Thursday, April 27, 2017

The Georgia Peach


Little Richard

No último feriadão eu reli a autobiografia do Little Richard, escrita pelo Charles White, um DJ britânico. O livro saiu por aqui nos anos 80 (nos tempos heróicos da LPM, quando ela ainda era uma editora alternativa e muitos daqueles títulos daquele tempo há muito estão esgotados).

Lembro que eu achei o livro na época na Miscelânea, uma banca que ficava entre o MARGS e os Correios. Eu peguei o livro acho que porque eu estava cavando alguns discos de rockabilly da finada Brasidisc nos sebos de Porto Alegre. Naquele tempo, como se sabe, a internet ainda não existia e um livro como esse era uma chance única de conhecer aquela história. Mesmo publicações de música, revistas em geral, voltavam-se para coisas daquele tempo.

Eu, que era um fedelho de uns dezesseis anos, não gostava nem um pouco do que tocava no rádio (hoje eu tenho muita saudade das canções dos anos 80, quem diria?) e, em pouco tempo, era um fanático roxo por rockabilly e todo aquele material que foi produzido nos anos 50, como, por exemplo, a trilha do filme Loucuras de Verão.

Aquilo era o tipo de coisa que eu procurava em vinil naquele tempo. A gravadora que mais se especializava nesse catálogo era a Brasidisc. Lá por 87, eles lançaram uma coletânea, em parceria com as TVS/SBT, intitulada "O Melhor dos Anos Dourados". O lado A era anos 50 e o B, anos 60. Foi mais ou menos desse elepê que eu saí a à cata de outros discos similares, muitos com fonogramas de onde foram extraídos aquelas faixas do disco.

Desses, eu catei o Georgia Peach, do Little Richard. Achei curioso anos depois que esse disco, na verdade, era uma coletânea bem irregular, e que a primeira parte eram todas regravações que ele havia feito para a Vee-Jay, em 1964. Isso me deixou bem frustrado, e achei aquele material bem lado B do disco pouco ou nada interessante.

O engraçado é que eu não lembro seu eu comprei o disco antes do livro, ou um junto do outro. A verdade é que a tudo o que eu aprendi sobre rock foi na autobiografia do Little Richard.

Claro que, para um guri de 16 anos, aquele livro era um escândalo, tanto pela loucura e a insanidade da juventude dele, vestindo-se de mulher em espetáculos circenses, em vaudevilles ou até mesmo em minnistrels. E aquilo era a cultura daquela juventude pobre, entre a religião, a música gospel, o rhythm'n blues.

Richard bem que aprendeu muito sobre como ser um grande performer naqueles dias. A música, ele aprendeu nos tabernáculos: aquilo era uma segunda natureza. Nós, aqui no Brasil, não temos a menor ideia da influência da música gospel nos norte-americanos, principalmente nos habitantes do sul. Isso explica por que tantos artistas do rock dos anos 50 gravaram discos do gênero em todos os tempos.

Da Brasidisc, eu achei também o dance Album do Carl Perkins. Depois de ler o livro do Richard, sempre achei que tanto Richard quanto Perkins foram injustiçados em favor do Elvis. Ou, no caso do Richard, do Pat Boone que, a despeito de ter regravado muita coisa do Reverendo Penniman, sempre reconheceu a primazia do autor de "Lucille". Ao mesmo tempo, sempre achei que Perkins e Richard fossem dois expoentes de duas respectivas vertentes que, juntas, formariam o rock.

A música do Richard estava impregnada daquele soul que vinha dos spirituals, do gospel, e o R&B. Perkins era uma versão jovem do hillibily e do honky tonk. A diferença é que, como eles eram jovens, eles adaptaram aquele legado à sua maneira. O rockabilly cortava aquele ranço caipira a la Hank Willims, mas não a essência da coisa: a difernça é que eles trocaram a roupa de cowboy e os fiddle players pela bateria, algo impensável nos discos do Williams. E Richard, da mesma forma, adaptou a postura de palco (certamente influenciado por pastores, como James Cliveland, do lado religioso, e de Esquerita, do lado "secular" da coisa), somado a um senso de performance nunca antes vista. Richard era glitter antes do glam rock.

