Saturday, December 19, 2020

O expedicionário

 

Paul McCartney em 2020


Eu poderia fazer uma resenha do novo disco do Paul McCartney mas na verdade eu não sou jornalista musical e nem gostaria de cair naqueles clichês típicos. Então, se você acha que eu vou resenhar o McCartney III, pode parar de ler por aqui mesmo, e até. Mas confesso que já escutei o seu novo trabalho umas quantas vezes e posso dizer que nem seria uma questão de gostar, até por duas questões: 1) no alto de sua considerável distinção como compositor, Paul está além de qualquer crítica; 2) ele não tem nada a perder em lançar mais um álbum em sua carreira, muito pelo contrário. Lembro quando do Egypt Station. Ouvi fãs dele falarem naquela época (2018) a respeito do disco que ele era “desnecessário”. De fato, ninguém esperaria encontrar ali “Silly Love Songs” ou “With a Little Luck”. Na verdade, como falei antes, a “necessidade” do novo disco reside no fato de que ele continua compondo e, para um cara como ele, compor é uma segunda natureza. Até acho que, de fato, gente da geração dele, como Dylan e os Stones surpreendem por mostrarem-se prolíficos ainda hoje, mesmo que estejam já distantes de um momento no tempo e no espaço em que eles revolucionaram o campo da música como entendemos hoje. O próprio projeto do McCartney III como o fim de uma trilogia que imagino que, lá em 1970, não fora cogitada (já que, como ele disse, antes da pandemia, sequer o terceiro disco estava estabelecido). O que eu acho interessante é entender a natureza desses três discos como inflexões mais exploratórias em sua discografia, remetendo a uma subclassificação na obra de Paul e diferenciá-lo de Egypt Station para entender quais são as características  particulares da ótica de McCartney em conceber o terceiro disco, agora sim, como uma conclusão dessa variante de sua produção discográfica que, em 2020, fecha um ciclo de meio século. O primeiro McCartney foi duramente criticado quando saiu em 1970 e talvez o seja menos hoje. Afinal, era um disco experimental, feito à revelia dos outros Beatles e lançado como quase como o pivô do fim da banda. Tanto George quando John haviam lançado discos experimentais antes – Harrison lançou o seu dois anos antes, pelo selo Zapple, um trabalho que nenhum fã gostou ou gosta até hoje e que jamais poderia ser reabilitado, já que a transa é em outra praia, que é a música eletrônica. Todos sabem o que o fã dos Beatles pensa de “Revolution 9”. Ou seja, essa é uma questão interessante: um artista pop e consagrado navegando por águas perigosas, porque vão além daquilo que seus ouvintes esperam dele. Os Beatles tinham cacife para colocar uma faixa como aquela no Álbum Branco. Na minha opinião, foi uma atitude corajosa e considero que ela é uma peça importante no corpus do grupo, mesmo que os fãs e os críticos detestem aquilo que tem mais a ver com musica concreta e eletroacústica do que pop. Mas apenas o fato de abordar esse tipo de música e contrabandeá-la num disco comercial é um grande feito – como também foi o de trazer a música indiana para o rock. Se um compositor de música eletroacústica como Stockhausen gravar rock não iria chocar tanto como os Beatles fazendo o caminho inverso. A postura dos Beatles na época coadunava com a atitude da banda, que sempre procurou dar um passo à frente. McCartney, na medida em que se transformou em produtor, também quis, como era de sua natureza, ser um expedicionário do estúdio, e pôr suas idéias na fita, como Les Paul também era. Paul diz que todo esse experimentalismo (ele disse isso numa coletiva sobre o McCartney II) sempre foi algo constante em sua vida. Recordava que, ainda menino, usava o banheiro de seu antigo sobrado em Forthlin Road como câmera de eco. Esse é o começo do Paul da trilogia, do Chaos and Creation ou o Fireman, o Paul que, antes da pandemia, já sabia dar cabo de seu ócio criativo. Existe o Paul entre amigos, o Paul do Wings, dos Beatles, das bandas que ele tocou nas turnês. E existe esse outro Paul, o Professor Pardal, o que vai colocar synth com uma bateria de vaso de banheiro e usar um guia telefônico como tarol de bateria ou um kazoo com a própria voz e mixar tudo com bastante reverb e seja o que Deus quiser. Esses são as duas vertentes de seu trabalho, e que podem ser divididas – isso é visível na sua discografia, independente que o resultado seja, em parte, de qualidade “duvidosa”. É o médico e o monstro - o Paul dos palcos e o Paul do eco no banheiro. 
A frustração do fã que ouve “Maybe I’m Amazed” e “Man We Was Lonely” é a de que se ele jogou o sarrafo longe com a primeira, parece que faltou força para segurar o disco inteiro. Mesmo caso com o II: Paul lança a bela “Waterfalls” e “Coming Up” e ao mesmo tempo “Temporary Secretary”. A reação dos fãs é a mesma. O fã quer as “catchy songs”, as canções cativantes associadas à Paul, não querem nem o John experimental, nem o George experimental, muito menos o Paul experimental. Claro que o trauma deve ser tanto que até hoje outra peça experimental (talvez mais avant garde que “Revolution 9”) que é “Carnival of Light”, acabou solenemente proscrita dos futuros lançamentos dos Beatles porque com certeza os fãs iriam detestar. Talvez. Talvez hoje fosse o momento para que ela fosse lançada, mas só sobreou ela. Mas enfim, as críticas são importantes, as mais negativas também, até mesmo quando elas envelhecem com o tempo e viram motivo de risada, e Paul foi literalmente pichado pelo primeiro McCartney, acusado de falta de criatividade e outros bichos. Claro. Faltam os outros Beatles e Paul pôs o seu na reta em lançar um álbum solo naquele momento, sem proteção, pronto para encarar de frente um torelinho de enragés prontos para acabar com um disco que poderia ser parte do...próximo disco dos Beatles, e ele acabou com tudo aquilo e deixou aquele disco como legado? Um disco que talvez fala mais por aquilo que ele deixa de apresentar, que é a contribuição dos outros três Beatles.  O II pelas digressões tributárias do rock alemão dos anos 70 e do minimalismo, coisas para as quais os fãs de música pop não têm nenhuma paciência. Mas o artista não tem nada a ver com isso. Se uma pessoa como ele tivesse que se repetir a cada álbum, ele teria vendido muito mais discos mas sido muito menos fiel a si mesmo e às suas ambições. Esqueça o Paul de “Silly Love Songs” ou o de “With a Little Luck”. Mas pense no Paul como Stockhausen, Cage, Reich, Les Paul, compositores que  descobriram novas esferas musicais e, querendo ou não, colocaram o bode na sala e nos forçaram a repensar o fazer e principalmente o de ouvir além do conhecido. Acho que somos muito acomodados em matéria de gostos e gente como eles estão milhas na nossa frente mas esperando que sigamos seus passos. E, meu amigo, se você não gosta de “Revolution 9” e de "Temporary Secretary"  meu amigo, você não chega lá. Você não é do ramo.  


