Cartaz do primeiro concerto de Vivendo a Vida de Lee, em agosto de 1975 |
Os
anos 70 em porto Alegre foram resumidos numa frase que nasceu de algumas
pichações que apareciam no bairro Bonfim: “deu prá ti, anos 70”. A frase foi o
motivo condutor do filme homônimo de Giba Assis Brasil e Nelson Nadotti. Como
diz o próprio Giba na dissertação Transgressão no Bonfim, do historiador Lúcio
Fernandes Pedroso: "os anos 70
foram os anos da repressão, da ditadura, de quando não aconteceu nada. Então,
esse sentimento de “chega de 70”, segundo ele, era uma coisa que povoava as
cabeças dos jovens naquela virada de década. Já Carlos Gerbase, na mesma
dissertação, tem uma outra visão: “alguém precisa resgatar os anos 70, alguém
precisa dizer que eles não foram tão ruins assim. Afinal de contas, foi toda a
nossa adolescência”.
Como
realmente aconteceu, os anos 80 cuidaram de esquecer a década anterior. E os
90. Porém, depois de tanto tempo, parece
que a tese de Gerbase foi ganhando cada vez mais adeptos. Hoje pode-se dizer
que existe uma considerável bibliografia a respeito daqueles anos. É possível
citar desde as pesquisas de Juremir Machado da Silva (A Miséria do Cotidiano,
Antes do Túnel), as memórias de Pedro Sirotsky e Claudinho Pereira (Lembra do
Transasom e na Ponta da Agulha, respectivamente), a grande reportagem de Paulo
César Teixeira sobre a boemia no entorno do campus Centro da UFRGS (Esquina
Maldita), até as dissertações de
Marilene Nascimento de Souza sobre o Musipuc (2006, que merecia virar livro), a
tese de Sérgio Endler sobre a rádio Continental AM (de 2004), além do próprio
livro sobre a antiga 1120, escrita por Lúcio Haeser.
Para
ver como o filão ainda rende frutos, este ano apareceram mais dois livros:
Woodstock em Porto Alegre: Mister Lee, a MPB, o Pop e o Rock Gaúchos dos anos
70 nas ondas da rádio Continental AM, de Rogério Rainer (Já editores) e a
supracitada dissertação de Lúcio Pedroso, que finalmente sai em livro
(Fumproarte) de forma ampliada: História de um Bom Fim: boemia e transgressão,
com lançamento previsto para amanhã, no Ocidente.
Mesmo
com foco nos anos 80, o livro de Lúcio parte da boemia dos anos 70 que parte da
Esquina Maldita para o outro lado do túnel da Conceição, na virada da década.
Como nas falas de Gerbase e de Giba Assis Brasil, desde aquele tempo e até
hoje, parece que há um discurso ambíguo de esconder e mostrar aquele passado
que, para muito foi como se fosse recente. Mas a verdade é que os áureos anos
da boemia da esquina da Sarmento Leite com a Oswaldo já vão para mais de
quarenta anos.
É
possível dizer que esses dois lançamentos se complementam, já que a Continental
acabou sendo a mediadora tanto daquela geração que frequentava a boemia estudantil
do Bonfim quanto aos jovens que adolesceram pelas ondas da 1120 ao som das
picapes do Cascalho como Júlio Fürst, e tinham a emissora como referência.
No
caso do ‘Woodstock em Porto Alegre’, existe uma história que faltava ser
acrescentada a este mosaico. Assim como ocorreu em Rio e São Paulo, um caudal
da era dos festivais seguiu em Porto Alegre ao longo dos “malditos” anos 70,
como um, promovido pelo cursinho IPV e outro, que maior repercussão, que é o
Musipuc.
Promovido
pelo Diretório Acadêmico Santo Tomás de Aquino (CASTA) da PUC, em 1971, ele
surge no momento em que os festivais em nível nacional entram em declínio. Com
o tempo, o certame revelaria nomes de músicos que iriam moldar o que mais tarde
seria chamado de Música Popular Gaúcha (MPG): Almôndegas, Nelson Coelho de
Castro e Fernando Ribeiro, entre outros.
Porém,
como uma andorinha não fazia verão, os frutos do Musipuc só ganharam projeção
quando a Continental, através de Fürst, que foi jurado na quarta edição. Quando
ele foi comissionado para divulgar o lançamento dos jeans Lee no Brasil, em
1975, ele decidiu colocar os artistas do festival em desfile nas ondas da 1120.
Tal movimento mostrou que havia potencialidade suficiente ali para promover uma
cena musical. Através do programa Vivendo a Vida de Lee, Júlio gravou muitas
daquelas bandas na Continental — e a repercussão foi grande o suficiente para
que rendesse um show, ocorrido ainda em agosto daquele mesmo ano. O show, que
foi apresentado no antigo teatro Presidente, teve lotação esgotada, e com o
dobro de público do lado de fora, fechando o trânsito na avenida Benjamin
Constant.
O
enorme sucesso da primeira edição do Vivendo a Vida de Lee, além de projetar
nomes direto do Musipuc para os palcos, como Inconsciente Coletivo, Gilberto
Travi e Cálculo IV, renderia, três meses depois, um segundo e apoteótico
concerto, no auditório Araújo Vianna; este, sim, chamado pela imprensa como o “Woodstock
de Porto Alegre” segundo Fürst, eram 4 mil pessoas dentro do auditório e dez
vezes mais gente do lado de fora.
Com
o fim do patrocínio da Lee, em 1976, o projeto ainda seguiu, com apresentações
no interior do estado e no Paraná, com um terceiro concerto no Círculo Militar
de Curitiba, com a presença de quase setenta bandas e artistas, que também eram
ouvidos lá através de uma parceria com a rádio Iguaçu, que retransmitia os
programas daqui.
O
fato ‘negativo’ de todo esse movimento, hoje lembrado por todos esses livros e
teses, reside no fato de que, embora a cena independente em Porto Alegre fosse
grande, ela não conseguiu encetar a carreira de muita gente: muito poucos
chegaram a gravar: Almôndegas, Inconsciente (um single) e Fernando Ribeiro.
Contudo, graças á parceria da Continental, com Fürst e Francisco Anele, engenheiro
de som da rádio, muita coisa daquele tempo foi gravado e registrado. Uma
amostra dessa produção independente pode ser encontrada na Internet e no CD
encartado no livro de Haeser sobre a Continental. Todo esse material sobreviveu
ao tempo, como testemunho de uma época em Porto Alegre que, se o tempo
esqueceu, as cucas geniais de ontem e hoje relembram agora. O revival está
apenas começando.
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