Na verdade, quando eu li o livro pela primeira vez, não conhecia tanto a história do rock a ponto de poder versar sobre essas coisas. Hoje, relendo o livro, ao mesmo tempo em que vejo Richard em Prince, no Creedence, em James Brown, em Hendrix, Otis Redding e em muitos outros, influências tanto óbvias quanto referentes, como no caso confesso (mas também óbvio) de Elton John.

Reler a autobiografia do Richard pois me fez retornar ao tempo da primeira leitura e fazer um contraponto com aquele passado e com a minha primeira formação como ouvinte.

Na verdade, lembro agora: eu comprei o segundo disco da trilha sonora do filme La Bamba. Até então, eu tinha a trilha de outro filme, no mesmo estilo, o "Conta Comigo" (que eu vi na Cinemateca Paulo Amorim, pois ele não saiu em circuito comercial), que tinha Chordettes, Buddy Holly, shirley And Lee, Coasters, coisas assim. eu me apaixonei por aquele tipo de música e não entendia por que aquilo não tocava no rádio. Parecia que os anos 80 fizeram de tudo para que as pessoas esquecessem aquelas músicas, e o fato de não existir, na época, uma forma de entrar em contato com aquilo (como hoje), fazia com que existisse um enorme hiato cultural entre duas eras, de músicas que estavam sendo progressivamente enterradas pelo tempo, e não era pelo fato delas serem ruins. Até porque, com o American Grafitti, houve um revival daquelas canções, cujo paroxismo certamente é o Grease.

Ou seja, sempre foram filmes que trouxeram aquelas músicas de volta. O La Bamba era outro exemplo, já nos estertores dos 80, de outro episódio onde uma fita recordava os anos 50. O próprio cover de "Donna" e "La Bamba" chegaram a tocar muito no rádio na época. Pois o segundo disco da trilha do la Bamba, o "2", era composto de faixas originais e que apareciam incidentalmente na história, como Skyliners, Chuck Berry e outros.

Pois a primeira faixa era "Readdy Teddy". lembro que eu fiquei muito impressionado com aquilo. Era a faixa do primeiro elepê do Richard, e a gravação de 1956, com o Earl Palmer na bateria. Aquilo era fantástico. Quem era aquele cara com aquela voz, que parecia voar como um foguete acima de todos os mortais, cantando aquilo. Meses depois (para ver como era sem internet) que eu descobri que Little Richard era negro. E, quando nós lemos os depoimentos da autobiografia dele, há um trecho com o John Lennon dizendo que ouviu "Long Tall Sally" através de um amigo e chegou a conclusão que 'aquilo' era muito melhor do que o Elvis.

Então, eu acabei acho que descobrindo os Beatles (que eu já conhecia, de um White Album que eu havia ganho de aniversário com 10 anos e que eu nunca ouvi porque nunca vi sentido nenhum naquele disco com capa branca e selo com uma maçã inteira e outra cortada no verso...) porque, quando eram garotos, como eu, os Beatles ouviam e gostavam do mesmo tipo de música que eu gostava. Ou seja, minha identificação com eles deu-se da forma mais estranha possível.

Quer dizer, a partir de "Ready Teddy" que eu descobri o Richard, achei o livro e o disco. O álbum da Brasidisc, bem oportunista, porque saiu na esteira do sucesso da minissérie da Globo, e chamava-se O Ritmo dos Anos Dourados. O disco abria e fechava com Richard. Foi então (agora recordo) que catei o Georgia Peach.

Mas notei que as faixas todas eram regravações. Na verdade, o livro explica: Richard lançou o primeiro trabalho pela speciality. Depois, ao converter-se, gravou um LP gospel muito subestimado, mas produzido pelo Quincy Jones. Logo, essas faixas do Georgia Peach eram da época da Vee-Jay (1964-65). O lado B tinha "Going Home Tomorrow", "Without Love" e "Going Home Tomorrow" (do Don Covay). Alguma coisa contava com Maurice James, o futuro Hendrix, na guitarra. Fiquei frustrado porque as clássicas eram regravações. Porém, hoje acho muitas delas melhores do que as originais.

