldorado, quando obteve concessão do FM em 72, progressive rock. Pois sempre se associa o Big Boy ao Wolfman Jack, e ele sempre se identificava com o Jack, mas eu percebo que tem uma ligação estreita com os programadores do FM free format com o Big Boy, que na Mundial estabelecia um padrão 40 Hit e na Eldopop o progressive sound (importante destacar o formato progressive não impede que a programação tenha outros subgêneros do rock, como o hard rock ou o rock dos anos 60) , elaborando sequências em rolo que eram copiadas de discos que muitas vezes eram transmitidos na íntegra, como o Phaedra, do Tangerine Dream que, todos sabem, é uma puta tijolada de 40 minutos direto sem escalas.

Claro que, antes, porém, a Federal AM de Niterói (de onde saiu o Luiz Antônio Mello, da Flu 'Maldita') já tinha programação rock tocando Neu, Tangerine Dream, Faust, Can, Soft Machine, era esse o tipo de música. Como as vinhetas da Eldopop diziam na época: “uma nova experiência sonora", também fazendo um link com música eletroacústica e minimalista, uma verdadeira pororoca musical de novas tendências, muito além das praias do pop.

E o progressivo entrou como uma luva no conceito de FM no começo. No free format eu poderia tocar o A Love Supreme todo, no AM nem a pau. O Donahue concebeu o projeto na KMPX e na KSAN, ambas em San Francisco em abril de 67, ou seja, antes do Pepper’s. Aqui eles poderiam programar um Giant Steps, depois um Days of Future Passed, depois um Eric Satie, era um campo aberto para todas as possibilidades.

O problema é que, enquanto o progressivo, que não tinha espaço no rádio britânico (que só iria desenvolver o FM bem mais tarde), nos Estados Unidos ele foi o esteio do novo formato das FM. E aqui, é provável que o Big Boy conhecesse na época a WNEW-FM, que era a FM progressiva de Nova York. Quando caiu para ele o pepino de implantar uma FM no Rio, ele não pensaria duas vezes em conceber uma rádio progressive que, como diz o Peixinho no documentário do Big Boy, não podia tocar o que tocava na Mundial. Ou seja, não podia retransmitir e nem ter a mesma programação musical, certamente por causa da concorrência direta.

Porém, a verdade é que a Eldopop, enquanto segmento de rádio rock no FM, só teria concorrência a partir de 77.

Assim, por cinco anos, ela criou um modelo de rádio rock segmentada que não só não tinha interferência de qualquer departamento comercial ou de orientação de gravadoras quanto estava introduzindo um tipo de música no Brasil que não tocava em lugar nenhum — ou porque era comercialmente inviável, como no caso do krautrock, que era uma coisa de iniciados — e que era novidade na época, já que aqueles discos tocavam logo quando foram lançados, lembramos que o Phaedra era de 1973, então muita coisa de progressivo que tocava na Eldopop era lançamento mas, em geral, o progressivo tinha uma barreira, que era o descompasso entre a agenda das grandes gravadoras brasileiras, que certamente exploravam mais a música nacional (em português, independente de rotular de brega ou MPB) e teletemas em geral e o desinteresse total dessas gravadoras com o rock, desinteresse que perdurou até o começo dos anos 80. Então, eu acredito que mais do que uma rádio vitrolão de ricos, como podem rotular alguns, ela foi uma experiência que estava colocando o ouvinte brasileiro em contato com a música jovem (e as vinhetas da Eldopop sempre diziam “FM! Estéreo! Jovem!”, ou “Som contemporâneo” da época, longe do sucesso do AM.

Quer dizer, o mercado ainda explorava massivamente o AM e subestimava o rock nacional, o que não dizer do internacional? Basta lembrar o veto que os Mutantes levaram do seu O A e o Z e a agonia do Vímana em conseguir lançar um disco pré-produzido pronto em 1977 e que, no fim, virou um único single, “Zebra”, e que passou batido. Eram tempos em que o rock e a indústria fonográfica no Brasil ainda não andavam de mãos dadas.

Agora, pegando o livro do Kim Jefferson Simpson, a gente percebe que lá não havia esse descompasso, e o progressivo e o hard rock eram mainstream. O que existia era a divisão entre o progressive format e o MOR, ou middle-of-the-road, que era onde tocava o cocktail music ou o soft rock, e o Simpson fala que o soft rock foi uma espécie de reação ao contexto marcadamente negativo dos Estados Unidos com mortes em Kent, Nixon, Vietnã, que nasceu como um lenitivo, um soporífero aos ouvidos daqueles dias políticos. Ao mesmo tempo em que o bubblegum pop foi uma reação das gravadoras, criando grupos como Archies, Osmonds, Box Tops (!) para combater o pessoal do rock que estava fazendo rock freak AOR para vender ao público pré-adolescente/adolescente da época (fim dos anos 60).

No caso de Donahue, ao lançar mão do free format, seria possível incluir na programação um tipo de música que jamais havia tocado no rádio. Para tanto, basta pegar o caso do Sgt Pepper's Lonely Hearts Club Band. O disco foi praticamente banido na BBC e nenhuma das faixas fora concebida como single. Paradoxalmente, o trabalho mais incensado dos Beatles não tinha espaço no AM. Mesmo assim, Sgt. Pepper's foi o gatilho que deflagrou a mudança na estética do rock, de focar no formato conceitual de álbum em detrimento do single. A partir dessa concepção, muitos músicos podiam dar-se ao luxo de produzir canções para o Top 40 e dedicar o álbum para voos mais altos.