Tuesday, December 31, 2019

Paebiru: um mito luso-brasileiro

Capa do álbum duplo, de 1975


Paebiru, de Lula Côrtes e Zé Ramalho, é considerado o álbum mais raro da discografia brasileira, superando o Louco por Você, do Roberto Carlos. A isso se soma o fato de que, segundo consta, da prensagem original, de uma tiragem mínima de 1,3 mil cópias, restaram apenas trezentas. Estas, por sua vez, são disputadas por colecionadores, que pagam mais de 4 mil reais para obter uma cópia.

O álbum é considerado um clássico do movimento udigrudi, que congregou músicos como Robertinho do Recuife, Alceu Valença, Flaviola, além dos citados Zé Ramalho e Lula Côrtes. Além, e muito além disso, Paebiru é uma viagem lisérgica de 55 minutos em torno do imaginário criado em cima da Pedra do Ingá. Ela fica num sítio arqueológico a 109 km de João Pessoa. O monumento ancestral, chamado de "itacoatiara", é formado por um terreno rochoso que possui desenhos rupestres entalhados na rocha pura. Não se sabe ao certo a datação daquelas inscrições. Uns dizem que a Pedra pode ter sido talhada há 6 mil anos atrás. Para se ter uma ideia, estaríamos na passagem do Neolítico inferior para a Idade dos Metais, ou seja, no ocaso da chamada Pré-História, muito antes, por exemplo, do surgimento da primeira dinastia do Antigo Império no Egito (3.200 a.C).

Constituída de gnaisse, a Pedra perfaz uma área de 250 m². Na parte principal, vemos uma parede de 50 metros por 3 de altura. Além dessa parede, há outras formações, com riscos na pedra cujo significado é ainda desconhecido. Há quem entenda tratar-se de um calendário solar. Em outras partes, é possível perceber representações mais familiares, com desenhos de animais e seres humanos. O terreno do sítio, originalmente particular, foi doada ao governo e Pedra do Ingá foi finalmente tombada em 1944.

Como muitos, Zé Ramalho e Lula Côrtes costumavam visitar o local. Somada a experiências pessoais de ambos, a dupla decidiu transformar essas digressões espirituais num disco. Lançado em 1975, Paêbirú: Caminho da Montanha do Sol, é uma suíte musical que evoca o imaginário que cerca a Pedra do Ingá. O nome faz referência a um caminho mágico que ligaria o sítio arqueológico até os Andes. Esse caminho, segundo a tradição local, teria sido feito por um deus, chamado Sumé. Como é recorrente nas mitologias, Sumé seria uma espécie de agente civilizador, que teria oferecido seus ensinamentos aos homens comuns, como Prometeu para os gregos. Ele teria ensinado o plantio da mandioca aos gentios e sido responsável pela entrada do Ingá, um dos muitos caminhos utilizados pelos ameríndios, muito antes da chegada dos europeus à América.

Em Visão do Paraíso, Sérgio Buarque de Holanda fala a respeito do imaginário em torno novo mundo. Ele diz que, ao contrário dos portugueses, os espanhóis tinham por larga conta toda a sorte de lendas e histórias envolvendo mundos mágicos, como o El Dorado. Ao contrário deles, os lusitanos eram de espírito mais prático, e não se davam à tais divagações. No entanto, observa Sérgio Buarque, uma lenda teria se disseminado entre os portugueses, que faz referência à chegada de São Tomé às índias e à América do Sul, pregando o evangelho, como o teria feito São Tiago em terras da Galícia.

O que no entanto era um culto local, como no caso de Santiago de Compostela era, no caso lusitano com relação a Tomé algo que havia se alastrado por todo o extremo oriente por onde os portugueses andaram, de Bombaim até o Mar da China. Relatos davam conta de pegadas atribuídas ao santo, que podiam ser encontradas tanto além das índias como, se descobriria depois, no chamado Novo Mundo, na América.

O Livro de Duarte Barbosa, por exemplo, fala da peregrinação do apóstolo em Meliapor, no sudeste da Índia. Um caçador teria alvejado um pavão que, ao desfalacer no chão, havia se transformado em homem. Ao chamar autoridades locais para testemunhar o fato, decidiram que o homem morto era, na verdade, um santo. Em seguida, foi inumado num local onde seria construída uma igreja. Em 1516, a Nova Gazeta Alemã, ao publicar uma crônica da viagem de D. Nuno Manuel à Ilha da Madeira, já dava conta de nativos que falavam da passagem de um certo Tomé numa terra “sem lei nem rei”. A própria cartografia confusa da época ligava a América com a Ásia, dando a entender que tal entidade tivesse atravessado essas distâncias, logo tratava-se do mesmo santo. Nativos mostravam aos europeus pegadas gigantes desde Cabo Frio até Itapoã, na Bahia.

Eles também diziam milagres do homem, sempre que tentavam prendê-lo, ele escapava, ora fugindo das flechas quanto abrindo caminho sobre as águas. Nos locais onde foram encontradas tais pegadas, como ocorrera em Meliapor, havia sempre uma fonte e/ou uma cruz. Uns falavam que a água jorrava da pedra, como é narrado nas passagens do Êxodo com relação à Moisés.

Essa água, diziam tais relatos colhidos, davam conta que podiam operar milagres. Contudo, tanto o uso contínuo desses sítios quanto a depredação provocada por crentes que raspavam as pedras deforma a preservá-las como relíquias teria feito com que tais pegadas se perdessem com o tempo, embora tenham permanecido na memória dos antigos. Outros relatos colhidos dão conta de que Tomé se dirigia aos nativos, que falava com os peixes.

Sérgio Buarque de Holanda observa que, mesmo que os espanhóis fossem mais dados a castelos no ar com relação à narrativas imaginárias e eldorados,  a hagiografia a respeito de São Tomé permanece como um caso sui generis, que foi difundido primeiramente por missionários portugueses católicos. “que a presença das pegadas nas pedras se tivesse associado, entre estes, e já antes do advento do homem branco, à passagem de algum herói civilizador, é plenamente admissível quando se tenha em conta a circunstância de semelhante associação se achar disseminada entre inúmeras populações primitivas, em todos os lugares do mundo”, diz o sociólogo. O que deve ser levado em conta, diz o autor, éque enre esses catequizadores, a tendência naturalmente era a de associar o tal “agente civilizador” que travou contato com os gentios (seria um deus astronauta?) com o apóstolo de Cristo.

Anotações em mapas como a de Caverio também davam a entender, devido a algumas topografias assinaladas, como “alápago (ou arquipélago) de são Paulo (na verdade, seria a foz do Macaé)”, davam a entender que gentes do velho continente tivessem aportado muito antes de Cabral – ou outro apóstolo, enfim, outro “agente” que tenha ensinado aos índios a prática do plantio e da utilização da mandioca e da erva-mate.

A verdade é que o nome de Sumé na América apareceia, desde cedo, associado a pegadas humanas e à informações sobre a aparição de um “mensageiro de verdades sobrenaturais”. Logo, os descobridores destas terras fariam a associação com Tomé ou Chimé (como era chamado em Angkor, hoje Cambodja). Relatos, como os de Simão de Vasconcelos, dão conta de penedos encontrados em Cabo Frio com marcas de bordões que, de acordo com determinadas interpretações, seriam marcas que eram na verdade milagres que teriam sido realizados por Sumé de forma a convencer os gentios que eram refratários à sua pregação. No sítio, também haveria vestígios de uma fonte medicinal. Vasconcelos também atribui a Tomé o caminho de Mairapé (estrada milagrosa), no Recôncavo Baiano.