Thursday, December 17, 2020

Alma Familiar

Beethoven em 1803, por Christian Hornemann

Lá por 1823, Beethoven era um homem dividido. Ele frequentemente recebia pedidos de peças por parte de editores musicais. Por outro lado, surdo e exaurido após uma extensa batalha judicial para conseguir a guarda do sobrinho Karl, ele se tornara uma figura inescrutável e abissal, distante do convívio com as pessoas. Certa vez, foi preso por desacato numa taverna. Andrajo como estava, rescindindo a cerveja e vinho, com a roupa amarfinhada, certamente de viver dormindo dias a fio com elas, a polícia não o reconheceu como o famoso compositor vienense. Apesar das relações azuis, seu sangue não era da mesma cor. Não conseguindo casar nesses termos, viveu o resto da vida só. Só e incomunicável, desleixado, e frustrado pela surdez que o impediu de reger uma nova apresentação de Fidélio naquele ano. Ele tentou reger sua ópera mas foi demovido a apenas assisti-la (sem ouvi-la). Essa era a sua sina. A Coral, composta um ano depois, ele viu apenas em sua imaginação. Sua produção final morreu junto com seu mundo de silêncio, tão apartado da vida anterior.

Mas Beethoven vivia para música e de sua música. Diferente de seus antecessores, ele viveu o que se poderia chamar de a aurora da indústria musical a partir da Europa. Nessa época, 1823, ele já mantinha contatos com publishers como Anton Diabelli, um dos primeiros grandes nomes do ramo (posteriormente junto com Playel, Breitkopf e Hartel, etc). Diabelli, contemporâneo mais jovem que o mestre de Bonn, seria responsável por uma das obras mais célebres do repertório de Beethoven, as Variações Diabelli, que estariam para o autor da Nona o que a Oferenda Musical está para Bach. No entanto, enquanto Diabelli era um editor imteressado a vender partituras de cunho popular, versões transcritas para piano de árias e cançonetas, Beethoven, como era de seu feitio, não era muito apegado a cunprimento de prazos. A sua "nobraza" lhe permitia tal trato e distinção. Se ele fosse brtânico em matéria de cumprimento da prazos, talvez ele ficasse rico a partir dali - dada a quantidade de oferta que ele recebia para quartetos, óperas e outras peças.     

Aliás, um capítulo sobre Beethoven e sua relação com a ópera valeria um outro post. Ele, que compôs a duras penas Fidélio, certamente moveu mundos e fundos porque o libreto falava de uma causa nobre. Era uma história de resgate, da vitória das Luzes contra o obsurantismo. Era uma causa que o revolucionário Beethoven defendia de fato. Ou seja, é como se os fins dessa criação singular em seu corpus musical estivessem cifrados num princípio político, mais político do que estético. Posteriormente, no fim da vida, ele chegou a receber propostas de escrever óperas. No entanto, naquele segundo momento da ópera alemã, a influência do começo do Romantismo com Weber e o Franco-Atirador já prenunciavam mais um ideal estético que seria plenamente desenvolvido com Wagner, mas que passavam ao largo dos interesses de Beethoven. 

