Monday, January 04, 2021

Os "Frenéticos do Ritmo"

Gerry Marsden no Cavern Club, circa 1963.


Ao comentar o desaparecimento do líder dos Gerry and the Pacemakers, neste domingo (3) Paul McCartney lembrou que eles eram seus principais rivais em Liverpool e na sua carreira, muito antes dos Stones.

Os Pacemakers são hoje muito menos conhecidos do que muita banda de rock guindada ao panteão do gênero. Posteriormente eclipsada pelos Beatles e outros conjuntos britânicos ao longo dos anos 60, eles representaram uma cena importante em Liverpool.

Numa época – começo dos anos 60, quando o mercado da música, em especial o anericano, havia docilizado o pop em uma sucessão de teen idols como Frankie Avalons e Neil Sedakas (que, em geral, cantavam músicas sob encomenda, de editora musical, e não tocavam instrumentos no palco), eles e aquela cena foi um momento em que o rock foi preservado para a posteridade.

Bandas de guitarra estavam fora de moda quando os Beatles foram rejeitados por várias gravadoras em 62, em especial os Beatles, que não assinaram com a Decca depois de um teste. Eles olhavam para esse mercado, feito pelo mercado. Ele era feito de artistas jovens fabricados, com música de gaveta, bem vestidos e bem nascidos.

Enquanto o rock fora banido da America, ele foi preservado por uma cena de rock na Europa que ainda descobria aquela primeira água do bebê dos anos 50. Ao mesmo tempo em que mitificavam aquele legado, nos palcos de Liverpool e Hamburgo, eles preservaram aquela cultura. Lá por 1961, eram outsiders, vestiam-se como o Marlon Brando de O Selvagem. E sua atitude não era menos selvagem. Em geral, eram anárquicos, aproveitavam suas turnês em Hamburgo para testar um repertório ligeiro e versátil, misturando covers meio inusitados, como "Take Five" ou "Falling In Love Again" com clássicos do rock, como "Maybeline".

Paul McCartney fala bem quando diz que os Pacemakers eram seus maiores rivais. Quando os Beatles se estabeleciam a duras penas, tentando manter a banda unida e seus membros ainda incertos sobre seu futuro fora da música e dentro dela, a banda de Gerry Marsden tocava em vários clubes em Liverpool e foi uma das que abriu para uma apresentação de Gene Vincent em 1960. Eles faziam tanto sucesso em Liverpool que, de forma relutante, aceitaram o convite de Allan Wiliams para tocar em Hamburgo. Os Beatles foram rejeitados para abrir para Vincent e pela Decca porque, segundo os produtores (mesma alegação de George Martin ao ouvi-los pela primeira vez) eles “não eram tão bons”(muito embora tenham aprendido muito nos anos na Alemanha).

Mas eles dividiam os mesmos palcos e, como outras bandas de Liverpool, desenvolveram um circuito de bailes onde seus talentos eram moldados ao vivo, e construindo um repertório forte e eclético. Um exemplo é “Pretend”, uma canção popularizada por Nat King Cole nos anos 60, e que virou uma espécie de hino dessas bandas. Esse era o grande wit desses jovens músicos, que aliaram uma paixão incondicional por um tipo de músico que não era mais apreciada mas que, para eles, era o futuro.  Os Beatles e os Pacemakeers eram fãs do Cliff Richard e os Shadows, mas eles sabiam que a última coisa que eles queriam ser eram soar como eles. Isso explicaria por que o produtor dos Shadows, Norrie Paramor, foi outro que rejeitou os Beatles.   

Todos tocavam uma versão meio rhytm’n blues de “Pretend”, inclusive os Beatles que, como os Pacemakers, tinham “Shot of Rhytm’n Blues”, “Pretend” ou “Where Have You Been” em seus respectivos repertórios. Em Hamburgo, eles podiam tocar qualquer coisa para qualquer um em lugares como o Top Ten. Um fato que pode explicar isso é essa natureza circular do público hamburguense, ums flaneurs de uma região portuária e de baixo meretrício como o Reeperbahn.