No entanto, anota Sérgio Buarque, o maior legado do mítico São Tome ou Sumé reside numa longa estrada que, saindo do litoral do Brasil, vai até o Paraguai, no mesmo ramal que serviria de caminho para bandeiras espanholas como a de Aleixo Garcia e Cabeza de Vaca, os peabirus. Relatos como o de Ruiz de Montoya afirmam que o tal caminhocomeçava desde a Ilha de são Vicente (outros, mais recentes, associam o começo da estrada ao Pátio do Colégio). Pedro ozano, missionário da Companhia de Jesus em Guairá, fala da trilha encantada: “corre El camiño nombrado por los guaranies Peabiru y por los españoles de Santo Tomé, que es el que trajo el gloriosissimo apostol por mas de 200 leguas desde La capitania de San Vicente, em El Brasil, y tiene ocho palmos de ancho”.  Ele também diz que a erva da triha por onde Zumé passara nunca cresce, permanecendo rala por todo o tempo e toda a sua extensão. Nicolas Del Techo, no século XVII, segundo Sérgio Buarque, faz descrição similar do peabiru. Segundo estes cronistas, as histórias e padecimentos do apóstolo de Cristo em terras brasileiras também chegaram à América espanhola. Relatos de gentios também dão conta dos ensinamentos de Sumé sobre o cultivo de erva-mate e mandioca e falam de sua peregrinação, de Assunção até Potosí. Padre Alonso Ramos ajuntou a história de que um grande homem branco foi perseguido por locais quando em passagem por Cacha, rumo á Cuzco. Vários depoimentos são correlatos tanto a respeito à respeito da descrição do peregrino (barbas, olhos claros) quanto ao seu ministério aos gentios, marcas de bordoadas em rochedos, e a perseguição a que fora vítima (segundo a hagiografia, ele sobrevivera à fogueira.

O curioso é observar que, seguindo a tese de Sergio Buarque em Visão do Paraíso, que essa tal hagiografia de Tomé/Zumé nasce entre os descobridores e missionários portugueses, ela passa a ganhar maiores detalhes e fumos de narrativa fantástica ou maravilhosa densa a partir dos relatos espanhóis, como era de se esperar.  Nicolau Del Techo, por exemplo, fala de uma cruz de jacarandá que fora descoberta perto do Titicaca (onde o santo era chamado de Pay Tumé). A madeira, como se soube depois, não era da região; ora, de tal arte, a explicação mais plausível era a de que Tomé a tivesse construído e conduzido desde o Brasil até o lago peruano, num percurso de “mais de mil e duzentas léguas”, de acordo com Padre Antônio Ruiz, em sua Conquista Espiritual.  Na Igreja de São Tomé (de acordo com Padre Osório) de Meliapor, nas Índias Orientais, havia um madeiro de dimensões idênticas, e que, da mesma forma, não poderia ter sido transportada até lá a não ser de forma milagrosa: a cruz é tão grande que seria impossível conceber que tipo de parelha de animais por quantas léguas seriam necessários para dar conta do transporte.   

A despeito de correlações entre elementos do Sumé mítico brasileiro, do Tumé peruano ou do apóstolo,  anota Sérgio Buarque, o elemento que os une é, justamente, o papel civilizador do mito em todos os casos. Já os missionários entendem Sumé como um avatar que havia anunciado a futura conversão dos gentios, isto é, uma profecia (bem a la “deuses astronautas”) que teria feito o apóstolo aos índios, da futura pregação dos padres da Companhia: “é de supor que essa feição adquirida pelo mito tivesse contribuído poderosamente para dar impulso à obra missionária desenvolvida pelos padres durante toda a sua assistência em terras do Paraguai, e, em particular, do Guairá castelhano”, diz Buarque.

A profecia daria conta de que Tomé teria dito aos antepassados dos gentios que, no futuro, chegariam à suas terras os sucessores de seu ministério. Eles, ao contrário dele, iriam juntar os locais esparsos em povoações grandes e em regime comunitário. Eles trariam cruzes nas mãos e ensinariam a concórdia entre as tribos dispersas. O fato, diz o sociólogo, é que por vários motivos, o mitológico Pae Tumé assume, no Paraguai, por conta dessa profecia, proporção que ele não gozou na narrativa portuguesa: o de profeta da catequese jesuítica. Já os relatos do Tomé peruano, por sua vez, possuem elementos similares à hagiografia do Tomé das Índias Orientais. Porém, diz Sérgio Buarque, é na narrativa “brasileira” que ocorre o “sincretismo” Tumé-Sumé/Tomé. Na conclusão do capítulo, Buarque de Hollanda entende que enquanto a Igreja reconfigurava suas posições com os descobrimentos, a identificação do apóstolo das Índias deveria agora fornecer uma solução “histórica” para a questão. Por outro lado, diz ele, o resgate e escravidão de gentios e africanos, que os lusitanos foram menos “solícitos em combater com razões teológicas” (como Las Casas, diz ele) poderiam ser praticados sem grandes escrúpulos: “uma vez admitida a pregação, teriam que alargar-se possibilidades de “guerra justa” (expressão do bispo de Chiapas) contra alguns povos, menos por serem gentios primitivos mas, sim, apóstatas, ou seja, refratários à fé cristã.

Enfim, o  tempo cuidou de que, de certa forma, as lendas se misturassem. O sincretismo transformou Sumé em São Tomé, assim como, no Oriente, ele era chamado de Chimé. Tanto lá como aqui ou em Assunção, como se viu, foram encontradas pegadas de sandálias impressas na pedra, feitas por um agente mágico. O mesmo fenômeno poderia ser encontrado aqui (em Itajuru, em Cabo Frio, segundo Buarque) quanto em Angcor. “Não seria difícil”, diz ele, “pelo menos a espiritualidade medieval e quinhentista, sua assimilação à lembrança de um São Tomé Apóstolo, que os autores mais reputados pretendiam ter ido levar até as partes da Índia, a luz do evangelho cristão”.

O mito de Sumé se espalharia pelo Nordeste. Com o tempo, o imaginário em torno do conjunto rochoso do Ingá se misturaria livremente a toda a sorte de lendas e histórias, que vão desde contatos remotos com navegadores fenícios até os passos de Sumé Poe uma imemorial américa profunda. Mais além, ufólogos corroboram teorias como a de um Erich Von Dankien, de que extraterrestres fossem responsáveis pelos desenhos rupestres. Nesse sentido, seria de se pensar se Sumé fosse, de fato, um Prometeu intergalático? Pesquisadores da área, como Cláudio Quintans não fala das pegadas e das marcas do bordão de Sumé, mas rastros dos vímanas desses astronautas do passado. Teorias a parte, através da pesquisas arqueológicas, supõe-se que as inscrições do Ingá foram feitas por ameríndios que habitaram o local há pelo menos 8 mil anos, ou seja, isso remontaria à passagem do Neolítico para a Idade dos Metais, ou um estágio imediatamente posterior – ou seja, há muito tempo antes do período da viagem de Colombo.

Lula Côrtes, por exemplo, um dos artífices do disco Paebiru, foi um dos artistas dos anos 1970 que leu Von Dankien. Mesmo que as teses do escritor suíço sejam hoje consideradas pseudo-científicas, elas fizeram a cabeça de muita gente na época, e Côrtes foi um deles. Junto com Zé Ramalho, em 1972, eles foram até o Ingá a convite de Raul Córdula. Maravilhados com a descoberta, eles decidiram criar um disco conceitual que falasse do Ingá Para tanto, empreenderam toda a sorte de pesquisas sobre o assunto, e retornaram várias vezes para o local, a fim de captar o ambiente. Assim, descobriram que o Ingá era um dos ramais dos inúmeros caminhos ancestrais dos ameríndios, e que ligavam o litoral nordestino até o Peru.

Para Lula Côrtes, não era impossível que aquilo fosse, de fato, obra de um Prometeu das galáxias. Tanto que morreu defendendo que as inscrições rupestres teriam sido escritas á raio laser.  Tanto que, na primeira parte do álbum, eles narram a saga de Sumé (a partir de suas próprias concepções a respeito da entidade), o viajante intergalático que “com a barba vermelha, desenhou a pedra do Ingá”, na letra de "Trilha de Sumé".