O curioso é ver, do ponto-de-vista musical (para quem quiser saber de todos os bastidores bizarros da carreira dele, recomendo pois o livro), que, num primeiro momento, ele sofreu com a concorrência com artistas brancos, mesmo tendo sido o primeiro a quebrar com a barreira de público, integrando todos racialmente, pela primeira vez no rock.

O hiato religioso dele de 1958 até 63 foi contra a carreira dele no sentido que Richard perdeu muito do que surgiu na música naquele tempo: numa época em que músicos começavam a desbravar as possibilidades de estúdio, ele ainda era um cara do palco. Fazendo um paralelo com o Elvis: o Rei ficou de fora dessa 'revolução' enquanto estava "perdido" em Hollywood. Quando procurou retomar musicalmente o caminho dele, acabou optando pelo palco, e deixou-se levar pelo comodismo e pela total falta de ambição musical.

Richard, por sua vez, teve primeiro o "retiro espiritual" em seis anos que foram cruciais na mudança do mercado musical. Tanto que, quando ele retoma a carreira "secular", ele é quase atropelado pela onda da Invasão Britânica (que ele conheceu desde e começo, tocando com os então desconhecidos Beatles e Stones, mas nunca imaginou que eles fossem atravessar o Atlântico daquela maneira). Naquele mesmo tempo, a nova geração estava tomando conta dos estúdios e ditando suas próprias produções.

Enquanto isso, Richard tinha a virtude do palco, e precisava de um produtor que o ajudasse nisso. Ele mesmo diz, em determinado trecho do livro, que ele penou com péssimas produções que foram levando ele e sua banda numa irregularidade de mudança constante de selos (Vee-Jay, Mercury, Reprise, Okeh), e nunca conseguiu decolar, a não ser com um single nos anos 70, "Freedom Blues".

Outro fator que ia contra Little Richard: muitos que acreditavam em sua elevação espiritual como pastor passaram a rejeitá-lo. De roldão, muitas rádios do sul o baniram da programação (ao mesmo tempo em que ele não apresentava material consistente e constante), ao passo que outros disk-jockeys, numa época em que, também no sul, a audição era segmentada em favor de artistas negros de emissoras "negras" voltados ao público negro, e que preferiam o som da Motown, Stax, FAME e congêneres.

Richard defendia-se dizendo que não queria ser um Wilson Pickett, não queria ter a música dele associada a um mercado propositalmente tão restrito já que, desde o começo, ele não fazia distinção de cor no tocante ao seu público.

Por último, emissoras de tevê achavam sua performance, com suas roupas e atitude excêntricas demais para a televisão. Ele entendia isso como puro racismo. Mas, como diz o ditado latino, são tempos e modos e, hoje, é risível imaginar que o público se chocasse com a performance dele, comportada até demais com o que vemos agora (e que provavelmente nasceu a partir da própria transgressão perpretada por Richard, há seis décadas).

No fim das contas, ainda em paralelo com o Elvis, Richard optou por investir totalmente em shows em detrimento do trabalho em estúdio (a Reprise, que era uma grande gravadora, foi acusada por ele de não interessar-se em divulgar seus discos, muito embora ele tenha se dado conta de que, como não podia deixar de ser, o esquema de jabá nos anos 70 já tinha se transformado em uma segunda natureza da indústria cultural em todo o mundo) a partir de Las Vegas. Num segundo momento, ele de fato afundou-se num cotidiano de bebida e drogas que só não acabou com ele (como acabou com Elvis) porque ele voltou-se, mais uma vez, para a religião.