O capital dessas bandas era o repertório e a capacidade de ter música suficiente paras tocar por horas para este público diverso. Foi nessas usinas de som que essas bandas, depois em Liverpool, passaram a granjear público e chamar a atenção de empresários como Brian Epistein. Ele faria o resto: viu o potencial dos rapazes, decidiu ao guindá-los ao topo da fama contra tudo e todos, até porque ele, Brian, também não tinha nada a perder com isso. Ele estava na mesma encruzilhada dessas bandas, que enquanto tinham um talento potencial, ainda careciam de direção e visibilidade. A Invasão Britânica estava começando a ser traçada.

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Gerry Marsden nasceu no Dingle em Liverpool, em 1942, mesma região onde vivia o futuro baterista do Rory Storm e dos Beatles, Ringo Starr. Era guarda-freios de ferrovias como seu pai. Com ele também aprendeu atocar banjo. Porém, como todos de sua geração, seria arrastado pela moda do Skillfe, de Lonnie Donegan. Marsden formou um grupo do gênero em 1956, chamado Mars Bars, mas teve que trocar o nome, que aludia a uma marca de chocolates. Arthur McMahon, o primeiro pianista da banda foi quem deu a idéia de “pacemaker”.

Em 1960 eles abrem para Gene Vincent, então já uma estrela decadente nos Estados Unidos, nm concerto no Liverpool Stadium, em maio de 1960. Já tinham uma boa reputação na área de Liverpool e isso fez com que relutassem em partir para os ares de Hamburgo. Mesmo assim, foram – como os Beatles, a partir de Allan Williams, então proprietário do Jacaranda. Les Chadwick, pianista dos Pacemakers e hoje o único sobrevivente da banda, diz que o contato com Tony Sheridan (que eram músico residente no Top Ten com a banda The Jets) foi importante para Marsden. Segundo ele, Gerry inspirou-se na performance de palco e pela forma como Sheridan era capaz de segurar uma banda a partir da sua guitarra-base (influência que também não deve ter passado despercebida por John Lennon).

Alás, o líder dos Pacemakers conta como Lennon o introduziu à vida noturna. Quando chegaram na frente do Herbertstrasse, um puteiro do Reeperbahn, Mardsen viu aquelas janelas com moças seminuas e estava quase morrendo de vergonha, mas John bateu na porta e perguntou ao cafetão quando custava a entrada. “oitenta marcos”, falou o homem. John tinha vinte e arrumaram sessenta. O cafetão mandou eles passaram na semana seguinte. Uma semana depois, eles estavam de volta. Porém, segundo Marsden, não havia nada de mais lá, exceto o tipo de fauna circense que se poderia encontrar num lugar como a barra pesada da zona portuária de Hamburgo. “Que desperdício de dinheiro”, Gerry lamentou, quando eles saíram sem nada. “Azar”, falou John, “somos testemunhas das maiores bizarrices da nossa vida inteira”.    

Quando Paul fala da rivalidade das bandas de Liverpool, a verdade é que era essa rivalidade que fazia com que os Beatles tivessem que ser maiores que os Searchers, e os Searchers maiores que o Big Three, e todos eles maiores do que os Beatles que, por sua vez, tinha que superar todos eles. Essa rivalidade ia da melhor performance ao melhor repertório, ou a capacidade de “tirar” uma música que havia aparecido nas paradas. Numa sexta, lembrou Marsden, você tinha “Will You Love Me Tomorrow” das Shirelles nas lojas; na quarta seguinte as bandas de Liverpool disputavam entre si qual delas era capaz de fazer o melhor cover.

E todos trabalhando o repertório noite após noite. Isso explica, por exemplo, por que os Beatles, trabalhando essas canções de palco, foram capazes de gravar um disco como o Please Please Me em um dia. Aquelas canções estavam nas medulas deles, era uma segunda natureza desses músicos castiços, e que aprendiam na lida diária, uns com os outros ou novas músicas ou acordes.

