Wednesday, December 11, 2019

A Importância de ser Noel

Noel por Noel


Para colocar o cantor e compositor Noel Rosa (1910-1937) no panteão da história da música brasileira hoje você tem gente como Wisnik, Tinhorão, Tatit e outros, Almirante antes. Mas, quando Noel viveu entre as mesas e cadeiras do café Nice ou nos bastidores da rádio Philips, no tempo do Programa do Casé, ele era era praticamente uma pessoa comum. Digamos que considerado por seus contemporâneos apenas uma pessoa de rádio. Depois que ele morreu, o Poeta da Vila foi sendo progressivamente esquecido por quase duas décadas. Quem reviveu a música dele foi ela, a Dama do Encantado, Aracy de Almeida.

Luiz Tatit ressalta a importância de Noel para a formação do que seria a canção brasileira moderna. Em seu livro, O Século da Canção (1), ele estabelece alguns pontos de corte importantes na periodização desse processo formativo. Para ele, o marco crucial é o surgimento da fonografia em 1902. Antes, qualquer vertente de música popular era ainda tributária do improviso e, de certa forma, trazia um forte atavismo da oralidade. Por conta disso, a maioria dos temas elaborados em umbigadas ou rodas, em geral, realizadas em casas de baianas, no centro do Rio de Janeiro ou no morro, ainda não tinham uma forma definitiva e, além disso, como esses protosambistas a rigor não sabiam ler e escrever música, a tendência era que esses temas desaparecessem no ar. 

Com o surgimento da fonografia, tudo muda: aquelas canções, antes restantes na memória ou concebidas ao sabor do improviso, agora ganhavam feições definitivas. A gravação perenizava a música e , uma vez registrada, ela mantinha um caráter definitivo. Contudo, seria apenas quase duas décadas depois que a canção gravada daria outro salto qualitativo: o marco desse momento histórico foi a gravação de “Pelo Telefone”. Criação coletiva de jovens sambistas que frequentavam os saraus na casa da baiana Tia Ciata, na Cidade Nova, “Pelo Telefone” acabou virando alvo de muita controvérsia. O samba, a despeito de ser uma glosa coletiva em torno de um tema “do norte”, continha colaborações de vários daqueles bambas.

Um deles, porém, Donga, teve a ideia singular de registrá-la, porém em seu nome, e no de um cronista carioca, Mauro de Almeida, o “Peru dos Pés Frios”. É possível que a inclusão de Peru se explique pelo fato de que ele foi o responsável pelo agenciamento do registro, efetivado na Biblioteca Nacional. 

O curioso é que, no fim das contas, o disco, gravado por Bahiano e a banda da Odeon, não traz o nome do cronista no selo. O registro, feito em 1916, marca um momento histórico: foi no mesmo ano que Chiquinha Gonzaga fundaria a Sociedade Brasileira de Autores Teatrais (SBAT) entidade que existe até hoje, porém vinculada ao Ecad. 

A ideia desta sociedade foi a de criar uma entidade que fosse responsável pela questão dos direitos autorais dos compositores. Pelo seu nome, é importante lembrar que, naquele tempo, o circuito comercial da música passava pela Praça Tiradentes, que era uma espécie de Broadway do Rio. Era no teatro cantado que as canções viravam sucesso. Em geral, muitos daqueles compositores para o teatro também usavam a revista como laboratório. Se a música caísse na boca do povo, então ela poderia estar pronta para ser gravada.

Um dos compositores mais prolíficos deste período, e que se valeu do teatro de revista para disseminar sua produção foi José Barbosa da Silva, o Sinhô. Muitos de seus temas mais conhecidos, inclusive até hoje, como “Fala meu louro”, “Gosto que me enrosco” ou “Jura” nasceram nos palcos da praça Tiradentes. Seu reinado durou até 1930, quando ele sucumbiu fulminado por uma tuberculose galopante, numa barca.

Naquele momento, era como simbolicamente o bastão estivesse sido passado para Noel Rosa. Este, por sua vez, surge no momento seguinte delimitado por Tatit. É a década de 1930, quando surge o rádio comercial e as primeiras escolas de samba.

A partir daí, o meio de difusão gradativamente deixa de ser o teatro, e passa a ser o microfone. Esse novo meio, diz Tatit, faz com que, se num primeiro momento (a fonografia) existisse a possibilidade de se tornar um compositor com música registrada, com o rádio, ocorre uma demanda considerável de cancionistas (termo de Tatit) para criar música para seus respectivos intérpretes.

