Friday, November 25, 2016

Gabriela



Desde pequeno que queriam que Rubião fosse doutor e montasse uma banca. "Olha o dr. Basílio, com setenta anos, não precisa se preocupar com mais nada. Só dá uma passadinha por semana no escritório".

Mas não, ele queria seguir sua vocação, que era Letras. "Meu filho, o que você vai fazer com esse diploma, meu Deus? Vai ficar entregando currículo e ninguém vai te chamar, daqui a uns tempos, vai ficar sem vintém e vai ser a suprema humilhação, pedir dinheiro emprestado a amigos e ter que viver em casa de parentes. Já pensou? Viver de sofá em sofá, tendo que mendigar uma refeição por dia? É isso o que você quer?".

Sua tia lembrava do Odorico. "Aquele cocainômano imprestável e falastrão, um usurário e gastador, morreu vivendo com a mãe, com quarenta e dois anos, sozinho numa casa de praia, de caseiro para pagar a cerveja. Teve que virar caseiro em Cidreira prá sair da Cruzeiro, senão ia acabar morto ou por overdose ou baleado por algum traficante. e esse era outro idiota com diploma!".

De nada adiantava argumentar. mamãe sempre vinha com um estoque de primos e filhos de amigos bem sucedidos. E era implacável: "Imagina tu chegando no Natal da família, todo mundo com mulher e filhos e você ali, sem presente, de calça de abrigo, o idiota da vila, vai só para beber, vomitar na camisa e fazer vexame mesmo!".

Na verdade, vendo que a cantilena não redundava em nada, seus familiares começaram a meter-lhe em ridículo. "E esse concurso? Não vai fazer? É o último dia! E esse outro aqui? Também não? Puxa, você não quer nada!".

Não tardou, Rubião acabou passando em Letras. A ofensiva diminuiu, mas era uma paz armada. Logo seria impossível o convívio com sua família. No fim, formou-se e aquilo que seus pais vaticinaram realmente aconteceu. Muitos currículos e nada. "Taí, o Vítor passou naquele concurso e vai ser escriturário em Pelotas. Vai até comprar uma casa nova para a vovó e construir uma de praia lá em Itapeva, para passar as férias". A frase ficava em suspenso, como se ele esperasse o: "e quanto a você?".

Argumentavam de diferentes maneiras, forçavam um silêncio constrangedor dele quando vociferavam sobre tais assuntos. Os anos passavam, e e nada de emprego, nada de concurso, enquanto o filho de fulano ganhava promoção ou o primo tal era agora sub-chefe de alguma coisa, carro do ano e casa própria.

Nessa época, ele começou a rarear em casa. vivia de bico, para poder manter uma vida noturna. Chegar em casa a uma de madrugada, para sair às seis, ou pelo menos antes que todos acordassem. se pudesse, entrava e saía pela janela. Certo dia, numa praça, viu uma jovem, silenciosa e triste, que parecia compartilhar do mesmo desamparo.

A identidade e a angústia acabou os aproximando. Conversaram e, depois de um mês, estavam juntos. Porém, depois de um ano, a cobrança começou a partir dela. Amargurado, não podia sequer fazer qualquer reparo às acusações. Ao mesmo tempo, sentia-se culpado: afinal de contas, ela tinha razão. Aliás, todos tinham razão. Ele é que estava errado. Só que, ao contrário de sua família, não queria decepcionar a moça. sentiu-se duplamente culpado.

Vendo que sua situação era incontornável, começou a fingir-se de maluco. Depois de semanas bebendo pesado e compulsoriamente, quebrando louças e móveis ou passando dias a fio num quarto fechado, ela decidiu chamar um médico para comprovar sua insanidade. Bebeu meses a fio, até chegar quase em quadro de delirium tremens. Sempre achava graça quando dizia que pessoas nesse estado viam bichos andando pelo próprio corpo. ele não só já passava a ter essa experiência isso como também enxergava elefantes cor-de-rosa no quarto. Conclusão: estava realmente ficando maluco. "Quer ficar assim, o problema é seu", repetia, do outro lado da porta.

Foi internado na rua Santana. Enquanto o tempo passava, Rubião analisava seus companheiros: o Nelson, o Pedro o Grande e o Franklin Delano, todos aliás egressos dos bancos das Belas Letras. Era quase uma Arcádia na Pinel. Durante horas a fio, discutiam desde o Arquíloco e o Pentâmetro iâmbico até o Formalismo Russo e Estruturalismo. Parecia que estavam nas cadeiras de plástico vermelhas do Vale, como nos velhos tempos.

