Tuesday, February 26, 2019

Mozart: As últimas sinfonias

Mozart




Quando Bach morreu, em 1650, ele havia escrito três das suas maiores obras: a Arte da Fuga, a Oferenda Musical e a Missa em Si Menor. Ele se deu ao trabalho de compor essas gigantescas obras quase como que como uma coroação a toda uma obra tão primorosa quanto praticamente inédita até então. Bach não tinha motivo algum, exceto no caso da Oferenda, que foi sugestão de Frederico da Prússia, mas ele as escreveu como se as três fossem ser interpretadas.

Hoje você pode buscar na Internet todas elas na íntegra e nas melhores interpretações possíveis. Mas quando ele colocou a música no papel, não havia a menor possibilidade de execução ou qualquer coisa do tipo. Isso sem falar da Missa que, além de inexequível para os moldes do Bach de seu tempo e de seu lugar, onde ele mal poderia dispor de músicos de qualidade.

Além disso, a Missa observava a liturgia católica e não a luterana, a qual Bach estava cifrado. Naquele tempo, também, a possibilidade de editar sua obra ou divulgá-la ou vendê-la era algo que só seria possível no futuro.

Nos meados do século XVIII, os músicos ainda eram dependentes de instituições de príncipes ou nobres para encomendar suas obras. Ou seja, fazer música original por puro diletantismo ou pura inspiração livre era algo fora do comum na época. Mas não para um músico como Bach.

Com relação à Mozart e suas últimas sinfonias, curiosamente ocorreu a mesma coisa. Sem vislumbrar qualquer auspício de nobres e mecenas ou entidades ou sem possibilidade de encomenda ou execução, o mestre de Salzburgo as escreveu. Por que? Assim como no caso do outro mestre, o de Eisenach a questão fica em aberto.

Em oito semanas, o autor da Flauta Mágica compôs suas três últimas sinfonias (nºs 39, 40,41) em concepções totalmente diversas, como bem observou Bruno Kiefer (1).  Enquanto a nº 40, diz o autor parece autobiográfica, a 41 soa imponente. A nº40 parece prenunciar o romantismo musical, a última plasma o estilo galante ou rococó.

O rococó era o estilo típico aristocrático, de uma corte feliz, reflexo de uma sociedade próspera e confortavelmente instalada no poder era o tempo do Antigo Regime e das pinturas de Watteau. Era para esse tipo de gente que os músicos do século XVIII.

Kiefer entende que Mozart já sentia os sinais da revolução do romantismo que emanava da Alemanha daquele final de século, a partir do movimento do Sturm Und Drang. Talvez isso, ele nos diz possa ter servido de mote para que o compositor mudasse desse modelo galante para outro, de concepção mais subjetiva. Por outro lado, a própria vida adversa e errante de Mozart também servia de mote para essa mudança.

Quando ele criou as suas derradeiras sinfonias, ele estava totalmente esquecido pela aristocracia vienense que o transformara em fenômeno quando ele era jovem. Se ele ainda era lembrado como o autor do Do Giovanni em Praga, em Viena ele havia se transformado num anônimo. Seu trabalho na corte era nulo e sua música encontrava agora um caminho por si mesma.

Diz Kiefer: enquanto escrevia contradanças e minuetos graciosos para a corte imperial, expunha, em sua sinfonia em sol menor, com violência até então inaudita,o seu verdadeiro estado de alma, ou voltava-se, como na Júpiter, a uma arte mais severa, realmente olímpica.

Importante lembrar que o próprio modelo de sinfonia nasceu no começo do século que viu o autor da Pequena Serenata Noturna florescer a sua obra. Ela nasceu na Itália, a partir da costela da ópera, isto é, ela era o aperfeiçoamento da abertura operística.

Fora do seu contexto, ela começou a desenvolver-se, até ser concebida em movimentos, entre eles um de dança, o minueto, ou seja, ela era um amálgama de abertura musical e de suíte, com à moda das de Bach, porém resumida dinamicamente a quatro movimentos.

Foi esse modelo, trabalhado inicialmente por Stamitz e Sammartini, iria ser desenvolvido a partir da segunda metade do século XVIII, por Haydn e Mozart. Ora, se eles são o "começo" da sinfonia, tanto em seu desenvolvimento quanto em sua virtual popularização, o último esteticamente seria, com essas três obras, a ponte natural entre o classicismo e o romantismo, com Beethoven.