É nesse momento que vemos o que seria a aurora de um circuito musical que engatinhava em termos de tornar-se massivo. O Carnaval como evento também vinculado ao disco, também demanda um tipo de produção específica, a marchinha, enquanto para o meio de ano, surge o que seria o núcleo da canção brasileira, o samba-canção.

É nesse nicho que Noel Rosa vai se transformar em figura central nesse período. É vísivel, por exemplo, notar como o samba muda consideravelmente de Sinhô para o Poeta da Vila. Podemos pegar o exemplo conhecido de “Jura”, o “Rei do Samba”: “Jura/pelo Senhor/Pela imagem/da Santa Cruz do Redentor/ (…) Para que/ um dia/eu possa dar-te/ o meu amor/ (…) Daí então/dar-te eu irei/o beijo puro/da catedral/do amor. Note como os versos são simples, ou até simplórios, forçando uma erudição que era bem típica da época. Outro exemplo, “Fala, meu louro”, sátira política à derrota de Ruy Barbosa nas eleições de 1919 (perdeu para Epitácio Pessoa):

A bahia não dá mais côco
Para botar
Na tapioca
Para fazer um bom mingau
E embrulhar
O carioca
Papagaio Louro
Do bico dourado
Tu, que falavas tanto,
Por que razão que viver calado?
Não tenhas medo
Côco de respeito
Quem quer se fazer não pode
Quem é bom já nasce feito

Tudo muito esquemático, onde a letra parece bastante tributária da “gravata” forçada pela moldura da música, ainda bem amaxixada, dada a herança próxima destas influências. Afinal de contas, o samba, nesse momento histórico, ainda estava em busca de um estilo próprio. Como em várias canções de Sinhô, os versos são repetidos e ele faz bastante uso de frases feitas, embora e justamente por causa disso, são fáceis de memorizar.

Esse é um exemplo de samba “urbano” (no sentido de produção feita para os palcos, bastante diverso do “samba de morro”, divisão que sempre deu manga para muitos debates e controvérsias) típico dos anos 10, 20. Então nós pegamos Noel Rosa. “Conversa de Botequim”, dele e de Vadico, de 1933:

Seu garçom, faça o favor de me trazer depressa
Uma boa média que não seja requentada
Um pão bem quente com manteiga à beça
Um guardanapo e um copo d'água bem gelada
Feche a porta da direita com muito cuidado
Que não estou disposto a ficar exposto ao sol
Vá perguntar ao seu freguês do lado
Qual foi o resultado do futebol
Se você ficar limpando a mesa
Não me levanto nem pago a despesa
Vá pedir ao seu patrão
Uma caneta, um tinteiro
Um envelope e um cartão
Não se esqueça de me dar palitos
E um cigarro pra espantar mosquitos
Vá dizer ao charuteiro
Que me empreste umas revistas
Um isqueiro e um cinzeiro
Seu garçom, faça o favor de me trazer depressa
Uma boa média que não seja requentada
Um pão bem quente com manteiga à beça
Um guardanapo e um copo d'água bem gelada
Feche a porta da direita com muito cuidado
Que estou disposto a ficar exposto ao sol
Vá perguntar ao seu freguês do lado
Qual foi o resultado do futebol
Telefone ao menos uma vez
Para três quatro, quatro, três, três, três
E ordene ao seu Osório
Que me mande um guarda-chuva
Aqui pro nosso escritório
Seu garçom me empresta algum dinheiro
Que eu deixei o meu com o bicheiro
Vá dizer ao seu gerente
Que pendure esta despesa
No cabide ali em frente
Seu garçom, faça o favor de me trazer depressa
Uma boa média que não seja requentada
Um pão bem quente com manteiga à beça
Um guardanapo e um copo d'água bem gelada
Feche a porta da direita com muito cuidado
Que não estou disposto a ficar exposto ao sol
Vá perguntar ao seu freguês do lado
Qual foi o resultado do futebol.