Na mesma época em que Charles White lançou o disco, Richard tinha voltado para o mundo da música. Ao mesmo tempo, passou a entender que o rock não era tão demoníaco e, finalmente pôde conciliar tanto música quanto religião (lembrando que a história dele vai até o começo dos anos 80 e o filme feito sobre a obra vai até o começo dos 60). Mas, pelos depoimentos, tanto dele quando de gente como Art Rupe e Bumps Blackwell, mais do que uma mera biografia, a obra ajuda a entender como era a indústria do disco e de entretenimento a partir do começo dos anos 50 (as primeiras gravações de Richard são de 51), e como as duas vertentes, a do rockabilly e a do rhythm'n blues se fundiram numa pororoca chamada rock. O exercício de investigar essas origens sempre faz com que a gente aprenda algo mais e é uma fonte inesgotável de debates — graças a Deus (ou a diabo) — sem fim.




PS: Curioso que, na mesma época em que saíram esses discos e o livro, foi quando as lojas de disco começaram a receber os primeiros compact-discs. Naquele fim dos anos 80 e por muito tempo ainda, era um ítem impossível de comprar, tanto o disquinho quanto o aparelho. E lojas, como A Discoteca, recebiam coleções tipo movie play de coletâneas de artistas de anos 50. Aquilo era uma loucura, mas era um sonho d (elirante)istante, porque eram importados e não sairiam no Brasil. Se saírem, eu não lembro de ter visto. A verdade é que isso era suficiente para ver que o CD estava fazendo uma espécie de reciclagem de décadas de indústria da música a ser retomada na era digital. Com a internet, isso ficou muito mais acessível. Mesmo assim, existe muita coisa de disco (e que colaborativamente é despejado em plataformas virtuais) ainda a ser redescoberta. Para ver que, como naqueles mesmos anos 80, onde o que se esperava em matéria de música (e arte em geral) era o último grito da moda. Agora a gente percebe que existe um baú escondido com música para a gente descobrir. Na era do disco, o que salvava eram as coletâneas. Agora é possível ter acesso a tudo de todo mundo. Ou seja, música não falta.

Friday, April 07, 2017

Não Seja Já! *

Se eu tiver que morrer na flor dos anos por favor meu deus onipotente onisciente e onipresente por favor eu lhe imploro de joelhos por que o que há de mais sagrado por favor please please me não seja já eu quero ouvir na laranjeira à tarde cantar suspiros e saudades o sabiá nas palmeiras de minha terra amada e abençoada que há de tragar a minha derradeira última quimera que a bicharia há de roer todo o meu coração quando em meu peito rebentar a última fibra que me enlaça à dor vivente ai meu deus não me d~e esse tamanho desgosto pelo menos esse não por favor se eu tiver que morrer que não seja já que eu queria ver tanta coisa meu deus tanta coisa my sweet lord que anda na cabeça são tantas bocas que estão falando alto pelos botecos o que vive nos mercados o anil lavado vagando de verso em verso o azul dos céus suburbanos da leal e valorosa que eu quero pisar nos astros distraído não seja já pelo amor do senhor por favor que eu quero ouvir o João Gilberto cantar o pato que não é o pato que ganhou sapato e foi logo tirar retrato mas é o que vinha cantando alegremente quém quém que eu quero ouvir o Dorival cantar os clarins da banda militar e a Doralice e a Marina e a Rosa Morena e o samba da minha terra quero ver as três mulheres do sabonete araxá às 4:00 da tarde meu deus não seja já como dizia o Casimiro poeta pálido e triste lá de Indaiaçu, terra litorânea bonita e serena de entardecer enluarado saravá não me deixe morrer se não eu vou ficar triste de dar dó e o médico disse que é nervoso se eu tiver que morrer eu vou com gosto de fel para a sepultura e o céu até deve ser legalzinho mas não tem o Cruzeiro do Sul meu deus o Cruzeiro do Sul eu não quero ir deixar o meu Brasil varonil país do futuro nossos bosques têm mais vida que é país que vai prafente meu sr meu coração é verde amarelo branco azul anil ninguém segura esse país de todos os santos baianos barroco de pau ôco meu deus me leva sodade inté meu São Sebastião saravá oh eu não quero morrer que a vida é a arte do encontro embora sejam demais os perigos desta vida pelo amor doc~e não me deixa morre que caramba caramboles sou do samba não me amoles que eu quero ver Peri beijar Ceci quero ouvir meu bom disco de Noel que faz dança as arvre do arvoredo e faz a lua nascer mais cedo eu queto ver as jeunnes filles en fleur bicicletantes nas tardes ensombradas de coqueiros quero vestir camisa listrada e sair puraí em vez de tomar chá com torrada quero tomar Paratí se eu tiver que morrer palhaço das perdidas ilusões não sê tão ingrato meu deus espera um pouco, um pouquiiiito más já dizia o bodisatva julio igresias não sê tão ingrato meu deus do céu quero rever meu guaíba rever meu bem querer quero ler o róseo que é leitura indispensável quero terminar de ler aquele Eça que eu parei no ano passado e não continuei mais e esqueci a história quero ver quero ver quero ver me importo por favor me dá uns dois ou três anos pelo menos ó insensato coração porque me fizeste sofrer meu deus por favor não sejá já!






