Disco duplo, Paebiru impressiona tanto pela temática, Sumé e a pedra encantada do Ingá, caminhos ancestrais, deuses astronautas, tudo emoldurado pelo espírito de época, drop out, contracultura, psicodelia temporã, Dankien e Castañeda, mescalito, xamanismo, cogumelos e outros baratos, como o folk rock norte-americano e o udigrudi, enfim, todo um zeitgeist da contracultura dos anos 1970 no Brasil. O álbum, que teve apenas uma edição – cuja prensagem, que já era limitada, devido à destruição do parque industrial da gravadora Rozemblit, em 1976, transformou Paebiru quase numa lenda urbana. Poucos tiveram a oportunidade de ouvi-lo, e o disco ficou praticamente desconhecido do grande público por décadas, até o surgimento da internet. Com o mp3, começaram a aparecer as primeiras cópias piratas de trabalhos alternativos do rock e da MPB dos anos 60 e 70.

O álbum impressiona pelo conceito ambicioso e anti-comercial. Na verdade, poderia-se considerá-lo como uma suíte, cindida nos quatro elementos, fogo, água, ar e terra, onde cada seção possui uma paleta de instrumentos, uma concepção rítmica e tímbres específicos, muito embora, a despeito de respectivamente tematizados, são expostos de forma livre, misturando o autóctone (o canto dos cariris, a viola caipira) e instrumentos 'modernos', como a guitarra e o piano forte, criando esse contraste entre o antigo e o moderno, atualizando a ancestralidade do mito numa visão original, onde Sumé é homem e força da natureza. E tudo gravado em apenas dois canais, e sem overdubs ou truques de mixagem ou pós-produção.

Embora raro, Paebiru foi um  dos grandes clássicos perdidos da história da MPB que foi descoberto por colecionadores de todo mundo sendo reeditado também em vinil pirata. O selo Mr Bongo chegou a fabricar o álbum, até que a Polysom também relançou Peabiru este ano. A crescente demanda por reedições do disco e o progressivo interesse por parte de pesquisadores e audiófilos já falam por si a respeito da excelência de Paebiru e sua importância na história da música brasileira. 


(1) Sérgio Buarque de Holanda, Visão do Paraíso: os motivos edênicos no descobrimento e colonização do Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio, 1959. 

Sunday, December 29, 2019

O arquiteto de Porto Alegre



 
Theo Wiederspahn

Em dezembro de 1942, quando retornava das comemorações de Natal em Canela (onde, desde junho, desempenhava a função de diretor da construção do Cassino desta cidade), o arquiteto alemão, naturalizado brasileiro, Theo Wiederspahn foi preso pelo Departamento de Ordem Política e Social (DOPS) em Porto Alegre. De seu escritório, tanto documentos quanto sua biblioteca foram confiscados, além de desenhos de projetos, livros contábeis e livros técnicos. De nada adiantou o argumento de que era naturalizado. Enquanto ficou confinado por dias, seu escritório em Canela também foi devassado. Desde que o Brasil havia entrado na guerra contra o Eixo, a comunidade germânica sofria com perseguições: Theo foi uma das vítimas desse processo. “durante quase um ano não pude trabalhar”, escreveu o arquiteto em suas memórias.  

Wiederspahn teve um tratamento execrável e desumano, tratado como um ser ordinário, um qualquer. No entanto, ele não era uma pessoa qualquer. Chegado da Alemanha, onde nascera (em Wiesbaden) em 1878, ele chegou à Porto Alegre em 1908. Logo foi contratado pela firma de construções de Rudolf Ahrons (porto-alegrense, embora muitos pesquisadores achassem que fosse também).

Daquele ano até 1915, Theo foi responsável pelos projetos dos mais importantes prédios públicos (e privados) dessa fase de modernização da capital. Entre eles, podemos listar a sede do Banco Pelotense, na Avenida Sete, a delegacia Fiscal, hoje o MARGS; os Correios, hoje o memorial dos Rio Grande do Sul, o Banco Nacional do Comércio (atualmente o Santander Cultural, concluído por Fernando Corona), a primeira sede da Caixa Federal (demolida), o antigo prédio da Faculdade de Medicina, o Edifício Ely (hoje Tumelero), o Hotel Majestic (hoje a Casa de Cultura Mário Quintana) e o complexo da cervejaria Bopp (depois Continental, Brahma e, hoje, o Shopping Total), entre outros projetos que foram levados a canteiro tanto em Porto Alegre quanto no interior do estado. Esse foi o homem preso pela polícia do interventor Cordeiro de Farias.

O autor de sua biografia (1), Gunter Weimer, revelou que a idéia de escrever a trajetória do arquiteto de Wiesbaden surgiu quando ele era catedrático na cadeira de Arquitetura Brasileira, e concluiu que faltavam subsídios para o exercício de uma pesquisa histórica sobre o tema. Ele recordava que, no seu tempo, era comum a repetição de dados de livros de referência que já estavam ficando datados. Ou, no caso da história da arquitetura no Rio Grande, a bibliografia era escassa. Somava-se a isso o desinteresse por parte dos seus professores em relevar a importância do lagado do ecletismo no estado, considerado ou mera cópia ou um estilo que não se relacionava com a realidade brasileira.

Weimer lembra de quando João Vilanova Artigas esteve em Porto Alegre e, entre intrigado e maravilhado, queria saber quem era o autor daqueles prédios que seriam como pórticos, na praça da Alfândega. Para Gunter, esse foi o ponto de partida para a pesquisa em torno daquele que, pelo menos hoje, é considerado o mais importante arquiteto da história da capital, Theo Wiederspahn.

Ao periodicizar sua trajetória no estado, o autor a separa em quatro fases: como funcionário da firma de Ahrons (de 1908 até 1915), como profissional liberal atuante em Porto Alegre (de 1916 até 1930), como arquiteto perante a comunidade evangélica (1930 a 1945) e, por fim, em sua fase ‘utilitarista’, associada à estética do pós-Guerra (1945 a 1952).

Sua primeira fase, anterior à I Guerra, está associada à grande demanda habitacional e um considerável incremento do mercado imobiliário em Porto Alegre. No plano governamental,  o progressivo aumento na arrecadação de impostos iria propiciar um investimento gigantesco em obras suntuosas. Isso explicaria o boom de prédios públicos nessa etapa, como a Delegacia Fiscal e os Correios e Telégrafos, além de encomendas de empresas, como o citados Majestic e a Cervejaria Bopp (cujo primeiro prédio é de 1910 e a segunda com a torre, é de 1914), pode-se acrescentar à lista o Colégio Cruzeiro do Sul, a Telefônica Rio-Grandense (de 1908, demolido) e o Palácio Chaves (na esquina da Ladeira com Andradas, de 1909, demolido) e seu anexo (1911, na Ladeira, preservado embora descaracterizado, em frente ao Bradesco).

Todas essas obras, concebidas sob a ordem eclética, de certa forma representavam um estado de mudanças imposto pela nascente República e a necessidade de modernização do centro de Porto Alegre.

Essa fase de Theo associado à Ahrons foi, para Gunter Weimer, a sua fase mais produtiva e a que mais marcou a história da arquitetura sul-riograndense. Ela se encerra com a I Guerra, quando o chairman da firma passou a integrar  uma lista negra que circulava na cidade e cuja finalidade, aponta Weimer, era excluir italianos e alemães do mercado de trabalho. A empresa encerrou suas atividades em 1915. O autor entende que, sem Ahrons, Wiederspahn não teria sido capaz de realizar obras tão significativas. Afinal, Rudolf era bem relacionado em todas as esferas da sociedade, dos governos à maçonaria.

Com Ahrons, seu primeiro trabalho foi a conclusão do projeto de Otto Menschen para a Faculdade de Direito da UFRGS (na época, “faculdade livre”) e o último foi a de Medicina que, no entanto, não chegou a concluir: o prédio que existe hoje, no campus da Universidade foi concluído de forma diversa à concebida por Theo, que previa uma gigantesca cúpula (aliás, se olharmos ele hoje, na parte posterior, tem-se a impressão de que ele não foi concluído).

Na fase seguinte, sem o aval de Ahrons, Theo é obrigado a concorrer no mesmo nível de outros arquitetos, muitos ou a quase totalidade deles com formação inferior à dele. O problema residia no fato de que a Constituição estadual (castilhista, em seu artigo 64, parágrafo 25) garantia a total liberdade de atividades liberais. Ou seja, era uma espécie de carta branca para toda uma geração de rábulas, em todas as áreas imagináveis e possíveis, inclusive da medicina à advocacia.