Em 1961, no Litherlandtall Hall, Pacemakers e Beatles dividiram o palco juntos como os Beatmakers. Segundo Marsden, não foi nada formal, não houve sequer ensaios. Eles se guiaram pelos outros e pelo set list de ambos que, no fim das contas, era quase o mesmo – A Shot of Rhythm’n Blues”, “Pretend”, “Jambalaya”,  “Maybeline”, entre outras (as quatro foram gravadas no primeiro álbum do Gerry and The Pacemakers, How do You Like It?, de 1963). Eles se revezavam: “Eu toquei piano, John tocou e Paul também, foi incrível e nós sabíamos que aquela performance jamais seria repetida”, lembrou Gerry.

Mesmo não tocando juntos, eles dividiam o espaço do Cavern, o porão cheio de ruídos como dizia Brian Epstein, referindo-se ao ambiente típico do pub no título da sua autobiografia. Gerry lembra que era uma festa porque muitos passavam o dia ou a noite lá, muitos estudantes, trabalhadores diurnos e músicos, em geral, desocupados ensaiando e esperando o momento de tocar. Diferente de Hamburgo, onde o público era circular, ali era o momento de celebração com o seu público, com a sua comunidade. Diferente do que se via na Beatlemania, a platéia pedia canções, que eles respondiam. Vestiam-se de maneira informal, usando blue jeans e bonés. Quem iria mudá-los, Beatles e Pacemakers, seria Brian. Como empresário e conhecendo o campo da música, sabia que mais do que esforço e vontade de vencer, eles tinham que ceder e usar tuxedos ou coisa parecida para buscar um público mais amplo e até tocar no teatro e na televisão.

Marsden fala em sua autobiografia que quando assinou com Epstein não esperava ser um artista de disco. Eles sabiam que ele era um pequeno negociante da cidade com relações comerciais com gravadoras mas não pensava em nada mais sério do que de repente alguns discos de graça da loja do pai de Brian.Com o relativo sucesso de “Love Me Do” com os Beatles, os Pacemakers, que eram a segunda opção, foram para o estúdio também. Como se sabe, a ambos foram oferecidas canções de gaveta de um compositor chamado Mitch Murray, que conseguia emplacar sucessos com cantores como Shirley Bassey e Mark Winter. Aos Beatles uma canção, “How Do You Do it” foi oferecida. Eles gravaram, mas não tinham coragem de ver aquela gravação ganhando a luz do dia. Ela foi repassada aos Pacemekers, que conseguiram um número um na Inglaterra. Os Pacemakers gravaram a versão deles em 22 de janeiro de 1963, depois de uma viagem terrível de Liverpool para Londres, em pleno inverno. Chegaram nos estúdios de Abbey Road à uma da tarde e gravaram na hora seguinte. Freddy, o baterista, lembra que não conseguia entender por que os Beatles a tinham recusado.

“Achamos que foi bobagem da parte deles, eu a achava bem melhor que “Love Me Do”. Naturalmente, a partir daí, os Beatles foram desafiados: deixaram passar um sucesso de encomenda (e para seus rivais), mas era justamente esse o desafio, vencer com suas próprias canções. Mas como tudo era relativo, assim como Gerry também passou a compor (“Give All Your Love”, “Ferry Crosss the Mersey”, “Don’t Let the Sun Catch You Crying”) os Beatles também começaram a escrever música de encomenda para outros artistas.

Mas a rivalidade continuava, agora no disco. Depois de semanas nos primeiros lugares, Gerry and The Pacemakers perderam o primeiro lugar para os Beatles com “From Me To You”. Semanas depois, era a vez dos Pacemakers voltaram com “I Like It”, também de Mitch Murray. Era a guerra das bandas de Liverpool ganhando espaço cada vez mais na mídia britânica.