Numa quinta, pelo fim da manhã, Napoleão chegou esbaforido. lamentou sua derrota em Waterloo, disse que o Duque de Wellington era um gigolô e que ele havia sido derrotado apenas porque o Paissandu havia recebido a mala preta. Nosso herói explicou que, ora diabos, eram 40 mil prussianos contra 20 mil franceses. E, parafraseando Cláudio Cabral, explicou que não faz sentido receber soldo para perder e mala preta para ganhar. E quem venceu Paissandu foi o Marcílio Dias.

— Foi o Tamandaré. - respondeu Napoleão.

— Foi o Marcílio - insistiu Rubião mesmo sem estar lá muito convicto.

— Tamandaré.

— Marcílio!

— Tamandaré.

— Marcílio!

— Tamandaré.

— Marcílio!

— Tamandaré.

— Marcílio!

— Foi o Tamandaré, cacete, ele é quem comandava o Paissandu, digo, comandava o Marcílio! — disparou Napoleão, triunfante. em seguida, em tom grave, emendou:

- O negócio é o seguinte e eu vou contar prá vocês. A situação tá cínica. O Duque de Wellington e aquele general prussiano estão atrás de mim. Digo, de nós! Ele vai entrar com os seus 40 mil cavalarianos aqui e mais ainda a cavalaria russa e a prussiana. Mas nós não vamos nos entregar! Não podemos se entregar para os homens! Pegando da espada, ele empossou Rubião, Franklin, Nelson e Pedro majores.

Lutariam até o fim.

— Soldados! — bradou Bonaparte em seu cavalo branco, à guisa de General Osório: — É fácil a missão de comandar homens livres; basta mostrar-lhes o caminho do dever!

Napoleão nomeou nosso herói como seu comandante-em-chefe. Numa primeira ofensiva aliada, porém, houve um tiroteio bárbaro, que durou longos segundos. Logo, Franklin, Maurício e Pedro que, junto com os 18 do Forte, marcharam em direção do exército inglês, aos gritos de: "abaixo á plutocracia", desciam a avenida Atlântica, em direção ao Leme. Foram alvejados no caminho, à medida em que avançavam, como patos de tiro ao alvo.

Aquartelados, Major Rubião e Napoleão Bonaparte resistiam. Logo, veio a carga inimiga. Napoleão foi até a janela para jogar uma granada, mas levou um tiro de bacamarte no ventre. Desabou de costas, com estrépito. Tentou recompor-se, mas suas tripas saíram da barriga, como lombrigas pretas e disformes. Suas últimas palavras foram: "Assim morre um marechal da França!". De borco, o sangue fazia um triste desenho negro ao redor do cadáver.

Sozinho, agora era ele contra 40 mil.


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Do céu baixo e pesado de plúmbeas nuvens escuras de chumbo como um Zepelim, continuava a cair uma garoa fina e gelada.

Um vulto apareceu. O Duque de Wellington reconheceu o marechal de campo prussiano.

— Vai uma cachacinha, sr. Blücher?

— Claro, tchê. Estou congelando aqui.

Cada um deu um talagaço. Depois, o Duque pôs o binóculos, bombeou, suspirou um hausto de bafo triunfal de cachaça de Santo Antônio e disse:

— Vou atacar.

Quando foi escancarar a entrada do quartel, deparou-se com um um soldado encapotado mas com uma metralhadora na mão:

— Sr, o sargento Von Bingen está gravemente ferido sr.

— Quem foi? - quis saber Blücher.

— O tal do Rubião.

— Ele se entrega - murmurou o duque, entredentes. - Temos que pegá-lo vivo.

— Mas ele atirou na maldade, sr. Todos se entregaram, por que esse idiota fez isso?

Entraram no quartel. O pátio parecia o de um claustro, amplo. Estava vazio, chegaram com o séquito até a sala da guarda.

— O major maluco está lá dentro — revelou um soldado. — O desgraçado estava na ronda na hora da confusão.

O duque disse aos demais que iria assumir o controle da situação. Foi até a porta:

— Major Rubião.

— Quem é? - disse a voz lá do fundo.

— Sou eu, o Duque de Wellington. A oficialidade está toda presa. Te entrega que a tua vida estará garantida.

— Nem duque e nem dique vai me prender - devolveu Rubião, com a voz transfigurada pela cólera.

