Los Gatos, o primeiro levante do rock argentino |
Certa
feita que eu tive que produzir um programa de rádio sobre a história do rock
argentino. A primeira coisa que me veio à mente era um álbum que eu tinha, do
Los Shakers. Na verdade, tratava-se de uma banda de origem uruguaia mas que
acabou fazendo sucesso na Argentina, bem no auge dos Beatles. Mais do que isso,
eles emulavam o som dos cabeludos de Liverpool. Ao mesmo tempo, me dei conta
que não existia nenhuma publicação sobre o assunto publicado aqui no Brasil. Os
Shakers, no entanto, fizeram grande sucesso por aqui, e inclusive chegaram aos
primeiros lugares lá por 1967 com um compacto com “Never, Never” no lado A. Mas,
ao pesquisar, percebi o meu erro geográfico em associá-los ao rock argentino. E me dei conta que, assim como eu, a maioria
dos brasileiros têm uma ideia vaga/não tem a mínima ideia do que é produzido
nesse gênero musical do lado de lá da fronteira.
Quem
é da geração dos anos 80 aqui em Porto Alegre deve se lembrar que a rádio
Ipanema tocava bastante coisa de rock argentino. Isso não se dava só por uma
questão de proximidade, mas de afinidade musical. Ao mesmo tempo, depois de um
interregno com um histórico de repressão e esvaziamento cultural, tudo era novo
naquela nova década. Então era possível: Los Abuelos de Nada, Manal, Seru
Girán, Almendra, Vox Dei, muita coisa chegava até aqui gravada em fita.
Muitas
dessas bandas não tinham discos lançados por aqui. Muita coisa do outro lado,
do Prata, chegava em fitas, em discos trazidos por gente que mochilava por
Montevidéu e Buenos Aires e trazia aqueles discos como se fossem novidade. Foi através dessa rede de contatos que Charly
Garcia veio tocar aqui, ainda naquela época, quando tocou "Los Dinosaurios" em
pleno saudoso Teatro Leopoldina. Sua gira por aqui foi fruto dessa difusão
cultural meio incipiente, mas bastante sincera, por parte dos pares daqui, que
desde sempre apreciaram o rock platino.
Daí
o papel de uma emissora alternativa como a Ipanema, em dar a oportunidade de
descobrir aquele som, que era tão singular que nos fazia vislumbrar um outro
mundo. O rock argentino, pelo menos para mim, sempre se notabilizou por ser um
mundo diverso. Mesmo não obstante lançando mão de elementos tributários do rock
original, eles souberam fazer uma fotossíntese musical com uma linguagem
própria, e desde o começo. Isso fez com que, pelo menos por aqui, esse gelo que
existe entre culturas tão diversas, como a nossa e a deles, pudessem encontrar
pontos de contato.
A
nossa MPG, que floresceu de forma tão mal documentada e com lacunas em sua
visibilidade, a partir dos anos 1970, parecia fazer uma infusão originalíssima
de elementos ‘telúricos’ em sua dinâmica. Isto é, essa música urbana daqui
parecia ter algo de similar com os argentinos, de dialogar com elementos tão
caros à latinidade. E o rock argentino, mesmo que para nós (ou para mim) pareça
às vezes como o som de uma aldeia gaulesa no extremo sul do continente, ele
estava voltado para os demais países da latinoamérica. Tanto que basta ver como
bandas como Soda Stereo pavimentaram seu sucesso por toda a américa espanhola,
enquanto por aqui muita gente ainda acha que “De Música Ligeira” é do Capital Inicial (?).
Essa
defasagem cultural, e esse estranhamento de culturas tão próximas quanto
diversas fala muito como nós somos com relação à 1) cultura latina em geral; 2)
quanto à cultura argentina especificamente. No primeiro caso, lembro de Luís
Felipe de Alencastro, comentando sobre seu livro, “O Trato dos Viventes”,
quando ele dizia que, de fato, não existe uma integração entre a latinoamérica
e o Brasil. Ou seja, essa é uma barreira intransponível. Por outro lado, existe
a velha rixa entre brasileiros e platinos, mais especificamente argentinos. Uma
rivalidade que fala mais de preconceitos e etnocentrismos que talvez nunca ou
apenas parcialmente sejam resolvidos. Mas esse é um assunto deveras complexo,
e transcende a proposta desse post.
Ao
esquadrinhar a trajetória do rock argentino, acho interessante procurar pontos
de contato com o rock brasileiro. No começo, tanto lá como aqui, os primeiros
artistas de rock eram músicos mais experimentados (mais velhos) e oriundos de outros
gêneros musicais, como Eddie Pequenino (lá) emulando Bill Haley e Nora Ney
(aqui). No começo dos anos 1960, houve na Argentina um movimento, o Nova Ola:
pré-beatlemania, que era uma espécie de proto Jovem Guarda deles. El Club del Clan era o programa de TV
que lançou a moda da Nova Ola. Conjuntos de baile já faziam sucesso na tevê,
como os Modern Rockers e Los Red Caps. O programa sofreu patrulha como
aconteceu com o Jovem Guarda aqui, bem mais tarde, com a turma da linha dura da
MPB engajada.
