Noel por Noel |
Para
colocar o cantor e compositor Noel Rosa (1910-1937) no panteão da
história da música brasileira hoje você tem gente como Wisnik,
Tinhorão, Tatit e outros, Almirante antes. Mas, quando Noel viveu
entre as mesas e cadeiras do café Nice ou nos bastidores da rádio
Philips, no tempo do Programa do Casé, ele era era praticamente uma
pessoa comum. Digamos que considerado por seus contemporâneos apenas
uma pessoa de rádio. Depois que ele morreu, o Poeta da Vila foi
sendo progressivamente esquecido por quase duas décadas. Quem
reviveu a música dele foi ela, a Dama do Encantado, Aracy de
Almeida.
Luiz
Tatit ressalta a importância de Noel para a formação do que seria
a canção brasileira moderna. Em seu livro, O Século da Canção (1),
ele estabelece alguns pontos de corte importantes na periodização
desse processo formativo. Para ele, o marco crucial é o surgimento
da fonografia em 1902. Antes, qualquer vertente de música popular
era ainda tributária do improviso e, de certa forma, trazia um forte
atavismo da oralidade. Por conta disso, a maioria dos temas
elaborados em umbigadas ou rodas, em geral, realizadas em casas de
baianas, no centro do Rio de Janeiro ou no morro, ainda não tinham
uma forma definitiva e, além disso, como esses protosambistas a
rigor não sabiam ler e escrever música, a tendência era que esses
temas desaparecessem no ar.
Com o surgimento da fonografia, tudo
muda: aquelas canções, antes restantes na memória ou concebidas ao
sabor do improviso, agora ganhavam feições definitivas. A gravação
perenizava a música e , uma vez registrada, ela mantinha um caráter
definitivo. Contudo, seria apenas quase duas décadas depois que a
canção gravada daria outro salto qualitativo: o marco desse momento
histórico foi a gravação de “Pelo Telefone”. Criação
coletiva de jovens sambistas que frequentavam os saraus na casa da
baiana Tia Ciata, na Cidade Nova, “Pelo Telefone” acabou virando
alvo de muita controvérsia. O samba, a despeito de ser uma glosa
coletiva em torno de um tema “do norte”, continha colaborações
de vários daqueles bambas.
Um
deles, porém, Donga, teve a ideia singular de registrá-la, porém
em seu nome, e no de um cronista carioca, Mauro de Almeida, o “Peru
dos Pés Frios”. É possível que a inclusão de Peru se explique
pelo fato de que ele foi o responsável pelo agenciamento do
registro, efetivado na Biblioteca Nacional.
O curioso é que, no fim
das contas, o disco, gravado por Bahiano e a banda da Odeon, não
traz o nome do cronista no selo. O registro, feito em 1916, marca um
momento histórico: foi no mesmo ano que Chiquinha Gonzaga fundaria a
Sociedade Brasileira de Autores Teatrais (SBAT) entidade que existe
até hoje, porém vinculada ao Ecad.
A ideia desta sociedade foi a de
criar uma entidade que fosse responsável pela questão dos direitos
autorais dos compositores. Pelo seu nome, é importante lembrar que,
naquele tempo, o circuito comercial da música passava pela Praça
Tiradentes, que era uma espécie de Broadway do Rio. Era no teatro
cantado que as canções viravam sucesso. Em geral, muitos daqueles
compositores para o teatro também usavam a revista como laboratório.
Se a música caísse na boca do povo, então ela poderia estar pronta
para ser gravada.
Um
dos compositores mais prolíficos deste período, e que se valeu do
teatro de revista para disseminar sua produção foi José Barbosa da
Silva, o Sinhô. Muitos de seus temas mais conhecidos, inclusive até
hoje, como “Fala meu louro”, “Gosto que me enrosco” ou “Jura”
nasceram nos palcos da praça Tiradentes. Seu reinado durou até
1930, quando ele sucumbiu fulminado por uma tuberculose galopante,
numa barca.
Naquele
momento, era como simbolicamente o bastão estivesse sido passado
para Noel Rosa. Este, por sua vez, surge no momento seguinte
delimitado por Tatit. É a década de 1930, quando surge o rádio
comercial e as primeiras escolas de samba.
A
partir daí, o meio de difusão gradativamente deixa de ser o teatro,
e passa a ser o microfone. Esse novo meio, diz Tatit, faz com que, se
num primeiro momento (a fonografia) existisse a possibilidade de se
tornar um compositor com música registrada, com o rádio, ocorre uma
demanda considerável de cancionistas (termo de Tatit) para criar
música para seus respectivos intérpretes.