— Não quero derramar mais sangue.

— O sangue é meu e eu faço o que eu quiser — riu forçadamente o major.

Exasperado, o Duque mordia o cigarro apagado no canto da boca:

— Saia daí, porra, saia, seu vagabundo! Por que você não ouviu os seus pais e não passou naquele concurso do INSS?

— Não me provoque, doutor, não me provoque.

— Saia!

A porta abre. a luz de uma lamparina caiu em cheio em sua cabeça sem o quepe. Murilo tinha uma Mauser C-96 na mão direita.

— Largue essa arma, major! - gritou Wellington.

Em resposta, o major abriu fogo. Como não sabia atirar, o tiro pegou de raspão no ombro do Duque.

— Podem vir, seus chimangos de merda! Não tenho medo de vocês! — E, rindo: — Venham! Eu não tenho nada a perder!

Os outros oficiais, que estavam no pátio, vieram em direção ao duque com pistolas em punho. Wellington, que conseguira recompor-se a tempo, fitava o insolente major. Apontou o revólver e fez fogo. Largando a Mauser, Rubião levou as mãos ao peito, no lugar onde a fazenda do dólmã começava a ficar ensopada de sangue.

— Chimangada de merda...

Apoiou-se na parede às suas costas, com o olhar distante, porém numa expressão quase orgásmica de uma Santa Teresa de Bernini. Os sargentos, que irromperam na cena, continuaram a atirar no major que, por algum tempo, ficou grudado na parede dada a violência dos tiros. Uma bala o pegou na barriga, outra no braço esquerdo, mais um tiro no braço esquerdo, dois no direito, um na perna direita, outro no ombro esquerdo, as demais no peito. Foi escorregando, escorregando, à medida em que o sangue chegava ao chão, até Rubião estuporar-se finalmente como que sentado. No percurso da sua queda, a parede estava pintada com um caminho de vermelho.

Houve um momento em que Rubião pareceu recobrar as forças. Abriu bem os olhos e disse audivelmente:

— Gabriela.

Quando os médicos chegaram ele já estava morto.








Thursday, November 24, 2016

A Caixa



Esses dias, durante uma mudança, fui arrastar um armário e uma enorme caixa de fotos caiu na minha cabeça.

Enquanto eu juntava as fotos e recolocava todas no lugar, repassava uma por uma. Uma irmã da minha avó materna que eu não sei o nome, com um óculos Aghata Christie, meu pai com meu irmão no colo na véspera de Natal, uma tia num cômoro na orla de Cidreira (no tempo que havia cômoros em Cidreira) com as amigas, meu avô materno com um terno xadrez estranhíssimo, um aniversário meu no playground do Selva de Pedra, no Leblon, com garrafas de Coca-Cola antigas. Outra tia na Escola de Arte (e que abandonou a pintura para virar dona de casa), um primo montado num pônei na beira da praia, em Pinhal.

Que fim levou toda essa gente? E por que eu ainda tenho essas fotos? A gente vai herdando álbuns de fotos de parentes — e de parentes e de parentes. Até fotos antigas que não nos dizem nada. Coisas até do primeiro casamento de meu avô. de repente, olho a noiva: nunca a conheci. Sempre achei que minha avó fosse a primeira.

No fim, a sensação final é a de que era melhor não ter visto as fotos. Essa experiência de olhar fotos antigas é meio angustiante. Nós vamos guardando fotos, postais, para quê? chega a um ponto em que elas não nos dizem nada, apenas trazem tristeza. Parece que existe um certo prazer mórbido em repassar essas imagens.

Por outro lado, é incrível de se pensar em como nossa memória é um repositório pantanoso, como o manatial do Simões Lopes Neto que, como velhos álbuns de fotos, tem coisas que a gente tem certeza que esqueceu, ou que a vida acabou relegando a um arquivo morto — tão morto que, se não fossem meus retratos de infância, eu sequer lembraria de ter estado no lugar tal, ou de determinada festa de aniversário.

Parece que nós temos mais facilidade de elaborar o tempo recente, ou o passado recente. Mas o passado profundo é a história de uma outra pessoa. Minha infância é um garoto que eu conheci ou que me contaram histórias sobre ele. O que ele experimentou, viveu, presenciou ou sentiu? É impossível reconstruir esse passado. As fotos são pistas. Aquele menino com cara de perdido entre guarda-sois na praia sou eu? O que eu pensava naquela época? A fotografia parece uma filmagem curta, sem áudio. É um milagre que exista uma lembrança de um dia e um lugar. Mas meu retorno é impossível.