Grillprazer ofereceu-lhe um libreto de Melusina, texto já apontando para essa tendência da ópera alemã dos próximos anos. É compreensível o desinteresse do compositor pela peça. E isso talvez seja indicativo que, se ele vivesse mais alguns anos, talvez achasse a fina flor do reacionarismo alemão os dramas musicais de Wagner, este completamente tributário do legado do criador da Eroica. O veradeiro ideal de Beethoven não estava em representações mitológicas tão ao gosto do Romantismo posterior. O seu ideal libertário e revolucionário está em Fidélio, nas sinfonias, principalmente na Quinta e na Nona, na Missa Solene e na Sinfonia Coral, com sua celebração à alegria e uma crença inabalável nos ideais de liberdade e de humanidade e de união entre os povos - elemento que está ausente em seus discípulos. Beethoven era da geração da Revolução Francesa. Não tinha parte com todo o reacionarismo que a Europa desenvolveria nas décadas seguintes à sua morte. Ademais, comentando sobre um encontro com Rossini, o grande operista italiano, a despeito de admirar a música do mestre de Pesaro, Beethoven entendia a ópera como “mero entretenimento”.

 É curioso notar que a distinção que ele obteve como compositor não fora abalado pela sua vida particular. O litígio com Johanna mostrara um Beethoven irrascível, obcecado, maquiavélico, no paroxismo de seu ódio para derrotá-la nos tribunais, fez de tudo para confiscar Karl de sua mãe. Ele conseguiu, mas foi uma vitória de Pirro. O rapaz não correspondeu às expectativas do tio, ainda mais quando, como num duplo de seu pai, Beethoven quis transformá-lo num menino prodígio, assim como Johann havia feito com o menino Ludwig. 

Naquelas condições, sendo quem ele era na vida real, querendo projetar no futuro do filho de Johanna um futuro promissor como músico que ele não vislumbrava mais em sua vida. Sua surdez foi uma morte em vida, que ele quis abreviá-la em Heiligenstadt, quando escreveu um famoso testamento (um testemunho desesperado de alguém que, por trás da máscara, revela uma pessoa turturada pelo destino e pelo futuro), que a posteridade iria transformar num exemplo romântico do gênio torturado. Aliás, nos anos seguintes à sua morte, em 1827, coberto de problemas que iam desde a cirrose cavalar à icterícia, a literatura sobre o mestre de Bonn foi pródiga em encapsular essa imagem do “gênio torturado”. Imagem que acabou prevalecendo em detrimento desse Beethoven real que era um outsider mas que se orgulhava de usar sua posição de não austríaco e não ter sangue azul para zombar daquele estabilishment, algo que seria impossível para seu mestre, Haydn – um compositor de libré, que convivia com imperadores e arquiduques mas além de submeter-se à eles, na hora da ceia, ele jantava com os criados. 

Essa imagem de gênio torturado, aliada à de um livre-atirador, um irascível, tosco, quase violento, um ser quase abjeto, como diria dele Carl Maria Von Weber, um subversivo, explorador de novas harmonias no campo musical, de impor mudanças nas velhas formas musicais que poucos ou ninguém ousaria até então, forjaram essa imagem de um compositor como Beethoven que, poderia-se dizer, é a imagem padrão de um artista. Para quem começa hoje a ouvir música clássica, acredito que ele é o começo. É como gostar de futebol a partir da uma paixão particular por um clube. 

Sem esse começo, tudo parece a mesma coisa. Com ele ou com qualquer outro, é possível adentrar nesse imenso casarão que é a música erudita e começar a entender, por sua vida e sua obra, o que é esse gênero tão interessante e começar a mobiliar a sua própria casa com esses novos móveis. Beethoven é um exemplo inefável porque, a despeito de toda a ruína da sua vida pessoal e de toda a mistificação que se criou a partir de biografias romanceadas sobre o autor da Sonata ao Luar que, depois de muito ler, ao ouvi-lo, parece que submergimos a outro mundo, de uma música que, longe do estéril turbilhão da rua, como diria o poeta parnasiano, conta a história, a vida, os sentimentos, o ímpeto e as aspirações de uma outra pessoa, e quase de uma alma familiar. Essa pode ser um caminho para entender o ideal estético de um compositor como Ludwig Van Beethoven, cujos 250 anos de nascimento lembramos hoje. 


Tuesday, December 15, 2020

A Era Glacial

Frankie Lymon
Frankie Lymon 


Lembro que eu comprei aquela biografia do Littrle Richard e fiquei, eu, um joem de uns dezesseis, deveras chocado com toda a putaria que existia em torno do show-biz - já naquele tempo. Como eu era inocente. Não sabia nem que Berlioz usava ópio para compor a Fantástica ou Verlaine enchia a cabeça de absinto para poetar (mas divaguei e me desculpem) Aquele livro ainda me impressiona. Eram cenas de orgias com pó e outros derivados, e ainda mais o Richard entendendo já convertido como pastor que tanto o uso de drogas como o sexo em geral era um caminho sem volta, promiscuidade, etc. Era a visão sincera de um convertido. Mas aquele não era bem um livro para garotos. Era um livro bem pesado mesmo. E eu descobri essa barra pesada do mundo da música talvez cedo demais ou no momento certo. 

Mas depois eu li uma entrevista com o Frankie Lymon. Ele disse que, ainda garoto, no tempo daqueles programas  de juventude, como o American Bandstand, as drogas corriam soltas, às vezes aparecia uma telefonista drug dealer e Lymon, ainda com aquela voz de garoto, havia se tornado viciado em heroína, no meio daqueles programas.  Isso é engraçado para ver como a gente tem aquela visão do pop dos anos 50 como um ambiente de inocência, até quanto eu lembro de ouvir discos das Chordettes, Fleetwoods. Tudo aquilo me evocava um tempo de inocência. Digo isso porque minha fase intermediária até chegar no rock, já com um walkman, nos anos 80, passou por descobrir, a partir do cinema, essas canções que, nos anos 70 e 80 retornaram como numa onda de nostalgia, desde o Loucuras de Verão, de 73 até o Conta Comigo, de 1988. Eu descobri o rock nos anos 80 mas não a partir daquilo que tocava no rádio, mas descobri sabendo por outros, porque não havia internet, que existia um tipo de música legal e cativante que não tocava no rádio. 