Bruno Kiefer entende que do ponto-de-vista instrumental, elas representam uma importante transformação no sentido de um melhor aproveitamento de vários elementos, como o dos instrumentos de sopro. Até Mozart, a sinfonia baseava-se quase que totalmente nas cordas. Haydn sabia e entendia a necessidade de dar destaque à outros naipes, mas protelou essa mudança até que isso se tornasse inviável para ele, já em idade provecta.

"O clima da sinfonia em sol menor é de uma angústia mal reprimida" diz Kiefer. "As passagens despreocupadas são curtas e como raios de sol a iluminar por poucos instantes a alma torturada do artista".

O primeiro tempo do allegro, explica o autor, é uma ideias de rara inspiração, uma "súplica vinda de um coração oprimido. O segundo tema, com seus cromatismos tão mozartianos, tem um quê de resignado. Todo o resto do primeiro movimento é dominado pelo primeiro tema, que sofre contínuas transformações, aumentando seu caráter agitado".

O andante, o segundo, diz Kiefer, flui tranquilo e resignado, enquanto o terceiro, a despeito de sua raiz a partir de minueto, isto é, uma dança galante, parece amarga, enérgica, quase que "áspera". Já no quarto movimento, entende o autor, Mozart chega ao seu paroxismo patético, num nível nunca visto antes na história ou na literatura musical sinfônica até então. Contudo, o compositor, mesmo nesse momento, parece conservar o equilíbrio, ou pensa sempre no ouvinte imaginário, para o qual "deseja escrever uma obra de arte".

Quando Mozart escreveu essas três peças, em 1788, ele estava próximo do fim. Despilchado e perseguido por credores, pedia ajuda a Puchberg, um mecenas. O soldo que ele recebia do Imperador José mal dava para o aluguel. Ainda por cima, havia recém perdido um filho de poucos meses de idade.

Mesmo assim e justamente por causa disso, parece impossível imaginar que ele tenha concebido o melhor da sua obra (sem falar do inacabado Requiem e o concerto de clarinete, outro instrumento solista e de sopro popularizado por Mozart) no fim de sua vida breve. No entanto, consta que Mozart tenha concebido a nº 40 sem os clarinetes, tendo os colocado como uma adição posterior.

Como Bach, que nos umbrais da morte era como o velho zelador de um teatro decadente - o Barroco - sozinho esperando seu mundo acabar, como naqueles personagens irrespiráveis dos livros de Josué Guimarães, guardião de uma arte defunta, ainda tinha vigor para criar, Mozart também era o palhaço das perdidas ilusões, esquecido por todos, e ainda via a beleza em sua grande arte.

Estamos livres, diria Kiefer, agora para conjecturar os motivos pelos quais eles ainda encontravam capacidade para criar. Porque quando nós escutamos hoje a Missa de Bach ou a Júpiter de Mozart, nem suspeitamos o que está por trás da excelência dessas obras. Mozart, ao contrário do autor dos concertos de Brandeburgo, buscava promover-se em alguma das academias vienenses? Se ele pensou nisso, não logrou êxito. E como Bach, ele nunca ouviu suas últimas obras. E ninguém, enquanto eles viveram, tomaram conhecimento de tais composições.

Mas, como diz Kiefer, à guisa de conclusão: custa crer que um homem como Mozart, cujas criações trazem momentos de felicidade a milhões de seres e hoje enriquecem editores e comerciantes, tivesse que sucumbir ante a ignorância, má-fé e a indiferença da corte e do povo vienenses. "Mas a história se repete: ele não foi o primeiro e nem será o último".

Nikolaus Harnoncourt defende a teoria que as três obras não, na verdade, um ciclo, entender que, juntas, elas parecem possuir uma certa coerência. Por exemplo, a 40, não tem introdução, ao contrário da 39 e não tem um finale, diferentemente da 41.

Muitos estudiosos, contudo, sustentam que Mozart chegou a executar a 40 em pelo menos três ocasiões: uma, para o diplomata Gottfried Von Vieten, mas a execução foi tão sofrível que o compositor recusou-se a assistir até o final. As demais teriam ocorrido um ano e meio após a escritura da música, durante uma turnê em Berlim e Leipzig. Estas audições teriam forçado o compositor a revisar o material, retrabalhando os sopros e acrescentando outros instrumentos. Porém, as demais, 39 e 41, que fariam parte de um ciclo, poderiam estar na programação da inauguração do Cassino em Spiegelasse, mas não há informações a respeito de uma possível premiere.





(1) KIEFER Bruno. Música Alemã. Ed. Movimento, 1985.