Quando quero lembrar-me, aí estou fabulando a história de uma outra pessoa, de um outro meu que, ao contrário do conto do Borges, é mudo. Quando me olho, já não sou eu; parece um filho que eu tive há muito tempo, e que perdi e por quem não tenho saudades. E o tempo que se passou da foto até o momento em que estou compondo esse texto é tão breve comparado as horas do dia que se arrastam desde que me acordei, hoje — um dia na vida que não irei inventariá-lo num diário e que vai se perder no sumidouro da memória. Tempo tempo perdido e que redunda em nada, nenhuma emoção, nenhuma experiência, nenhuma vida vivida (de repente, uma quinta que até eu fiz questão de deixá-lo passar, pensando na sexta, e que também desaparecerá) e que, voluntária ou involuntariamente, cai no arquivo morto.


Mudando de assunto e ficando no mesmo: terça eu estava pesquisando na Internet e lembrei da Editora Saravan, que lançava álbuns de figurinha temáticos, de futebol a novela. Na época da ditadura, era pura lavagem cerebral: a primeira parte eram figurinhas do presidente, das bandeiras dos estados, de culturas de produtos típicos de exportação brasileiros, de signos de ufanismo, algo bem de época. Na nossa inocência, nós colecionávamos isso. Quando procurei pelo álbum da novela Pai Herói, deparei-me com o fac-símile da capa.

Foi como voltar a um lugar que eu não ia faz anos. E essa sensação de voltar é sempre estranha: parece bom voltar, mas talvez fosse melhor ter ficado no presente. Sem falar da sensação mórbida de querer evocar mais e mais. a verdade é que o fac-símile me raptara. E lá estava eu evocando coisas que não me lembrava. Às vezes é bom, mas se eu me viciar nisso, talvez não volte nunca mais.


O álbum

Hoje, revendo a reprodução na Internet, é incrível a propaganda ideologicamente ufanista que era feita por esses produtos (quem conhece a música 1965 (Duas Tribos) e viveu a infância nos 70 vai entender aquela letra). Paradoxalmente, era puro entretenimento. e o fato de eu jogar bafo com a figurinha do presidente Figueiredo não me impediu de várias vezes avacalhar o Hino nacional quando a gente hasteava a bandeira no colégio e sempre acabava na Direção — aliás, quase fui expulso do Positivo por conta disso. e só parei de apupar o Hino porque ia ser expulso mesmo. Enfim, a lavagem cerebral da editora Saravan não deu muito certo.

Na época do Orkut havia uma comunidade, a Acervo Brega, que era uma espécie de base de dados maluca e colaborativa de arquivos de mp3 não de música popular brasileira, mas de música brasileira popular. Numa dessas, uma usuária postou um rip de disco vinil da canção de abertura da Família Barbapapa, que era uma animação francesa que passava na antiga TV Globinho nos anos 70. Não sei se passava em outros estados, mas passava no Rio. A apresentação, na época, era da Paula Saldanha.

Quando fui ouvir aquela música, foi catártico: devo ter chorado litros ao mesmo tempo em que toda a minha infância proustianamente apareceu diante de mim. O mais estranho foi voltar a tanta coisa que havia acontecido há tento tempo e que, por conta dessa distância temporal, havia praticamente se perdido na poeira da memória.

Não eram bagatelas que eu me recordava: a música trouxe de volta toda uma época finada, muito recente para ser chamada de nostalgia, mas também muito recente para ser esquecida — enfim, tudo aquilo de volta, como o chá com madeleines do Proust. É aquele momento quando somos raptados por uma memória involuntária. Mas que ganha uma considerável importância porque, dessas pistas e ruínas do passado, eu começo um novo álbum imaginário, onde eu tento montar os pedaços de algo relativamente ordinário que, na verdade, não deveria ser esquecido.

A gente muda, os tempos mudam, mas essas coisas permanecem enterradas na gente — como diria o Nelson Rodrigues nas suas Confissões, como sapo em macumba. Mesmo que tentemos esquecer, parece que a vida faz com que a gente acabe confrontando com essas coisas de novo, como um ajuste de contas. Existe um tempo para tudo na vida. E parece que se deixamos algo para trás, elas nos cobram a conta do esquecimento.