Eu já devo ter dito isto várias vezes aqui mas acho que os anos 80, com toda a sua presentificação e urgência de novidades, fez de tudo, consciente ou inconscientemente, de tudo para apagar o passado. Essa  coisa de memória através do tempo e do espaço, como diria Nelson Rodrigues, tem um quê de fluvial em seu lerdo escoamento. Nos anos 80, um artista como Lymon ou Richard, as Chordettes ou Fleetwoods, Neil Sedaka ou Jerry Lee Lewis, era algo tão firmado no passado que sempre chamava a atenção quanto, por causa de uma propaganda ou de um filme, esse passado ressurgisse numa canção que iria , contra todas as expectativas, parar no rádio. Isso aconteceu com Be My Baby, canção das ronettes que tocava sem parar no rádio por causa do filme Dirty Dancing. 

Era algo além das expectativas das rádios, que trabalhavam sempre em função do suplemento musical  das gravadoras, e jamais perderiam tempo vasculhando a própria discoteca em busca de um sucesso do passado, não havia reciclagem. Nos anos 80, um beatlemaníaco era coisa do passado. Hoje você vê garotos com camisetas com o logo da banda, ou tocando instrumentos iguais aos deles. O que era passado há três décadas hoje está na pauta; esse é um exemplo dos fluxos e refluxos da memória. O que me espantava nos anos 80 era descobrir essas canções pop dos anos 50 e não entender porque ninguém mais ouia aquilo se parecia algo tão agradável. Aquelas músicas eram legais, e havia aqui no subsolo da Discoteca, no centro, uma enorme coleção de CDs importados só com pop dos anos 50. Nossa, a minha vontade era de ter todos aqueles discos, e não entendia por que aqui eles não podiam ser encontrados. Também não sabia nada a respeito de todo esse miaginário que existia sobre os anos 50 na música. Eu não tinha cabeça para entender essas coisas. Não havia suporte para isso. Ou então, jamais saber qe gente como Little Anthony ou Frankie Lymon seriam o começo de boy groups dos anos 70, como Osmonds ou o Jackson Five. Não sabia nada disso. Aquilo era a era glacial do pop.  E a minha era glacial como ouvinte e discófilo. Nesa época eu ainda comprava discos em lojas de departamentos, não era beatlemaníaco nem rato de sebo ainda.  

No entanto, discos sobre a década eram raros, e cada coisa que aparecia, uma coletânea, uma trilha de filme, era uma forma de recuperar aquela cultura submersa do passado.  Hoje sabemos que tudo está a um clique de distância, mas naquele tempo, era um trabalho de perseverança e de paciência. Tinha na época uma nostalgia nos filmes e esse revival a partir das trilhas dos filmes foram uma espécie de furo que fez com que essas canções voltassem. Acho que um marco foi o filme dos Doors, que fez com que se descobrisse a história daquelas músicas tão atuais naquela irada dos anos 90, e isso viabilizou livros como o Mate-me por Favor, que fez com que bandas como Mc5, Velvet Underground, Stooges reaparecessem como a era glacial do punk. A história estava toda no limbo e descobriu-se que havia um público cada vez mais interessados nessas velharias que não eram tão velharias já que elas dialogavam com desejos e aspirações das pessoas do futuro.  

Esse foi um fenômeno incrível porque se os anos 80 representaram um apagamento em termos de memória, essas sístoles e diástoles, vai e vens do tempo e da memória parecem mudar com essas disposições, com esses marcos. E de como existe tanto a ser conhecido com coisas do passado. Eu de certa forma vislumbrava isso quando, nos anos 80, quando ouvia Bill Haley. Não havia referências, não havia enciclopédias, não havia livros, não havia letras, fotos, nada. A gente formava conhecimento aos poucos, era uma guerrilha paciente; e mesmo depois, com a Internet, eu percebi que o buraco era maior. Havia muito mais a saber e a pesquisar, tanto que esse ainda é um trabalho a ser feito. Aqui, houve a série de tevê Anos Dourados, Bambolê, que fez esse revival pela televisão. Na esteira do programa, apareceram discos que eram coletâneas de canções do passado. Surgiram os discos da Brasidisc, Little Richard, Carl Perkins, Fats Domino, etc. 

Depois, descobrindo os Beatles, eu descobri que esses artistas que eu ouvia faziam a cabeça deles quando eles tinham a minha idade. Então eu percebi que devia estar no caminho certo.  Mas essa é história para outro post.      