[inner groove]























* Esse texto tirou terceiro lugar num concurso do Diretório Acadêmico Manuel Bandeira, em 1996, ou seja, há vinte anos. A história dele é engraçada, por isso eu decidi resgatá-lo (ia postar no ano passado, mas acabei protelando e protelando e protelando). Os textos selecionados foram publicados pela PUCRS através do Instituto de Artes, em 1997. Meu texto, uma brincadeira glosando clichês romântico-nacionalistas em fluxo de consciência, Casimiro de Abreu e uma crônica de Vinícius de Moraes (do Para Uma Menina Com Uma Flor, na época meu livro de cabeceira). é divertido transcrevê-lo e lembrar da época da criação dele. Ocorre que, em 1995, eu estagiava num jornal de bairro no Moinhos de Vento. Quando coube a mim fazer a crônica, mandei para o editor esse texto, assim, desta maneira, sem pontuação. Qual não foi minha surpresa quando o texto fora recusado! Acabei brigando com ele infantilmente, com direito a torcida contra e a favor. No fim, perdi a queda de braço e tive que escrever outro texto, dessa vez, com pontuação. O editor me fez, todavia, uma ressalva: publicaria o texto se eu o pontuasse. Como eu entendi que isso estragaria todo o espírito da coisa, eu mesmo vetei o texto. Foi quando, um ano depois, apareceu notícia do concurso do DAMB. Como naturalmente esse texto em fluxo de consciência seria desclassificado como crônica por naturalmente não se enquadrar no gênero. Inscrevi ele em poesia, onde foi selecionado. Porém, sempre achei uma besteira, pois não considero isso poesia. Antes, porém, mandei o obscuramente polêmico "Não Seja Já" para um professor, Gilberto Scarton (naquele tempo eu fazia as cadeiras básicas de Português Aplicado À Comunicação e estava mais ligado às coisas do curso de Letras do que de Comunicação Social, o que era fácil de acontecer quando a gente fica perdido naquele limbo de cadeiras iniciais, onde não se mexe quase nada com o curso pelo qual nos inscrevemos e passamos no concurso vestibular) como exercício de aula, que achou o texto sensacional. Naquele momento, depois da recusa da publicação pelo jornal, eu queria é me livrar desse texto que, a rigor, como sempre acontece quando, com o tempo, a gente começa a estranhar o que produziu, era como se ele elogiasse algo que não era de minha autoria. Um rapaz, que também fora selecionado, me interpelou nos corredores da Famecos, onde estudava. Ele perguntou se eu já tinha lido Joyce. Respondi que sim mas, na verdade, ainda não tinha lido, embora soubesse do monólogo do final de Ulysses. No fim das contas, a única lição que eu tirei desse episódio é que eu deveria ter feito Letras, e não Jornalismo.

Thursday, April 06, 2017

Uma Manhã na Rádio da Universidade


O castelinho do Campus Centro



Esses dias, fui convidado como ouvinte a dar um depoimento sobre a rádio da Universidade, que vai fazer aniversário dia 1º de julho. Eles vão juntar vários depoimentos gravados de ouvintes, professores, ex-funcionários, e lembraram-se de mim. Fiquei um tanto lisonjeado, e ainda por cima feliz em voltar ao castelinho onde fica a emissora, no Campus Centro da UFRGS.