É
nesse momento que vemos o que seria a aurora de um circuito musical
que engatinhava em termos de tornar-se massivo. O Carnaval como
evento também vinculado ao disco, também demanda um tipo de
produção específica, a marchinha, enquanto para o meio de ano,
surge o que seria o núcleo da canção brasileira, o samba-canção.
É
nesse nicho que Noel Rosa vai se transformar em figura central nesse
período. É vísivel, por exemplo, notar como o samba muda
consideravelmente de Sinhô para o Poeta da Vila. Podemos pegar o
exemplo conhecido de “Jura”, o “Rei do Samba”: “Jura/pelo
Senhor/Pela imagem/da Santa Cruz do Redentor/ (…) Para que/ um
dia/eu possa dar-te/ o meu amor/ (…) Daí então/dar-te eu irei/o
beijo puro/da catedral/do amor. Note como os versos são simples, ou
até simplórios, forçando uma erudição que era bem típica da
época. Outro exemplo, “Fala, meu louro”, sátira política à
derrota de Ruy Barbosa nas eleições de 1919 (perdeu para Epitácio
Pessoa):
A
bahia não dá mais côco
Para
botar
Na
tapioca
Para
fazer um bom mingau
E
embrulhar
O
carioca
Papagaio
Louro
Do
bico dourado
Tu,
que falavas tanto,
Por
que razão que viver calado?
Não
tenhas medo
Côco
de respeito
Quem
quer se fazer não pode
Quem
é bom já nasce feito
Tudo
muito esquemático, onde a letra parece bastante tributária da
“gravata” forçada pela moldura da música, ainda bem amaxixada,
dada a herança próxima destas influências. Afinal de contas, o
samba, nesse momento histórico, ainda estava em busca de um estilo
próprio. Como em várias canções de Sinhô, os versos são
repetidos e ele faz bastante uso de frases feitas, embora e
justamente por causa disso, são fáceis de memorizar.
Esse
é um exemplo de samba “urbano” (no sentido de produção feita
para os palcos, bastante diverso do “samba de morro”, divisão
que sempre deu manga para muitos debates e controvérsias) típico
dos anos 10, 20. Então nós pegamos Noel Rosa. “Conversa de
Botequim”, dele e de Vadico, de 1933:
Seu
garçom, faça o favor de me trazer depressa
Uma
boa média que não seja requentada
Um
pão bem quente com manteiga à beça
Um
guardanapo e um copo d'água bem gelada
Feche
a porta da direita com muito cuidado
Que
não estou disposto a ficar exposto ao sol
Vá
perguntar ao seu freguês do lado
Qual
foi o resultado do futebol
Se
você ficar limpando a mesa
Não
me levanto nem pago a despesa
Vá
pedir ao seu patrão
Uma
caneta, um tinteiro
Um
envelope e um cartão
Não
se esqueça de me dar palitos
E
um cigarro pra espantar mosquitos
Vá
dizer ao charuteiro
Que
me empreste umas revistas
Um
isqueiro e um cinzeiro
Seu
garçom, faça o favor de me trazer depressa
Uma
boa média que não seja requentada
Um
pão bem quente com manteiga à beça
Um
guardanapo e um copo d'água bem gelada
Feche
a porta da direita com muito cuidado
Que
estou disposto a ficar exposto ao sol
Vá
perguntar ao seu freguês do lado
Qual
foi o resultado do futebol
Telefone
ao menos uma vez
Para
três quatro, quatro, três, três, três
E
ordene ao seu Osório
Que
me mande um guarda-chuva
Aqui
pro nosso escritório
Seu
garçom me empresta algum dinheiro
Que
eu deixei o meu com o bicheiro
Vá
dizer ao seu gerente
Que
pendure esta despesa
No
cabide ali em frente
Seu
garçom, faça o favor de me trazer depressa
Uma
boa média que não seja requentada
Um
pão bem quente com manteiga à beça
Um
guardanapo e um copo d'água bem gelada
Feche
a porta da direita com muito cuidado
Que
não estou disposto a ficar exposto ao sol
Vá
perguntar ao seu freguês do lado
Qual
foi o resultado do futebol.
Como
se não bastasse a quilometragem da letra, note que ela é totalmente
despojada, como se na mesma medida em que ela parece ser autônoma
com relação à música, está perfeitamente integrada a ela. Aqui,
Noel faz um tipo, algo que é recorrente em sua produção (“Malandro
medroso”, “Gago apaixonado”) e usando do diálogo imaginário
com o “garçom”, faz uma crônica de costumes do malandro que,
mesmo não querendo botar banca, não tem pudores de ser
humoristicamente abusado. Se formos, pois, comparar com o tipo de
música feita antes de Noel, desde das glosas de “Pelo Telefone”
até as letras de Sinhô, pode-se dizer aqui que o sarrafo foi jogado
bem longe.