Em razão disso, não havia controle por parte do Estado, no sentido de incentivar qualquer cuidado com o exercício profissional da arquitetura, por exemplo. Naqueles tempos, ela era aqui entendida como ocupação e não como profissão, como anota Weimer. Embora existissem muitos com formação específica, muitos podiam exercer a função, munidos apenas com diploma de Desenho Técnico ou topógrafos. A liberdade de exercício profissional provocaria o desregramento da profissão. O maior revés de Theo nessa fase foi perder o projeto do Banco Nacional do Comércio em favor do polonês Stefan Sobczac, que reciclou o próprio desenho de Wiederspahn, sob os auspícios de Hipólito Fabre, fiscal da obra, e que conseguiu reconhecer licença para Stefan como construtor, coisa que ele não era.

Em 1916, Wiederspahn abriu sua própria firma. Embora tenha recebido várias encomendas de particulares, ele foi preterido na esfera governamental. Um exemplo foi a licitação de ampliação do cais do porto, quando outro projeto foi escolhido, mesmo que o de Theo custasse bem menos ao erário. Nas suas memórias, o arquiteto diz que listas negras contra alemães continuavam circulando, mesmo depois da guerra. Nessa época e depois, ele recebe encomendas de entidades germânicas: o Turnerbund (depois Sogipa) e de armazéns ao longo da Voluntários da Pátria (o da cervejaria e maltaria Ritter ainda existe, embora descaracterizado, na esquina com a Ernesto Alves), o Tumelero e o Palacete Chaves Barcelos (1922, na Independência com Fernandes Vieira, já demolido).

Outra clientela importante foi a de bancos privados, que pretendiam construir filiais no interior do Rio Grande do Sul. Dessa época é a sede do Banco Nacional do Comércio em Santa Maria (rua do Acampamento com Salvador Isaía) e em Cruz Alta. Segundo Weimer, nessa fase, a maior demanda de obras é do interior. Ele também aqui inicia uma fase de parceria com a comunidade alemã (Igreja Luterana e Batista) e que se estenderia até o fim de sua vida.

Em 1933, em conseqüência de crises econômicas e o crack da Bolsa, de 1929, Wiederspahn faliu por tabela. Ficou apenas com uma vivenda campestre na Ponta Grossa, que não lhe foi subtraída porque não estava em seu nome.

Somou-se a isso a queda vertiginosa na demanda de construções nessa década e “confrontações ideológicas da época em que estava se armando o cenário da Segunda Guerra Mundial”, como diz Gunter, isso fez com que o arquiteto passasse a operar restritamente em regiões de colonização alemã (como Novo Hamburgo), onde, segundo Weimer, a demanda de obras era grande.

Além disso, a partir de sua parceria com a igreja Evangélica, Theo pôde realizar projetos para outras partes do Rio Grande, como Ijui, Canela e Rio Pardo, entre outras cidades. Contudo, as obras de maior vulto pelas quais ele foi comissionado foram a Estação de Caça e Pesca e a ampliação do Hospital Alemão (Hospital Moinhos de Vento), ambas em Porto Alegre.

O grande obstáculo para Theo Wiederspahn a partir dessa fase (década de 1930) veio, curiosamente, com a regulamentação do ofício de arquiteto. Isso causaria problemas para os estrangeiros que, à época, constituíam quase a totalidade de profissionais em exercício no estado, como observa o autor.

Ao requererem a validação de seus diplomas, a burocracia governamental usava como base o fato de que a escola de Belas Artes ministrava cursos de seis anos enquanto estrangeiros, mesmo com carga horária de curso muito maior, colavam grau em média com apenas três anos. No fim das contas, profissionais como Wiederspahn eram titulados como “arquitetos” ou “construtores” licenciados, mesmo que possuindo também formação de Engenharia Civil ou alhures. Enquanto isso, diz Gunter, profissionais brasileiros que tinha, sinecura recebiam titulação sem qualquer tipo de limitação de trabalho. Se antes qualquer um podia ser profissional, depois qualquer um vindo de fora do Brasil e de formação superior era rebaixado com outro estrangeiro totalmente rábula ou que jamais tivesse pisado num curso superior.

Mais do que isso, anota Weimer, um arquiteto como um Otto Menschen poderia ser substituído por um desenhista da Escola Parobé. Tal expediente de “acobertamento”, diz ele, foi exercido por integrantes do Conselho de Engenharia e Arquitetura da época. “Através desses processos”, diz o autor do livro, “esses profissionais haviam ocupado a posição dos profissionais estrangeiros aos quais não sobravam outras alternativas senão as de trabalhar no interior”.

Ou então aceitar ser contratado como desenhistas em construtoras, coisa que Wiederspahn, que, a Alemanha, teve formação superior também em Filosofia (como requeria às universidades de seu tempo), jamais se submeteria. Ao contrário, ele optou por virar um arquiteto marginal, se eximindo, com todas as forças, de legalizar sua atuação profissional. Ele seguiu ilegalmente até aceitar o encargo de dirigir a construção do cassino de Canela, em junho de 1942.

Nesse caso, não lhe coube alternativa para a atividade senão a de fazer registro no Conselho como “construtor licenciado” e com todas as contingências e limites desta ocupação. Foi quando, seis meses depois, o CREA, que antes fazia vista grossa com relação à fiscalização de obras no interior do estado, foi acossado e trancafiado pela polícia em pleno Natal daquele ano (cabe lembrar que o Brasil havia entrado na Guerra e a caça às bruxas contra a comunidade alemã estava no auge).

Proibido de exercer suas funções por dois anos e meio, Theo sobreviveu fazendo um projeto para a Escola Comercial Alberto Torres, em Lajeado e exercendo a profissão de apicultor, em sua vila, em Ponta Grossa. Só pôde voltar a trabalhar como arquiteto depois do conflito europeu, em agosto de 1945. Tinha ele 67 anos.

Data dessa última fase dezenas de obras realizadas com o auxílio da Comunidade Evangélica pelo interior do Rio Grande do Sul. Em 1946, ele seria comissionado a executar projeto de uma capela para o Leprosário da Colônia Itapuã. 

Esse projeto, realizado de forma remota (um outro arquiteto no local executaria a obra), ao contrário do material que lhe foi subtraído (e provavelmente destruído) em 1942 sobreviveu até hoje e é um dos documentos mais importantes a respeito de Theo Wiederspahn que chegaram até nós, dada a riqueza de detalhes (até o galpão de obras foi desenhado), desde o estudo de perspectiva da igrejinha até o desenho da armação de talas. Fato que,por si só, demonstra, como observa o autor, que ele era alguém que levava os conhecimentos adquiridos na Universidade om “tanto rigor para a vida profissional” como poucos.  

Um fato curioso sobre Theo é que ele só se converteu à confissão Luterana quando da ocasião do seu segundo casamento. Até então, ele era católico. Uma separação, nos estertores do século XIX, tinha fumos de escândalo. Esse casamento foi um dos motivos pelos quais ele se viu forçado a mudar de ares. Pois foi essa conversão que acabou selando seu destino: é de se pensar do que seria de Wiederspahn no Brasil se não fosse esse mecenato concedido pela Igreja local, ainda mais depois de sua falência, no começo dos anos 1930. 

Ele, que foi figura de proa em seu ofício no começo do século passado, foi expurgado pelas entidades que foram teoricamente criadas para lhe dar apoio e lhe garantir segurança profissional. “submetidos a uma sistemática campanha de descrédito realizada através da imprensa e à um insidioso programa de delações realizadas por profissionais nacionais que, em muitos casos, nem competência tinham para avaliar a qualidade dos projetos realizados, esses profissionais foram excluídos do mercado profissional da forma mais humilhante”, diz Weimer. Isso explica o caráter marginal do trabalho posterior de Theo: dos 81 projetos que realizou até sua morte (de 1931 a 1952), apenas oito se destinaram à capital, sendo que um desses, era para sua filha.


(1). Gunter Weimer, Theodor Wiederspahn. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2009. 