Tuesday, February 12, 2019

A Revolução começou pelo rádio



Os Beatles na estreia nos Estados Unidos em 64


Há 55 anos os Beatles apresentaram-se no Ed Sullivan Show para mais de 73 milhões de americanos e mudaram a história da música popular. Muito se fala sobre a importância desta apresentação. Contudo parafraseando Gil Scott Heron, a revolução não começou por assim dizer pela televisão.

Num saboroso artigo para a Huffingpost, Martin Lewis defende que o primeiro responsável pela explosão da Beatlemania na América foi Walter Cronkite. A história por trás de I Want to Hold Your Hand é mais do que conhecida, mas ele destaca o empenho de Brian Epstein a forma como o acaso acabou viralizando os Beatles na rede CBS e mais do que isso destaca o papel de um disk-jockey de Washington e uma ouvinte atenta e curiosa.

Em meados de 63, Epstein conseguira de Ed Sullivan espaço no programa para 64. O apresentador não entendia naturalmente muito de rock. Porém farejava qualquer excentricidade que pudessem animar as noites amenas de domingo da CBS em seu show que existia desde o fim dos anos 40, de feirinhas cantantes e stand ups até ursos amestrados.

Com a promessa da apresentação nas mãos, Epstein "chantageou" os executivos da Capitol subsidiária da EMI nos Estados Unidos a lançar um single da banda. A promessa foi o primeiro catálogo de janeiro. Nesse meio tempo o quarteto lança em 22 de novembro I Want to Hold Your Hand na Inglaterra.

Um mês antes de volta à Inglaterra, Epstein tenta convencer o editor da sucursal da CBS de lá a fazer um mini-documentário sobre seus meninos. O filme é produzido e mandado para Nova Iorque. A matéria sai na manhã do assassinato de John Kennedy. Com a trágica efeméride, a tal reportagem naturalmente não é mais reprisada e vai para a gaveta.

Quando a poeira baixou, dia 10 de dezembro, Cronkite põe o vídeo no ar. Segundo Martin Lewis esse foi o momento em que a América conheceu de fato os Beatles.

No dia seguinte, uma ouvinte da WWDC de Washington Marsha Albert escreveu uma carta para o DJ Carroll James, perguntando: "por que não podemos ter esse tipo de música aqui?" Intrigado, Carroll consultou a direção da emissora. E se a gente arranjasse o disco?

Decidiram então contrabandear o compacto dos Beatles através de um comissário de bordo da BOAC. Dois dias depois, com o compacto em mãos o deejay convidou Marsha para, ela mesma, lançar no éter como se dizia na época a canção, em seu programa de fim de tarde.

A reação dos ouvintes foi avassaladora e de tal monta que o disco precisou ser reproduzido inúmeras vezes. No outro dia, choveram pedidos de um single que sequer havia saído nos Estados Unidos.

Ao mesmo tempo, os executivos da Capitol souberam do insperado e assustador vazamento de I Want to Hold Your Hand provocado pela WWDC. Procuraram o departamento jurídico a fim de ameaçar a emissora. Contudo, logo perceberam o erro de cálculo de tal operação: afinal de contas, tudo o que uma gravadora quer é que os seus discos viralizem na programação das rádios, não é isso?

Tiveram logo outra ideia: já que não é possível vencê-los, o jeito é unir-se à eles. Com a data marcada do lançamento para o dia 13 de janeiro de 1964, a subsidiária ianque da EMI prensou promocionais da música e distribuiu por todo o país principalmente nas rádios de Nova Iorque e arredores. Por coincidência, observa Martin Lewis, bem numa época em que os jovens estão de férias e .... ouvindo rádios com seus pequenos receptores com a novidade do transistor.

Em posse do contrato com Sullivan, Brian Epstein havia pedido 40 mil dólares para uma campanha de divulgação algo até então impensável em termos de cifras para os Beatles. Porém, em pouco menos de um mês de exposição, I Want to Hold Your Hand já havia sido mais do que trabalhada nas emissoras da América, e de forma espontânea. Pela demanda, a Capitol vislumbrava vendas na base de 1 milhão de unidades ou mais - também algo até então impensável em termos de cifras para os Beatles, que era ainda uma banda que mal tinha dinheiro para comprar seus instrumentos, fazia turnê de Kombi e não sabia o que era um PA.

Dia 16 de janeiro de 64, três dias depois do lançamento, a Cashbox anunciava que I Want to Hold Your Hand havia subido de  #43 para o #1. Deste dia até a chegada dos Beatles no 7 de fevereiro a publicidade indireta correu solta pela imprensa.

Ou seja, se antes havia a modesta previsão de um tiro na lua algo que precisasse sustentar  o lançamento de um artista remoto num terreno tão árido e exigente como os Estados Unidos, de Cronkite passando pela WWDC, a música viralizou de forma espontânea e avassaladora; isso num tempo onde não existia internet - e numa época em que muitas vezes você ouvia um cantor no rádio por anos sem jamais sequer saber a sua cara - como diz Lewis em sua teoria: se a histórica transmissão do dia 9 vendeu os Beatles para 73 milhões o começo havia se dado bem antes. Ou seja, se houve uma revolução, ela não começou pela tevê: ela começou pelo rádio.





Saturday, February 09, 2019

Um Inimigo do Povo

Allan Freed



Revi recentemente a cinebiografia do mítico Allan Freed. O cara é conhecido como o maior DJ da história do rock e influenciou todo mundo que veio depois.

O filme não entra em polêmicas. Então ele pega leve nessa parte, que é - a não ser, de forma simbólica. O cara foi o maior DJ da história do rock e que foi pego pra Cristo numa espécie de CPI do Jabá, o "Escândalo da payola".

No começo dos anos 50 o número de DJs subiu de 5 pra 250 mil, o mercado de música jovem aumentou, compactos 45 vendiam como água. Ou seja, virou um grande negócio, e a aurora do que seria uma cadeia produtiva da economia da música no rádio. O filme mostra bem esses bastidores do que era o começo da música no rádio como negócio.

As gravadoras apostavam na identificação da gurizada com DJ como Freed. Eles vi o alvo dos donos das gravadoras que não entendiam nada de rock - continuam não entendendo. O nome DJ é porque o cara era o que dava a informação de cocheira de quem ia virar sucesso.

Só que aí nasceu o jabá, essa relação entre o DJ e o cara da gravadora. Os músicos de rock, que assinavam com a editora BMI, Broadcast Music Inc - que era mais nova e abocanhara boa parte do cast do pop nascente e agora do Rhtyhm and Blues, o country e da fusão deles, o rock, vendiam disco de 4 pra 1 de artistas de outras editoras como a ASCAP, a American Societky of Composers, Authors and Publishers, que representava o pessoal grande do Tim Pan Alley Viram que estavam perdendo a guerra. O Tim Pan Alley era o começo do mercado na música nos Estados Unidos a partir da Broadway e eram donos de todos aqueles grandes nomes de compositores da América, todos aqueles que eram interpretados pelo Sinatra. Então se eles não eram, eles se achavam os donos do mundo. Aí esse pessoal pica da ASCAP tava por trás do que virou a CPI, acusando radialistas de ganhar por fora pra tocar disco. Uns confessaram, ganhavam 22 mil dólares pra tocar um disco. Era uma puta grana, cara nem precisa de salário. E com o escândalo, muitos foram demitidos.

As rádios corriam o risco de perderem a concessão do governo. Depois caíram nos dos DJ mais famosos, Dick Clark e o Allan Freed. Mas o Clark foi colaborativo, era bonitinho, o Freed era um fanfarrão, e ferraram com ele. Todos faziam mas ele foi o Cristo, só tocava música negra, ou seja, aquela que a América branca boicotava nas rádios brancas.

Freed falava a linguagem da gurizada, rejeitava cantor branco que fazia cover de negros como o Little Richard. Eles odiavam o rock, e ele representava tudo o que o rock era. Então fuderam com ele mas fuderam bem fudidamente, a carreira dele acabou.

O curioso é que Clark, pelos serviços prestados à CPI, teve a sua então obscura carreira de radialista em Drexey Hill e virou o queridinho da América, com o American Bandstand, na ABC, um programa de sábado à noite. Apresentando todos aqueles artistas que Freed não tocava nem pagando, como Pat Boone, por exemplo. Depois da caça às bruxas, o que aconteceu foi que, aos poucos, a ASCAP passou a correr atrás desses artistas brancos, e os Estados Unidos foram inundados por uma febre promovida por essas editoras, promovendo teen idols, como Neil Sedaka, Paul Anka, Frankie Avalon. Uma moda que ia acabar anos depois, com uma invasão provocada, por ironia do destino, por bandas influenciadas por Freed e suas estrelas.

Nos cinco anos seguintes, ele só conseguiu emprego em rádios pequenas e mesmo assim ficava pouco. Ele virou um nome perigoso, o Inimigo do Povo. Morreu de beber, com pouco mais de quarenta anos esquecido, no auge da Beatlemania. Enfim, Freed foi o bode de uma briga de cachorro grande e que hoje parece ridículo, e da pressão do estabilishment contra o rock.