Manuscrito do Magnificat de Lobo de Mesquita |
Até meados do século passado, acreditava-se que a música clássica no Brasil teria começado com o Padre José Maurício Nunes Garcia, a partir do começo do século XIX.
Até que um musicólogo alemão naturalizado uruguaio, Francisco
Curt Lange, comissionado pelo governo daquele país como pesquisador, estendeu
seu trabalho em terras brasileiras. Ao conhecer as cidades mineiras históricas,
levantou a hipótese que, assim como ocorrera no campo da arquitetura, aquelas
cidades poderiam ter abrigado manifestações musicais do mesmo nível e excelência.
Lange foi desestimulado por estudiosos brasileiros: todos em
coro afirmavam que não havia nada anterior ao Padre Maurício. Sem se abalar,
Lange arrumou um jipe e foi à campo. Bateu de porta em porta pelo interior de Minas
Gerais afora em busca de uma pista.
Um dia, eis que um morador lhe mostrou um manuscrito. Era uma
partitura. O frontispício dizia: Antífona de Nossa Senhora, para coral e baixo
contínuo. O documento datava de 1787 – dois anos antes da Inconfidência
Mineira. A antífona – uma peça curta executada antes ou depois da leitura de um
salmo – era de autoria de Lobo de Mesquita, compositor sacro nascido em Serro,
em 1746.
Lange quis comprar tudo o que o homem tivesse do mesmo tipo. Ele
não tinha noção do valor daqueles papéis: em geral, aquilo era usado como matéria
prima para fogos de artifício.
Ao fichar todo o material que ele pôde recolher daquela frutífera
viagem, Lange percebeu que havia uma espécie de cena musical sacra no século
XVIII em Minas sem precedentes. Mais do que isso, os manuscritos eram a prova
viva de que a história da música clássica no Brasil, ao contrário do que se
pensava, era muito anterior à Maurício Nunes Garcia.
Segundo Júlio Medaglia (*), muitos pesquisadores que defendiam a
tese de que José Maurício era o primeiro compositor passaram a execrar Curt
Lange, acusando-o de falsear aquelas manuscritos. Sem se abalar, ele publicou
as partituras no Uruguai e levou Lobo de Mesquita ao teatro Colón, em Buenos
Aires.
Foi quando começou o segundo round: certos agora de que os
manuscritos não eram apócrifos, Lange foi acusado de surrupiar documentos históricos
brasileiros. No meio da polêmica, uma caravana da revista O Cruzeiro, de Assis
Chateaubriand, foi entrevistá-lo a respeito da descoberta. O que Curt não sabia
é que a matéria, quando publicada, longe de ser um encômio ao insigne
pesquisador teuto-uruguaio, era uma denúncia de que Lange havia se apropriado
das partituras de forma indevida.
Antecipando-se a qualquer movimento por parte de algum órgão
policial ou diplomático, o musicólogo viajou até São Paulo e confiou os
arquivos à Medaglia, que manteve o material escondido e à salvo.
Enquanto Curt Lange retornava ao Uruguai, Júlio recorreu a Sérgio
Buarque de Holanda e Lourival Gomes Machado, especialista em barroco no Brasil.
O objetivo era promover um ciclo de palestras na USP a respeito da música
barroca em Minas Gerais no século XVIII. O simpósio ocorreria em junho de 1965,
com Lange pontificando sobre o tema para uma platéia gigantesca. “A partir
daquele momento”, diz Medaglia, “aquelas partituras originais puderam exibir
suas belíssimas sonoridades pelo mundo afora, sem mais correr o risco de ir
parar nos fundos de uma delegacia de polícia de um subúrbio do Rio de Janeiro”.
Dezessete anos depois, o corpus desse material, sob a curadoria
de Régis Duprat, foi integrado ao Museu da Inconfidência, em Ouro Preto. Ao
todo, Curt Lange, além de Lobo de Mesquita, segundo ele, o maior compositor sacro
do século XVIII, catalogou cerca de cinqüenta autores, todos mulatos integrados
a ordens religiosas, como Ignácio Neves, Castro Lobo, Marcos Coelho Neto e José
Maria Xavier (parente de Tiradentes), entre outros.
Lange porém faz uma ressalva, corroborada por Medaglia: a
despeito de serem associados, do ponto de vista estético, ao barroco, a produção
musical mineira tem uma linguagem diversa do que poderíamos entender como
barroco. Ao contrário, a linguagem musical desses compositores está mais próxima
do que poderíamos chamar de pré-classicismo, no estilo de Pergolesi, ou Johann Christian
Bach, que influenciaria a música de Mozart, por exemplo.
Além disso, em sua pesquisa, Curt Lange não apenas demonstrou
que existia uma cena musical em Minas no século XVIII quanto descobriu que o
material que ele amealhou é, na verdade, aponta do iceberg de uma produção
muito maior. Segundo ele, só em Diamantina, integrados a ordens religiosas,
havia mais de 2 mil músicos em atividade. E, nesse meio tempo, pelo descaso pela
memória desses artistas e o desconhecimento por parte dos agentes locais, muito
se perdeu. Para se ter uma ideia, da vasta produção de Ignácio Neves, restou
apenas um Credo.
Resta o consolo que, mesmo que a maior parte dessas obras tenha
sido perdida, o que chegou até nós está plenamente preservado, arquivado e documentado (e gravado). Como diz Júlio Medaglia, graças a Curt Lange,
essas peças musicais hoje fazem parte do patrimônio musical brasileiro, e seu
nome ocupa um merecido lugar de destaque em nossa história.
(*) Júlio Medaglia, Música, maestro: do canto gregoriano ao sintetizador. São Paulo: Globo, 2008.
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