Saturday, December 28, 2019

Rolling Stones além do sol




Peguei o O Sol, a Lua e os Rolling Stones, do Rich Cohen (Zahar, 2017) e lembrei de uma outra biografia de rock, lá dos anos 90, chamada Oh, No! Not Another Bob Dylan Book. Como se sabe, toda grande banda/artista de rock ou pop tem dezenas de publicações, seja contando quase sempre as mesmas histórias ou associando o respectivo objeto de estudo com tudo o que é assunto aleatório: Ozzy e o Satanismo, Clapton e o delta blues, Beatles e a Swingin London, Elvis Presley e a influência do gospel, Dylan e a poesia beat, e por aí vai.

Digo que lembrei porque eu resolvi ler o livro pensando em repassar tudo o que eu já sei sobre a banda, e até o que eu não sabia até comprar o Vida, do Keith Richards. Porém, confesso que me enganei. O trabalho do Rich Cohen, que é jornalista da Rolling Stone, vai além de uma mera biografia, e mesmo que a banda de Mick Jagger seja a preferida dele em todos os tempos – fato que mais atrapalha do que ajuda em se tratando de encômios e panegíricos redigidos por fãs da banda. A escritura do texto é, na verdade, um amálgama de biografia, de livro-reportagem e, dada a relação do autor com os músicos como repórter, ele tem umas pitadas muito bem dosadas de gonzo.

Esse elemento gonzo que, se não muito bem administrado, pode colocar tudo a perder num relato, mesmo que seja um relato ligado a um evento histórico.Afinal de contas, nem todo mundo é o Hunter Thompson, que era capaz de soar convincente usando desse expediente abordando assuntos aparentemente irrelevantes (e aqui reside a grande prova de fogo e a grande arte do repórter por excelência, que o diga Gay Talese), como um rali de motos ou um simpósio de agentes do FBI.

De uma forma singular, na urdidura do livro, Cohen mistura a história dos Rolling Stones com a sua própria trajetória, primeiro como ouvinte e colecionador de rock (e, já em idade adulta, como músico), nos anos 1970, até a sua formação como jornalista freelancer e, um pouco mais tarde, como repórter da mitológica Rolling Stone, nos anos 1990. No posto de repórter da revista, ele é escalado para cobrir o começo da então nova turnê da banda, em 1994, em Toronto, uma cidade que tem uma ligação história com os Stones e principalmente com Richards, como se sabe.

Pelo fato de colocar-se e colocar sua experiência na narrativa como uma espécie de emolduramento da escrita, Cohen faz com que o livro funcione em vários planos, que se entrecruzam e andam em paralelas. Ao entrar na intimidade do grupo, entrevistando ora Ronnie, Mick ou Keith ou Charlie, ele se coloca como a mosca na parede que todos nós gostaríamos de ser. Mesmo assim, dissimulando sua paixão pela banda, ele consegue um retrato “sóbrio” do cotidiano dos Stones na estrada e das histórias de uma banda que, de certa forma, superou tantas crises e problemas ao longo de (então) mais de trinta anos de discos, de altos e baixos, e de turnês que pavimentaram a história do rock desde o novo batismo, em 1969, tendo que, ao mesmo tempo, superar a partida de Brian Jones, que volta daqui a pouco.

Ao abordar a história dos Stones, no entanto, Cohen, como fã mas também como jornalista, é capaz de ter um outro olhar que, se é apaixonado no sentido de saber documentar essa história com todos os detalhes e entrevistas possíveis, consegue ser comedido em colocá-los numa balança (daí o seu lado jornalista, muito e,borá de fã) e mostrar todas as contradições, virtudes e defeitos de uma banda que superou todas as previsões em matéria de longevidade, tanto dos Stones quanto do próprio rock como gênero,que por sua vez, reluta em não cair na vala comum do nicho, que levou tantos outros gêneros musicais por aí.

Mesmo como fã, Cohen tem lá as suas opiniões e teses sobre os Stones, e que naturalmente seriam compartilhadas por muitos outros admiradores do quinteto, que é fundado em 1962, em Londres. Uma delas é a de que a grande fase deles é a que vai do lançamento do single “Jumpin’ Jack Flash”, em 1968, até  o hoje incensado (mas na época nem tanto assim) Exile on Main Street, de 1972. Para ele, o começo foi uma preparação para essa fase “áurea” que, por fim, teria descambado num longo período onde eles teriam se acostumado ao Jet set e se deitado nos louros da fama, tornando-se, a partir de então, um pastiche de si mesmos.

Naturalmente que eu particularmente, embora isso possa surpreender o leitor aqui, não corrobore essa tese, é sabido que existe uma considerável parcela de fãs dos Stones que têm esse entendimento. Mas isso para o autor é curioso no sentido de que aquela banda em 1994 que ele assiste ensaiando para o começo da turnê Voodoo Lounge, para ele, e Cohen deixa isso claro no texto, não são mais aqueles Stones dos tempos das produções do Jimmy Miller ou dos dias ensolarados e mediterrâneos da riviera francesa. Ao mesmo tempo, no plano presente, ao abordá-los, Rich tenta entender o que se passa na cabeça dos integrantes dos Stones depois de tanto tempo, de tantos perrengues que quase decretaram o fim do grupo, e o que faz com que eles mantenham de forma férrea essa longevidade. Uma dessas panacéias, diz Richards à ele, é o palco. E é a partir desse olhar que Cohen redescobre os Stones, de como eles superaram todos os problemas, tanto do presente quanto do passado ali.

Ao mesmo tempo, o livro repassa os episódios que foram cruciais tanto para a consolidação dos Stones, seus altos e baixos, e do fato de como esses mesmos momentos fizeram com que eles aprendessem e tirassem valiosas lições. Episódios cruciais que ele anota: o primeiro single em 1963/4 e o surgimento de Andrew Oldham; a gravação de “Satisfaction” em 1965 e o começo da produção autoral; o julgamento por porte de drogas, em 1967; a morte de Brian, dois anos depois; a prisão de Keith, em Toronto; a separação de Richards e Mick, durante as sessões do Dirty Work, em 1985.

No caso do primeiro disco, o autor observa que os Stones nasceram sob a asa de Alexis Korner e que eles eram uma banda que defendia o purismo do blues. Com Andrew, eles aprenderam que era crucial dar um passo a frente, como Dylan e os Beatles. Claro que esse passo poderia ser uma vitória de Pirro: ao largar a cena alternativa, os Stones passaram a fazer outro tipo de música e para outro tipo de público. Numa perspectiva conservadora, eles teriam se vendido (dilema que Eric Clapton também experimentou, embora ele tenha escolhido a alternativa conservadora, no começo).

Nesse processo, Cohen mostra Brian Jones. Músico precoce e idealizador dos Stones como aquela banda, numa perspectiva original, isto é, voltada ao purismo do Delta e Chicago blues, ele viu-se tanto guindado pelas correias do show business quanto deslocado de seu papel de liderança, na medida em que, com “Satisfaction”, Mick e Keith passam a dar as cartas na banda. Jones se indispõe com os fatos à princípio, mas o mundo do café society da Swinging London o atrai como as sereias de Homero.

No entanto, ao invés de diminuir a importância de Brian nesse processo, primeiro pelo fato de que ele foi se tornando incômodo ao não se integrar aos “novos” Stones e principalmente não ser um compositor, aliado à sua progressiva tendência auto-destrutiva depois da prisão em 1967, Jones era um problema mas, quando ele se foi, sua sombra iria pairar, segundo Cohen, por muito tempo (talvez até hoje). Na verdade, esse processo de separação foi difícil para que todos pudessem elaborar e seguir em pouco tampo. Tudo começa com a morte de Brian, a nova turnê americana, que terminou de forma trágica, em Altamont (Cohen talvez seja o autor que melhor descreva aqueles eventos em livro) e o rompimento com Allen Klein, tudo ao mesmo tempo. Na virada dos anos 1970, os Stones tiveram que aprender com todos esses traumas, lidar com os próprios demônios e começar do zero.