Deixei a música no repeat por horas e horas, e acho que passei uma madrugada inteira ouvindo aquela maldita musiquinha do Barbapapa. Lembro que a Kibon vendia latas de sorvete com a imagem da família Barbapapa. depois fui morar em outros locais. Muita gente da minha idade não conhecia o desenho. No fim, de tanto insistir e, tanto tempo passado, achei que eu estivesse é delirando. décadas depois, o mp3 no raptou de volta aos anos 70, à TV Globinho, a Paula Saldanha, o Pequeno Polegar lá na Tijuca e as apresentações de teatro (eu vestido de mandarim, contrariado porque tive que "puxar" os olhos com lápis para parecer com um chinês), a casa Sendas e os passeios de bondinho do Pão de Açúcar (eu ainda de cabelo loiro de camisa de regada listrada e botinha ortopédica, meu Deus olha isso), o Selva de Pedra, descer a Rua Almirante Guilhem de pé descalço (onde a gente escapava do sol por causa das copas das árvores mas queimava a sola dos pés na ida e na volta) num domingo de manhã com baldinho de areia e passar o dia na praia.

De repente, tocou a campainha. Pus rápido todo o resto das fotos na caixa, que joguei num canto, como se fosse uma barata seca.



Tuesday, November 22, 2016

O Fim de Big Boy


Newton Duarte, o Big Boy


Morto em 77, Big Boy foi um radialista que representou a transição da linguagem 'séria' da locução comercial para o estilo mais informal e voltado para o público jovem. Se na história do rádio, ele foi um personagem de transição, para o FM ele foi o nosso Dante, o último radialista antigo e o primeiro moderno da Frequência Modulada.

Hoje é sintomaticamente tempo de relembrar esse Dante do rádio. Ele era um locutor de uma fase de transição porque não existia no Brasil, pelo menos no rádio comercial, alguém que fosse a personificação dessa cultura jovem que surgiu durante os anos 70. Época em que, paradoxalmente, o rock ainda não era o prato principal do banquete das grandes gravadoras como seria, na década seguinte. Como radialista, ele foi o primeiro homem moderno porque personificou aquele que soube valorizar-se como emissor.

Naqueles tempos pré-internet, quando toda a virtude estava no "controle da emissor", a informação era o que diferenciava um profissonal de outro. Era a época em que um profissional de mídia, no caso, de rádio, se fazia pelas suas fontes, fossem gravadoras, artistas, assinatura de publicações internacionais, até ter contato com algum comissário de bordo da Varig que pudesse importar qualquer material quente que estivesse saindo da Europa ou Estados Unidos. Qualquer tipo de contato era importante, e deter essse controle — além de muito engenho e arte — perante uma certa audiência é o que notabilizava o profissional.

Ao mesmo tempo, também havia essa cultura inerente ao profissional de rádio, no caso, o disk-jockey — modalidade de locutor que surgiu nos Estados Unidos a partir de gente da antiga, como Allan Freed, de quem o Big Boy era naturalmente influenciado por ele. Pois esse papel do DJ e essa cultura jovem mediada por ele, além de todo o capital cultural que se transubstancia ao longo do tempo, numa época em que a informação era ainda limitada aos meios de comunicação tradicionais, cresceu consideravelmente através do tempo. eles eram aqueles que sugeriam discos, artistas, liam de cartas até a lista de sucessos da Billboard, enfim, como se usava na gíria do turfe, davam as 'barbadas' para o ouvinte. Não ouvi-lo significava ficar por fora dos acontecimentos.

Porém, com o tempo e com o advento da Internet, olhando em retrospectiva, vemos que essa cultura do DJ teve diacronicamente o seu início com o começo do rock nos Estados Unidos ainda no AM e chegou ao fim nos estertores do FM musical, no final da década passada. O surgimento do FM ainda era um período de transição — ainda mais no Brasil onde esse formato foi experimental até o fim dos anos 70.

Por ironia do destino, Big Boy, nascido Newton Duarte, que foi o locutor que padronizou o formato do DJ moderno no FM, na verdade, foi um elemento de transição: como Moisés, não chegou à Terra Prometida. No momento em que o mercado iria mudar, ele subitamente morreu. Contudo, uma era não morreu com ele: pelo contrário, Newton não viveu para ser testemunha da mudança do FM experimental para o comercial (a Eldorado mudaria exatamente um ano depois de sua morte, em 78). A grande virada seria já nos 80, época do já longínquo e vetusto BRock, gênero que mudou o perfil comercial das gravadoras — que, até o primeiro compacto da Blitz, não enxergavam qualquer viabilidade para qualquer manifestação de rock nacional. De certa forma, o Big-Bang do FM foi o BRock.