Eu
havia comentado a respeito dos Shakers, e realmente eles foram um fenômeno
interessante, tanto para o bem quanto para o mal. Para o bem porque, ao que me
parece, como instrumentistas e intérpretes, eles eram impecáveis, e talvez não
tivessem páreo ou similar no Brasil. Acho que a maioria dos conjuntos (com
exceção dos Clevers) brasileiros estavam aquém do sarrafo lançado por eles.
Para o mal porque, a despeito da excelência deles, os Shakers era quase uma
banda cover dos Beatles, como os Mockers eram um símile dos Stones com os
Kinks. E, além do mais, eles cantavam em inglês, o que confundia mais as
coisas. A Audio Fidelity, de Sidney Frey chegou a tentar lança-los nos Estados
Unidos, mas eles apareceram para eles mais como curiosidade: não havia como
competir no mercado ianque com bandas inglesas e americanas fazendo rock nas
paradas de sucesso.
Porém,
uma coisa interessante a respeito do rock argentino com o brasileiro é que,
enquanto aqui ele parecia cada vez mais calcado em covers e baseado no programa
Jovem Guarda da Record, e parecia degladiar-se (de forma compulsória, provocada
por Paulo Machado de Carvalho, o dono da emissora), na Argentina, ainda em
1966/7, um movimento de raiz universitária e underground já buscava saídas no
sentido de conquistar autonomia e linguagem próprias. Grupos de jovens músicos
passaram a se encontrar em espaços como o La Cueva” , o Instituto di Tella ou
bares como a pizzaria “La Perla”. Esses músicos, que iriam virar figuras de
proa nesse movimento, seriam Litto Nebbia e Ciro Fogliata, Pappo Napolitano,
Miguel Abuelo e Tanguito, entre outros. A partir de reuniões no La Perla del
Once que iriam surgir aquela que seria a trilogia inicial do “novo” rock
argentino: Los Gatos, Almendra e Manal.
Essas bandas, muito pouco conhecidas por aqui, foram as que resolveram
esse impasse provocado pelo rock argentino até então tão influenciado pela tevê
e pelo som internacional. A partir deles, com estilos próprios – embora
naturalmente não negando essas influências pontuais do rock internacional, mas
na demanda de uma síntese local. Ou seja, muito antes do Brasil, quando o
gênero iria boiar no underground pelos anos 1970 afora com bastante dificuldade
de atingir visibilidade na mídia, lá o rock conquistou afirmação desde cedo. E,
desde aquele tempo, ele adotou uma postura alternativa, evitando qualquer
relação com o mainstream e as grandes gravadoras, em favor de selos underground,
como o Mandioca, que, guardadas as devidas proporções, poderia ser comparada à Rozemblit com relação ao udigrudi da psicodelia nordestina dos anos 1970.
Ao
mesmo tempo, como se pode ver, muitas dessas bandas foram passando por projetos
efêmeros ao longo da década seguinte, e,
minha impressão é a de que existia uma integração muito grande entre os
músicos de lá, e que se relacionou com as novas gerações do rock. Aqui, no
Brasil, parece que são momentos muito deslocados no tempo e que existe uma
distância geracional entre roqueiros dos anos 1960, dos anos 1970 e 1980.
Lá,
muitas daquelas bandas se separariam e se reuniriam em projetos tanto efêmeros
quanto paralelos. E, ao contrário do Brasil, onde a fusão entre a música
folclórica e o rock parecia algo inexistente (com exceção de alguns exemplos,
como no rock rural de Zé Rodrix ou o manguebeat
da nação Zumbi), o rock argentino, ao longo dos anos 1970 e estimulado por luminares
da Guarda Vieja, começou a experimentar a mistura entre o folk platino e o
rock, emprestando a ele uma incrível originalidade e densidade musical - algo que eu julgo difícil de ver algo similar no rock de qualquer outro país
Enfim,
parece que o rock lá amadureceu muito e de forma rápida e massiva lá ao
contrário do Brasil, que era fatalmente tributário da Jovem Guarda e bandas
alternativas aqui naquele períoso não chegaram a criar um movimento massivo
independente aqui, como lá. Por exemplo, conjuntos de blues como Manal, que
lembra vagamente o Capitain Beefheart no começo da carreira, seria algo
impensável no Brasil do final dos anos 1960.
Por
conta da tevê e dos produtores de gravadoras como a CBS, o Brasil estilizou o
rock para se tornar algo radiofônico e televisivo. Talvez por isso que ele
levou tempo para tornar-se original. Los Gatos, que é responsável pelo big-bang
do novo rock platino, poderia ser comparado nesse sentido aos Mutantes no
sentido de fazer uma produção musical mais ligada com o rock de fora do que o
enlatado da JG. Tem pouca penetração no mercado brasileiro, embora tenha grande aceitação nos demais
países da latinoamérica.