Esses fatores, que Rich encadeia de forma muito interessante mostram o fantasmagórico carrossel que representou para a banda naquela virada, o baque e a necessidade de refundação do projeto musical deles em novos moldes, cada vez mais profissionais, enquanto Keith, consciente ou inconsciente, adotaria para si o halo junkie que havia em Brian e se instalou nele, como uma maldição. Todos esses problemas que a maioria da assistência jovem que vai a um concerto do grupo hoje talvez nem suspeite – mas que, de certa forma, ilustram muito bem o papel dos Rolling Stones não só no desenvolvimento do rock como gênero mas também como negócio, desde na produção dos próprios álbuns quanto na elaboração e mapeamento das mega-turnês. 

Da mesma forma como ele dispõe essa revolução dentro de si mesmos, Rich tenta juntar os pontos, querendo saber onde a autenticidade dos Stones enquanto a banda que enfileirava discos clássicos ficou em favor de uma banda-empresa, onde tudo é meticulosamente um mais do mesmo. Porém, da mesma forma que ele vislumbra esse algo que se perdeu, percebe o quanto esse movimento de sobrevivência dos Stones é algo sem precedentes na história da música, e nem ele e muito menos eu ou você seria capaz de explicar isso.

Quanto à abordagem dos temas, Cohen usa a sua própria experiência de fã de rock com a de músico para olhar o fenômeno do gênero a partir dos anos 1950 retransportados para a realidade da juventude britânica numa cena underground que conquista os Estados Unidos com uma música de lá que era segregada pelos seus próprios pares, o autor demonstra ter uma visão sociológica que transcende a mera documentação de fatos históricos ano após anos.

Quando aborda a delicada e polêmica questão de Altamont, ele mostra o outro lado, começa dando voz para os Hell’s Angels, traça uma psicologia do público ianque nos estertores do movimento contracultural, o desastre da produção e seu corolário, um erro que os Stones carregaram pelo resto da carreira e, com certeza, essa meticulosidade empresarial dos Stones nasceu a partir da débâcle do fim da turnê de 1969.

O documentário (Gimmr Shelter) talvez não mostre, mas Altamont, como os processos de 1967 (e o racha em Dirty Work, bastante abordado por Keef no Vida, que também é fonte de Cohen no livro) quase acabaram com os Stones. Ou seja, tais episódios representaram provas tão grandes para a banda que, ao vislumbrarmos essa longevidade do grupo de Mick, Keith, Charlie e Ronnie, vemos que eles sobrevivem nas e pelas contingências da vida. A vida e a trajetória dos Stones talvez seja tão ordinária e exemplar como a vida de qualquer banda. Contudo, o testemunho da forma como eles souberam superar tudo isso e o lado tão demasiadamente humano desses altos e baixos são os altos e baixos de cada um de nós tentando provar porque estamos aqui lutando para viver nesse mundo e talvez seja o que os tenha transformado em sobre humanos.

Thursday, December 26, 2019

Independentes ontem e hoje (e sempre)


Selo da Lira


Terminei de ler o livro História da Música Independente, do Gil Nuno Vaz (coleção Tudo é História, da Brasiliense, 1988). O livro é interessante de se pensar para frente e para trás. Para trás porque, ao contrário do que muitos pensam, a música independente no Brasil não começou exatamente com o álbum Feito em Casa, de Antônio Adolfo, embora ele seja um marco importante nesse estilo em determinado momento da história, no final dos anos 70, quando surge uma cena independente, desde a geração de poetas de mimeógrafo (como bem ilustra Heloisa Buarque de Holanda no livro Impressões de Viagem) até a cena musical que vicejou em torno da Lira Paulistana, objeto principal do estudo de Nuno em sua obra, lançada em 1988. O próprio autor lembra, de maneira bastamente pontual, o caso pioneiro de Cornélio Pires. Em 1929, o empresário e folclorista foi o primeiro a registrar música sertaneja em disco. Como as gravadoras não se interessavam pelo gênero na época, ele bancou a prensagem de “Jorginho do Sertão”, que deu o pontapé na divulgação do estilo, que passa a gozar de grande popularidade a partir de então. 

Também é importante citar casos como o da bossa-novista Elenco, de Aloísio de Oliveira que, mesmo estruturada como gravadora, sem fábrica e com parcos meios de divulgação e distribuição, estava mais próximo do âmbito do mercado independente do que dos grandes selos – ou até dos liliputianos. Mas o caso de Antônio Adolfo é um divisor de águas naquele momento, tanto pelo fato de estar, de certa forma, inserido num contexto de surgimento de uma cena independente quanto pelo fato de que ele, como produto da era dos festivais, decidiu partir para a produção “feita em casa”. 

Partindo de depoimentos de integrantes do Lira, Nuno aponta duas linhas de pensamento dentro do que se convencionou chamar de música independente: uma salvaguarda estética e uma relação de produção econômica específica. Ele explica que, com exceção da Lira, a música independente não nasceu como um movimento “como a bossa nova ou o tropicalismo” (embora esses também não tenham sido concebidos como tal, de certa forma) mas um “movimento” de “produção musical independente”. Afinal de contas, como cita Eduardo Gudin, nem trabalhos como o de Adolfo quanto o do Boca Livre (que foi o primeiro grande sucesso independente) não traziam nada de esteticamente “novo”.

Ou seja, o independente não parte, necessariamente, de uma razão estética. Mais do que isso, fiz Nuno, esse tipo de artista tem uma “natural aspiração aos meios de produção”. E, dentro do esquema independente, o que se vê um outro e particular tipo de “dependência”.  Num primeiro nível, há o produtor autônomo total; em segundo, o artista cooperativado; e, num terceiro, o artista mantém uma relação relativa com o marcado fonográfico alternativo.

Para o autor, contudo, o importante a ser considerado em música independente não é encontrar onde isso começou (se foi com a coleção Discos de Bolso, do Pasquim, ou com Cornélio Pires, com a Elenco ou a Forma) mas quando essa prática passou a ser realizada de forma consciente e a partir de quando deixou de parecer exótico para tornar-se comum. Esse movimento teria se concentrado, a partir dos anos 1970, da necessidade de se furar o bloqueio provocado pelo boom da produção massiva de discos no Brasil, que privilegiava uma determinada ‘agenda’ (determinada pela televisão, além da enxurrada da música internacional que ocorre nesta década, disseminada, em grande parte, nas trilhas de novelas) em detrimento de uma produção nacional.O primeiro movimento nesse sentido foi, para Nuno, o Feito em Casa, de Antônio Adolfo, de 1977, com o selo Artezanal. 

Nesse caminho, apareceriam outros selos autônomos (Nós Lá em Casa, Musiquim e, de certa forma, a Marcus Pereira e Bemol, de Belo Horizonte). O grande momento do independente, no entanto seria com o Boca Livre: seu dico de 1980, por exemplo, vendeu mais de 80 mil cópias, alavancadas pelo sucesso de “Toada”.  

O cooperativismo teria sido um grande passo para a criação de empresas de pequeno porte que buscavam alternativas entre a produção autônoma e o sistema, coordenando interesses de forma a fugir de possíveis imposições por parte dos grandes selos. Nesse sentido, a Lira representaria o corolário dessa demanda, por parte dos independentes. A Lira, contudo, não teria nascido como agente catalisador de artistas que iriam despontar em suas hostes, como Arrigo Barnabé ou Itamar Assumpção, mas como um local de troca de experiências.

“O arranque dado pela Lira Paulistana resultou, assim, de uma circunstância aproveitada em toda a sua potencial oportunidade, através da catalisação de uma efervescência cultural que passou a ser conhecida como a “virada paulista”, diz Gil Nuno. Mais adiante, ao associar-se à gravadora Copacabana, o objetivo da Lira era lançar uma série de discos, sempre divulgados em apresentações. Mesmo assim, o boom foi efêmero. A partir de 1984, a produção da Lira praticamente voltava a seus moldes iniciais. O autor, todavia, não vê nisso sinais de estagnação, embora possa-se acrescentar ao contexto o fato de que, justamente, vê-se o surgimento do BRock (e o crescimento das FM nos grandes centros urbanos, algo que recém se ensaiava quando Antônio Adolfo lançou seu disco) como fenômeno massivo, fato que possa ter provocado certa mudança na ‘agenda’ do gosto do público em geral.   