Big Boy infelizmente não pôde viver aquilo que, de certa forma, ele criou. Tudo o que ele aplicou ainda na Mundial nos tempos do AM seria a base do rádio em Freqüência Modulada e a sua progressiva segmentação a partir dos anos 80: parte das emissoras iria adotar uma postura agressivamente comercial enquanto outras optaram por uma programação mais alternativa. E foi um mercado que, diferentemente de hoje, podia, por conta disso, absorver um grande número de profissionais.

Pelo menos uma coisa elas tinham em comum: como ainda vivia-se num período em que a grana rolava no meio rádio ou, pelo menos, enquanto essa verba entrava (seja lá de qual forma) lá, esse modelo se sustentou, e por um longo tempo. Aliás, foi justamente o tempo em que os DJ ainda detinham esse perfil de "oráculo". Havia o capital informacional do 'emissor' e a cultura típica da rádio, na relação entre a emissora e seus respectivos ouvintes.

Claro que podemos dizer que isso ainda existe — e certamente sempre irá existir. Mas esse perfil oracular do DJ, e essa importância do locutor na cultura do rádio, antes da Internet, era considerável se compararmos com hoje: a música não "passa" mais pelo rádio ao mesmo tempo em que aquele "dinheiro" também não passa mais como passava. Foi como uma Serra Pelada, foi algo muito grande enquanto durou, mas o formato foi exaurido pela Internet.

Sem tristezas nem saudades, as gravadoras hoje podem prescindir doS DJS, os artistas, de certa forma, não precisam gravitar em torno de programas de rádio — se compararmos que estar fora do esquema nos anos 70/80 era quase como pregar no deserto ou estar proscrito. Se a indústria fatura hoje com o streaming e todo a informação rola na Internet, o rádio, mesmo tempo um alcance gigantesco, ainda amais no interior do Brasil, acaba tornando-se redundante.

A consequência disso é a próprio abastardamento da figura do disk-jockey no FM. Nos últimos anos, mesmo com o natural protesto de muitos ouvintes, o espaço e a importância dessas rádios jovens (ou rádio rock, muito embora o rótulo rock atualmente seja tão passé quanto o próprio rock) vem diminuindo. As que não acabam tornam-se enlatadas via satélite, estão virando repetidoras de hard-news. Mesmo grandes figurões do FM de outros tempos hoje são progressivamente alijados do microfone, E têm como alternativa apenas o formato web — obrigando-se a viverem por conta e compartilhando o espaço virtual com todo mundo.

Ao mesmo tempo, pelo fato de que a Informação emana da própria Internet, ele se vê diminuído; a sua expertise não mais lhe dá qualquer garantia de importância. Mesmo que exista vida na rádio web, o antigo DJ não possui nem 10% da grandeza dos tempos do vinil.

Enfim, nunca imaginou-se que pudéssemos chegar a uma época em que o espécimen do DJ clássico chegasse a um franco e definitivo processo de extinção. Que fique claro: o 'apresentador de programas', como salientamos acima, não deixará de existir.

Mas ele não é o DJ. em alguns casos, o 'apresentador' está diante do microfone por outros motivos — até porque, em alguns casos, ele é aquele que 'puxa' anunciantes para a emissora ou o seu respectivo programa. logo, não é bem a expertise aquilo que o dignifica. A questão é que ter ou não a devida expertise, e num contexto adverso, onde esse capital informacional — a carta na manga que o notabilizava e que o valorizava — está disponível para todos, não significa um elemento diferencial para franquear seu devido espaço no éter. Analisando friamente, uma rádio hoje não faria a mínima questão de manter um espécime desse tipo em seu cast. A não ser que ele seja o dono da dita cuja. do contrário, é defenestrado sob a alegação de 'falta de verbas'. Enfim, o seu destino é o ostracismo amplo e irrestrito.