Me pediram para falar algo como uns dois minutos sobre minha história com a rádio. Passei o dia mirabolando alguma coisa. Lembrei de várias. Até porque o rádio é uma companhia constante e, numa época em que as opções na onda média estão cada vez menores, a gente vai se prendendo a poca coisa. Mas a Rádio d-a Universidade sempre será uma constante para mim.

Quando chegou o momento de gravar, numa terça de manhã, cheguei mais cedo, sentei-me nas mesas do Antônio, ali mesmo no Campus, e pus-me a escrever copiosamente o que me viesse à mente. Não tinha computador á mão, logo apelei para meu caderno.

A primeira coisa que eu me lembro da rádio da Universidade é aquele disco arranhado do Roberto Szidon interpretando as polcas e os tangos do Ernesto Nazareth. Lembro que eu achava bonito ficar ouvindo música clássica. Deixava o rádio alto para que todo mundo notasse o maluco que estava escutando clássico. Mas, na verdade, quando eu ouvia aquilo, eu não tinha lá muita ideia do que se tratava. Só que era algo muito distante daquilo que a gente se acostuma a ouvir.

Também me chamava a atenção o som do AM da rádio. Tinha um reverber, algo que é sempre típico do som de cada emissora. Mesmo no AM, a gente percebe uma sensível diferença no áudio de cada canal. o som da 1080 é bem peculiar, o som do estúdio, na hora da locução, ainda mais quando a gente escuta em equipamento antigo.

Ao mesmo tempo, sempre fiquei intrigado. Como uma rádio consegue manter-se no ar tocando coisas que a maioria das pessoas não procura em rádio. Além disso, eu não gostava de música clássica ainda. Achava aquilo exótico, mas ficava pensando nas pessoas que tinham o hábito de ficar ao pé do rádio ouvindo aquilo.

Um dia, tempos depois, eu perguntei ao professor (já aposentado) Sérgio Stosch, que era meu professor na Famecos quando fiz minha primeira graduação, em Jornalismo, lá por 95. Ele ministrava o curso de rádio na faculdade da PUCRS, e me convidou. Foi então a primeira vez que eu estive nas dependências do castelinho.

Achei maravilhosa a concepção daquele prédio avoengo abrigando um estúdio gigantesco, com piano de cauda e tudo. e, no andar do rés do chão, uma sala enorme com discos. Naquele tempo, a rádio ainda tocava disco na maior parte da programação. Eles estavam começando a formar uma cedeteca, e ainda era difícil montar um acervo digital (logo depois, as coisas iriam mudar) mas, mesmo assim, a discoteca da emissora, além de histórica, tinha tudo o que se pudesse imaginar em matéria de música. Por sinal, hoje que todas as rádios deletaram sues respectivos acervos, a 1080 deve ser a única em Porto Alegre que ainda mantém uma discoteca.

Naquele dia, indaguei justamente isso ao Stosch: como uma college radio ainda se mantinha como quer parada no tempo, com uma programação de erudito 24 horas? E justamente focando num tipo de programação que não devia interessar muito aos estudantes da UFRGS. Além do mais, outras universidades tinham uma programação jovem, a Unisinos e a Ulbra (pelo menos, em 95, ainda era uma college radio, até aderir ao pop comercial anos depois, e ainda mais agora, que virou enlatada).

Ele concordou que havia resistência de ouvintes. E era uma marca registrada deles. E a rádio tinha muitos ouvintes de fora, de outros estados e outras cidades, que apreciavam a programação. Ele disse que muitos ouvintes achavam que, devido ao tamanho de muitas peças, alguns reclamavam que achavam que a rádio "esquecia" os seus ouvintes no ar.

O curioso é que, com o tempo, eu refiz o erro de cálculo: eu é que deveria aprender a ouvir a programação da rádio.