Wednesday, December 09, 2020

Coralidade e performance na poesia de Safo

 

Sempre que se fala em Safo, o imaginário que existe em torno dela é de uma poetisa lírica e sensual. Já li autores discorrendo sobre literatura grega que separavam a lírica da épica ao explicar que enquanto esta fala de grandes feitos, é “objetiva”, aquela é o poeta falando de seu próprio eu, mais subjetiva. Porém, estudos recentes mais focados na questão ou, como diz Giuliana Ragusa, um “enfoque intensificado na performance da mélica grega arcaica, e o resultado tem sido a avaliação mais precisa da produção de Safo, e a ampliação da distância das leituras biografizantes e romantizadas, que tanto buscam na poeta o que é estranho à sua poesia e, em verdade, à poesia antiga como um todo: a voz pessoal, o subjetivismo, o intimismo, a privacidade, os sentimentos confessos do “eu”.

Ou seja, para ela, estudar tanto a mélica grega quanto Safo, é preciso desviar-se dessas perspectivas de análise. Creio que a grande questão atualmente é pensar os poetas e os modos de produção poética a partir da performance, a partir do que se propõe o autor e qual é o público a quem ele se dirige.

Existe outra questão a partir desta: toda a produção literária, desde a poesia até o teatro naturalmente esta cifrada a um contexto relativo, para uma situação convencional oral, como diz ela, e para uma “audiência específica”. O contexto daquele tempo não era a do texto impresso, do livro de bolso, que nós lemos em casa ou na biblioteca.  Ela era pensada tendo em vista uma representação pública. Aí teríamos variações, poesia para declamação em simpósios, em eventos esportivos, uma dramatização, como as dionisíacas. A expressão “lirismo” teria sido ressemantizada como uma poesia do coração. Mas a lírica, ou mélica, como diz Ragusa, está essencialmente associada à uma apresentação ou performance, e o mesmo vale para Safo. Esses textos não são propriamente especialidades ou gêneros literários, eles se encontram antes do que seria possível chamar de literatura.

Safo (630-580 a.C.) foi uma poetisa nascida na ilha de Lesbos (nordeste do Mar Egeu), e viveu na mesma época de outro poeta, Alceu. Pouco se sabe sobre sua vida, além do fato de que pode ter sido uma eupátrida de Mitilene. De sua obra restam apenas fragmentos. Além da Canção sobre a Velhice, outro poema conhecido que chegou até nós foi uma ode a Afrodite e a Títono, aquela restante a partir de uma citação de outro autor grego. Destes, Ragusa cita a Canção sobre a Velhice, um fragmento de Safo encontrado em 2005. Ela diz que, no texto, é sua a voz nos versos, a cantar como se, sobrevindo-lhe a velhice, restasse-lhe dançar na canção que tematiza a atividade coral, a qual se faz fonte que viabiliza “a imortalidade poética e a juventude eterna”.

.. (das Musas) de violáceo colo belos dons, ó meninas, ... a lira melodiosa, amante do canto;  outrora tenra (a pele), agora da velhice ... e (brancos) se tornaram os cabelos negros. Pesado se me fez o peito, e os joelhos não me carregam – os que um dia foram ágeis no dançar, como os da corça. Isso lamento sem cansar. Mas que fazer? Desprovido da velhice não se pode ser, sendo-se humano. Pois, certa vez, dizem que Eos, róseos braços, com paixão ...(?) carregando Titono aos confins da terra, belo e jovem que era; mas similmente alcançou-o em tempo a grisalha velhice – ele que tinha imortal esposa.

A respeito da atividade coral, sabe-se que Safo era uma espécie de preceptora de meninas para sua entrada para a vida adulta, como no costume de época. Este texto, diz a autora, é o que resta de um “partênio”, “uma espécie mélica que consiste na canção para performance por coro de parthénoi, como são chamadas as moças ainda não casadas, as “virgens”. Como preceptora dessas meninas, ela ensinava a elas o canto coral. Como coreutas, elas interpretavam essas canções como parte de uma performance a um determinado público.Neste caso, seria algo como um festival cívico-cultual. Cívico diria-se que isso tem a ver com o fato de que essas apresentações, tais como as tragédias, mais do que mera representação teatral, elas faziam parte das atividades e da vida da polis. Todos eram “convocados” a assistir estes festivais.

 Citando André Lardinois, Giuliana explica que o poeta da mélica coral “não apenas compunha as canções, mas preparava e acompanhava o khorós que a apresentava com dança coral – sentido básico do termo grego – e canto coral”. Sobre a natureza da performance, o conteúdo dos poemas, a partir da Canção sobre a Velhice, Ragusa infere que a imagem do texto  “não apenas realça a dimensão coral de sua mélica, mas que indica que Safo teria desempenhado a função de khorodidáskalos junto às meninas a ela associadas, que abarcaria a orientação do desabrochar da feminilidade das parthénoi, futuras esposas a serem preparadas para tal condição (...):

(...) na moldura institucional da performance na competição realizada no festival cívico-cultual em que se apresentam, são apresentadas à cidade, às famílias de seus futuros maridos, dos noivos em potencial. São atestados os grupos de meninas de origem aristocrática, nos quais elas recebiam a formação feminina específica, que incluía a atividade coral – canto, dança, música –, a reafirmação de valores ético-morais – sempre um elemento de força na mélica coral – e o conhecimento da tradição mítica, a preparação para o casamento designado gámos, termo cujo sentido básico é o “sexo” e, na medida em que este a consuma, a “boda”. Tal preparação consiste no exercício da sensualidade, do erotismo, que, reitero, num cenário em que corriam paralelos os mundos feminino e masculino, dava-se internamente, no caso das parthénoi, ao universo feminino (RAGUSA, 2019, p.92).