Philip Roth, atavismo jurássico do tempo que se fazia literatura no mundo, disse que a cultura literária vai morrer daqui a duas décadas — da mesma forma, vaticina que será o tempo em que o livro chegará ao fim (há quem diga que o livro já acabou há 20 anos). Da mesma forma, se pensarmos em rádio, em rupturas provocadas pela cibercultura, tanto o escritor quanto o disc-jockeys são resquícios de um tempo em que esse movimento de acesso à informação era a forma principal de acesso a uma "cultura" e a uma visão de mundo "diferenciada". Nós podemos, mesmo sob protesto — como o fáustico Andrew Keen (*), tecer uma catilinária (e claro que esse artigo tem desavergonhada influência do Culto do Amador) contra esse engodo provocado pela Internet e contra esse "ultraje contra a cultura e inteligência humanas", etc. Mas a verdade é que chegamos ao fim de um ciclo e que, hoje sim, Big Boy está definitivamente morto e enterrado.


(*) O Culto do Amador, Andrew Keen, Zahar, 2009.


Friday, November 11, 2016

Invadindo o Éter


Um Transglobe


Há tempos atrás, tive que me mudar e fiquei sem internet. Ao mesmo tempo, um vizinho faleceu e como a família dele pôs muita coisa que não teve tempo de vender fora, eu herdei um Transglobe Philco, um rádio feito para pegar ondas curtas. Como naquele tempo eu tinha um estéreo que, apesar de estar quebrando, ainda funcionava como auxiliar do áudio do meu note (só o rádio funcionava, as funções de CD e casette já estragaram faz tempo), eu o usava.

Com a mudança, eu perdi meu computador, que queimou, e não tem conserto. Ao mesmo temopo, fiquei definitivamente sem Internet em casa e sem rádio. O Transglobe, que eu havia deixado de lado por meses, acabou se tornando a minha única alternativa em casa.

Claro que, a partir dali, sendo só eu, um colchão e um rádio, o aparelho ganhou uma outra dimensão para mim. Principalmente em dias intermináveis, quando eu tinha que ficar o dia em casa, pelo fato de não ter alternativas, chuva ou por ser domingo. O que me salvou, por meses a fio foram os poucos livros que eu ainda carregava comigo e o Transglobe.

Sem querer, voltei ao tempo em que eu era guri e descobri o rádio. Naqueles tempos, sem tevê no quarto, sem Internet, que ainda não existia, a saída era o rádio. Aliás, sempre foi: sempre e cada vezes mais, ele para mim é o único eletrodoméstico possível. Meu primeiro rádio era um de pilhas, pequeno e azul. Pegava após o AM.

Meu pai um dia comprou um rádio-gravador CCE com headphones, que ele usava no quarto, numa época em que ele era fanático por Faixa do cidadão. Foi uma mania dele que, meses depois, passou. e eu herdei aquele rádio-gravador que, além da banda de Am, tinha três de Onda Curta.

Como ele não era exatamente o equipamento ideal para captar ondas tropicais desse tipo — a antena telescópica era curta — eu pouco usava a OC. Porém agora, com um Transglobe, e com sete faixas, eu podia ia muito além da escuta em onda média. O Transglobe tem um dial estendido, isto é, tem uma faixa maior, que permite que seja possível pegar uma emissora no "detalhe", uma rádio de potência baixa do pado de uma com potência alta. Por exemplo, mesmo com a LBV rachando no 1300 khz, eu consigo captar a Tupi do Rio nos 1280. Num radinho de pilhas, isso seria impossível.

Com o Transglobe, agora, eu conseguia pegar emissoras de fora, e de bem longe das da região metropolitana de Porto Alegre, entre elas a ABC 900 e até a São Francisco, de Caxias. Claro que é mais fácil de noite, e no inverno, quando o período noturno é maior. A partir dos estertores da primavera, o dia amanhece muito cedo. A Tupi começa a desaparecer ali pelas cinco da manhã. Ao mesmo tempo, no Inverno, eu cinda consigo pegar rádios de Santa catarina, como a Marabá ou a Porto feliz, ou a Frequência, de Garopaba, Porém, sempre ou no fim da noite ou no começo da manhã, já que a maioria delas sai do ar á meia-noite.

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Meu problema com a onda curta era o total desconhecimento da rotina de escuta nessas faixas. O segundo é que o meu Transglobe tem o ponteiro do dial travado. Então, quando eu uso o seletor para mudar de faixas (35m, 31m, etc), eu faço na base do voo cego: não sei onde nem o que eu vou sintonizar. Porém, consigo notar que essas duas faixas são as que t~em mais incidência de rádios.

A outra questão é que, ao contrário do Am, onde tudo parece estático, a OC é dinâmica. A rádio que eu pago num sábado de tarde eu posso não achá-la amanhã; algumas emissoras que fazem world Service muitas vezes o fazem em determinados horários. Ou seja, não é comum num FM, quando você sintoniza e fica escutando o dia inteiro. Terminou a transmissão para determinado lugar ou espaço geográfico, o sinal some.