Pois, de tanto ouvir aquele disco arranhado do Szidon, eu decidi comprar um disco de música clássica. Então, peguei um fascículo da Abril com peças do Chopin. Aconteceu comigo como aconteceu com relação a ouvir tango: depois que eu comprei o disco e ouvi, minha atenção se voltou para aquele tipo de música.

Ou seja, eu comprei meu primeiro disco de música clássica por causa da rádio da Universidade. Como naquele tempo voc~e comprava vinil de clássico quase de graça em sebos, eu acabei formando uma discoteca gigantesca (sobre ela já aludi em post anterior, chamado "Desapegos", que conta o trágico fim dessa mesma discoteca).

acabei comprando todos aqueles fascículos de música clássica da Abril. Achava legal que, nessa época, a 1080 sempre fazia um breve histórico de algumas peças que eram executadas. Foi uma época de aprendizado, de guiar-me pela programação deles e de aprender sobre a história dos compositores pelos fascículos, e isso numa época em que não havia internet. Hoje, eu me guio pela programação do site, jogo no Google alguma coisa que está tocando. Sempre tem alguma coisa de algum compositor que eu ou ainda não conheço ou que não ouvia há tempos.

Com o tempo, eu acabei virando ouvinte fiel da rádio, depois me desfiz do meu acervo, então, a rádio da Universidade é hoje a minha memória afetiva. Afinal, da minha gigantesca coleção de discos, todos comprados a dedo, sobrou apenas um disco do Bach Edition, com duas cantatas, e a caixa do Nabucco, do Verdi, com o Tito Gobbi. Para mim, o que ficou é o que eles tocam. Meu espólio é a música que anda pelo éter e é transmitida pela rádio da UFRGS. Hoje eu tenho um outro entendimento, e a música que eles tocam é a minha música, o que eu gosto de ouvir.

Num mar de esquisitices, ainda mais hoje, na era do pós-rádio, onde todas as práticas e segmentações foram eliminadas em favor de convergência de mídias e horizontalização com produção de conteúdo virtual por canais da internet, rádio como a da Universidade parecem anacrônicas, como eu a achava, quando jovem, mas vejo que elas são vitais, mas vivem o paradoxo de serem um patrimônio cultural à disposição das pessoas e que é totalmente negligenciada, como em tudo o que se refere a práticas culturais em geral: ninguém mais quer aferrar-se ao que é difícil. Ninguém quem empreender uma jornada em busca de conhecimento. Quer um dispositivo que diga o que eles querem ouvir. Parece ranhetice da minha parte, mas eu digo isso simplesmente porque eu era assim.

Comentei, a guisa de mero improviso, antes de ligarem o microfone para mim, que eu conhecia o espírito da programação musical. Claro que referi-me aos programas institucionais, de professores, de alunos, da associação de professores e a de funcionários, programas que existem ainda, como o Literatura, A Voz do Docente, Sexta Lírica etc. E outros que acabaram, como o Tangos en La Noche. E que sabia que de manhã, eles sempre começam com uma cantata do Bach, depois é um desfile de barroco e clássico, Haydn, Haendel, até ali pela metade da manhã, quando entram os românticos, Liszt, Czerny, Mendelsohn. De tarde, já aparece um Chabrier, Satie, Stravinski, Saint-Saens, Glazunov, Rameau, Respighi, por aí. E, já entrando madrugada adentro, depois do boletim astronômico, aí, como não há as interrupções nas horas cheias, com os boletins de notícia, a programação é copiosa em peças longas, Réquem alemão do Brahms, sinfonias do Mahler, poemas sinfônicos do Strauss, etc.

Acho divertido, e até comentei essas coisas na hora de gravar o spot na rádio. Não havia tempo para falar muito, e acho que falei coisas que não escrevi aqui, da mesma forma que escrevo agora lembrando de coisas que esqueci de falar. Não dei a sugestão á eles, mas a verdade é que daria para fazer um programa com ouvintes falando sobre suas peculiaridades. Um ouvinte de rádio que toca musica clássica é algo como um dodô, uma espécie em vias de extinção. Eu sou um dodô.