Nesse sentido, ela observa que qualquer interpretação relativa à homoafetividade nesses poemas corais não passa de uma visão anacrônica.  Ao citar Maria Fernanda Brasete, ela diz que relação entre pessoas de mesmo sexo naquele tempo era algo tão natural que não haveria porque rotulá-lo. Brasete conclui que falar de erotismo grego não é o mesmo que falar de sexualidade, “porque, em primeiro lugar, não se trata de fenômenos atemporais e, por conseguinte, não podem ser descontextualizados das práticas sociais institucionalizadas numa determinada comunidade histórica”. Nesse sentido, Giuliana  Ragusa entende que seria preciso, hoje, fazer uma revisão da obra de Safo de forma a entender, a partir da performance, uma maior atenção à signos que estejam relacionados ao mundo feminino das partenói e, com efeito, à coralidade em si - segundo ela, um elemento subestimado senão ausente nas leituras modernas dos poemas de Safo. 

Essa leitura “moderna”, diz ela, insiste em “tomar por íntima, pessoal e privada a voz de seus versos, nos quais Safo manipula com perícia a linguagem de modo a criar a impressão de intimidade”. Esse “clima” acaba dando (para os ouvintes modernos) essa impressão de canções compostas para um grupo fechado de moças. Ao analisar o corpus de Safo a partir dessa perspectiva, a autora observa elementos presentes nos fragmentos, que apontam para o universo do universo das parthénos: “Entrelaçam-se no mundo do gámos, essencialmente feminino, a coralidade, o erotismo, a beleza. Entrelaça-se estreitamente à mélica sáfica essa trama que sustenta as relações e mesmo a função essencial do grupo de parthénoi, amiúde relacionado à persona de Safo nas composições, de modo coletivo ou individualizado”. 

O parthénos, ela reitera, é um termo ligado ao status “transicional na vida feminina, entre a tenra infância e a idade adulta, esta nomeada em gynḗ, termo que indica a participação no mundo do sexo a partir do casamento”. Porém Giuliana diz que na vida das coreutas, esse momento de transição é, também um momento de crise: é o momento em que elas deixam para trás infância e os cuidados de suas mães e entram no mundo de sexualidade, de maternidade. Essa transição era como se fosse uma pequena morte. 

A lembrança daqueles momentos de transição, de formação e as relações interpessoais como parthenós porém representaram momentos importantes que elas carregarão para o resto de suas vidas. “Pela linguagem da coralidade e da poética sáfica se neutraliza o trauma da separação”, diz. Por fim, como diz Giuliana Ragusa, seria importante, pois, entender a poesia de Safo sob a perspectiva performática – e a poesia grega em geral, no sentido de que elas tinham essencialmente por propósito uma performance, ou seja, uma representação  pública, e eram destinadas a declamação – seja por Safo ou por um coral.


REFERÊNCIA 

RAGUSA, Giuliana.  A coralidade e o mundo das parthénoi na poesia mélica de Safo. Aletria, Belo Horizonte, v. 29, n. 4, p. 85-111, 2019 eISSN: 2317-2096 DOI: 10.17851/2317-2096.29.4.85-111.


Tuesday, December 01, 2020

Questão de Ordem

Fascículo da Abril de 1971

Esses dias tava juntando material para falar de contracultura no Brasil e descobri que eu ainda tinha aqueles fascículos do Gilberto Gil e do Caetano Veloso da História da Música Popular Brasileira, da Abril Cultural. Hoje, esses fascículos são raridade mas, olhando em retrospectiva, acho que eles tiveram uma importância muito grande quando a coleção foi publicada, primeiro no começo dos anos 70, depois, no final e, numa última edição, nos anos 80. A importância reside no fato de que esses fascículos conformam a primeira tentativa “séria” de se estabelecer um cânone a partir de levantamento histórico e de debate sobre a MPB num momento em que a sigla começava a servir de palavra-valise para referir-se à produção musical brasileira “moderna”, ou seja, a partir do que o Augusto de Campos cunhou nos anos 60, de “linha evolutiva” da música brasileira, da Bossa Nova ao Tropicalismo, e depois para uma perspectiva mais aberta, a partir dos anos 70 até hoje, onde o tropicalismo ainda é uma referência para a produção musical.

Essa coleção me fascinou porque eu a descobri numa época em que tinha ouvido o primeiro disco do João Gilberto, e isso me fez descobrir a MPB. Até então eu era completamente alienado, e não me interessava por nada do gênero. O movimento que eu fiz a partir da descoberta do disco Chega de Saudade foi no sentido de me sentir estimulado a pesquisar sobre MPB numa época em que a internet não existia e que a bibliografia sobre o assunto era bem escassa. Sobre Tropicalismo, reler esses fascículos hoje é como voltar ao começo, mais como nostalgia dos tempos daquelas primeiras descobertas do que propriamente um grande interesse sobre o assunto, já que eu na verdade já meio que enchi o saco de ler sobre o assunto, muito embora nessa, caso, hoje tenha sido obrigado a retomar alguns temas, mas faço isso com satisfação, da mesma maneira que isso me fez voltar àquelas primeiras descobertas. Hoje existe tanto livro sobre história da MPB, tantas biografias e autobiografias. São tantos livros e teses e dissertações, muitas vezes cifradas em temas recorrentes e por que não dizer tropeçar nas mesmas ematizações, datas e canções, sempre Bossa Nova, Tropicalismo, é tanta coisa que atualmente não é muito difícil empreender pesquisas sobre esses assuntos, com tantas abordagens teórico-metodológicas, ou apenas depoimentos, como o Verdade Tropical, do Caetano.  