Mais: a recepção sobre com as intempéries aqui ou no local da emissão, com a atividade do sol, com a estação do ano. Outras, por exemplo, eu posso achá-la agora mas, de repente, levar meses eu talvez sabe-se lá quando eu irei sintonizá-la novamente. Lembro que aquela que eu peguei tocando uns Berber music, e que tocava aquele tipo de música marroquina, como a daquele disco do Brian Jones, o Joujuka, era realmente marroquina, era a Radio Medi1 de Tanger.

Só descobri o resto da história por causa da Internet. de fato, eles transmitem ao vivo regionais de música bêrbere. Muitas vezes, essas apresentações duram quase vinte minutos, e dão uma ideia do que é esse tipo de música. Achei a Med por acaso, no meio da interpretação, e aquilo não acabava nunca. de repente, alguém falava algo que eu não pude entender. e a música recomeçou. entediado, resolvi passar a estação e não achei mais a Med1.

Das nacionais, me acostumei com a rádio Aparecida que, aliás, não é a única religiosa. Já peguei uma gospel dos estados Unidos, mas não consegui descobrir de onde era ou esqueci. Peguei de noite, e o som era bom. Peguei outras religiosas, mas evangélicas. Por sinal, tanto no Oc quando no AM, é o que mais existe. Parece que, pelo fato de que muitas pentecostais ou arredores não permitam seus respectivos fiés verem TV, o meio principal de difusão delas é, justamente, o rádio.

Não tenho estatísticas quanto ao número de estações no Brasil que sejam hoje eminentemente religiosas. Mas, pelo alto, é possível dizer que são elas que ainda mantém de pé o rádio analógico enquanto fenômeno de massas e de ouvintes. Também cato quase sempre a Rádio Brasil Central até o começo da madrugada, e a Rádio Trans Mundial de manha

Das internacionais, peguei a Martí, para Cuba (de Miami especificamente, mas para a Ilha), a já citada Med1, Rádio Internacional da China mas em espanhol. depois pelas, 4 ela sumiu do dial.


Estações internacionais eu consigo pegar até que em qualquer parte do dia. Contudo, as brasileiras eu sei que, em geral, ficam no ar até lá pelas duas da manhã. Quando eu morava em Curitiba, pegava a Guaíba e a Gaúcha em OC. Porém, hoje, noto que as duas emissoras, depois do advento da Internet, meio que negligenciam essas transmissões. eles inclusive não mais anunciam a interrupção das transmissões em onda curta de madrugada. e quando algum ouvinte rádio-escuta pergunta, os apresentadores em geral não sabem o que responder.

A verdade é que a Internet mudou muito a prática tanto das rádio a respeito da OC, quando á imensa legião de ouvintes dessas faixas. Como acontece com os usuários de um Transglobe, como eu, eles são cada vez menores. É de se imaginar qual seja o perfil de um rádio-escuta de OC hoje, quando nem as próprias agências, jornais e outros meios de comunicação sequer utilizam os serviços mundias de muitas emissoras remanescentes que ainda fazem uso dessa tecnologia para difusão cultural e de radiojornalismo.

Como se sabe, foi uma época que cresceu muito com a Guerra fria e que, mais tarde, com o a queda do Muro e o advento da Internet, foi diminuindo de forma exponencial. Até mesmo rádios como a Guaíba que, desde o começo, sempre fez uso de boletins de estações como BBC, rádio Nederland, Voz da América, com o tempo, só mantinham essa prática por atavismo — até porque, por tradição, a antiga Caldas Júnior sempre deu um valor incomensurável à editoria de mundo, seja no impresso quanto na Guaíba.

Hoje, ao contrário, nem existem razões para manter esse tipo de tecnologia que só não posso chamar de obsoleta porque, depois de me achar tornando-me um rádio-escuta das antigas, muitas rádios ainda não só transmitem na faixa da OC quando algumas, que se fizeram nessa onda, como a Aparecida, produz conteúdo especial para ouvintes dessa faixa. O número de emissoras que faz uso continuo de OC ou Onda Tropical aqui no Brasil se pelo menos não é equiparável às de Am, pelo menos é expressivo o suficiente para que alguém possa dizer que a OC analógica ainda funciona — pelo menos enquanto a digitalização não fazer com que meu Transblobe vire peça de museu.