Deixo
aqui esse exemplo apenas, pois não quero me estender mais do que já
abusei nesse post. Mas é incrível imaginar que com uma pequena
produção — afinal de contas, o Poeta morreu muito jovem, com
apenas 27 anos, Noel Rosa, talvez sem o saber, definiu (ou foi uma
das figuras capitais) aquilo que podemos chamar de canção
brasileira.
Como eu disse lá em cima, Noel era considerado figura de
rádio, um mero contra-regras bufão, boêmio que vivia de bico. Seria
difícil pensar no compositor como vislumbramos hoje, de forma como
ele é estabelecido hoje, naqueles tempos pioneiros. Também estava
longe de ficar milionário com discos: como era praxe naquela época,
compositor e músicos ganhavam um levado na hora da gravação e só.
Tanto
que, por conta disso, a fama de Noel é retroativa. Talvez muitos
pensem que ele morreu coberto de glórias, como o Timbira do
Gonçalves Dias. Mas para se ter uma ideia, quando Vadico (co-autor
de várias canções de Noel, como o citado “Conversa de Botequim”
e “Feitio de Oração”) veio para o Brasil no Rio dos anos 1950
produzir Katherine Dunham, na boate Monte Carlo, ninguém sabia quem
era ele. Foi Aracy de Almeida quem o apresentou para a plateia do
Monte Carlo e do Vogue. Até então, ninguém sabia da sua
existência.
E
quanto ao Poeta da Vila? Como diz Ruy Castro no A Noite do Meu
Bem (2), “nos onze anos seguintes [após sua morte], a música de
Noel desapareceu das lojas de discos, ninguém o
cantava
no rádio, a imprensa o esqueceu e não havia movimento algum a
seu
respeito nas gravadoras”. Ruy salienta que, apesar de muitos dos
seus ex-parceiros posteriormente ocuparem altos postos em emissoras
de rádio e gravadoras, havia um total esquecimento do seu legado.
Quem mudaria isso, de certa forma, quase involuntária, foi,
justamente Aracy.
No
final dos anos 1940, ela foi contratada da boate Vogue (que ficava na
av. Princesa Isabel, no Leme, quase esquina com a avenida Atlântica).
Mesmo que fosse “palmeira do Mangue” (como em “O X do
Problema”), ela acabou se adaptando às “areias de Copacabana”.
Afinal, Araca era a musa existencialista por excelência, e era hors
concuors.
Para
seu show no Vogue, com Claude Austin ao piano, Aracy montou um
repertório calcado em Noel: “Palpite Infeliz”, “Último
Desejo”, “Feitio de oração”, “Feitiço da Vila” e “Pra
que mentir” e outras bossas. Depois de centenas de apresentações
(ela ficou quase cinco anos em cartaz), de repente, Noel Rosa
conquistara um novo público — incluindo, além do café society da
época, muitos gringos que frequentavam a Zona Sul naqueles tempos. O
resultado foi que, entre 1950 e 1951, a Continental (leia-se
Braguinha) convidou a Dama do Encantado para gravar Noel.
O resultado
foi um disco duplo, temático, ou seja, um dos primeiros álbuns
conceituais da história da MPB. Em seguida, na Tupi, Almirante,
velho companheiro do autor de “Três Apitos” na época do Bando
de Tangarás, passou a produzir um programa sobre Noel, programa que
viraria livro de memórias (No Tempo de Noel Rosa). Dois anos depois,
Carlos Machado levaria ao palco do Casablanca, na Urca, o musical
Feitiço da Vila, com Silvio Caldas, Elizeth Cardoso e Grande Otelo,
em sua nova boate na Praia Vermelha. Nisso seguiu-se uma febre de
Noel, com textos de Jacy Pacheco, e Lúcio Rangel sobre o compositor
que, quinze anos depois, parecia ter renascido, dessa vez para
sempre.
Referências
(1) Luiz Tatit, O século da Canção, Ateliê, 2004.
(2) Ruy Castro, A Noite do Meu Bem, Companhia das Letras, 2015.
Referências
(1) Luiz Tatit, O século da Canção, Ateliê, 2004.
(2) Ruy Castro, A Noite do Meu Bem, Companhia das Letras, 2015.
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