Monday, December 16, 2019

La Balsa

Los Gatos, o primeiro levante do rock argentino



Certa feita que eu tive que produzir um programa de rádio sobre a história do rock argentino. A primeira coisa que me veio à mente era um álbum que eu tinha, do Los Shakers. Na verdade, tratava-se de uma banda de origem uruguaia mas que acabou fazendo sucesso na Argentina, bem no auge dos Beatles. Mais do que isso, eles emulavam o som dos cabeludos de Liverpool. Ao mesmo tempo, me dei conta que não existia nenhuma publicação sobre o assunto publicado aqui no Brasil. Os Shakers, no entanto, fizeram grande sucesso por aqui, e inclusive chegaram aos primeiros lugares lá por 1967 com um compacto com “Never, Never” no lado A. Mas, ao pesquisar, percebi o meu erro geográfico em associá-los ao rock argentino.  E me dei conta que, assim como eu, a maioria dos brasileiros têm uma ideia vaga/não tem a mínima ideia do que é produzido nesse gênero musical do lado de lá da fronteira.

Quem é da geração dos anos 80 aqui em Porto Alegre deve se lembrar que a rádio Ipanema tocava bastante coisa de rock argentino. Isso não se dava só por uma questão de proximidade, mas de afinidade musical. Ao mesmo tempo, depois de um interregno com um histórico de repressão e esvaziamento cultural, tudo era novo naquela nova década. Então era possível: Los Abuelos de Nada, Manal, Seru Girán, Almendra, Vox Dei, muita coisa chegava até aqui gravada em fita.
Muitas dessas bandas não tinham discos lançados por aqui. Muita coisa do outro lado, do Prata, chegava em fitas, em discos trazidos por gente que mochilava por Montevidéu e Buenos Aires e trazia aqueles discos como se fossem novidade.  Foi através dessa rede de contatos que Charly Garcia veio tocar aqui, ainda naquela época, quando tocou "Los Dinosaurios" em pleno saudoso Teatro Leopoldina. Sua gira por aqui foi fruto dessa difusão cultural meio incipiente, mas bastante sincera, por parte dos pares daqui, que desde sempre apreciaram o rock platino.

Daí o papel de uma emissora alternativa como a Ipanema, em dar a oportunidade de descobrir aquele som, que era tão singular que nos fazia vislumbrar um outro mundo. O rock argentino, pelo menos para mim, sempre se notabilizou por ser um mundo diverso. Mesmo não obstante lançando mão de elementos tributários do rock original, eles souberam fazer uma fotossíntese musical com uma linguagem própria, e desde o começo. Isso fez com que, pelo menos por aqui, esse gelo que existe entre culturas tão diversas, como a nossa e a deles, pudessem encontrar pontos de contato.

A nossa MPG, que floresceu de forma tão mal documentada e com lacunas em sua visibilidade, a partir dos anos 1970, parecia fazer uma infusão originalíssima de elementos ‘telúricos’ em sua dinâmica. Isto é, essa música urbana daqui parecia ter algo de similar com os argentinos, de dialogar com elementos tão caros à latinidade. E o rock argentino, mesmo que para nós (ou para mim) pareça às vezes como o som de uma aldeia gaulesa no extremo sul do continente, ele estava voltado para os demais países da latinoamérica. Tanto que basta ver como bandas como Soda Stereo pavimentaram seu sucesso por toda a américa espanhola, enquanto por aqui muita gente ainda acha que “De Música Ligeira”  é do Capital Inicial (?).

Essa defasagem cultural, e esse estranhamento de culturas tão próximas quanto diversas fala muito como nós somos com relação à 1) cultura latina em geral; 2) quanto à cultura argentina especificamente. No primeiro caso, lembro de Luís Felipe de Alencastro, comentando sobre seu livro, “O Trato dos Viventes”, quando ele dizia que, de fato, não existe uma integração entre a latinoamérica e o Brasil. Ou seja, essa é uma barreira intransponível. Por outro lado, existe a velha rixa entre brasileiros e platinos, mais especificamente argentinos. Uma rivalidade que fala mais de preconceitos e etnocentrismos que talvez nunca ou apenas parcialmente sejam resolvidos. Mas esse é um assunto deveras complexo, e  transcende a proposta desse post.

Ao esquadrinhar a trajetória do rock argentino, acho interessante procurar pontos de contato com o rock brasileiro. No começo, tanto lá como aqui, os primeiros artistas de rock eram músicos mais experimentados (mais velhos) e oriundos de outros gêneros musicais, como Eddie Pequenino (lá) emulando Bill Haley e Nora Ney (aqui). No começo dos anos 1960, houve na Argentina um movimento, o Nova Ola: pré-beatlemania, que era uma espécie de proto Jovem Guarda deles. El Club del Clan era o programa de TV que lançou a moda da Nova Ola. Conjuntos de baile já faziam sucesso na tevê, como os Modern Rockers e Los Red Caps. O programa sofreu patrulha como aconteceu com o Jovem Guarda aqui, bem mais tarde, com a turma da linha dura da MPB engajada.

Eu havia comentado a respeito dos Shakers, e realmente eles foram um fenômeno interessante, tanto para o bem quanto para o mal. Para o bem porque, ao que me parece, como instrumentistas e intérpretes, eles eram impecáveis, e talvez não tivessem páreo ou similar no Brasil. Acho que a maioria dos conjuntos (com exceção dos Clevers) brasileiros estavam aquém do sarrafo lançado por eles. Para o mal porque, a despeito da excelência deles, os Shakers era quase uma banda cover dos Beatles, como os Mockers eram um símile dos Stones com os Kinks. E, além do mais, eles cantavam em inglês, o que confundia mais as coisas. A Audio Fidelity, de Sidney Frey chegou a tentar lança-los nos Estados Unidos, mas eles apareceram para eles mais como curiosidade: não havia como competir no mercado ianque com bandas inglesas e americanas fazendo rock nas paradas de sucesso.

Porém, uma coisa interessante a respeito do rock argentino com o brasileiro é que, enquanto aqui ele parecia cada vez mais calcado em covers e baseado no programa Jovem Guarda da Record, e parecia degladiar-se (de forma compulsória, provocada por Paulo Machado de Carvalho, o dono da emissora), na Argentina, ainda em 1966/7, um movimento de raiz universitária e underground já buscava saídas no sentido de conquistar autonomia e linguagem próprias. Grupos de jovens músicos passaram a se encontrar em espaços como o La Cueva” , o Instituto di Tella ou bares como a pizzaria “La Perla”. Esses músicos, que iriam virar figuras de proa nesse movimento, seriam Litto Nebbia e Ciro Fogliata, Pappo Napolitano, Miguel Abuelo e Tanguito, entre outros. A partir de reuniões no La Perla del Once que iriam surgir aquela que seria a trilogia inicial do “novo” rock argentino: Los Gatos, Almendra e Manal. 

Essas bandas, muito pouco conhecidas por aqui, foram as que resolveram esse impasse provocado pelo rock argentino até então tão influenciado pela tevê e pelo som internacional. A partir deles, com estilos próprios – embora naturalmente não negando essas influências pontuais do rock internacional, mas na demanda de uma síntese local. Ou seja, muito antes do Brasil, quando o gênero iria boiar no underground pelos anos 1970 afora com bastante dificuldade de atingir visibilidade na mídia, lá o rock conquistou afirmação desde cedo. E, desde aquele tempo, ele adotou uma postura alternativa, evitando qualquer relação com o mainstream e as grandes gravadoras, em favor de selos underground, como o Mandioca, que, guardadas as devidas proporções, poderia ser comparada à Rozemblit com relação ao udigrudi da psicodelia nordestina dos anos 1970.

Ao mesmo tempo, como se pode ver, muitas dessas bandas foram passando por projetos efêmeros ao longo da década seguinte, e,  minha impressão é a de que existia uma integração muito grande entre os músicos de lá, e que se relacionou com as novas gerações do rock. Aqui, no Brasil, parece que são momentos muito deslocados no tempo e que existe uma distância geracional entre roqueiros dos anos 1960, dos anos 1970 e 1980. 

Lá, muitas daquelas bandas se separariam e se reuniriam em projetos tanto efêmeros quanto paralelos. E, ao contrário do Brasil, onde a fusão entre a música folclórica e o rock parecia algo inexistente (com exceção de alguns exemplos, como no rock rural de Zé Rodrix ou o manguebeat da nação Zumbi), o rock argentino, ao longo dos anos 1970 e estimulado por luminares da Guarda Vieja, começou a experimentar a mistura entre o folk platino e o rock, emprestando a ele uma incrível originalidade e densidade musical - algo que eu julgo difícil de ver algo similar no rock de qualquer outro país

Enfim, parece que o rock lá amadureceu muito e de forma rápida e massiva lá ao contrário do Brasil, que era fatalmente tributário da Jovem Guarda e bandas alternativas aqui naquele períoso não chegaram a criar um movimento massivo independente aqui, como lá. Por exemplo, conjuntos de blues como Manal, que lembra vagamente o Capitain Beefheart no começo da carreira, seria algo impensável no Brasil do final dos anos 1960.  

Por conta da tevê e dos produtores de gravadoras como a CBS, o Brasil estilizou o rock para se tornar algo radiofônico e televisivo. Talvez por isso que ele levou tempo para tornar-se original. Los Gatos, que é responsável pelo big-bang do novo rock platino, poderia ser comparado nesse sentido aos Mutantes no sentido de fazer uma produção musical mais ligada com o rock de fora do que o enlatado da JG. Tem pouca penetração no mercado brasileiro,  embora tenha grande aceitação nos demais países da latinoamérica.

Los Gatos, com “La Balsa”, foi responsável por essa nova vertente:  era um som menos alegre e mais reflexivo e cerebral. Já os anos 1980 lá já têm outra perspectiva, mais “moderna” e pop, aí acho que mais ou menos como aconteceu no Brasil. Mesmo assim, o rock argentino não penetrava aqui. Um   exemplo é o Los Pericos com “El rictual de la Banana” que estourou em toda a américa e não obteve o mesmo êxito aqui. A despeito de ser ska ela tem a cara daquele pop descompromissado daqueles tempos. Los Pericos (guardadas as devidas...etc) poderia ser comparado com os Paralamas. Aliás, seriam os Paralamas os responsáveis por estabelecer uma ponte entre a cultura rock do cone sul e o rock brasileiro. Se pensarmos a partir deles, o trio é um grande ponto de partida para descobrir o rock latino-americano. Porém, nos anos 1980, tudo aqui era novo e havia muita coisa para se assimilar. Ao mesmo tempo, como foi dito anteriormente, nós aqui éramos pautados pelo que passava no rádio e na tevê, e essa agenda, naturalmente paga, não tinha espaço para o que vinha de lá. 

Além do mais,  o rock aqui já como gênero pleno de segmento jovem parece abarcar uma faixa bastante homogênea. Lá a gurizada é rock, digamos que, 100%;. no Brasil a coisa era bastante homogênea nos anos 80 e se diluiu se fragmentou. O rock não morreu na Argentina como gênero e isso é um fenômeno cultural deles. E o rock brasileiro sem exceções parece que embarangou de vez. E lá, não é preciso dizer aqui, os caras são fanáticos porque tem a mesma passionalidade dos torcedores de futebol de lá. É outra coisa.

Aliás, é admirável que lá pareça existir essa relação mais colaborativa entre bandas e músicos da relação do Charly Garcia com Fito Paez e deles com o Luís Spinetta o que mostra que a nova e a velha geração mantém entre si uma relação cordial e contínua ao longo do tempo. 

O rock argentino com o tempo foi encontrando suas raízes. Como se não bastasse ser acossado pela repressão, a partir da segunda metade dos anos 1970, quando muita gente teve que sair do país, na outra frente as críticas vinham da parte de folcloristas como Ariel Ramirez ou membros da guarda velha do tango como Osvaldo Pugliesi.

Acusado de ser alienante e americanizado foi objeto de uma curiosa polêmica quando, em 1977, o jornal Opinion reuniu Ramirez Pugliese e outros para entrevistar Charly Garcia, bem na época em que ele fazia sucesso com um projeto de rock progressivo e sinfônico: o La Máquina de Hacer Pájaros. Com o passar dos anos contudo, a nova música foi assimilada e as críticas diminuíram à medida que o próprio caráter das bandas de rock do país passaram e voltar-se para elementos da cultura platense em geral. Pugliese, então um dos grandes críticos do rock naquele período, mais tarde rendeu-se ao trabalho de músicos como Fito Paez, por exemplo.

Falando em Charly, é incrível como ele é um elemento medular na história do rock argentino, na minha opinião, sem similar no Brasil. Ele vem desde os tempos do Sui Generis, a primeira grande banda do Charly, e que tinha um estilo que lembrava o Crosby Stills e Nash, além de uma pitada de Wings do começo da carreira. Era um duo como o nosso Sá e Guarabyra que, já na sua fase final, viraria um quarteto elétrico em Pequeñas anécdotas sobre las Instituciones. Aqui, as letras deixam a nota mais hippie e passam a refletir cada vez mais o conturbadíssimo ambiente político argentino do começo dos anos 1970 que iria desaguar no golpe de 76.

Depois da ‘Maquina’ Garcia formaria a Seru Giran com Pedro Aznar, com Charly, depois de idas e vindas pelo mundo,  já de volta à cena portenha do rock. Depois de revolucionar o gênero, no final dos 70,  a banda se dissolve   curiosamente em 1982, ano do fim do regime militar, e que seria lembrada como o marco do começo da era de ouro do rock argentino, de 1983 até 1996. Curiosamente, o período de maior proeminência rock na Argentina foi um dos períodos de maior recessão econômica do país no século passado.

Nesse momento, Charly troca qualquer tipo de projeto solo em favor de uma carreira solo. No começo ainda colabora com os Abuelos de Nada, banda ainda dos tempos dos Los Gatos, lá em  1968, mas que depois de se dissolver, acabou retomando as atividades naquele ano aproveitando o surgimento do novo movimento do rock e seguiu até 88 com a morte de Miguel Abuelo. E, já nos anos 1990, vê-se a ascensão da cena alternativa e do heavy metal, o que demonstra que o sarrafo do rock de lá sempre esteve lá no alto, e assim continua até hoje.  



No comments: