Tuesday, December 23, 2014

Outros Dezembros




A Rua da Praia



Eu nunca tinha ido na Fnac aqui antes. Me disseram que era uma livraria. Eu tinha que comprar presente e me vi obrigado a entrar num shopping em véspera de Natal. Pois eu fui lá segunda e fiquei impressionado; achei que fosse uma livraria, como me mentiram, mas me senti no Lojão Oba-Oba, nos altos do Mercado Público.

Loja ruim, só vende bugigangas eletrônicas, livros em pilhas, cestas, gente trêfega transitando feito formigas hipsters doidaças ligadas em benzedrina, um lugar cheiro de gente que te desumaniza, desumaniza os clientes, desumaniza os funcionários, mas ninguém liga. Essa sádica resilência resume bem o espírito de Natal, um altruísmo meio idiota em homenagear aqueles que nem merecem tanto (isso é outra história, prefiro deixar as indiretas para o Facebook, que é o lugar mais apropriado). Enfim, achei uma bela droga.

Mas isso me provocou um efeito curioso. O fantasma do Natal passado roçou minha fronte. De repente, fui raptado à outros dezembros. Me lembrou do tempo das Lojas Americanas da Andradas lá pelos anos 80. Naquele tempo, as Americanas eram, com efeito, o paraíso das gadosas. Minha avó usava muito esse termo, que achava tratar-se de um divertido eufemismo, mais do que um arcaísmo quase obsceno em seu uso e costume.

Naquelas priscas eras, não havia venda pela Internet, Então, essas lojas de departamentos eram gigantescas. A melhor devia ser a que tivesse tudo, e as Lojas Americanas se propuseram a tal artes de Marcúrio, tanto que ela era a maior da cidade, com quatro andares. Você não ia no Centro senão para ir nas Americanas.

O legal das Americanas naquele tempo era isso, um atacadão de quatro andares, com uma baita lancheria nos fundos do piso da Andrade Neves. Isso no o tempo em que o chic no footing da Rua da Praia era conhecer a primeira escada rolante da cidade, imagina, a gente ia nas Americanas para provar aquele sundae proustiano de três andares. Olhava todos os produtos, andava por todos os corredores da loja, mas só tinha o dinheiro contado do sorvete. A Americana nova (como a gente chamava, já que tinha a velha, quase na esquina da Borges) era o frenesi de andar na Rua da Praia no final dos 70 e pelos anos 80 afora.

O calçadão já não tinha aquela poesia de aquarela da commedia del arte das crônicas do Nilo Ruschel, mas reservava lugar para seus derradeiros tipos folclóricos, como o ex-bancário conhecido pelo nome de "gurizada medonha", que era o seu pregão ao vender bilhetes de loteria. Não havia mais nada de bonito no calçadão, mas não era insuportável como hoje, onde metade da flanêrie da esquina da Uruguai se resume a panfleteiros (e a intrépida turma do shake emagrecedor instantãneo).

Porto Alegre era uma cidade provinciana. A rigor todas são. O problema é quando são e querem bancar o status de cosmopolitas, coisa que a capital do estado aqui não é e nunca vai ser. Por exemplo. O programa do porto-alegrense nos 80 era 1) fazer piquenique para ver os aviões decolarem e pousarem no Salgado Filho velho; 2) andar na escada rolante das Lojas Americanas.

A história recente deste triste burgo açoriano pode ser resumido em antes da escada rolante das Lojas Americanas e depois da escada rolante das Lojas Americanas. Aquilo foi um acontecimento socio-antropológico-cultural na vida do habitante da capital dos gaúchos. Era um frenesi, a Era do jazz aplicado ao capitalismo de consumo onde as flappers eram, como dizia minha avó, as gadosas. Ou, empregadinhas, como se diz, de forma corrente (sem preconceitos, embora houvesse 100% de preconceito nisso).

Não havia shopping. A vida era na calçada. Hoje existe um movimento de "ocupação" de espaços urbanos, provavelmente por conta de um atavismo que assiste a cada cidadão, justamente porque nós esvaziamos a calçada. Parece bobagem, mas (nem filosofávamos muito nisso, tão distraídos que estávamos em nossa triste juventude) Juntava a grana da mesada (semanada, no tempo do overnight), mas a grande aventura era o Centro. Chegar até lá só para provar o sundae do Rib's no Largo dos Medeiros (ainda diz isso? Ninguém mais usa esse nome, embora seja oficial) ou das Americanas. A desculpa era sempre alguma fita de cinema (também de calçada (não rende outro post porque é assunto batido, desculpem)).

O porém e que o Rib's (que hoje só existe na memória e na marca de mostarda do tipo "gás lacrimogêneo") da Andradas era povão. Era prá A La Minuta. Não era fast-food como são os fast-foods. Acabou sendo distorcido como um restaurante popular chic, que você almoçava apressado comendo numa mesinha embutida, com a cara virada para a parede.

E não tinha shopping, o Iguatemi é de 82. Havia o João Pessoa, mas ninguém nunca levou ele a sério. O point da azaração antes disso, por incrível que pareça, era a Galeria Malcon, Imagina. Afinal, ficava na parte (um pouco) mais elegante da Andradas, que era entre a Marechal e a Dr. Flores. E tinha a Krahe, naquela altura da Andradas (perto da Ajax) que também tinha uma lanchonete dentro. A moda era loja com snack bar dentro. Aliás, foi concebido como uma mímese de um snack ianque, mesmo. Parecia original e exótico naquelas priscas eras, algo que hoje está arraigado no modelo instituído de lanchonete, inspirada nas suas respectivas matrizes estrangeiras.

A ideia era excelente. Até porque não era só eu que frequentava lojas só com o dinheiro contado do sorvete. Uma lanchonete era a desculpa para chamar clientes. A Renner da Dr. Flores também tinha uma lanchonete no subsolo (antes do incêndio tinha um restaurante no último andar, também). Hoje, se você reparar, isso não faria o menor sentido.

Naquele tempo, estávamos longe do advento dos fast foods na cidade. Alguém chegava de fora e dizia: "bicho, eu fui no Mc Donald's!". Alguém que dissesse que esteve no Rio ou São Paulo e contasse que esteve num Mc Donald's era automaticamente guindado à estatura de uma celebridade, sendo capaz, inclusive, de influenciar opiniões de grupos sociais diversos, principalmente os mais provincianos (brincadeira).

Lembra da Sloper? Só tinha coisa de mulher. Minha mãe me levava amarrado, eu era piá, imagine, uma criança numa loja que não vende brinquedo. Loja de departamentos sem seção de brinquedos é um saco (convenhamos). Quantos filhos foram torturados por suas respectivas mães ao terem que acompanhá-las em suas incursões pelas dependências da Sloper? Ficar horas lá dentro emburrados enquanto elas ficavam experimentando roupa ou maquiagem? Ou aguentá-las em estado catatônico diante da vitrina da Sloper?

Voltando, o chic era ir no Rib's da Indepê, lá na praça Júlio de Castilhos, ou no Joe's, na Ramiro, mas que era e sempre foi um snack meio careiro. O Rib's do Moinhos era mais para frequentar aos finais de semana, quando o titio ou o papai nos levava para passear de carro pela cidade. A gente sempre terminava o domingo no Rib's da praça Júlio. Inclusive, ninguém mais chama a Independência de Indepê, isso é do tempo da Cantina, da Tia Dulce e do Butikin, da Mariam Makeba, do Rui Sommer, do Laurício e do Scala na zaga do Internacional (a ser desenvolvido, fica para o próximo post). Este já está ficando saudosista e, por tanto, ligeiramente chato.






Friday, November 21, 2014

Jornalismo Meme


Portal classificou rapaz da foto de "chinês maluco"


Não sei se vocês têm reparado mas, nos últimos tempos, com a consolidação do jornalismo na internet como plataforma vital para o futuro da área, a web acabou transformando a matéria-prima de uma publicação, que é a notícia, em um bem de consumo esdrúxulo e de informação zero.

É o jornaiismo de portal, mimetizado pela imprensa, cujo mote é o fato insólito, o fait-divers. A notícia que apela para as emoções do leitor. Sites como o G1 têm se especializado em encher a timeline de quem tem a dignidade de segui-los em notícias do tipo "Cachorro adota ninhada de gatos". Ou "Gato salva criança de ataque de pitbull". Ou "Casal em lua-de-mel é surpreendido por 'visita' de guepardo em carro".

A nota sensacionalista do fait-divers sempre foi pauta. Mas com a imprensa pela web e a facilidade de atingir cada vez mais leitores de forma instantânea fez com que se perdesse qualquer critério de informação útil. É uma tendência: é a pauta típica da nova função no jornalismo, o produtor de conteúdo.

Ele não faz nada mais do que uma clipagem de notícias (com ou sem gilete-press, já que muitos jornais hoje preferem contratar agências do que contratar profissionais). O objetivo é viralizar a informação viral. É o jornalismo meme.

O caso mais recente do jornalismo meme foi a insólita proposta do jovem chinês que pediu a mão da namorada em casamento - proposta que foi recusada, mesmo com a oferta de 99 telefones celulares. Ao longo do dia 11 deste mês, quase toda a imprensa brasileira deu destaque para algo que é mais comum do que parece.

Todo mundo leva fora na vida, mas o caso da China foi manchete em todos os portais, já que a filosofia do jornalismo meme é simples: não podemos perder cliques no Facebook para a concorrência. No fim, todos publicaram a mesma nota, com a mesma foto, e ninguém soube apurar todo o lead da notícia. Até hoje, ninguém soube me dizer qual é o nome do casal.

Matéria publicada pelo R7 chamou o rapaz da proposta de "chinês maluco" no título. Até entendo que 99 telefones não é lá um dote negócio muito romântico. Mas lembrei-me do Manual de Redação (da Folha?) onde, com uma certa dose de humor, o texto falava para evitarmos fazer qualquer referência a habitantes de outros países de forma pejorativa (e todos em geral, ainda mais num título). Mas quem lê manuais de redação hoje em dia?

Se vocês procurarem no Google, vão encontrar várias páginas dando destaque ao caso do malfadado e intrépido rapaz. Todas as informações vieram das redes socais, ninguém apurou nada (nem poderia e nem deveria, afinal, é notícia hoje é diversão) Mas todos publicaram. Como se chama isso?

Jornalismo meme. Se viraliza, é bom. Se é bom, viraliza o jornal.

Hoje e de agora em diante, não existe mais lugar para um repórter como o Carlos Wagner, ou José Hamilton Ribeiro, por exemplo. Um executivo de empresa vai explicar: jornalismo investigativo é caro e não dá retorno. Um repórter de verdade não publicaria uma matéria baseada numa foto tirada da internet. Hoje, ao ler notícia de portal, eu estou trocando faisão por mortadela.

Lembrei do Wagner porque, no mesmo dia que soube dessa história, descobri que o repórter "puta velha" de tantos anos militando por aí, se aposentou.

Os dois fatos não tem muita relação, mas parece sintomático ver que, em seu desespero, a imprensa está demitindo a torto e a direito prá salvar o barco, desmantelando sucursais pelo país afora e livrando-se do seu capital cultural, os velhos repórteres e está municiando "produtores de conteúdo" que ficam o dia inteiro na frente do computador replicando informação, um tipo e uma qualidade de informação. que é a água da salsicha da imprensa.



Wednesday, November 19, 2014

Porto Alegre Contra o Agente do IBGE*



Existe um pequeníssimo beco na esquina da Protásio Alves com o muro do Sesc Campestre, na altura do bairro Bom Jesus com Jardim Carvalho, em Porto Alegre. A ruazinha, de chão batido, vai se afunilando, afunilando, afunilando, afunilando, afunilando, afunilando à medida em que avançamos e termina num emaranhado de casas e um varal com um repertório de roupas secando ao sol, franqueando (desculpem o excesso de gerúndios) uma nota ligeiramente pastoral ao ambiente. O logradouro parece não ter saída; porém, à esquerda de quem adentra, há uma pequena servidão, que passa por um terreno baldio – uma charneca.

Mais adiante, chegamos à rua Souza Lobo, já na Vila Jardim. Ao pegarmos essa via, à esquerda, descobrimos um acesso à direita, quase um símile da servidão anterior, e que nos conduz até outro beco longo que, cerca de duas quadras depois, na frente do posto de saúde do bairro, vira uma ampla e urbanizada avenida.

Com o auxílio de informações de moradores do local – um assentamento urbano – descobrimos que tanto o beco da esquina da Protásio quanto o acesso, que termina no posto são, na verdade, a mesma rua: Ernesto Pellanda, cujo CEP é 91320-220.
Para alguém acostumado a singrar pelas regiões urbanizadas da cidade, andar por um assentamento urbano desses pode parecer um verdadeiro safári; no entanto, para um agente de pesquisas como os temporários do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, esta é uma rotina diária.

— A gente não vai precisar usar esse colete, né?

Um rapaz do meu lado, na sala da monitoria se assustou ao ver a secretária descer do almoxarifado sorridente com uma sacola cheia de coletes azuis, como aqueles que os agentes usavam no último Censo, o de 2010. A pergunta valia para mim: achei que, pelo que haviam me dito, nós íamos fazer listagem de endereços. Pensei instantaneamente no tele-listas.

Claro. Eu não sabia do que se tratava mas, na minha vã inocência, pensava que era um serviço meramente burocrático como, por exemplo, confirmar endereços por computador e telefone. Ledo engano. O que nós iríamos fazer naquele primeiro dia, e durante os próximos dois anos, era trabalho de campo.

A pergunta do meu novo colega abria uma janela ao infinito. Quando fazemos a prova do IBGE, não temos a mínima ideia do trabalho a ser feito. Nossa chefe, que desceu do segundo andar para falar com o novo grupo, que passava os olhos no manual, de cara jogou um balde de água fria: “vocês tem uma imagem errada do serviço público. Vocês não vão pendurar o paletó na cadeira, mas vão bater perna o dia todo”.

A conversa com a nossa nova chefe me lembrou o começo do Papillion, quando os condenados ouvem o discurso do chefe da milícia na Ilha do Diabo. Só faltou a guilhotina com a melancia (melancia?). Nem tanto. O fato é que, quem não é acostumado, têm um pouco de resistência ou vergonha de andar pela rua de uniforme. Eu não via nada de mais, pois já havia trabalhado como auxiliar de cozinha no meu emprego anterior. Mas houve muita gente contra à nova indumentária.

O trabalho de listagem era simples: trata-se de recontar e confirmar um catálogo de endereços dentro de uma circunscrição geográfica. Um mapa em escala reduzida nos é dado. Este mapa representa um setor censitário: uma pequena área que é de interesse de pesquisa. Assim, a área é geograficamente delimitada, e pode ter desde tamanho de uma quadra, até a dimensão equivalente a um bairro.

Com o mapa vem uma lista de endereços, que deve ser conferida e confirmada à risca de ponta a ponta, segundo uma ordem por faces de quadras. O agente percorre um percurso já pronto; os endereços são confirmados quadra a quadra, sempre em sentido horário. Mas é claro que nem sempre uma quadra faz jus ao nome.

Num setor chamado 10 (urbanizado), é como registrar os endereços de uma região como a da Cidade Baixa, por exemplo. Eu parto de um ponto inicial, numa esquina de quadra, e vou listando o número de domicílios, prédio a prédio, indicando a especialidade de cada um — se é um domicílio habitado, se é casa, prédio de apartamentos, comércio, etc.

O que deve ser levado em consideração são os domicílios ocupados: apenas estes entram nas pesquisas, como a Pesquisa de Emprego (PME), que sai na imprensa em geral todo fim de mês.

Descobrimos que esse trabalho preliminar é árduo. Porém, ele tem justamente o objetivo de facilitar o principal, já na fase de pesquisa.

Portanto, temos que marcar quando determinado imóvel é vago, de uso ocasional, demolido, fundido ou transformado em estabelecimento: uma falha de registro pode redundar numa gigantesca falha estatística, prejudicando a amostragem. Para isso, só vale o domicílio ocupado. Checamos nome do morador, telefone (se possível). Terminado todo o setor, tudo é digitalizado e mandado para o departamento de informática.
Logo depois que a listagem termina, a sede nos retorna o material com a indicação dos domicílios selecionados para a pesquisa domiciliar. E aqui que começa a corrida do ouro.

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Eu recebi o setor da Ernesto Pellanda, na Vila Jardim. Olhei o mapa e não entendi bulhufas (não havia feito a listagem dele).
Prá começar: nunca tinha andado por Porto Alegre. Digo: tive que rever meus conceitos a respeito de andar pela cidade. Se você se acha um conhecedor de sua cidade, precisa trabalhar de agente de pesquisa. Além de ser mandado para os lugares mais inóspitos e exóticos possíveis, a gente acaba enxergando a realidade urbana com olhos curiosos, de turista.

Em segundo lugar, não conhecia aquele bairro. Em terceiro lugar, descobri que existe uma outra especialidade de setor, o 11, chamado “subnormal”.

Ou seja, assentamento urbano. O “onze” era o caos. Quadras disformes, área com características de rural — como Belém Velho ou Lajeado, ou invasões em bairros afastados, como Mário Quintana ou a Lomba do Pinheiro (que varia do normal para o subnormal).
De repente, a cidade vira um mundo e você tem que decifrá-lo, cobrir todas as distâncias. Cada novo setor é um lugar diferente, com gente diferente.

Como era de se esperar, no começo eu estava mais perdido que carteiro. Avistei inclusive um passando por mim. Pedi informações. Me disse que havia sido admitido no último concurso, e também estava perdido. Dois neófitos numa tarde de outono. Era como num safári. Eu morava em Porto Alegre e não conhecia Porto Alegre.

Estava em território estranho, no meio de casas irregulares, ruelas insuspeitas de chão batido, gente coabitando domicílios de forma surpreendente: dez a quinze pessoas improvisadas em barracões. Eu tinha que, com a listagem, achar determinada casa escolhida para a pesquisa.

Por mais ordenada que ela fosse, quase nunca batia com a realidade de campo. Um agente sozinho, sem mapa, está mais perdido que cachorro que caiu de caminhão de mudança.

Descobri que aquele amontoado de construções na Ernesto Pellanda surgiram logo depois da inauguração do Sesc, há uns trinta anos atrás. A área estava em vias de urbanização, e aquele trecho foi todo invadido. Aquela pequena servidão surgiu ao natural, para que os moradores da parte de baixo da rua não tivessem que se deslocar até a Saturnino de Brito para pegar ônibus, por exemplo.

Pego esse exemplo porque, em setores do tipo subnormal são muitos em cidades como Porto Alegre.

O porto-alegrense está muito acostumado a olhar para o Centro, para o rio. A cidade que existe às suas costas, além dos morros, é quase uma abstração. Conhecer a cidade sob essa nova ótica é quase como começar do zero.

O problema é que, dentro do setor, há um rodízio de casas selecionadas para a pesquisa sazonal. Findo o período, outras daquela mesma área entram nela. Os domicílios escolhidos são fruto de uma seleção aleatória, porquanto não é possível escolher nenhuma casa; do contrário, estaríamos induzindo a pesquisa.

É importante salientar isso porque, ao contrário do que a maioria da população pensa, o IBGE não faz apenas o Censo e existe uma metodologia a ser observada, um modo de fazer por trás daquele agente de colete que aparece de repente batendo palmas na casa das pessoas. Para eles somos apenas mais um na paisagem deles: agente de pesquisa, agente de saúde, pedinte, gás.
Já nessa altura, descubro que o trabalho é difícil, muito difícil. Mas tenho que agarrar com as unhas. Desistir, jamais. A vida tá difícil sem emprego.

Putz! O mapa não bate com a realidade de campo. As casas de favela não têm numeração ordenada. Ou não têm. Ou tem até três números diferentes: do departamento de água, da energia elétrica e a da Prefeitura. Ou então, no caso de invasões de áreas particulares, como a Vila Jardim Marabá, no Teresópolis, todas as casas — umas quatrocentas — pertencem a um mesmo número. Pobre daquele carteiro...

Mais: uma favela pode ter até mais de vinte quadras numa área ampla e de terreno irregular, como no Pinheiro. Ou, pior: o beco que você procura, na verdade, é uma grade de ferro, que dá para um acesso onde só passa uma pessoa, e que dá numa colônia de papeleiros, onde as casas, improvisadas num terreno exíguo, podem, daqui a uma semana, estar em cinzas. Ou lavadas por uma enxurrada, como eu vi, certa feita, numa manhã de chuva na Vila dos Herdeiros.

Tive que aprender meio que na marra a entender todas essas contingências do trabalho de campo em áreas irregulares: interpretar o mapa corretamente, conhecer terreno, falar com gente de posto de saúde, de associação de bairro, traficantes (até santas senhoras, que jamais teriam caras de “traficantes”, mas que não estavam com uma sacolinha azul na calçada fazendo trottoir à toa). Enfim, todo um trabalho de diplomacia para que seja possível realizar a pesquisa nesse tipo de região da cidade.

Claro que nem sempre isso dava certo. O mapa podia atrapalhar, ao invés de ajudar. As pessoas podiam se recusar a dar entrevistas – e isso é muito comum. Porém, mais comum em bairros nobres, como Petrópolis, Bela Vista e Moinhos de Vento.

Como a pesquisa é rotativa, nós recebemos um setor por semana. Hoje eu posso estar cobrindo uma parte de São João, semana que vem, na Vila Minuano, no Sarandi, na outra no Cristal e, na última, pegar a (putz!) Cidade Baixa.

Cidade Baixa é bom só prá quem mora perto ou prá quem gosta de cerveja. Eu morava perto e não queria fazer de jeito nenhum. Centro também. O problema é que, com o tempo, a gente pega o perfil do morador. Por incrível que pareça, o pesadelo não muda. Muda a lista de entrevistados, mas eles são todos iguais. O perfil é sempre o mesmo.

O que existe é a exceção para fazer a regra: alguém que te recebe com tapete vermelho, cafezinho (uma senhorinha, lá nos prédios antigos do IAPI, nos jogou a chave lá do terceiro andar)

Sem generalizações. Contudo, o pessoal desses bairros nobres não gostam de dar informações. Às vezes com efeito eles têm consciência do trabalho do agente de pesquisas de um órgão do governo federal.

Mas têm medo de dar informações como trabalho e renda — principalmente renda. Muito me diziam: “ah, eu já faço o Imposto de Renda”, ou “eu não sei se vocês vão cruzar dados com os da Fazenda para saber se eu estou declarando minha renda corretamente”. Ou “vocês já sabem tudo sobre mim”? E não passavam a informação. Eu tinha que fazer relatório. Aí é com a supervisão;

Às vezes, o morador desconfiava. Ligava, não acreditava. Então aparecia do nada na agência. O quê? O IBGE não faz só o Censo? Essa pesquisa existe, mesmo? Ou ligava e marcava de fazer na sede. E a gente ia pruma salinha, oferecia cafezinho, água, fazia sala, tudo.

Esse é um tabu da pesquisa. Fica-se de mãos atadas, já que o a agente é temporário, de até dois anos (ou menos, prá quem desiste ou “é desistido”). Tabu porque a população em geral, ilustrada ou não, e eu descobri que isso independe de status quo, desconhece o trabalho de estatística do governo.

E, vamos e venhamos: claro que, em última análise, eles não têm culpa de não conhecerem o grau de relevância de prestarem informações de cunho estatístico. Não sabem que são esses dados que permitem a realização de políticas sociais — como a construção de um posto de saúde ou uma escola.

Para a maioria da população, isso é conversa para boi dormir. Ou politizam e ideologizam a questão. O máximo que eu podia fazer era, dentro do meu limite, já que não éramos versados em economia, saber convencer cada um da importância do trabalho, que eu sei que é chato, que irritante, que é intrusivo.

Ainda mais num bairro como a supracitada Cidade Baixa, por exemplo. Ali, muita gente mora sozinha, trabalha longe e só chega em casa à noite. Às vezes, esses moradores têm vida noturna; se moram sozinhas, nem sempre param em casa, e viajam ou dedicam o fim-de-semana ao lazer.

Para um agente de pesquisa, em bairro nobre não é como em favela. No Moinhos de Vento, o dia é inútil. Só encontramos em casa a empregada ou o cachorrinho. O que podemos fazer é deixar recado. Na maioria das vezes, não se obtém retorno nenhum. Quando achamos o morador, depois de ficar plantado na frente da casa o dia todo, ele nos diz: “recebei teu recado, guri, ia te ligar, e esqueci”.

Certa vez, me caiu fazer entrevistas num lugar difícil: a Bela Vista. Fui bater numa apartamento. A senhora não estava. Fiquei rondando a manhã toda, e nada. De tarde, a mesma coisa. Voltei no dia seguinte, e nada. De repente, sai uma senhora:

- Olá, procurando alguém?

- A dona do 302.

- Hum, acho que ela trabalha o dia todo, ela tem um comércio no centro - me explicou. - Acho que tu só pega ela em casa de noite. Aliás, a maioria do pessoal aqui do prédio tu só pega eles de noite, mesmo. De dia, tá todo mundo trabalhando.

Não voltei mais de dia ali. Fui realizando entrevistas em outros locais, mas voltei de noite, lá pelas oito. Aí havia um porteiro. Perguntei:

- A dona do 302?

- Não está.

- Será que ela demora muito? - perguntei, já em desalento.

- Creio que sim. Ela acabou de sair com o cachorrinho.

Cinco minutos depois, aparece numa senhora baixinha, de meia idade, loira, de cabelos curtos e óculos retrô, sendo conduzida por um poodle em surto, como se tentasse se desvencilhar da coleira, latindo para tudo e para todos.

Fiz a entrevista na calçada, mesmo. Ela disse que tinha uma loja. Eu: "aham". Ela viu o meu colete e disse: "você é do Ibge? Minha loja fica do lado de uma agência do Ibge na Duque de Caxias. Eu: "Hã???". Ela: "sim, minha loja fica do lado daquela agência ali da Duque, a chefe de vocês sempre vai na minha loja". Não pude conter o espanto.

Eu passei a semana atrás dela na casa dela e ela estava o tempo todo do lado do Ibge. Depois, no mês seguinte, eu falava para os outros, que iriam dar prosseguimento à pesquisa: "Ela mora na Silva Jardim, mas você escolhe ou fica o dia todo lá no portão e vai aqui do lado e entrevista ela em 10 minutos...". Ela dizia: "eu vejo vocês todo dia entrando e saindo do prédio com aquele colete azul".

Tudo ficava bem quando acabava bem. Contudo, ma vez, na Santa Cecília, faltou um domicílio da lista num edifício. Era uma família de três pessoas — pai, mãe e filha. A matriarca estava em casa, mas tinha receio de me receber. Fiquei fazendo um meio-campo com o porteiro (muita gente fina e já me conhecia de outras passadas por ali) até que ela decidiu dar-me uma chance.

Ela me disse que ligou antes para a filha, e ela a proibiu de me deixar entrar. Falou mais alto o seu coração materno. Minutos depois, entre em casa a moça. Enfurecida, ela não me cumprimenta e repreende a mãe:

— Tu não devias ter deixado ele entrar!

Eu expliquei que era uma pesquisa do IBGE e que apenas queria avaliar como a população força o mercado de trabalho. A matriarca me respondeu:

— Mas eu não trabalho mais, não preciso da entrevista.

— Minha senhora — repliquei, ajeitando os óculos — é o seguinte: nessas pesquisas de taxe de desemprego, a população entrevistada se divide em ocupada e não-ocupada, a que força o mercado em busca de trabalho ou não. Mesmo a não-ocupada têm um tipo de renda, isso entra para o computo da média de renda da população naquele período onde é feita a avaliação.

— Mas a gente não é obrigada a responder isso! — vociferou a filha, muito irritada. — Onde é que tá escrito que a gente é obrigado a responder?
Eu falei que havia uma lei de obrigatoriedade, sim. Porém, eu nunca iria usar esse argumento, já que eu podia, de maneira cordial e diplomática, convencer as pessoas a conceder a entrevista normalmente.

Continuei o chasque com a senhora. Notei que a filha, andando prá lá e prá cá sem destino entre mesas e cadeiras, como que sem saber o que fazer, foi para outro aposento, provavelmente olhar na internet — deve ter procurado o número da lei de obrigatoriedade que, se ela procurou, estava lá.

Minutos depois, ela voltou e fez uma cara de criança batida.

Eu, já meio nervoso, cheíssimo de dedos, me sentindo como o Ulisses na embaixada a Aquilies na Ilíada, insisti:

— Moça, falta apenas pegar os seus dados.

A mãe tentou ajudar:

— Só falta você, filha.

Sentada no sofá, vencida, olhando para a parede, ela resmungou:

— Fazer o quê, se eu vou ter que responder?

— Sua mãe me passou alguns dados, não tem problema - expliquei.

— Não, tá bom, eu vou responder. Mas eu não vou dar nenhum número de documento!

— Não precisa, é apenas uma entrevista, a gente só pede documento quando algum morador não sabe alguma data de nascimento, coisas assim, tempo de serviço de algum morador da casa, essas coisas — expliquei.

Finda a entrevista, falei que eu já havia estado no condomínio duas outras vezes, e citei as pessoas que havia entrevistado, entre elas o síndico. Falei que entreguei-lhe toda a minha documentação profissional. E falei de uma senhora, que elas conheciam.

A simpática matriarca me disse que aquela senhora não havia gostado da pesquisa. Achou muito intrusiva. Me lembrei do caso. E expliquei às duas.
— Sim, da dona fulana. Ela estava com uma vizinha. Lembro-me que ela estava tomando chá e comendo pão de queijo e que não me convidou prá sentar, nem me ofereceu pão de queijo.

As duas sorriram. Continuei:

— Quando eu pedi a renda, a tal vizinha, que não tinha nada a ver com a conversa, começou a questionar as perguntas que eu fazia. Me disse: “Sabe o que eu acho? Eu acho que o IBGE tá querendo se meter muito na vida das pessoas”. Respondi: “essas pesquisas são bem antigas e portanto são praticamente são as mesmas há mais de trinta anos”. Acho que essa moradora, que não tinha nada a ver com a entrevista, resolveu fazer a minha
caveira no prédio, acho que foi isso.

As duas riram. Mas eu estava com os nervos em frangalhos. Na saída, a filha olhou prá mim e disse:

— Puxa, me desculpe, garoto, desculpe (etc)

Acho que meu nervosismo mal dissimulado as desarmou. Pior que até consegui uma coisa que é muito difícil — ainda mais em situações assim, que é reverter uma recusa, ainda mais na minha cara.

Notei que, assim que fui embora, a mãe ficou meio exasperada com a (compreensível, é lógico) atitude da filha. Afinal, nunca se sabe. Mas essa patuscada era apenas uma mísera entrevista num universo de bilhões e bilhões, como diria o Carl Segan.

Nunca se sabe. Não tiro a razão delas; gente sabe que tem muito malfeitor que usa uniforme de polícia, companhia de energia, de tevê a cabo, para conseguir alguma vantagem. Quem paga o preço são os verdadeiros. Na entrevista, eu sempre digo:

— Quando o agente de pesquisa anda por bairro nobre, as pessoas acham que é bandido disfarçado. Quando anda em bairro pobre, eles acham que é a polícia disfarçada.

Os entrevistados sempre riem com essa. Mas não deixa de ser uma verdade. Sempre que eu estou na favela com o colete, algum moleque grita em surdina, quando passamos em algum beco:

— Olha a chuva.

Estava em dupla fazendo listagem na Vila Cruzeiro. Eu estava meio tenso. De portas e janelas, as pessoas nos olhavam de soslaio. O colega me disse:

— Olhe para todos e dê bom dia.

Ele sorria e dava tchauzinho prá todo mundo, como político em tempo de eleição. Eu me divertia. Logo depois, já havia aderido. A gente batia palmas e dizia: “olá, vizinha!”. E as pessoas apareciam.

Com o tempo, eu já sabia que favela era produtivo. A gente corria todos os riscos, mas podia correr em qualquer lugar. Assalto, tiroteio, essas coisas. Às vezes, era a polícia militar quem nos advertia:

— Acho melhor vocês partirem, já passou do meio-dia. De tarde, a casa via cair aqui, meu querido.

Nossa chefe já havia nos dito. Nada de ir para favela a campo sexta-feira de tarde. Eu nunca fui. Em locais como a Nazaré, a Tuca ou a Maria da Conceição, a gente sempre dava um jeito de regatear de ir de grupo e de carro oficial pela parte da manhã.

A primeira vez que eu fui na Nazaré — na Sertório, entre o hipermercado e o Salgado Filho, fiquem com uma sensação de desolação. A mesma que eu via no olhar dos novatos, quando vinham de um lugar assim. Era outra cidade, outra vida. Uma vila de papeleiros, mal organizada, mal traçada, uma cidadela de ruelas e becos sem saída. Todos compartilhavam o mesmo sentimento de alívio em sair dali findo o trabalho.

Eu, de alguma forma, como um espectador de touradas, como diria o Heminguay, fui perdendo a sensação de exotismo da primeira vez e, a cada partida à campo, tinha a mesma sede de ver as tripas ensanguentadas dos cavalos no chão da arena. Não me exasperava mais aquele tipo de ambiente, que choca e que a maioria das pessoas que vivem em Porto Alegre não conhece.

Mas a despeito de toda a tristeza de ver aquelas sub-habitações, um emaranhado de “gatos”, lama, cachorros tentando pegar as nossas canelas (“nunca, jamais dê as costas para um cão quando cruzar um beco”, já me dizia um veterano), éramos bem recebidos em favelas.

Tirando a violência, que existe, noto que as pessoas das favelas são muito cordiais, são pessoas do seu bairro. Já as de regiões de alto poder aquisitivo são muito esquivas, desconfiadas, quase misantropas, fechadas em suas casas gradeadas, como se mais ameaçadas do que quem convive diariamente com tráfico na rua e com a polícia por todo o lado a qualquer hora do dia.

Essas pessoas realmente vivem uma distância social muito grande. É um choque vislumbrar isso como espectador diferenciado. Não vivem as mesmas realidades na mesma cidade, e nunca vão viver.

Entrevistei uma auxiliar de limpeza (encostada há pelo menos sete meses pelo INSS, porém sem receber contribuição) que mora com sete filhos num casebre atrás do supermercado Zanella, na Lomba do Pinheiro. Ela vive de um famélico Bolsa-Familia prá sete bocas.

Ela jamais vai entrar num hipermercado chique na Bela Vista, onde é gerente morador na Boa Vista, em frente à praça Japão. Ele jamais vai andar com o carrão importado dele na rua de chão batido onde ela mora. Duas pessoas cujas respectivas realidades jamais irão se encontrar.

Então eu conseguia jogar dessa maneira. Todo setor censitário tem o seu lado complicado. Fora os limites geográficos dos mapas de papel que eu carregava, era a mesma cidade.

Assentamentos urbanos, de fato, são uma tourada, de acordar cedo e pegar o touro à unha, como na marchinha. A compensação era a de matar a semana numa visita apenas. Eu até podia aproveitar o tempo de sobra para ajudar os outros de carro — algo raro, em se tratando desse tipo de pesquisa, onde tudo funciona na base do “cada um por si”.

O saldo, em geral, fora os sustos, tiroteios, cara feia, recusas de moradores e sobrecarga de trabalho, era 100%. Em um ano, eu havia compreendido todas essas questões, muito embora sempre uma nova região, um novo bairro, é sempre uma descoberta.

Eu, que não ia muito além da Porto Alegre central descobri a minha cidade. Ao mesmo tempo, fiquei espantado em ver como existem tantas cidades dentro da nossa capital. A Restinga, por exemplo, é uma região autônoma. A parada 16 da Lomba, à primeira vista, parece outro município.

Pessoal que mora nos arrabaldes se refere quase sempre ao Centro de “Porto Alegre”. “Ah, eu tive que ir em Porto Alegre fazer uma consulta”. A senhora que me disse isso morava na Vila 1º de Maio, naquela encosta atrás da casa do Teixeirinha.

A estrada que sobe chama-se das “enfermeiras” porque, há muito tempo atrás, as funcionárias do hospital Divina Providência alugavam peças por ali, isso — me contava um morador do local (depois soube que as enfermeiras eram, na verdade, do Hospital Parque Belém do tempo do Oscar Pereira, mas essa é uma outra história) — no tempo em que se amarrava cachorro com lingüiça e o disco “Coração de Luto” tocava em todas as rádios.

Passado o susto, a gente aprende todos os caminhos da cidades. As distâncias vão diminuindo, mas é quando você descobre que Porto Alegre é um mundo. Um não: vários mundos, várias cidadelas compartilhando o mesmo céu, o mesmo rio.

Fui conhecendo cada torrão da capital, mês a mês. Eu vivia isso com o mesmo deslumbramento de um turista. De fato, se esquecermos um pouco a correria, as pressões de entrega de produção de entrevistas, olhando pelo lado positivo, é um turismo interessante. Nós acabamos fazendo parte da cidade e ela passa a ser um pouco nossa também.

Houve dias em que nós corríamos atrás de entrevistas que faltavam para fechar o mês. Conseguimos, no meu tempo, formar um grupo informal que era como os músicos de Bremen: juntos, ninguém podia conosco. Esquadrinhávamos Porto Alegre. Agora, ela era nossa, nada mais do que nossa.

Percorríamos todos os setores com entrevistas abertas (não-realizadas) e, às vezes, andávamos por toda a cidade, do Parque dos Maias até Lajeado, do Lami até o bairro Farrapos, pouco antes da Arena.

Ainda dava tempo de guardar o chapa branca na garagem do Instituto no fim da tarde no finalzinho de expediente, camiseta suada e com sensação dos três pontos ganhos depois da partida.

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Eis que, um dia, eu recebi um setor do meu oitavo trimestre. A pesquisa-piloto é a Pnad Contínua. Pude me dar ao luxo de escolher, e peguei a Vila Jardim. Dois anos depois, voltei à famosa Ernesto Pellanda.

Tudo parecia igual, exceto uma farmácia, que havia fechado e uma carrocinha que apareceu, no outro lado da rua. Eu não tinha feito a listagem para essa vez, e foi muito difícil achar as casas pelos endereços e com o novo mapa.

Com engenho e arte, eu fui encontrando todas elas — menos uma, que foi contada errada, e tivemos que excluí-la da pesquisa como “domicílio não encontrado”. Sobraram treze, que eu fiz em três dias.

Quando voltei à agência, no Centro, depus meu colete. Já era o quinto ou sexto. Eles não duram muito. De azul-escuros, contra o sol, ficam azul-piscina. Azar; antes eles do que a nossa camiseta. Com o tempo, acabei me viciando em usar calças de carteiro e botas.

A verdade é que o agente de pesquisa caminha muito, e de sol a sol. E diferente dos Correios, a gente não recebe nada além do colete. Eu acabei me acostumando a andar com eles, já que é possível forrá-los com todo o que for possível, como colete de fotógrafo.
Até quando eu estava sem ele tinha o cacoete de buscar a caneta no bolso superior esquerdo...

Descarreguei as entrevistas que estavam no meu PDA (esqueci de dizer o que é isso. Trata-se de uma espécie de smartphone emborrachado de azul com o logo do IBGE, com um programa específico e um lápis touch screen, onde as entrevistas são armazenadas, substituindo os formulários de papel).

Como fazia quase todo fim de tarde, joguei colete e boné no caixote da sala da pesquisa, peguei mochila, pus o casaco, passei pelo guarda da entrada e dei o último adeus.

Quando ganhei a Duque de Caxias e desci as escadarias do viaduto Otávio Rocha, observei o rush do fim de tarde, olhei para o Morro Santa Teresa ao fundo e me dei conta que a minha aventura havia acabado.


* Texto selecionado para o livro "Histórias de Trabalho - 2014", da Editora da Cidade, lançado na Feira do Livro. Publico atendendo a pedidos (não muitos).

Monday, November 03, 2014

Sábado em Copacabana



Avenida Atlântica em 1950


Na peça "Boca de Ouro", do Nelson Rodrigues, tem uma cena curiosa: um rapaz, Lelelco, repreende a namorada, Celeste que, segundo ele, foi vista andando pelos arredores de Copacabana.

Na verdade, à guisa de comédia de costumes, o autor de "Vestido de Noiva" usa esse expediente para mostrar como, naquele tempo (anos 50) a então pouco habitada Zona Sul do Rio de Janeiro tinha uma certa fama de recanto da prevaricação a dois.

No Chega de Saudade, Ruy Castro comenta a gravação de "Teresa da Praia" citando o mote do Leblon na letra do samba-canção de Tom Jobim. "A dita praia, aliás, entrou na canção não apenas para rimar com "amar é tão bom" como também porque, nos anos 50, ainda havia uma inevitável conotação de sacanagem quando se falava do Leblon". Segundo ele, o bairro não tinha sido completamente colonizado e sua praia, à noite, era o paraíso carioca do "sexo à milanesa".

Um fenômeno interessante: como é costume dizer, boa parte da boemia do tempo da Praça Onze, nessa época, migrou para a Zona Sul. Ao mesmo tempo em que o samba-canção foi sendo "abolerado", como diria José Ramos Tinhorão, aos poucos, ele foi ganhando essa nota particular de crônica da Zona Sul cheia de blues. Era o tempo de cantores como Nora Ney, Dóris Monteiro, Lúcio Alves, Dick Farney, e compositores como Haroldo Barbosa, Dolores Duran, Tito Madi, entre outros.

Falando no Tinhorão e em Ruy Castro, pelo menos em uma coisa os dois tem muito em comum: ambos são detratores do samba-canção. O autor da Pequena História da Música Popular Brasileira escreveu que, entre os 40 e fins de 50, esse gênero, no nível de produção comercial, se transformaria em "sambolero", provocando o estilo a um rebaixamento, de acordo com Tinhorão, a "níveis insuportáveis".

Castro foi mais longe (e aqui ele diverge de seu colega jornalista) e criou a tese particular(no Chega de Saudade) de que a Bossa Nova veio para salvar o Brasil da praga do samba-canção. Nesse sentido, Ruy é bastante parcial em querer demonstrar isso, mesmo sabendo que boa parte da primeira geração da Bossa Nova necessariamente veio do "sambolero".

Pegando o mote da "zona sul cheia de blues" (nome de um capítulo do livro Chega de Saudade), penso que é possível fazer uma delimitação temática do samba-canção desse período em que o gênero, com a Bossa Nova ainda encapsulada dentro dela (cabe ressaltar que, no começo dos 50, Johnny Alf compunha bossanovices como "Rapaz de Bem", mas boa parte do seu repertório era composta de samba-canção, como "Ilusão à Toa", "Escuta", etc.), em forma embrionária, ao contrário do que pensa Tinhorão, floresceu de forma prolífica e, até certo ponto, protobossanovisticamente original.

Naqueles tempos pré-motel, a moda montar um apartamento para consumar romances fugazes, aquela era a região ideal para um idílio típico das crônicas do Antônio Maria (também compositor de sambas-canção, não gratuitamente), Stanislaw Ponte Preta ou dos contos do citado Nelson Rodrigues do "A Vida Como Ela È...". até pensando delirantemente (desculpem) de forma multidiscipinar, pegar a literatura do período, a música que nasceu naquelas boates (Plaza, Tudo Azul, Clube da Chave, o Beco das Garrafas, etc) e a música.

A 'dissonância' de opinião com relação à Bossa, e na palavra de gente como Ronaldo Bôscoli (que era bossanovista mas da antiga), era justamente que, e essa eu acho que é o grande "mérito" do gênero nessa fase dos 50, é essa pátina de trilha sonora dos garçonnières da Zona Sul. Ou seja, o típico samba-canção.

A grande crítica dos bossa novistas com relação à esse subgênero do samba-canção é que aquele tinha, com efeito, um público adulto, isto é, de gente com mais de trinta, casado, separado, desquitado, gente da noite nos seus arrufos à Dolores Duran, e cuja temática não interessava aos jovens. Enfim - um público mais velho. Daí nasceria a ingênua e pontual vertente "céu, sol, sul" da Bossa (que depois pagaria o seu preço e viraria clichê) contra as "Noite do meu Bem" e ao "Ninguém Me Ama", ou "Não Diga Não", e clássicos do cancioneiro "balanço zona sul".

Claro que, pensando como Ruy Castro, a BN não apareceu para salvar o Brasil do samba-canção. Ou, se realmente veio, é preciso colocar alguma luz àquele período, que eu (arbitrariamente) delimito, de forma simbólica, do lançamento do disco "Copacabana", com Dick Farney (1946) até "Foi a Noite" (1958) com a Silvinha Telles.

Refiro-me a colocar uma "luz" no sentido de que esse período de samba-canção no disco comercial no Brasil não foi "negativa" como uma Idade Média da MPB (nem a Idade Média foi tão Idade Média, como sabemos hoje), mas um período com um contexto e uma história que jornalistas-pesquisadores como Ruy Castro e José Ramos Tinhorão não quiseram dar-lhe o devido valor.

O primeiro prenunciaria o samba-canção jazzificado (não abolerado, pensando em termos de dialética luiztatiana de "mistura", ao invés da visão depreciativa tinhorona) que seria o molde para as músicas "cariocas" dessa fase "música de fim de noite" que tinha o seu lado dor de cotovelo, mas sublimado pelo blend das noites cariocas da boemia bem vestida da Zona Sul; o segundo, quando o jovem pianista do Tudo Azul, Tom Jobim, ainda compondo sambas-canção, tateando prenuncia a Bossa Nova (embora tanto músicos quanto produtores e até mesmo intérpretes não estavam, ainda, preparados pela pororoca chamada João Gilberto).

Tentando exemplificar a minha tese - já furada de tantos rodeios e voltas, pego como exemplo da lírica dessa fase um tema lapidar: a ensolarada e adorável "Sábado em Copacabana":




Composta por Carlos Guinle e Dorival Caymmi (numa de suas raras incursões no gênero) e lançada em 1951 por Lúcio Alves, a letra fala gentilmente de um rendez-vous de fim de semana, ou como diriam os ianques, um feérico "one night stand". Sem rodeios, a despeito do romantismo da letra, ela é uma idília prevaricação de nosso herói pelas praias de Copacabana. É óbvio que, em se tratando de uma canção dos anos 40, pegando o mote de Ruy Castro (e de Nelson Rodrigues no Boca de Ouro) sobre a reputação do Leblon de antanho, é certo que o sujeito da letra não vai à zona sul prá andar de surfboard nem prá chupar Chica-bon.

Nem tanto ao céu e nem tanto ao mar, a verdade é que, além desses pontos-de-vista, a produção desse período, o samba-canção "zona sul" ainda é um capítulo da história a ser escrito - sem preconceitos.

Wednesday, October 29, 2014

No tempo da Fita





As de 90 eram as melhores (mas rebentavam sempre)




Gurizada que hoje baixa música na Internet não sabe o que foi aquele barato de ser piá nos anos 70/80. Naquele tempo, a gente não tinha acesso aos últimos lançamentos de discos e sequer tinha condições de comprar vinil, com aquela mesada que mal dava para conciliar entre o último gibi do Pato Donald ou as figurinhas do álbum.

Meu pai me deu um radinho de pilhas azul Motorádio, eu fazia escuta de madrugada. Isso foi em 1982, eu morava em Curitiba. De noite, pegava a Mundial do Rio de Janeiro e as emissoras do sul de madrugada, quando o sinal era mais fácil de pegar.

Sempre preferi o rádio a tevê. Talvez porque gosto de ouvir música, qualquer música. Depois, quando herdei um rádio-gravador CCE, comecei a gravar programas.

Era o auge do FM. Agora já estava em Porto Alegre. Isso é impensável hoje, quando a faixa da frequência modulada serve de plataforma para difusão de canais do éter para o celular mas, naquele tempo, rádio musical dava dinheiro. A gente aprendia a conhecer música garimpando emissoras pelo dial afora, pedia os lançamentos e flashbacks e gravava muita coisa.

Não existe nada mais obsoleto do que uma fita cassete. Mas, para a minha geração, era a única forma viável de podermos montar uma database sonora. Eu fazia seleções de músicas. Ou então sempre tinha aquela fitinha onde havia aquela determinada música que gravou inteira durante uma meia hora de programação da Atlântida ou da Ipanema. Não tinha como apagar. O jeito era arranjar mais fitas. Eu tinha saco delas.

Eu era aquele que enchia o saco do Nilo Cruz nas madrugadas do "Voo do Morcego" pedindo sempre a mesma "Sultans of Swing". Tenho certeza que até hoje ele deve se lembrar de mim pentelhando ele e o operador, pedindo sempre Dire Straits. Isso que, naquelas priscas eras, a banda do Mark Knopfler não era a queridinha das rádios daqui.

Eu pagava o preço de gostar de rock'n roll numa época que isso era coisa de tio. Não havia nada mais defunto que pedir Hollies, Animals, Stones da antiga ou Beatles nos anos 80. Hoje ouve-se de tudo mas, há trinta anos atrás, era tabu. O que tocava nas rádios ditas "jovens" era Crowded House, Duran Duran, New Order, Christopher Cross, Dan Fogelberg, Culture Club, essas coisas. Só syinth-pop. O que tocava todo dia era "True" com o Spandau Ballet.

Eu odiava tudo isso, queria que as rádios tocassem Beatles. Eu ligava e eles diziam que tinham em elepê, mas que as bolachas estavam arranhadas (o que devia se verdade). A alternativa eram a Capital FM ou a Felusp, que não tinham "jabá". Lembro do Johnny Mathis e do Nico Fidenco na Capital, e de escutar um vinil inteiro do Gerry and the Pacemakers (com um chiado horrível) na Felusp. Tempo que se fazia FM para escutar.

Tinha sempre aquela música que a gente gostava e não sabia o nome. "Classic" com o Adrian Gurvitz, por exemplo, era uma daquelas tipo Antena 1 que eu tinha em fitas, e só fui saber quem cantava depois e velho. Isso era muito comum.

Tinha uma fota que era uma mistura de coisas. Era uma TDK roubada do meu pai, apaguei umas Maria Bethânia dele e gravei músicas da Ipanema. Lembro que o lado A tinha "Infinita Highway", "Luka", gravados inteiras da Atlântida, "Love Me Tender" e "Lay Lady Lay" da Capital.

Essas eu havia gravado por acaso. Mas eu vivia ligando para os locutores prá pedir música. Era chato, mesmo. Pedia música na Universal, mas era ruim, eles só tocavam jabá. Ficava na Ipanema. Tinha o charme de poder influenciar na programação porém, na maioria das vezes, eu queria sempre alguma coisa que não tinha como achar. Fora coisas que eles nem tinham na discoteca. E coisas que eram "banidas", ou seja, não faziam parte da programação.

Nos anos 80, não dava prá imaginar que, como nos dias de hoje, era só ouvir, buscar na Internet e baixar (ou ripar do Youtube). Prá piorar, muitos artistas de rock em geral não eram lançados no Brasil ou os discos estavam esgotados há décadas. Hendrix, por exemplo, era algo que eu via na tevê, mas não tocava em rádio. Os discos estavam fora de catálogo. O que salvava era aquele disc-jockey que era tipo o falecido Big Boy: tinha uma mina de ouro em sua discoteca particular, e tocava os venenos no ar.

A Ipanema tinha um programa (apresentado pela Kátia Suman) chamado Base Sonora, domingo às 19h. Cada programa era um álbum clássico. Esse era o tipo de programa que nos salvava. De repente, rolava um Freak Out! ou um Autobahn e era a chance prá gravar. Rolava a bolacha toda, sem vinheta. Era a vitória da turma do classic rock contra o jabaculê (embora a gente curtisse um Duran Duran mas não falava nada, ouvia escondido mesmo).

O FM brasileiro é uma invenção carioca. Nasceu com a Eldopop 98,1 FM nos anos 70, quando o imperialismo da frequência modulada ainda não ameaçava o AM. Como a Eldo funcionava em caráter experimental, eles tinham carte blanche prá tocar a vanguarda da época, o rock progressivo. Era música escapista, e que se encaixou com o perfil do ouvinte jovem do começo dos anos 70.

Desbundado, ele podia achar no FM experimental da Eldopop a trilha sonora prá ficar drogado. Nos anos 80, o FM "profissionalizou-se", oa desbundados foram ouvir outra coisa, e apareceram as FMs comerciais e ouvinte como nós.

Mas o fetiche do ouvinte arte-pela-arte de rádio, esse nasceu no tempo da Eldopop e, de mãos dadas com o que foi o boom da indústria fonográfica, as rádios viveram uma vida saudável e próspera enquanto o esquema das gravadoras tinha paralelo com a produção de discos. Tanto é que, com o advento da Internet, o CD foi morrendo aos poucos - até a morte absoluta, nos anos 2010. Com isso, morreram abraçados no mesmo transatlântico o disco comercial e a rádio musical.

Toda aquela postura, aquela aura de transgressão, aquela cumplicidade dos ouvintes com os disc-jockeys morreu. O que se vê hoje e o locutor comercial metido a tudo, menos disc-jockey, sem o fetiche do expedicionário musical, como nos tempos de um Big Boy, um Beto Roncaferro. As rádios FM hoje só repetem news radio para celulares. E a internet criou uma geração de ouvintes de Winamp players, egoístas e pedidos em si mesmos.

Não quero parecer saudosista: apenas exponho os fatos. Aquela integração que existia há, vamos dizer, trinta anos atrás (até menos), por mais troglodita que fosse aquela tecnologia e a forma de contato entre ouvintes, parecia funcionar mais. Parecia algo mais autêntico, mesmo que falho, porque, a despeito do problema de acesso às músicas, havia uma certa referência. Hoje (não quero ser saudosista) todo mundo fala com todo mundo e ninguém sabe nada, ninguém se entende. Acabou-se o ritualístico. Alguém vai ficar com saudade da Usina do Som ou do Last FM daqui a vinte anos?

Aquele rito de ligar na rádio, naquele programa (hoje não tem mais programa "programa", só programa Não sei se me entendem)). Aquele ritual de comprar o disco, chegar em casa, pôr o disco na vitrola e roubar o úisque do papai prá tomar escondido ouvindo aquele vinil.

Enfim, não quero acreditar que tudo passou, que certas coisas na vida morrem para sempre e apodrecem em nós sob a forma de uma doce memória. Prefiro pensar que estou ficando velho e irremedivelmente chato.


Friday, October 24, 2014

O inocente banho de tanque

Quando era criança, um dia muito quente podia representar um refrescante banho de tanque no fim da tarde. Era com alegria imensa que eu entrava no tanque de concreto que existia na minha casa no bairro Santana. A água gelada era apenas sentida em um primeiro momento, porque depois era só diversão.
Falo isso porque tive que conviver com o banho de tanque na manhã de hoje, algo que jamais pensei ser possível na altura dos meus 48 anos. Uma pequena reforma no meu banheiro impossibilitou o banho tradicional de chuveiro por 24 horas. Restou-me o impensável tanque que fica na área do meu apartamento.
A água estava fria, mas a alegria não estava lá. Os tempos são outros, a vida já não é mais sem as preocupações infantis. Também lembrei que é muito difícil ver cenas dessas nos bairros tradicionais. Moro no Menino Deus, que cada vez mais está sendo ocupado por prédios de apartamentos, acabando com as casas tradicionais. Ali, criança nem sai mais de casa. Não as vejo na rua jogando bola, brincando de pegar, jogando taco. Tem muito carros por causa do Hospital Mãe de Deus. Tem moradores de rua cobrando pelo estacionamento gratuito em área que não é Azul.
A exceção é uma casa de madeira, a única do bairro, de gente pobre, honesta e trabalhadora. São os netos da dona Pondonga, que jogam bola na calçada no final da tarde. A bola, por sinal, é velha, surrada e, acho, até furada. Mas os guris nem se importam. O que vale é a diversão, o sonho de ser o jogador de futebol que faz gols e não aquele que ganha somas estratosféricas. A criança não pensa no dinheiro, em sair da pobreza, quer é fazer gol, fazer a defesa fantástica, correr para a galera, ser aclamado pela torcida.
A inocência da criança, o descompromisso com o futuro, a alegria da diversão. Lembrei disso tudo em um banho que durou poucos minutos, na bica de um tanque de concreto.

Tuesday, August 19, 2014

A Odisseia de Dyonélio


Dyonélio Machado

Em Os Ratos, obra-prima do escritor gaúcho Dyonélio Machado (1) (publicado em 1935) Naziazeno precisa arrumar cinquenta e três mil réis para poder saldar a dívida com o leiteiro, alimentar o filho recém-nascido e, de quebra, pagar o conserto do salto do sapato de sua senhora.

Li o livro algumas vezes e, sempre que o releio, imagino com ele a Porto Alegre que ele ambientou em suas história, a Porto Alegre de 1935.

Dyonélio parece narrar a odisseia quixotesca de seu herói suburbano como com uma "câmera-na-mão" (algo que Erico Verissimo faria, anos mais tarde, em Noite), eu posso fantasiar a cidade naquele dia fatídico.

Mesmo que ele não mencione a capital de forma ostensiva, além de moldura para o romance, ela é quase uma personagem coadjuvante - como Josué Guimarães em Camilo Mortágua (que, aliás, foi motivo de um antigo post meu por aqui).

Às vésperas do Estado Novo, em 35, Porto Alegre era ainda uma cidade liliputiana de 272 mil habitantes, cujo comércio ficava concentrado na rua da Praia; a maioria dos bares ficavam na volta da praça Quinze e Mercado Público que, ao contrário de hoje, mantinha parte de seus estabelecimentos abertos 24 horas ao dia.

Naquele tempo, o umbigo da cidade era o Largo dos Medeiros, entroncamento da General Câmara com Rua da Praia. É que a quase totalidade de escritórios comerciais, tabelionatos e bancas de advogados ficavam na Ladeira.

Quando a tarde caía, todo esse pessoal ia parar nas mesas dos cafés do Largo (Schramm, Central, Café América), que ficavam entre Andradas e Sete de Setembro. O Shramm inclusive tinha um mezanino e um segundo andar, onde funcionava um café-cantante.

No Largo, aquela populacha admirável era, quase sempre, formada de uma variada plêidade: dsdee funcionários públicos, assessores políticos, tabeliães, advogados (muitos rábulas), pequenos comerciantes, muita gente de rádio, repórteres(todos os jornais ficavam a poucas quadras do Largo, como o Diário de Notícias)se misturavam com rufiões, apostadores (naquele tempo, o turfe era mais popular que o futebol numa Porto Alegre que tentava imitar Buenos Aires).

Quando a noite chegava, o público se dispersava, ou indo para os lados do Mercado para algum rega-bofes no Clube do Comércio (para os abastados) Chalé, no Gambrinus ou no Treviso (no tempo em que se bebia chope) ou rumava para os bas-fonds do high-life, como o que ainda sobrara do malfadado Clube dos Caçadores, na Rua Nova (hoje a Andrade Neves) ou para o baixo meretrício - Pantaleão Telles ou Cabo Rocha.


Essa é a flora e a fauna de Os Ratos. O título, aliás, tem um quê de prosopopéia. Naziazeno e seus compadres tentam arrumar o tal dinheiro como um bando de animais famintos, apalpando e farejando a cidade inteira em busca de algum morlaco: vendendo, comprando, pedindo emprestado.

Podemos traçar Naziazeno em sua odisseia urbana. No capítulo 3, ele pega o bonde para o Centro. Pelo trajeto (que passa por uma praça), imagino que ele venha dos lados da antiga margem (hoje Gen. Salustiano, no borco da península.

Nos bares do Mercado, procura Duque, agiota cujo "escritório" são as mesas dos cafés. Oito e meia, ele vê a torre da Prefeitura.

Não acha Duque, procura certo "diretor" em algum prédio do serviço público municipal. Vê um cargueiro alemão no Cais. Do Paço, enxerga o alto da Igreja das Dores (até então, a maior construção do Centro).

No capítulo 5, volta ao Mercado sem achar nenhum contato.
Dyonéio diz: "é a segunda vez que consulta o relógio da Prefeitura (...) esse relógio, lá no alto, parece-lhe uma cara redonda e impassível".

No 6, encontra Alcides, um amigo que o aconselha a jogar. Rumam do Mercado para o Café Nacional, no Largo. Já no 7, distraído, vai para os lados das Dores, passar por um briquebraque (cujo nome não menciona - mas certamente trata-se do Ao Belchior (o dono era o português Joaquim da Cunha que, durante muito tempo, manteve um comércio onde hoje fica o prédio do antigo Cine Cacique). Vê uma antiga espada na vitrine.

No retorno, ao meio-dia, encontra o tal contato, um diretor da antiga Secretaria de Obras Públicas, que nega-lhe um empréstimo. Reencontra Alcides no Centro, que propõe que vá cobrar um cliente (um "corretor da Rua Quinze", ou seja, da hoje José Montaury. Na época da escritura do livro, el ahavia sido recém aberta com a construção do Viaduto da Borges de Medeiros, cuja artéria ligava, pela primeira vez, o Mercado com a Ponte de Pedra, como uma perimetral) seu; de quebra, teria o dinheiro.

Naziazeno terá que encontrar o homem em casa, numa certa "Coronel Carvalho" (p.57). Hoje, ela é a atual André Puente, paralela à Independência. Naquele tempo, o bairro era afamado (como dizia minha avó) pelos palacetes de grandes patriarcas de gado que aportaram na capital.

Já a Coronel Carvalho, como diz Sérgio da Costa Franco, num famoso livro de referência sobre Porto Alegre (2) ao contrário de hoje, era um beco que coomprendia a última quadra, na altura da hoje Ramiro Barcelos. Anos depois é que ela seria finalmente aberta em direção ao bairro Floresta até a Santo Antônio.

Nosso herói foi ter com o homem, que disse não saber da cobrança, que isso era com outro sócio do esquema. Depois de subir toda a Independência, Naziazeno volta de mãos vazias para o Largo em busca de Alcides.

Não o acha. Procura então o tal sócio e vai cobrá-lo num banco "da rua Sete" (de Setembro). É possível que, pela descrição de Machado, trate-se do antigo Banco Nacional de Comércio, na esquina da Ladeira mas, mais possível(mente) a antiga Caixa, cuja porta ficava para a Sete, na frente da Delegacia Fiscal (o Margs), prédio erguido em estilo eclético pelo arquiteto alemão Theo Wiederspahn no começo do século passado, já demolido.

O homem estava em viagem. Naziazeno volta a buscar Alcides. Finalmente o encontra, no fim do capítulo 10. Seu amigo recomenda procurar um certo Sr. Conti, nos altos da Ladeira com a Ponte (Riachuelo) "pouco antes da Biblioteca" (p.71).

Como diz Sérgio da Costa Franco, pela sua vizinhança no antigo Foro e no Tribunal, na Praça da Matriz, desde o século XIX, a Ladeira era a mais procurada para escritórios e cartórios desde o tempo do Ouvidor, "pista de carreira de advogados que galopam entre o alto e o baixo Foro, passarela de magistrados, escrivães, requerentes e meirinhos".

No caminho, Dyonélio narra: "na primeira esquina, na intersessão de uma travessa conhecida como centro da jogatina, dos cabares e das pensões chiques" (p.74). Ora, como se sabe, a travessa não citada é a Andrade Neves do tempo que chamava-se Rua Nova.

Como diz Sérgio da Costa Franco, até os anos 40, ela era um beco sem saída aberto pela Ladeira. "centro da boemia, de pensões alegres e cabarés, entre os quais, o Clube dos Caçadores" (que ficava onde hoje fica um estacionamento atrás do Centro Cultural Erico Verissimo) , só foi aberta nos anos 40, com o prolongamento das obras da avenida Salgado Filho, aberta para escoar o fluxo cada vez maior de bondes para a zona central da cidade.

(um parêntese: só o Clube dos Caçadores merecia um livro sobre, principalmente por toda a história social e política a qual o insigne lugar esteve vinculado, no primeiro quartel do século 20. A despeito da fama, o Caçadores não agenciava prostituição de alta roda. Apenas cedia o espaço para encontros. O capítulo O Deputado, do primeiro tomo do Arquipélago, do Erico Verissimo, ambienta o deputado Rodrigo Cambará numa de suas estrepolias nos Caçadores, pouco antes da Revolução de 23)

Naziazeno não acha o tal advogado, mas pecha com um amigo dândi. Ele o ataca e consegue cinco mil réis emprestado "até amanhã". Mesmo com fome, dirige-se a uma tabacaria "ao lado do Nacional" (no Largo) e resolve torrar o dinheiro no jogo.

Depois de torrar a grana, no Capítulo 14, desce até "pavilhões compridos" na área do Porto na tarde vazia das ruas do Centro. Sabe-se que havia muitos desses pavilhões onde hoje fica a Siqueira Campos na altura do Majestic (Casa de Cultura Mário Quintana desde 1991). Noutro escritório, regateia outro empréstimo, que lhe é negado.

Contudo, na página 99, Dyonélio faz referência à "docas em construção". Logo, é possível imaginar que trate-se do outro lado do cais onde, à época, era realizada a continuação das obras para os lados da Avenida Júlio de Castilhos. Ou seja, toda a extensão entre o rio e a Mauá correspondem a um aterro que estava sendo realizado naquele momento dafeitura de Os Ratos. Num trecho, o autor nos descreve o ocaso em Porto Alegre:

"A cidade se recorta sobre avermelhada que tem o céu para os lados onde está se escondendo o sol. O semicírculo do horizonte que Naziazeno abraça com o olhar está pesado de vapores. O rio, que reflete a batalha das cores escuras e claras lá do céu , tem um movimento lento e espesso de óleo. Bem à direita, lá longe, quase sobre as ilhas baixas, as sombras dos grandes navios ancorados no largo cavam buracos pretos na água grossa"

No começo do 15, Naziazeno vê uma certa casa "Azevedo". Segundo Sérgio da Costa Franco, esse estabelecimento pertencia ao Comendador Azevedo, um dos fundadores do Banco Nacional de Comércio e grande comerciante da cidade.

Na página 102, Dyonélio descreve uma cena na rua Santa Catarina. Hoje ela é a Dr. Flores. Naquele tempo, ela terminava na Voluntários da Pátria, na margem do rio, antes do aterro do cais Marcílio Dias - o que leva a crer que ele foi para os lados da Viação Férrea e não do Majestic.

"Através da praça e dos arbustos lá do fundo" (p.103) diz o autor, referindo-se com efeito para a Otávio Rocha, já que arremata a vista do antigo Hotel Sperb, na subida para a Andradas.

No 20, nosso herói retorna de mãos vazias ao Mercado, onde encontra Alcides e Duque. Ambos citam um agiota (Rocco) na rua Paissandu, hoje a Caldas Júnior, a próxima parada de Naziazeno. No retorno para os lados da Alfândega, passa pela vitrina do Ao Belchior e vê novamente as torres das Dores.

O homem não empresta, logo a triste embaixada de roedores sociopatas vai ter com um certo Fernandes, para os lados da rua Clara (João Manoel). Nada de dinheiro. Voltam. Por sugestão de Duque, Alcides decide especular reempenhando um anel de doutor (que não é dele obviamente).

Capítulo 18 (até o 21, o melhor do livro): a casa de penhor, como não podia deixar de ser, ficava na Ladeira. Já noite, o trio pega a peça e parte para outro penhor, para outro lado, dos lados da rua do Rosário (Vigário José Inácio).

Mesmo regateando, não conseguem empenhar o anel. Só com um certo Mondina, que lhes adiantaria o dinheiro mediante recibo de empenhar o anel e devolver-lhe a quantia: finalmente conseguem efetuar a transação.

Dyonélio descreve o ambiente num café (no Largo?)

"São quase oito horas (...). Pequenos grupos de homens vêm aparecendo nas portas, vêm entrando devagar. Outra fase na vida da cidade se inicia. A noite refrescou. (...) na mesa ao lado deles lê tranquliamente um jornal".


Notas:

(1) Os Ratos, Dyonélio Machado. Ed. Planeta, 2004
(2) Porto Alegre: Guia Histórico. Ed da UFRGS, 1988

Thursday, August 07, 2014

O Telefonema


Teté


Existem muitas histórias curiosas a respeito de José Francisco Duarte Júnior, o Teté. Considerado um dos maiores treinadores gaúchos de todos os tempos, muitos lembram de várias anedotas envolvendo aquele que foi comandante do Internacional por quase toda a década de 50. Vários o consideram uma espécie de Gentil Cardoso dos pampas. Empírico, era famoso por tratar contusões de seus atletas com placebo e de inventar macumbas inenarráveis para ganhar jogos. Consta que, sempre em semana de Gre-Nal, como um sabujo, Teté andava com o sobrolho carregado pelas esquinas do antigo estádio dos Eucaliptos, procurando algum despacho deixado pelos arredores por alguém das hostes inimigas, com o intuito de "amarrar" o seu time.

Foi numa dessas semanas de clássico que essa história aconteceu. Meados da década de 50. Os jogadores estavam todos concentradísismos no fortim da rua Silveiro (ou Silvério, como alguns insistem em dizer) desde a quarta-feira. Teté não deixava nada passar. Quando não caçava despachos pelas esquinas do Menino Deus, estava controlando todos os passos dos seus pupilos, inclusive fiscalizando telefonemas. Todos deviam ficar incomunicáveis.

Na sexta-feira, logo pela manhã, toca o telefone nos Eucaliptos. Sem querer se identificar, um sujeito muito ansioso queria porque queria falar com o goleiro La Paz.

- Ele não pode falar, está concentrado - explicou Teté. - Se você quiser, me diga o que você quer falar com ele que eu passo o recado.

- Mas eu preciso falar com ele urgentemente.

- Não pode, já disse.

- Mas eu preciso.

- Desculpe, eu não posso deixar você falar com ele. Só recado.

- Mas é pessoal. Eu preciso urgentemente falar com ele.

Uma hora depois, toca o telefone. Era o mesmo sujeito de antes.

- Mas afinal de contas, com quem eu estou falando? - quis saber Teté.

- Não posso dizer - respondeu o anônimo. - Só posso dizer que é um amigo do La Paz.

Por toda a sexta-feira, o homem continuou atazanando - certamente na esperança que outra pessoa atendesse e, dessa forma, pudesse falar com o arqueiro colorado. Mas de nada adiantou: obcecado, Teté passou o dia todo montando guarda em frente ao aparelho. O treinador atendia e tentava em vão fazer com que o homem pelo menos desembuchasse o nome.

As ligações continuaram no sábado, o dia todo. Nem Teté liberava o telefone para La Paz, nem o homem, cada vez mais angustiado ("mais angustiado que barata de ponta-cabeça", como se diz lá na Campanha)do outro lado da linha, dizia quem era ou do que se tratava aquela tal "urgência urgentíssima".


- Mas quem é o senhor? Que coisa mais estranha. Afinal de contas, por que essa insistência toda? - queria saber o comandante do vestiário alvirrubro.

- Não posso falar, seu Teté. É só com ele!

Domingo de manhã, faltando horas para o jogo, o homem insistia. O treinador do Inter estava nas últimas. Quando atendia o telefone, olhava com o rabo dos olhos para os dirigentes que, naquela altura, pareciam almas penadas quietas observando aquele teatro do absurdo.

- Eu preciso falar com o La Paz! Eu preciso falar com ele! - bradava o anônimo.

- Mas eu dou o recado para ele - insistia Teté.

- Não, não não!!! Tem que ser com ele.

- Não posso, meu senhor.

- Escuta, seu Teté, eu sei que o senhor é um homem justo. É particular, eu tenho que falar com ele, e é só com ele mesmo. O senhor não pode abrir uma exceção para mim? Por favor, seu Teté, eu lhe peço, eu lhe rogo, seu Teté!

- Não.

- Mas seu Teté, eu vou até o muro, ele não precisa nem sair da concentração, eu vou até o muro da Dona Augusta e eu falo com ele, é rapidinho, seu Teté. é rápido e ele depois pode voltar lá prá dentro.

Na hora do almoço, o homem liga para o telefone dos Eucaliptos.

- Por favor, seu Teté!

- Escuta aqui, moço, por favor digo eu. Aqui quem manda sou eu. Eu já te disse que eles estão sob a minha responsabilidade. Tudo o que acontecer com eles é responsabilidade minha, ninguém vai passar por cima de mim, ouviu? Tudo que acontecer aqui para o bem ou para o mal, quem vai ter que arcar com as consequências sou eu. Então, eu não posso, de maneira nenhuma, deixar os meus jogadores correrem risco nenhum, entendeu? Isso é mais difícil para mim do que para você. Se você quiser, eu passo o recado para o La Paz, eu me responsabilizo pelo sigilo da informação se é de cunho pessoal, não precisa se preocupar. É o que eu posso fazer por você.

- Tudo bem - respondeu o homem, vencido do outro lado da linha. Mas o senhor me promete que dá o recado para ele?

- Prometo - insistiu Teté.

- Pois diga prá ele que já tá tudo acertado, conforme o combinado, viu° Tá tudo certo. Tchau.


Friday, July 18, 2014

Dizzie e "Kerouac"


Bird e Diz


Lembro-me que tive em vinil um disco, chamado Legends Masterpieces (Best Tracks Remastered) do Dizzy Gillespie. Lançado pela Underground Inside Records, é uma colcha de retalhos, com gravações ao vivo. Bem ao estilo dos discos de Bebop da época, o show é captado de forma rudimentar. Em vinil até soa bem com bastante chiado. Contudo, na versão digital, o som fica frio e destituído de graves.

Sempre me chamou a atenção uma faixa, intitulada "Kerouac". Todos nós sabemos da importância do jazz na formação literária do autor de "On the Road". Mas o fato de existir uma faixa composta pelo papa do Bop como uma homenagem ao escritor beat, isso me fez tecer um rosário de hipóteses que levassem a alguma relação pessoal entre os dois. Relação essa que, por incrível que pareça, nunca existiu de fato.

Kerouac escreveu muito sobre jazz, falou que viu Mingus no Minton e outros músicos do gênero bem no auge, no fim da 2ª Guerra Mundial. Mas essa faixa em especial me levou a crer que Gillespie e Jack se conhecessem. Ledo engano. Na verdade, eu só fui descobrir a história por detrás da faixa muito tempo depois, quando achei o livro Alma Beat (coletânea muito boa, por sinal, infelizmente fora de catálogo há bastante tempo e difícil de achar em sebos), da LPM, esquecido no acervo da Biblioteca do Campus do Vale. A explicação está em um dos ensaios da obra: Beats e Jazz, do Roberto Muggiati.



A história é a seguinte: Dizzie e Kerouac nunca se conheceram pessoalmente e Jack ainda não era o célebre escritor. Naquele tempo, ele não passava de um entusiasta do Bop de 19 anos. Tudo começou quando um pioneiro de gravações do estilo, Jerome Newman (1918-1970), amigo de Kerouac, começou a frequentar inferninhos suarentos de jazz em Nova Iorque com um gravador de rolo. Com um acervo em mãos, decidiu fundar um selo, a Esoteric records.

A gênese do nome da faixa é um expediente típico do Bop. Era comum que intérpretes fizessem paráfrases de canções obscuras ou até funestas - ou simplesmente standards da canção norte-americana. Por exemplo, você pegava algo como "Ain't Misbehavin'" e fazia centenas de variações em cima de uma célula musical. O tema ficava tão desfigurado que poderia ser considerado uma nova canção. Então alguém inventava um título qualquer para ela e pronto.

Mugiatti cita exemplos dessa "técnica". "Lullaby of Birdland" era, na verdade, "Love Me or Leave Me" numa recriação do pianista George Shearing, que virava um fox brilhante. Pios "Kerouac" faz o mesmo percurso. Trata-se, por sua vez, de uma paráfrase de "Exactly Like You". "Como a melodia era diferente", explica Mugiatti, "Newman, na hora de lançar o disco, batizou a canção com o nome do colega, "Kerouac". de acordo com ele, também era uma forma de não ter que pagar direito autoral aos editores.

Aliás, na época em que Newman gravava os heróis do jazz em Nova Iorque, Kerouac, seu colega do tempo da Universidade de Columbia, veio à roldão, inclusive ajudando Jerome (ou Jerry) a descolar gravações. Foi naquele ano fatídico, 1941, que Jack descobriu o Bebop, a voz guia que iria revolucionar a sua escrita a partir da elaboração de "On the Road", oito anos depois.

Wednesday, July 09, 2014

Como uma Onda


Capa do disco (inspirada no cartaz) da Bienal do
Samba da Record, 1968


A I Bienal do Samba da TV Record surgiu como um contraponto aos festivais de música da emissora. O certame, que ocorreu entre maio e junho de 1968, era um retorno ao tradicionalismo do gênero, que andava meio demodé no calor da hora dos festivais da época. Ao mesmo tempo, era a chance de que muitos intérpretes pudessem cantar "na sua própria língua" e, ao mesmo tempo, evitar a acirrada e progressiva politização dos outros festivais.

Ela também serviu para que ocorresse uma curiosa integração entre a velha guarda e os novos compositores, de Ismael Silva a Chico Buarque (na época, ainda "de Hollanda"). Numa das apresentações, a Record foi buscar em Vila Isabel a veterana Aracy de Almeida. Apresentando clássicos de Noel Rosa no palco do Paramount, ela teve que bisar três vezes. Porém, a vencedora foi "Lapinha", de Baden Powell e o jovem Paulo César Pinheiro, na voz de Elis Regina, que voltou a pontificar na era dos festivais, depois de "Arrastão", a vencedora do I Festival da Excelsior, e que moldaria o cânone das canções de certame a partir de então.

Em segundo lugar, veio "Bom Tempo", de Chico Buarque, com ele mesmo defendendo a canção; em terceiro, "Pressentimento", de Elton Medeiros e Hermínio Bello de Carvalho, com Maria Medalha e, em quarto, "Canto Chorado", de Billy Blanco, com Jair Rodrigues; em quinto, a hoje clássica "Tive Sim", de Cartola, com Cyro Monteiro. e o quinto, foi "Coisas do Mundo, Minha Nega", do Paulinho da Viola, com Jair Rodrigues.

Mas uma história que passou batido na época da Bienal, e que foi contada décadas depois por Zuza Homem de Mello (1) é a respeito de algo que não aconteceu: a participação de Tom Jobim no certame. Dentro daquele espírito de integração entre a velha e a nova geração. o compositor de "Chega de Saudade" foi convidado ao evento. Para a bienal, ele compôs uma bossa-nova, intitulada por ele "Onda".

Na verdade, Jobim tinha apenas o instrumental quando terminou a canção, enquanto trabalhava como arranjador nos Estados Unidos. Como Chico Buarque havia posto letra em outro tema seu, "Zíngaro" que passou a receber o nome de "Retrato em Branco e Preto", Tom chamou o autor da "Banda" para botar letra nesta também.

Chico matutou por dias a fio, entanto, tentando, tentando. Contudo, ele não conseguia passar do primeiro verso, "vou te contar". Tom cobrava o parceiro diariamente sobre a letra. Como é impossível pressionar as musas da inspiração, de nada adiantou: Chico desistiu, restando a Jobim a árdua tarefa (nada que ele não tivesse feito antes, com feito, no tempo de sua parceria com Newton Mendonça) de escrever os versos.

Teve tempo de enviar fresquinhas letra e música para a comissão julgadora da Bienal. O escalado para defender "Onda" não era ninguém menos que Roberto Carlos Braga. ele mesmo, o ídolo da Jovem Guarda. No entanto, no dia da primeira eliminatória, dia 12 de maio de 1968, ele tinha um compromisso inadiável: ia casar-se com Nice. Mais: naquele mesmo dia, estava embarcando para Nova Iorque, para a lua-de-mel.

A viagem, que iria se estender por mais duas semanas, acabou inviabilizando a participação de Roberto no Festival. Ou seja, além de interpretá-la e defendê-la na Bienal, Roberto Carlos poderia ter sido o primeiro cantor a gravá-la. A primazia, contudo, coube ao quarteto Vocal 004, com o título "Vou te Contar". A discretíssima gravação contou com a participação do próprio Tom, e saiu no único disco do grupo, intitulado Retrato e Branco e Preto, e que contou com aparticipação de Eumir Deodato e Ugo Marotta (que, à época, tocavam no conjunto do Roberto Menescal).

De acordo com Zuza Homem de Mello, o disco, lançado pelo selo obscuro Codil, em junho de 1968, virou um pocket-sdhow no Teatro Toneleros, em Copacabana, com a participação de Tom, Eumir e grande elenco, incluindo o malfadado parceiro de "Wave", Chico Buarque. a apresentação foi gravada em acetato e está à disposição de discófilos e curiosos da história da MPB, nos arquivos do Museu da Imagem e do Som, em duas versões: uma, instrumental com o Hepteto de Paulo Moura (que integrou o show) e a outra, com o Quarteto 004 cantando, tendo Jobim ao piano. Já Roberto desistiu de gravar "Wave" em seu disco daquele ano em favor de "Madrasta", de Renato Teixeira e Beto Ruschel (também oriunda de festival, como se sabe).

Meses depois do fim da Bienal do Samba, sairia no Brasil a versão de Tom Jobim para "Wave", no disco de mesmo nome, lançado pela A&M Records (aqui, o elepê saiu pela Fermata, subsidiária da selo de Herb Alpert) e com arranjos de Claus Ogerman. Frank Sinatra também faria o seu cover, no Sinatra And Company (arranjos de Eumir Deodato).

"Wave" iria tornar-se um standard, coverizado por vários artistas, como Stanley Turrentine, Oscar Peterson, Buddy Rich, Paul Desmond e Joe Pass (e a Sarah Vaughan!). Mas a versão que todos iriam se lembrar é a de João Gilberto, do disco Amoroso, de 1977 (também arranjado pelo mesmo Ogerman do disco de Jobim, dez anos depois).





(1) Zuza Homem de Mello. A Era dos Festivais. Editora 34, São Paulo, 2003.

Wednesday, July 02, 2014

Uma Pessoa Só




Foi destaque na imprensa, no final de junho: o Loki está comemorando 40 anos. Parece mentira. Quarenta anos! Se formos pesquisar na internet afora, vamos ver que não existe muito a acrescentar a respeito do aclamado primeiro disco solo do mutante Arnaldo Baptista, para que eu possa aqui fazer uma resenha decente com o fito de que pareça algo que não intranscenda do óbvio mais do mesmo.

Duas coisas chamam a atenção: a primeira, a longevidade do disco como cânone musical; a segunda, o conteúdo singular do álbum - e esse segundo fator, no fim das contas, está relacionado ao primeiro.

A verdade seja dita aqui: Loki perfaz aquele estereótipo do disco que estava à frente do seu tempo. Ele ficou encapsulado no tempo como obra de arte. No ano do seu lançamento, 1974, ele não tinha nada a ver com o tipo de produção fonográfica dita " de consumo" de sua época. Para tanto, basta lembrar que a música dos Mutantes estava se tornando, com a voga do progressivo, cada vez mais "difícil" e, por isso mesmo, cada vez mais anticomercial.

Como lemos na biografia da banda, a "Divina Comédia dos Mutantes", eles estavam pouco se lixando com o udigrudi, o banal e fútil que satisfaz. O que a banda queria era fazer o som deles, mesmo que a fundo perdido, como foi.

O corolário disso, como se sabe, foi a interdição do "O A e o Z". O problema não estava nem exatamente no descompasso entre o pensamento dos Mutantes e a política da gravadora, a Polydor.

Mais do que isso, o problema é que o Brasil nunca gostou de rock. O rock, ao contrário de outros países, nunca vendeu disco. É a velha história: o som dos Mutantes era para inglês ver.

Naqueles tempos bicudos, empunhar uma guitarra era sinônimo de pregar no deserto. Como dizem Zuza Homem de Mello e Jairo Severiano num excelente livro (1), a partir de 1973, com a expansão da televisão, as trilhas de novelas passaram a exercer influência muito forte na formação de sucessos musicais, "impondo a maior parte das composições que integram o hit parade".

Logo, o "O A e o Z" não dançava no mesmo compasso da filosofia das gravadoras. A Polydor rescindiu o contrato com os Mutantes, o disco foi para a geladeira (ficou por vinte anos lá) e Arnaldo saiu da banda. Por ironia do destino, o selo que mais investia em trilhas de novelas, a Som Livre, talvez por conta do sucesso ainda proeminente do grupo, apostou no elepê seguinte, "Tudo foi Feito Pelo Sol".

Enquanto Sérgio Dias ainda tentava levar a barca mutante a singrar mais alguns anos pela contramaré dos anos 70, Arnaldo Baptista ficou para trás - tanto por seu purismo musical quanto por problemas pessoais.

Parece cruel exaltar uma obra que tenha nascido de uma dor explicável (ou não). Mas o fato é que, por todos os caminhos tortuosos possíveis, explicáveis ou não, "Loki" chama a atenção justamente pela singularidade de seu criador, o contexto musical e extra-musical.

A história da sua malfadada relação com Rita Lee é sempre citada como a tônica daquela tragédia pessoal que redundaria num dos maiores clássicos da música brasileira de todos os tempos. Existem várias versões (menos a de Rita), mas assim como muitos relacionam esse fator como o elemento catalisador dessa crise, outros, como Dinho Leme, não entendem dessa maneira.

A história na biografia dos Mutantes (escrita pelo Carlos Calado) mostra que episódios como o abuso de drogas por parte de Arnaldo, quanto ao seu extremo perfeccionismo, levaram ele a um abismo insuperável entre ele e a banda, e ele e Rita. Pelo que se depreeende do livro, Baptista subestimou qualquer possibilidade de separação e, quando deu por si, estava sem mulher, sem banda, sem gravadora, sem lenço e sem documento.

Quando Roberto Menescal, que era diretor musical da Polygram, reebeu a proposta de gravação do que viria a ser "Loki", ele se viu diante de uma oportunidade singular.
O célebre autor de "O Barquinho" tinha autonomia para fazer das suas - como o lançamento do Fa-tal, de Gal Costa - e agora tinha a chance de gravar Arnaldo Baptista com uma proposta surpreendente: um trabalho totalmente pessoal e à revelia do udigrudi que vendia disco.

Era um verdadeiro tubo de ensaio. É certo que falou mais alto a sua intuição. Ninguém mais, dentro do circuito fonográfico da época, seria capaz de entender aquela situação. Menescal conseguiu desdobrar a gravadora a lançar, num selo de visibilidade nacional, no tempo das trilhas de novelas, um disco que, desde o começo, estava fadado ao fracasso.

Se o ilustre leitor parar para pensar, se não fosse por Menescal, "Loki" não seria gravado - da mesma forma que, se a Polydor tivesse tomado conhecimento de do "O A e o Z" desde a pré-produção, seria outro trabalho natimorto.

No documentário "Loki", o próprio Menescal fala do que foi a gravação do disco. Arnaldo estava fragilizado e o que se pode falar do disco em si é que ele teve a chance de gravar uma inefável catarse.

O álbum, por si só, é uma pré-produção, quase a la Dylan. Quando Dinho e Liminha se davam conta, a tomada estava gravada. Baptista cortava as faixas solo, ao piano, sem partitura (como em "Honky-Tonky" que, aliás, mais parece uma peça clássica em sua concação), em canções sem refrão, e em letras que, em alguns momentos, perdem-se em tragicômicas digressões, como a nota social em "Navegar de Novo".

Se o que existe por detrás do universo poético de Arnaldo Baptsita fica perdido em hipóteses que giram em torno da sua vida particular, o que podemos interpretar já reside na forma como é a dor que somos nós quem sentimos.

Disso, é notável a sensação de abandono, de falar e esconder, de sublimar o discurso de um eu-lírico perdido, confuso, esquecido, com medo da solidão, sem saída, sem perspectiva, que ora parte para o remorso ("Desculpe"), ora cai no auto-deboche ("Vou Me Afundar na Langerie"), ora vai para a auto-imolação e o desejo de transcendência ("Não tô nem Aí") ora perde-se em desalento ("Será que eu Vou virar Bolor") ou apela para a mais lúgubre nostalgia ("Uma Pessoa Só"), na verdade, um "leftover" do do "O A e o Z".