Para o single seguinte, eles escolheram “You’ll Never Walk Alone”, uma canção do musical Carousel e que refletia o clima de otimismo no pós querra, em 1945. Chris Curtis dos Searchers lembra que Tony Sheridan cantava essa música em Hamburgo. Gerry diz que gostava do musical. Les Chadwick pensou num arranjo que lembrasse o pop do Nashville Sound de cantores como Conway Twitty. Daí nasceu o cover de “You’ll Never Walk Alone”. O compacto seguinte, foi uma escolha final entre “Pretend” ou “Chills” mas recaiu sobre “I’m the One”. A diversidade de opções mostra como no pico do merseysound, tudo era possível. Tanto que os próprios Searchers conquistaram a America com outro cover, “Needles And Pins”. A ideia era sempre pegar um cover obscuro e transformá-lo num signature song. Os Searchers eram imbatíveis nisso, seus primeiros sucessos eram música de palco.

O sucesso dos Pacemakers, também empresariados por Epstein, no auge da British Invasion levou a sugestão de um roteiro para a banda, nos rastros de A Hard Day's Night - Ferry Cross the Mersey (ou "Os Frenéticos do Ritmo" no Brasil, nunca lançado em DVD). Dessa vez, Marsden teve que compor as canções, como a que dá nome ao filme. A música é notável por falar de Liverpool e do cotidiano das viagens de ferryboats. Tanto a música quanto o filme mostram o quanto o conjunto estava integrado ao som do Mersey e ao ambiente de Liverpool. Mesmo integrados com o mundo e excursionando pelos Estados Unidos, eles eram uma banda de Liverpool e viveram em morreram em torno desse imaginário e daquela cena musical que, pelos idos de 1966 já dava mostras de desgaste - ainda mais numa época em que estrelas do rock eram exploradas ao máximo de sas capacidades.

Os Pacemakers não se adaptariam às mudanças no gosto musical e no mercado da música a partir de então. Ao contrário de seus “rivais”, não buscaram explorar o estúdio e suas possibilidades ou outros realidades estéticas. Os últimos temas gravados pela banda sequer foram compilados em disco na Inglaterra, embora tenham sido lançados no Canadá e nos Estados Unidos. Ouvindo as gravações da época hoje, é possível concordar com Les Chadwick que, embora eles não estivesem emplacando mais sucessos,  eles estavam fazendo boas gravações, como o cover de “I’ll Be there”, balada inspirada num disco que o DJ Bob Wooler sempre tocava no Cavern, e “Walk Hand In Hand”. Garry talvez estivesse se associando mais ao folk – suas músicas sempre soavam bem ao violão, como “Ferry” ou como crooner, cantando temas como “Girl on a Swing”. Mas aquilo estava longe do que era a moda no pop britânico. Eles talvez não estivessem conseguindo renovar o seu público naquele contexto. Esse estilo de crooner fez com que Gerry se interessasse por outro palco, o teatro: naquele mesmo ano, ele estrearia um musical de Joe Brown no West End, chamado Charlie Girl.

Nos anos 70, ele tentaria reformular a banda, já que seu irmão virou motorista de van e Chadwick e Maguire passaram a administrar uma garagem em Liverpool. Como disse Freddie certa vez, ele encarava a música menos como senso de profissionalismo e mais como esporte. É de se pensar que muitos desses artistas daquele tempo sabiam que havia uma bolha e que eles teriam um tempo de duração no show business. Talvez nem sonhando que eles cogitassem que aquele tipo de música fosse ressurgir com força décadas depois e essa atmosfera e todo o imaginário em torno do Cavern Club fosse se perpetuar até hoje. Gerry virou símbolo das torcidas do Liverpool por causa de “You’ll Never Walk Alone”, ganhou uma MBE em 2003 e teria papel decisivo para que Liverpool se transformasse em capital cultural de Europa em 2007.

Por essas e outras, é interessante notar que Mardsen não era um cidadão do mundo. O rock lhe deu essa visibilidade, mas ele era uma pessoa da sua comunidade, de sua cidade. Porém, no campo da música, foi um dos artistas que, mesmo sem saber (quem sabe), foi um dos responsáveis pela perpetuação da mensagem e do espírito do rock numa época em que ele parecia coisa do passado. Mas isso ele certamente sabia muito bem.