Los
Gatos, com “La Balsa”, foi responsável por essa nova vertente: era um som menos alegre e mais reflexivo e
cerebral. Já os anos 1980 lá já têm outra perspectiva, mais “moderna” e pop, aí
acho que mais ou menos como aconteceu no Brasil. Mesmo assim, o rock argentino
não penetrava aqui. Um exemplo é o Los Pericos com “El rictual de la
Banana” que estourou em toda a américa e não obteve o mesmo êxito aqui. A
despeito de ser ska ela tem a cara daquele pop descompromissado daqueles
tempos. Los Pericos (guardadas as devidas...etc) poderia ser comparado com os Paralamas. Aliás, seriam os
Paralamas os responsáveis por estabelecer uma ponte entre a cultura rock do
cone sul e o rock brasileiro. Se pensarmos a partir deles, o trio é um grande
ponto de partida para descobrir o rock latino-americano. Porém, nos anos 1980,
tudo aqui era novo e havia muita coisa para se assimilar. Ao mesmo tempo, como
foi dito anteriormente, nós aqui éramos pautados pelo que passava no rádio e na
tevê, e essa agenda, naturalmente paga, não tinha espaço para o que vinha de
lá.
Além
do mais, o rock aqui já como gênero
pleno de segmento jovem parece abarcar uma faixa bastante homogênea. Lá a
gurizada é rock, digamos que, 100%;. no Brasil a coisa era bastante homogênea
nos anos 80 e se diluiu se fragmentou. O rock não morreu na Argentina como
gênero e isso é um fenômeno cultural deles. E o rock brasileiro sem exceções
parece que embarangou de vez. E lá, não é preciso dizer aqui, os caras são fanáticos porque tem a mesma
passionalidade dos torcedores de futebol de lá. É outra coisa.
Aliás,
é admirável que lá pareça existir essa relação mais colaborativa entre bandas e
músicos da relação do Charly Garcia com Fito Paez e deles com o Luís Spinetta o
que mostra que a nova e a velha geração mantém entre si uma relação cordial e
contínua ao longo do tempo.
O
rock argentino com o tempo foi encontrando suas raízes. Como se não bastasse
ser acossado pela repressão, a partir da segunda metade dos anos 1970, quando
muita gente teve que sair do país, na outra frente as críticas vinham da parte
de folcloristas como Ariel Ramirez ou membros da guarda velha do tango como
Osvaldo Pugliesi.
Acusado
de ser alienante e americanizado foi objeto de uma curiosa polêmica quando, em 1977,
o jornal Opinion reuniu Ramirez
Pugliese e outros para entrevistar Charly Garcia, bem na época em que ele fazia
sucesso com um projeto de rock progressivo e sinfônico: o La Máquina de Hacer
Pájaros. Com o passar dos anos contudo, a nova música foi assimilada e as
críticas diminuíram à medida que o próprio caráter das bandas de rock do país
passaram e voltar-se para elementos da cultura platense em geral. Pugliese,
então um dos grandes críticos do rock naquele período, mais tarde rendeu-se ao
trabalho de músicos como Fito Paez, por exemplo.
Falando
em Charly, é incrível como ele é um elemento medular na história do rock
argentino, na minha opinião, sem similar no Brasil. Ele vem desde os tempos do Sui
Generis, a primeira grande banda do Charly, e que tinha um estilo que lembrava
o Crosby Stills e Nash, além de uma pitada de Wings do começo da carreira. Era
um duo como o nosso Sá e Guarabyra que, já na sua fase final, viraria um
quarteto elétrico em Pequeñas anécdotas sobre las Instituciones. Aqui, as
letras deixam a nota mais hippie e passam a refletir cada vez mais o conturbadíssimo
ambiente político argentino do começo dos anos 1970 que iria desaguar no golpe
de 76.
Depois
da ‘Maquina’ Garcia formaria a Seru Giran com Pedro Aznar, com Charly, depois
de idas e vindas pelo mundo, já de volta
à cena portenha do rock. Depois de revolucionar o gênero, no final dos 70, a banda se dissolve — curiosamente em 1982, ano do fim do regime
militar, e que seria lembrada como o marco do começo da era de ouro do rock
argentino, de 1983 até 1996. Curiosamente, o período de maior proeminência rock
na Argentina foi um dos períodos de maior recessão econômica do país no século
passado.
Nesse
momento, Charly troca qualquer tipo de projeto solo em favor de uma carreira
solo. No começo ainda colabora com os Abuelos de Nada, banda ainda dos tempos
dos Los Gatos, lá em 1968, mas que
depois de se dissolver, acabou retomando as atividades naquele ano aproveitando
o surgimento do novo movimento do rock e seguiu até 88 com a morte de Miguel
Abuelo. E, já nos anos 1990, vê-se a ascensão da cena alternativa e do heavy
metal, o que demonstra que o sarrafo do rock de lá sempre esteve lá no alto, e
assim continua até hoje.
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