Passados quatro décadas, o "Loki" ainda choca pela originalidade de um álbum que não encontra similar em toda a discografia musical (talvez encontre um cognato no "Pink Moon", do Nick Drake, ou não...). Sempre será difícil acreditar no que se ouve: a voz de um cantor-compositor cuja nota íntima espanta pela coragem de confessar o inconfessável.




(1) A Canção no Tempo - 85 anos de músicas brasileiras, volume 2 1958-1985 - Ed 34, São Paulo, 1998.

Friday, June 13, 2014

Uma Weltanschauung porto-alegrense


Largo dos Medeiros

Esses dias, eu subia num domingo de tarde de chuva forte Duque acima, quando cruzei na esquina do Alto da Bronze.

Fiquei imaginando que, assim como Tróia, se um arqueólogo do futuro apostasse sob as ruínas de Porto Alegre, ele iria descobrir, assim como Heinrich Schliemann, que existem várias cidades debaixo de Porto Alegre. Existe uma Porto Alegre que traz atavismos de décadas passadas. Porém, existem outras porto alegres enterradas debaixo da arquitetura presente. Cidades mortas, e enterradas, junto com seu passado, seus protagonistas.

Então lembro-me do Carlos Reverbel. Numa crônica (no Barco de Papel), ele diz que uma senhora o interpelou, na rua, para saber onde ficava a Rua da Praia. A resposta do Reverbel: “minha senhora, a Rua da Praia a senhora hoje só vai encontrar nas páginas do livro do Nilo Ruschel.

Agora, imagino que, por seu turno, nem mesmo vocês sabem do que ele estava falando, ou quem foi Nilo Ruschel. Estamos, na verdade, falando das porto alegres enterradas. Esse alumbramento só perpassa na mente dos arqueólogos.

Por exemplo. Porto Alegre teve pontos de encontro em sua história que hoje morreram e a quase totalidade dos seus habitantes sem memória, quando passam por esses locais, sequer sonham que esses locais foram, um dia, pontos de convergência de muita gente.

É o tipo de episódio que, se alguém contar, ninguém acredita. É como Tróia. Estamos falando de algo tão antigo que a gente nem sabe se realmente existiu ou se, de fato, vivenciamos aquilo tudo — tão passado e tão presente.

Cito três exemplos de lugares que ora representaram quase um Weltanschauung porto-alegrense, e você, caríssimo e jovem leitor, nem sequer suspeita do que representaram.

Largo dos Medeiros
: a esquina da rua General Câmara com a Andradas foi, durante muito tempo, a Times Square da cidade. Naquelas priscas eras— entre meados da década de 20 e final dos anos 70, o grosso do comércio chic do centro ficava ali. A partir dos anos 30, na quadra fronteiriça à praça da Alfândega, os irmãos Medeiros abriram uma confeitaria, ao lado do Cinema Central. Junto com eles, havia outro estabelecimento, a Schramm, na outra esquina. Era comum, principalmente na hora dio footing, no fim de tarde, uma aglomeração de tipos que, com o tempo, acabaram tornando-se decanos do Largo — figuras conhecidas e folclóricas do provincianismo porto-alegrense (e que já renderam a famosa trilogia literária do Renato Maciel de Sá Júnior, nos estertores da Globo gaúcha), além de políticos, futebolistas, turfistas (lembrem-se que, até os anos 50, o turfe em Porto alegre era tão popular (ou mais) do que o futebol.

O Largo dos Medeiros era o ponto ideal: para lá convergia o pessoal dos escritórios, balcões, redações (todos os jornais e rádios ficavam perto dali). O auge perdurou até o começo dos anos 60. Mais tarde, com a descentralização da área, o fim dos cinemas e das confeitarias e o advento do maldito calçadão (já na prefeitura do Thompson Flores), a turma do Largo se perdeu — se dispersou ou morreu. E, aos poucos, o próprio topônimo foi desaparecendo, até perder o sentido. Se não, faça o teste: pergunte a qualquer passante pela Rua da Praia sobre a localização do tal “Largo dos Medeiros”. Ninguém saberá dizer.

Encouraçado Butikin e a “Indepê”: quem lia diariamente a extinta Folha da Manhã, no começo dos anos 70, se deparava com notas sociais e colunas diárias da Ivete Brandalise e do Luís Fernando Verissimo versando sobre o “Butikin”. Idealizado por Rui Sommer, o bar, que marcou época em Porto Alegre, e delimitou os altos da Independência como o point da boemia bem vestida deste burgo açoriano (como diria o Reverbel), surgiu em 1966. Durou até 1972 com a direção original e rerpesentou o momento em que aquela classe média (média-alta) criou um pequeno mundo entre a Santo Antônio e a Ramiro Barcelos.
É preciso lembrar que, nos anos 60, os bairros nobres “de escol” eram, com efeito, Independência e o Moinhos de Vento (muito antes de Três Figueiras e arredores).
E ora pois, principalmente a “Indepê” (que virou a gíria das “minininhas”, como nas tiras do Verissimo, testemunha ocular da história), que foi construída pelos estanceiros que aportaram à cidade e os capitães de indústria que ergueram palacetes inexpugnáveis para além do Jardim Cristóffel. Porto Alegre era mais provinciana e liliputiana do que nunca, mas não havia nada mais adorável do que aquela boemia, que começava na Baiúca, o Teatro Leopoldina (depois da Ospa) na esquina da Garibaldi, o Whisky a Go-Go, o Joe’s (que fechou suas portas, já como uma teimoso atavismo dos tempos da Indepê só em 2010) terminava, de repente, num pocket show no Butikin. Imagine o The Sun Also Rises na Porto Alegre trique-trique rolimã. Era mais ou menos isso.

A partir do começo dos anos 70, tudo mudou. Em junho de 1972, a Prefeitura começou a concretagem do muro da Mauá e a construção do viaduto da Conceição. Para piorar de vez, o Butikin fechou as suas portas.

Esquina Maldita:
a gurizada que estuda no Campus Central hoje vai beber os seus porres politizados ou no Xiru Beer, na esquina da Avaí, ou na Cidade Baixa. Não sabem eles que, o entroncamento da Sarmento com a Oswaldo Aranha foi o point da estudantada intelectualizada ou desbundada dos anos 60 e 70. Somada à repressão do Governo Militar, os botecos que formavam a Esquina Maldita, o local virou foco de resistência ao regime e recanto da esquerda (festiva e não-festiva). Os bares eram o Alaska, o Copa 70, o Marius e o Estudantil. A maioria desses estabelecimentos morreu com a Abertura e a transferência dos cursos de Humanas para a Agronomia. Alguns viraram xerox, outros, mini-mercados. Só restou o Mariu’s que, apesar de ter a sua freguesia descacacterizada de lá prá cá, é outro atavismo daqueles anos políticos ou “anos de chumbo”, como preferem alguns. O “maldita” do nome não era tanto pela raiz política dos estudantes (na maioria homns, já que era difícil ver mulheres sozinhas por lá naquele tempo), mas mais pela aura de transgressão numa época em que duas pessoas fumando juntas podia dar cadeia, imagine conversando entre si.


Para quem quiser saber mais, não irei perder-me em digressões por aqui, pois existe, por incrível que pareça, alguma bibliografia sobre esses assuntos. Assim, respectivamente, eu recomendo, sobre o Largo, os três volumes do Anedotário da Rua da Praia (relançados pela Editora da Cidade, em 2010) e o Rua da Praia, do Nilo Ruschel (reeditado pela IEL, original da Globo, de 1971); sobre o Butikin, o Na Ponta da Agulha, do DJ Claudinho Pereira (de 2010). E sobre o Esquina maldita, um livro-reportagem que é definitvo sobre o tema, escrito pelo Paulo César Teixeira, e editado em 2012 pela Libretos.

Monday, May 19, 2014

Touradas no Maracanã


Braguinha


Maracanã, Campeonato Mundial de Futebol, dia 13 de julho de 1950. Estádio lotado ou, como diria Nelson Rodrigues, com “gente até no lustre”. Naquela tarde, a Seleção enfrentava a Espanha. Quando Chico tinha acabado de meter o quarto gol na cidadela adversária (aos onze do 2º tempo), quem estava nas arquibancadas pôde assistir a uma cena inesquecível.

Alguém começou a puxar a marchinha “Touradas em Madri”. Numa progressão fulminante, todas as 200 mil almas começaram a cantar junto:

Eu fui às touradas em Madri
E quase não volto mais aqui
Pra ver Peri beijar Ceci.
Eu conheci uma espanhola
Natural da Catalunha;
Queria que eu tocasse castanhola
E pegasse touro à unha.
Caramba! Caracoles! Sou do samba,
Não me amoles.
Pro Brasil eu vou fugir!
Isto é conversa mole para boi dormir!



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Lançada para o Carnaval de 1938, “Touradas Em Madri” foi injustiçada naquele ano. Na noite de sexta-feira, dia 25 de fevereiro, ou seja, na véspera dos festejos de Momo, a Prefeitura do então Distrito Federal realizou o tradicional concurso de marchinhas.

Gravada originalmente por Almirante na Odeon, no dia 28 de novembro de 1937, o disco foi lançado (junto com "Yes, Nós Temos Bananas") no suplemento de novidades carnavalescas do selo em janeiro do ano seguinte (como acontecia com todas as marchinhas concorrentes ao Carnaval).



O resultado perpretado pelo júri foi o seguinte: em primeiro lugar, “Touradas em Madri”, de autoria de Alberto Ribeiro e João de Barro. Em segundo, “As Pastorinhas”, também de Braguinha, porém em parceria com Noel Rosa, seguidos por “Sereia” (Alvarenga e Ranchinho). A vitória, contudo, durou até segunda, quando os jornais anunciaram a anulação do certame.

O motivo era o não comparecimento do presidente da Comissão anunciada no edital na data aprazada da apuração. Segundo Zuza Homem de Mello (1), a tal anulação não passou de pura marmelada: os demais perdedores haviam entrado com ação contra a escolha do júri.

A alegação era a de que “Touradas em Madri” na verdade não era “música brasileira” mas, sim, uma estilização de passodoble, ou seja, um ritmo não-autóctone. Para eles, de acordo com o edital, isso resultaria na virtual eliminação do tema.

Assim, na tarde do dia 28, ocorria nova eleição. As vitoriosas, desta vez, foram “As Pastorinhas”, “O Cantar do Galo” (Benedito Lacerda e Darcy de Oliveira) e “Ali Babá” ((Roberto Roberti e Arlindo Marques Júnior).

Em seu depoimento para o seu fascículo História da Música Popular Brasileira, da Abril, Braguinha comenta que inscrevera “As Pastorinhas” pela desfeita com “Touradas”. No entanto, a coisa foi mais longe: houve uma guerra, capitaneada por Mário Lago perante ao público, naturalmente pressionando o júri para que aquela vencesse.

Outro foi um entrevero entre Nássara e João de Barro. Por puro despeito — pelo fato da sua marchinha “Periquito Verde” ter sido desconsiderada pelos jurados — o autor de “A-la-la-ô” debochou de Braguinha, dizendo que quem havia vencido o certame era o espírito de Noel Rosa, o célebre co-autor de “As Pastorinhas”. Os dois se engalfinharam, no calor da hora, sendo apartados incontinente por Ari Barroso se a turma do deixa-disso.

Para ver como o tempo cuida de colocar tudo nos devidos lugares, “Touradas em Madri”, além de várias outras criações de Braguinha, seria eternizado pelos próximos carnavais.
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Naquela tarde, todos no estádio cantavam “Touradas em Madri” — menos um sujeito, presente nas cadeiras cativas. Ao contrário, ele estava com a cara afundada nas mãos, imagem típica do desespero.

— Ensinem esse espanhol a cantar! — gritou um gaiato, ao ver o tal sujeito a chorar copiosamente.

O Maracanã continuava cantando. O torcedor se impacientou e gritou mais alto, para que o pobre diabo ouvisse:

— Olha como esse cara tá quieto, só pode ser espanhol...coitado.

Mais um gol, e o coro recomeça:

Eu fui às touradas em Madri — parará-tim-bum, bum, bum!

Quando o jogo termina e a torcida festeja a vitória final — um sonoro e inapelável seis a um, aquele homem inconsolável pôde, então, se recompor e se levantar. O nome do torcedor “espanhol” era Carlos Alberto Ferreira Braga, o Braguinha, vulgo João de Barro, o autor da execrada “Touradas em Madri”. E, doze anos depois, já entronizada como clássico, ela seria lembrada por um Maracanã lotado — e pelo resto do Brasil — para sempre.



(1) Jairo Severiano e Zuza Homem de Mello. A Canção do Tempo, 85 anos de músicas brasileiras, Volume 1: 1910-1957