Como se não bastasse a quilometragem da letra, note que ela é totalmente despojada, como se na mesma medida em que ela parece ser autônoma com relação à música, está perfeitamente integrada a ela. Aqui, Noel faz um tipo, algo que é recorrente em sua produção (“Malandro medroso”, “Gago apaixonado”) e usando do diálogo imaginário com o “garçom”, faz uma crônica de costumes do malandro que, mesmo não querendo botar banca, não tem pudores de ser humoristicamente abusado. Se formos, pois, comparar com o tipo de música feita antes de Noel, desde das glosas de “Pelo Telefone” até as letras de Sinhô, pode-se dizer aqui que o sarrafo foi jogado bem longe.

Deixo aqui esse exemplo apenas, pois não quero me estender mais do que já abusei nesse post. Mas é incrível imaginar que com uma pequena produção — afinal de contas, o Poeta morreu muito jovem, com apenas 27 anos, Noel Rosa, talvez sem o saber, definiu (ou foi uma das figuras capitais) aquilo que podemos chamar de canção brasileira. 

Como eu disse lá em cima, Noel era considerado figura de rádio, um mero contra-regras bufão, boêmio que vivia de bico. Seria difícil pensar no compositor como vislumbramos hoje, de forma como ele é estabelecido hoje, naqueles tempos pioneiros. Também estava longe de ficar milionário com discos: como era praxe naquela época, compositor e músicos ganhavam um levado na hora da gravação e só.

Tanto que, por conta disso, a fama de Noel é retroativa. Talvez muitos pensem que ele morreu coberto de glórias, como o Timbira do Gonçalves Dias. Mas para se ter uma ideia, quando Vadico (co-autor de várias canções de Noel, como o citado “Conversa de Botequim” e “Feitio de Oração”) veio para o Brasil no Rio dos anos 1950 produzir Katherine Dunham, na boate Monte Carlo, ninguém sabia quem era ele. Foi Aracy de Almeida quem o apresentou para a plateia do Monte Carlo e do Vogue. Até então, ninguém sabia da sua existência.

E quanto ao Poeta da Vila? Como diz Ruy Castro no A Noite do Meu Bem (2), “nos onze anos seguintes [após sua morte], a música de Noel desapareceu das lojas de discos, ninguém o
cantava no rádio, a imprensa o esqueceu e não havia movimento algum a
seu respeito nas gravadoras”. Ruy salienta que, apesar de muitos dos seus ex-parceiros posteriormente ocuparem altos postos em emissoras de rádio e gravadoras, havia um total esquecimento do seu legado. Quem mudaria isso, de certa forma, quase involuntária, foi, justamente Aracy.

No final dos anos 1940, ela foi contratada da boate Vogue (que ficava na av. Princesa Isabel, no Leme, quase esquina com a avenida Atlântica). Mesmo que fosse “palmeira do Mangue” (como em “O X do Problema”), ela acabou se adaptando às “areias de Copacabana”. Afinal, Araca era a musa existencialista por excelência, e era hors concuors.

Para seu show no Vogue, com Claude Austin ao piano, Aracy montou um repertório calcado em Noel: “Palpite Infeliz”, “Último Desejo”, “Feitio de oração”, “Feitiço da Vila” e “Pra que mentir” e outras bossas. Depois de centenas de apresentações (ela ficou quase cinco anos em cartaz), de repente, Noel Rosa conquistara um novo público — incluindo, além do café society da época, muitos gringos que frequentavam a Zona Sul naqueles tempos. O resultado foi que, entre 1950 e 1951, a Continental (leia-se Braguinha) convidou a Dama do Encantado para gravar Noel. 

O resultado foi um disco duplo, temático, ou seja, um dos primeiros álbuns conceituais da história da MPB. Em seguida, na Tupi, Almirante, velho companheiro do autor de “Três Apitos” na época do Bando de Tangarás, passou a produzir um programa sobre Noel, programa que viraria livro de memórias (No Tempo de Noel Rosa). Dois anos depois, Carlos Machado levaria ao palco do Casablanca, na Urca, o musical Feitiço da Vila, com Silvio Caldas, Elizeth Cardoso e Grande Otelo, em sua nova boate na Praia Vermelha. Nisso seguiu-se uma febre de Noel, com textos de Jacy Pacheco, e Lúcio Rangel sobre o compositor que, quinze anos depois, parecia ter renascido, dessa vez para sempre.


Referências

(1) Luiz Tatit, O século da Canção, Ateliê, 2004. 

(2) Ruy Castro, A Noite do Meu Bem, Companhia das Letras, 2015. 


No comments: