Tuesday, December 17, 2019

Woodstock em Porto Alegre

Cartaz do primeiro concerto de Vivendo a Vida de Lee, em agosto de 1975


Os anos 70 em porto Alegre foram resumidos numa frase que nasceu de algumas pichações que apareciam no bairro Bonfim: “deu prá ti, anos 70”. A frase foi o motivo condutor do filme homônimo de Giba Assis Brasil e Nelson Nadotti. Como diz o próprio Giba na dissertação Transgressão no Bonfim, do historiador Lúcio Fernandes Pedroso: "os anos 70 foram os anos da repressão, da ditadura, de quando não aconteceu nada. Então, esse sentimento de “chega de 70”, segundo ele, era uma coisa que povoava as cabeças dos jovens naquela virada de década. Já Carlos Gerbase, na mesma dissertação, tem uma outra visão: “alguém precisa resgatar os anos 70, alguém precisa dizer que eles não foram tão ruins assim. Afinal de contas, foi toda a nossa adolescência”.

Como realmente aconteceu, os anos 80 cuidaram de esquecer a década anterior. E os 90.  Porém, depois de tanto tempo, parece que a tese de Gerbase foi ganhando cada vez mais adeptos. Hoje pode-se dizer que existe uma considerável bibliografia a respeito daqueles anos. É possível citar desde as pesquisas de Juremir Machado da Silva (A Miséria do Cotidiano, Antes do Túnel), as memórias de Pedro Sirotsky e Claudinho Pereira (Lembra do Transasom e na Ponta da Agulha, respectivamente), a grande reportagem de Paulo César Teixeira sobre a boemia no entorno do campus Centro da UFRGS (Esquina Maldita),  até as dissertações de Marilene Nascimento de Souza sobre o Musipuc (2006, que merecia virar livro), a tese de Sérgio Endler sobre a rádio Continental AM (de 2004), além do próprio livro sobre a antiga 1120, escrita por Lúcio Haeser.

Para ver como o filão ainda rende frutos, este ano apareceram mais dois livros: Woodstock em Porto Alegre: Mister Lee, a MPB, o Pop e o Rock Gaúchos dos anos 70 nas ondas da rádio Continental AM, de Rogério Rainer (Já editores) e a supracitada dissertação de Lúcio Pedroso, que finalmente sai em livro (Fumproarte) de forma ampliada: História de um Bom Fim: boemia e transgressão, com lançamento previsto para amanhã, no Ocidente.

Mesmo com foco nos anos 80, o livro de Lúcio parte da boemia dos anos 70 que parte da Esquina Maldita para o outro lado do túnel da Conceição, na virada da década. Como nas falas de Gerbase e de Giba Assis Brasil, desde aquele tempo e até hoje, parece que há um discurso ambíguo de esconder e mostrar aquele passado que, para muito foi como se fosse recente. Mas a verdade é que os áureos anos da boemia da esquina da Sarmento Leite com a Oswaldo já vão para mais de quarenta anos.

É possível dizer que esses dois lançamentos se complementam, já que a Continental acabou sendo a mediadora tanto daquela geração que frequentava a boemia estudantil do Bonfim quanto aos jovens que adolesceram pelas ondas da 1120 ao som das picapes do Cascalho como Júlio Fürst, e tinham a emissora como referência.

No caso do ‘Woodstock em Porto Alegre’, existe uma história que faltava ser acrescentada a este mosaico. Assim como ocorreu em Rio e São Paulo, um caudal da era dos festivais seguiu em Porto Alegre ao longo dos “malditos” anos 70, como um, promovido pelo cursinho IPV e outro, que maior repercussão, que é o Musipuc.

Promovido pelo Diretório Acadêmico Santo Tomás de Aquino (CASTA) da PUC, em 1971, ele surge no momento em que os festivais em nível nacional entram em declínio. Com o tempo, o certame revelaria nomes de músicos que iriam moldar o que mais tarde seria chamado de Música Popular Gaúcha (MPG): Almôndegas, Nelson Coelho de Castro e Fernando Ribeiro, entre outros.

Porém, como uma andorinha não fazia verão, os frutos do Musipuc só ganharam projeção quando a Continental, através de Fürst, que foi jurado na quarta edição. Quando ele foi comissionado para divulgar o lançamento dos jeans Lee no Brasil, em 1975, ele decidiu colocar os artistas do festival em desfile nas ondas da 1120. Tal movimento mostrou que havia potencialidade suficiente ali para promover uma cena musical. Através do programa Vivendo a Vida de Lee, Júlio gravou muitas daquelas bandas na Continental — e a repercussão foi grande o suficiente para que rendesse um show, ocorrido ainda em agosto daquele mesmo ano. O show, que foi apresentado no antigo teatro Presidente, teve lotação esgotada, e com o dobro de público do lado de fora, fechando o trânsito na avenida Benjamin Constant.

O enorme sucesso da primeira edição do Vivendo a Vida de Lee, além de projetar nomes direto do Musipuc para os palcos, como Inconsciente Coletivo, Gilberto Travi e Cálculo IV, renderia, três meses depois, um segundo e apoteótico concerto, no auditório Araújo Vianna; este, sim, chamado pela imprensa como o “Woodstock de Porto Alegre” segundo Fürst, eram 4 mil pessoas dentro do auditório e dez vezes mais gente do lado de fora.      

Com o fim do patrocínio da Lee, em 1976, o projeto ainda seguiu, com apresentações no interior do estado e no Paraná, com um terceiro concerto no Círculo Militar de Curitiba, com a presença de quase setenta bandas e artistas, que também eram ouvidos lá através de uma parceria com a rádio Iguaçu, que retransmitia os programas daqui.

O fato ‘negativo’ de todo esse movimento, hoje lembrado por todos esses livros e teses, reside no fato de que, embora a cena independente em Porto Alegre fosse grande, ela não conseguiu encetar a carreira de muita gente: muito poucos chegaram a gravar: Almôndegas, Inconsciente (um single) e Fernando Ribeiro. Contudo, graças á parceria da Continental, com Fürst e Francisco Anele, engenheiro de som da rádio, muita coisa daquele tempo foi gravado e registrado. Uma amostra dessa produção independente pode ser encontrada na Internet e no CD encartado no livro de Haeser sobre a Continental. Todo esse material sobreviveu ao tempo, como testemunho de uma época em Porto Alegre que, se o tempo esqueceu, as cucas geniais de ontem e hoje relembram agora. O revival está apenas começando.


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