Nuno salienta a importância da geração “Lira” por dois fatores: o primeiro, que eles, de certa forma, buscavam atualizar as conquistas da Bossa Nova e do Tropicalismo. Arrigo se dizia um seguidor de Tom Jobim e  Luiz Tatit, do Grupo Rumo, não cansou de exaltá-los em seus livros, O Cancionista e O Século da Canção. O segundo, que, já que se nas gerações anteriores, eram maestros e arranjadores como Jobim, Cozella, Medaglia e Duprat quem avalizavam e estimulavam seus artistas, a geração da Lira era, ela mesma, o demiurgo de si mesmo. Enquanto Barnabé propunha amalgamar cultura pop e dodecafonismo em música popular, Tatit éo Rumo são pioneiros em experimentar e estudar a MPB sob a perspectiva da semiótica de Charles Pierce evidenciar o caráter entoativo da canção brasileira.

Muito desses estudos encontraram um caminho na interpretação e na produção musical de artistas como Itamar Assumpção e Tetê Espíndola, Neusa Freitas, Eliete Negreiros e Vânia Bastos. Ambos ganhariam visibilidade com o ressurgimento dos festivais (o Universitário, da TV Cultura e o da Tupi, em 1979  e, mais adiante, o MPB Shell e o Festival dos Festivais, ambos da Globo). Itamar, por sua vez, seria um ponta-de-lança do Lira. Já Eliete estaria associada à produção de Arrigo Barnabé como sua intérprete ideal, preocupada tanto com seus elementos timbrísticos quanto à detalhes técnicos de interpretação, tão caros às formulações complexas do compositor de Clara-Crocodilo.

Nuno também chama a atenção para grupos independentes que fizeram seu caminho através da música instrumental. Pegando o exemplo do Zimbo Trio que, oriundo dos conuntos de bossa nova dos anos 1960, tinha uma tendência ao ecletismo e à universalização do seu som. Essa vertente também surge na mesma época do pioneirismo de Antônio Adolfo e do Lira Paulistana, misturando choro e jazz: Pau-Brasil, Nelson Ayres, Grupo Um,Trio d’Alma, Papavento e o Pé ante Pé, com traços de música oriental, próximo do que posteriormente poderia ser rotulado de “world music”.

Por fim, Gil Nuno demarca pelo menos três momentos importantes desta produção independente: a resistência do público, por conta do seu caráter alternativo; o uso de sua visibilidade com forma a estabelecer homologias entre artistas, agentes culturais e gravadoras alternativas – porém, mais como tendência e estratégia do que como potência suficiente para conquistar posições de dominância efetiva no campo da música; por último, a despeito dos revezes, o ‘movimento’ independente pôde colher frutos no sentido de estabelecer uma imagem singular de “vanguarda” no panorama histórico da MPB.

Outra característica apontada por Vaz é que, de forma capital, a quase totalidade desses artistas independentes tinham/têm formação erudita e ou acadêmica, desde Tatit e Arrigo até os músicos do Premeditando o breque ou eliete Negreiros, que Caito Marcondes. Seria sintomático observar que, dos doze finalistas do I Festival Universitário da TV Cultura teve metade desses candidatos oriundos da USP. Isso demonstra que, se em etapas anteriores, o músico era orientado por um produtor de raiz erudita, aqui os próprios artistas manifestam esse background a partir de sua formação acadêmica/erudita. Restaria saber, anota Nuno, se as propostas apresentadas por eles foram capazes de conciliar com o universo prático da música popular, isto é, se tal produção atingiu esse alvo específico em termos de acessibilidade. O primeiro problema já residiria no fato de que a música independente em seu começo não constituía um movimento mas, sim, numa explosão de várias tendências e propostas.O segundo, e mais curioso, aponta o autor, é o de que essas tendências, em matéria de resultados,  pareciam mais associadas com o destino da produção erudita de vanguarda, cujo distanciamento do público, conclui Gil Vaz, é notório.

No entanto, ao mapear a música independente além da virada paulista e a Lira, o autor abriu espaço para outras tendências em outras praças do país. Pode-se aqui, a título de exemplo, citar o caso (já comentado aqui no blog) do Musipuc e a difusão de uma cena local a partir de uma emissora de rádio de segmento jovem na Porto Alegre dos anos 1970, a Continental. Porém, mesmo que houvesse uma cena independente considerável e uma demanda de publico idem, a mentalidade, de certa forma, ainda era a de encontrar um lugar ao sol no esteio das grandes gravadoras,  em geral de São Paulo e do Rio de Janeiro. Alguns artistas lograram êxito, caso dos Almôndegas e de Fernando Ribeiro; porém, em sua maioria, muita dessa produção não chegou ao disco, e só foi redescoberta décadas depois, a partir de uma bibliografia que buscou documentar esse momento na história da MPG.   

As coisas mudariam com o surgimento do selo Pentagrama/Isaec que, de certa forma, pela primeira vez, deu vazão a uma produção local, lançando álbuns como o coletivo Paralelo 30 (produzido por Juarez Fonseca e retratando uma amostra do que fora essa geração setentista Musipuc-Continental, com nomes como Raul Elwanger, Nelson Coelho de Castro e Bebeto Alves, entre outros). O Pentagrama ainda lançaria outros artistas, como o citado Fernando Ribeiro, Plauto Cruz e Nelson Coelho, que seria pioneiro ao produzir o disco Juntos através de crowdfunding, muito antes dessa expressão virar de uso corrente.

Esses exemplos á demonstrariam o quando uma cidade como Porto Alegre,  tão distante do centro do país, teve uma produção importante porém que historicamente sofreu com barreiras para a sua difusão,mesmo em âmbito local. Ao mesmo tempo, mostra que, por conta dessas mesmas barreiras, artistas locais, como no caso do citado Nelson, ou outros, já na virada dos anos 1980, como Nei Lisboa, Replicantes ou Júlio Reny construíram suas respectivas carreiras de forma independente, com trabalhos de âmbito local, ainda que ambicionando ir além  -  contudo marcando posições no cenário musical. E muitos continuam assim até hoje: a diferença é que, passados mais de três décadas, se antes havia a suprema aspiração de fazer parte do cast de uma grande gravadora, elemento de prestígio e de capital simbólico para todo e qualquer artista, agora isso não é preponderante, ainda mais na medida em que a agenda desses grandes selos, hoje, sustente uma tendência cada vez mais à homogeneização e a simplificação das suas estratégias de produção em função do consumo. 

Importante lembrar de experiências que surgiram nos anos 1990 a partir de selos capitaneados por músicos integrantes de bandas oriundas do BRock, como a Banguela, dos Titãs, e a Rock It, projeto paralelo de Dado Vila Lobos, no mesmo período, que virou uma loja de discos, e lançou várias bandas independentes ao longo da década, como a Comunidade Nin Jitsu e a Ultramen, mas que sucumbiu naturalmente nos anos 2000 como selo, com a massificação da Internet e a pirataria em CD. 

Além do mais, depois do advento e a supracitada popularização da internet, muitas daquelas barreiras foram derrubadas e o que poderíamos chamar de ”cena independente” ou produção alternativa num país continental como o Brasil seja, no presente momento, uma empresa quase impossível de mapear. Ou um livro/tese que discorra, pegando o mote do livro de Gil Nuno (que é de 1988) a respeito da cena independente no Rio Grande do Sul  Mas enfim, esse já é assunto para um outro post.

Tuesday, December 24, 2019

Surf Music: uma parábola


O poente em Venice Beach, Los Angeles


Esses dias eu estava olhando no Youtube o vídeoclipe de “Errol” (Australian Crawl, 1981) e lembrei que por anos eu tive aquela coletânea deles, o Crawl File. A gente sempre teve bandas australianas como essa como referência de surf music, mesmo que seu repertório não tematizasse necessariamente temas integrados ao imaginário do gênero.  Ao mesmo tempo, fiquei pensando que existe um gênero que, quem sabe pela primeira vez na história do que poderíamos chamar de música massiva, está vinculado à um espaço (a praia) e a um período do ano (o verão). Se hoje existem vários tipos de música que possuem essa relação, seria possível dizer que tudo começou com a surf music?