O movimento editorial nesses últimos vinte anos foi bastante fértil no sentido de cobrir uma vasta gama de variações sobre o tema da MPB. Por conta disso, e de tantas pesquisas e debates, a gente hoje até acha um pouco de graça dessa história de “linha evolutiva” da música popular brasileira, já que essa idéia de evolução já está, graças à antropologia, meio que pelas caronas. Aliás, sobre essa questão de linha eolutiva, anos mais tarde, Luzi Tatit iria entender esse processo de forma diversa: para ele, o movimento não é propriamente evolutivo, mas se dispõe de maneira dialética, onde o sambafora um momento de "mistura", a Bossa Nova, de "triagem" ou de decupagem, e o Tropicalismo como outro movimento de "mistura". Mas foi o sustentáculo do debate sobre a MPB naquela virada dos anos 60 para os 70, exatamente na época em que surgia uma imprensa musical especializada e que alguns autores, como Augusto de Campos ou Tárik de Souza foram pioneiros em discutir esses assuntos, o Tropicalismo estava em parte no exílio e a Bossa Nova iria entrar num longo inverno de esquecimento até ser reabilitada pelo livro Chega de Saudade, do Ruy Castro, já no limiar dos anos 90. Acho que esse livro também foi responsável por um retorno ao tema.  Lembro disso porque foi exatamente quando descobri aquele opúsculo da Bina Maltz e do Jerônimo Teixeira sobre Antropofagia e Tropicalismo. Foi interessante porque essa relação, que é sugerida, nos primeiros teóricos, Décio Pignatari e o Augusto de Campos, que foram os que meio que introduziram essa idéia antropofágica na teoria tropicalista, justamente ao fazer o grupo baiano se interessar sobre a proposta de reciclar o legado modernista de 22 (também supervalorizadpissimo pelos estudos de literatura) e seus desdobramentos.  Esse foi o começo de como o Tropicalismo começou a ser adubado teoricamente com vista a se tornar num tema solidamente estudado como hoje. 

Mas, olhando no retrovisor, é interessante pensar que houve um momento em que esse debate estava restrito, acho que as perspectivas teóricas representavam barreiras para esse tipo de abordagem mais culturalista da história da MPB. Anos atrás, o próprio disco Tropicália foi referência bibliográfica para Literatura Brasileira na UFRGS e para mim foi uma coisa importante, porque era uma coisa que a gente vinha estudando e lendo e se apaixonando pelo tema já de longa data. Claro que eu acho certas análises meio cansativas, porque acho que, em alguns casos, se pegou desse limão e se fez uma limonada que vai do tropicalismo a teoria alegórica de um Benjamin como em Favretto e o famoso ensaio da Heloísa Buarque de Hollanda ao formalismo russo para achar em Baktin referências para explicar tropicalismo enquanto Roberto Schwarcz criticava o legado tropicalista sob um viés político-ideológico, e acho que o que menos se analisou nesses estudos foi a questão da música. 

Digo isso porque acho que o Tropicalismo, longe dessas questões teóricas sobre artes visuais e plásticas, o teatro do Zé Calso ou o cinema do Glauber – veja que tudo acabou sendo colocado nesse mesmo vatapá, mas eu acho que a transa em questão e que ficou meio de lado foi a de abordar a questão musical, mas mais a musical mesmo. Acho, por exemplo, que existe o papel do Rogério Duprat, que aparece numa entrevista ao Augusto. Eu acho que esse legado do Duprat, da formação dele, do porquê do seu interesse em música popular, da forma como ele fez a cabeça do Gil e dos Mutantes e vice-versa, dos porquês de fazer o que foi aquele happening entre “Questão de Ordem” e “É Proibido Proibir”, cujo objetivo era ostensiamente, como disse Caetano, o de fundir a cuca do júri. Porque assim como o Duprat fala ao Augusto que havia se desinteressado em trabalhar com música popular até descobrir o grupo baiano mostra que ele encontrou neles uma forma de reciclar seus conceitos sobre música contemporânea, música eletrônica, e eu penso que essa virtude do Duprat é meio deixada de lado até pelo próprio desinteresse dos pesquisadores em entender a importância dessa relação dele com Stockhausen ou Varese e todas essas coisas, que também estavam interessando aos músicos de rock inglês na época, à moda dos Beatles, no sentido de fazer um novo tipo de música, mais autoral, menos afeito a clichês e às paradas de sucesso e às regras da arte e até mais “difícil”. 

Duprat e Júlio Medaglia vinham dessa vertente, que era, por exemplo, a mesma do Frank Zappa, que entrou de gaiato de navio do rock mas bebera da mesma  água de Duprat e Medaglia. Era uma outra concepção de música como expressão de arte e aquilo ia totalmente na contramão  do que era a música jovem dos anos 60 na época, que era uma coisa totalmente clichezada, totalmente calcada no clichê mais docilizado dos Beatles do começo da carreira, um som que, nas mãos dos produtores de disco aqui, nos anos 60, se transformou no iê iê iê, que era, com efeito, o produto mais embalsamado vendido para um público docilizado, que era o da Jovem Guarda. Ao mesmo tempo, vivia-se uma polarização absurda entre música brasileira de raiz contra a própria Jovem Guarda, enquanto um movimento outsider como a Pliantragem conseguia vender disco num nível Roberto Carlos, para o desespero dos papas da Tradicional Família Musical (como diz o Augusto de Campos). 

O tropicalismo musical, muito além de teorizações plásticas, cênicas, epistemológicas, era uma resposta e uma síntese a esse impasse, mas num nível sincrônico, isto é lidando com a música de seu tempo, muito longe, ao meu ver, desse papo sobre Oswald de Andrade, que está dado nos postulados tropicalistas, mas o debate aqui, com Duprat, Mutantes e Gil era no sentido de acertas os relógios da estética musical jovem com os do rock internacional, e tendo que passar a caravana diante dos cães furibundos que defendiam os valores do samba, da música nacional, enfim, o tinhorãozismo da crítica da época. O Duprat, no papo com o Augusto, fala tanta coisa interessante no âmbito musical de como essa música experimental iria encontrar o seu caminho na sua relação com Gil e os tropicalistas no sentido de transcender tanto o debate violão versus guitarra quanto o produto datado da Jovem Guarda que, guardadas as proporções e os afetos de quem viveu o movimento como fã, era uma versão barata embora dentro de um contexto específico, que era o do Brasil dos anos 60, ainda atrasado com relação às novidades do pop, enfim, barreiras de época, tanto que o que podemos chamar de contracultura no Brasil foi um fenômeno que aconteceu no Brasil no começo dos anos 70. Isto é, o Brasil caminhava atrás de resto do mundo ainda em tempos de pré-mundialização. 

Claro que esse acerto de horários culturais não se deu de forma pacífica. Foi preciso que imprensa, gravadoras e crítica se interessasse pelo rock, e isso foi um longo caminho. Outra questão, pegando MPB e rock é que, como observam alguns pesquisadores, por causa do Tropicalismo, MPB e rock nacional caminhavam de mãos dadas no começo dos anos 70. E não se sabe porque (se sabe, como veremos adiante) um dia resolveram separá-los. É só ouvir os discos da Gal, a embaixadora da Tropicália no Brasil quando este estava no exílio com Caetano e Gil: ela é MPB e rock. Nos anos 80, como diz Fernando Muratori Costa, quando a imprensa brasileira quis agendar o noo rock dos anos 80, o fez, como ele demonstra em sua pesquisa, na contraposição entre MPB e rock, acusando aquela de ser “bloated”, ultrapassada e que o novo rock da Blitz, da “nova” Rita Lee fase Som Livre foram vendidos como a novidade do rock oitentista, intelectual,alegre, cara limpa (para melhorar a imagem de bandido que  Tradicional Família Musical Brasileira tinha dele), contra a MPB borocochô de produções mastodônticas, ultrapassada. Essa pesquisa é interessante para que se veja o papel da imprensa no agendamento do BRock, algo que, por exemplo, no rock dos anos 80, sem o mecenato simbólico das revistas e jornais, sem as FMs e mal difundido e divulgado nos anos 70, não iria conquistar a mesma visibilidade. 

A verdade é que, e isso se descobre à medida em que a bibliografia avançou nos últimos anos, existe toda uma genética a ser desvelada nessa longa duração do rock brasileiro e da MPB. Ao retroagirmos, chegamos a esse ponto anterior à inflexão, onde MPB e rock andavam relativamente juntos sob o guarda-chuva tropicalista. É nessa perspectiva que me parece que é importante retomar a questão do tropicalismo, mostrando suas relações “dialógicas” com o contexto de fora do Brasil no sentido de superação estética do rock que representava a Jovem Guarda, que era, ao mesmo tempo, a nêmesis e referência, já que era a partir dela que os tropicalistas podiam quebrar lanças contra a Tradicional Família Brasileira. Da mesma forma, lendo a entrevista do Duprat, é possível perceber como o happening de “É Proibido Proibir” e da hendrixiana “Questão de Ordem”, mais do que mera água no chope do ambiente de festival, foram momentos importantes na história dos certames, nesse sentido, mais importantes, como diz Duprat, que “Domingo no Parque” e “Alegria, Alegria”. “Questão de Ordem” é Duprat sendo Duprat. Quem ouve, mesmo hoje, essa gravação do Gil, fica perplexo com o fato de que ele inscreveu a canção no festival. Duprat revela que, quando Gil mandou a fica com a música, ele mandou o registro da gravação “normal”, como voz e violão. No palco, ele fez o que fez, e depois registrou oficialmente em disco. “Questão de Ordem” ficou como um momento desviante no Festival da Canção, onde todos os olhos estavam postos para Vandré contra o “Sabiá”. Mas, por exemplo, se não fosse “Questão de Ordem”, não haveria Macalé e “Gotham City”. Naquele momento, o que interessava a essas cucas era marcar posição no sentido de uma nova conformação da música pop no Brasil, sem amarras, sem preconceitos, entrando e saindo de todas as estruturas, para mim, esse é um debate a ser feito nas futuras abordagens sobre Tropicalismo em música, pegando esses aspectos em sua longa duração.