Seria possível creditar o surgimento desse estilo a uma só pessoa? Se sim, ela seria Dick Dale. Inspirado por instrumentistas como Duane Eddy e fazendo uso de efeitos de guitarra, ele conseguiu estabelecer uma imagem e sucesso locais, em salões de baile em Balboa, no sul da Califórnia. Logo, junto com sua banda, os Del-Tones, uma cena seria criada. Outros conjuntos de rock instrumental seguiriam a trilha aberta por Dale, como Eddie and the Showmen e The Bel-Airs.

No entanto, a surf music como gênero seria um fenômeno local por muito tempo, até que os Chantays chegassem às paradas de sucesso nacionais com “Pipeline” e os surfaris com “Wipe Out” (depois popularizada pelos Ventures) em 1963. O sucesso e a visibilidade nacional provocou a eclosão de um exército de outras bandas, muitas delas milhas aquém das praias da Califórnia, como os Rivieras (“California Sun”) e os Thashmen (“Surfin’ Bird”). Importante salientar que, já nessa fase (1961/2), a surf music formava um “braço” australiano, com bandas como Joy Boys, The Atlantics e Denvermen, e que também influenciariam as co-irmãs ianques.

Uma segunda vertente da surf music se daria em dois momentos: o primeiro, com a exploração do gênero pelo cinema, com séries de filmes temáticos (e tão ingênuos quanto descartáveis), produzidos pela International Picriures (AIP), estrelando teen idols como a ex-disney-girl Anette Funiccello e Frankie Avalon; o segundo, com o surgimento dos Beach Boys que, inspirados por grupos de doo wop e de barbershop singers, popularizam a surf music como canção.

A nova onda perpretada pela banda de Brian Wilson e Mike Love divide a crítica dede então: qual é a verdadeira surf music, a instrumental, de Dick Dale, ou a dos Beach Boys, Jean e Dean e outros? Para alguns, a verdadeira surf music é a instrumental, enquanto os Beach Boys acrescentaram outros elementos que seriam estranhos ao gênero, como riffs a la Chuck Berry e outros elementos de raiz afro-americana, além de introduzirem temáticas diversas em suas letras, ao falarem,  por exemplo, de carros, ou hot rods (“409”, “Little Deuce Coupé”). Ao mesmo tempo, Brian tentava se desvincular do rótulo surf à medida em que explorava temas mais reflexivos, em músicas como “In My Room” ou “The Warmith of the Sun”, muito embora capitalizasse bastante a surf music em canções como “Surfin’ Safari” ou “Catch a Wave”.

A grande questão é que, embora bandas como a de Dick Dale tenham dado o pontapé inicial no gênero, foi com os Beach Boys e com o cinema (que também explorava o formato canção em sua trilha sonora) que a surf music virou fenômeno nacional (e internacional), ainda muito antes dos Beatles e da chamada “Invasão Britânica”, a partir de meados de 1964. 

Em termos de periodização, é possível entender esse fenômeno como uma das derradeiras manias musicais (junto com o twist) estadunidenses antes do advento da beatlemania – fenômeno que influenciaria a própria produção dos Beach Boys a partir de então. Outra questão é a que a surf music, enquanto moda, foi fartamente enquadrada e explorada por produtores na Costa Leste; duos como os citados Jean e Dean, além de Rip Chords e os Daytonas eram invariavelmente artistas que dividiam os mesmos A&R, produtores e músicos de estúdio (o Wrecking Crew, de Los Angeles, que também trabalhava para os Beach Boys), o que mostra que, embora tenha nascido de forma espontânea, a surf music logo se tornaria um mero produto da indústria cultural. Aliás, falando nisso, ela mesma iria reorientar a produção e consumo de música depois dos Beatles: com a influência do merseybeat, bandas americanas abraçam o folk rock e, posteriormente a psicodelia; na Califórnia, a cena musical sobe a costa rumo a San Francisco, primeiro com os Beau Brumells e, depois, com grupos como Jefferson Airplane, Buffalo Springfield, Grateful Dead.

Enquanto isso, em 1965, os Del-Tones deixam os temas instrumentais e passam para o rock-canção (como é possível ouvir em seu álbum ao vivo no Ciro’s), os Beach Boys se encapsulam no estúdio, seguindo a moda dos conjuntos da época, focando seu trabalho na elaboração de discos conceituais, como Beach Boys Today! (1965) e Pet Sounds (1966). No entanto, devido a brigas internas, eles perdem o bonde da história quando declinam de participar de human be-ins e festivais como Monterey (1967) que, àquela altura, era a “vanguarda” do rock. O grupo, sem Brian Wilson, iria tentar retornar aos temas praieiros, com “Do it Again”,em 1968. Contudo, a onda da surf music entrou em franca decadência, de tal arte que até mesmo a AIP substitui a temática em favor de filmes de motos (Wild Angels, 1966) ou surfou na onda da psicodelia (The Trip,1967).

O ‘som da Califórnia’ porém subsiste no imaginário, como uma espécie de atualização das origens e evasão da condição humana: ao se desenvolver a partir de um segmento da experiência humana dada no tempo e no espaço, esse conteúdo temático não apenas resiste como um mito, o “mito californiano” quanto se espalhou pelo mundo afora. Por exemplo, quando voltamos ao começo destas conjecturas, expostas neste texto: se essa associação entre música e lugar e época do ano se sustenta, por exemplo, a partir do culto a um gênero musical, poderíamos lançar a hipótese de que tudo teria começado a partir do “California Sound”, reencarnando de ouras formas em outras partes do planeta, seja como uma atualização desses mitos, seja como uma “evasão da condição humana” (como uma idade do ouro, associada à eterna juventude ou uma mera utopia atualizada a cada verão).

Isso explicaria fenômenos temporões como o sucesso do filme American Grafitti em 1973, numa época de perda de referências e de declínio de valores positivos na sociedade norte-americana, principalmente na política, com o caso Watergate. Ou, por exemplo, no eterno retorno ao trabalho dos Beach Boys fora do tempo (como em seu retorno, em 1988, na trilha do filme Cocktail), mas sempre associado ao mito californiano: praia, juventude, etc.

Os Beach Boys no auge do sucesso,  no Ed Sullivan Show, em 1965.


Esse retorno naturalmente não é gratuito, porquanto é um retorno reconfortante a valores positivos, a um mundo utópico onde os dias são curtos e as noites são longas (como na letra de “California Sun”), prenhe de mensagens otimistas e que remetem a um tempo e um lugar imaginários onde pode-se encontrar sempre uma eterna era de inocência, sempre jovem e pleno de otimismo. Nesse sentido, uma banda como os Beach Boys desempenharam um papel na caracterização e no mapeamento desse mito de tal arte que eles sequer pudessem conceber, embora para eles, naquele momento, fosse algo incontornável. 

Em seus primeiros discos, a banda de Brian Wilson escreveu a teogonia do mito californiano, falando de um modo de vida, de uma paisagem e de um estado de espírito que, ao mesmo tempo, pertence a um tempo e a um lugar e, em outro, busca a universalidade. Isso explica tanto a sua permanência quanto a sua difusão e recriação, em diversas reencarnações, em outros tempos e outros lugares.  Mas a despeito de seus predecessores e imitadores, a mitologia da surf music está plasmada nas canções de Brian, como  “Surfer Girl”, “I Get Around”, “All Summer Long”, “Fun, Fun, Fun”, “Surfin’ U.S.A”, “California Girls”, entre outras. 

E esse mito é tão devastadoramente forte que persiste além das mudanças de trajeto, como nas canções de Pet Sounds, por exemplo, uma espécie de digressão dentro da sólida e fértil mitologia criada dos Beach Boys – um mundo idílico de diversão, de rachas de automóvel, demúsica, de dança, de surfe, de sol, de areia e de mar. Mesmo quando eles viraram adultos e partiram para outras praias, aquele mundo já estava estabelecido. 

Ele transcendeu as expectativas comerciais específicas (quanto à sua validade), as restrições geográficas e de gênero de nicho.  Quando vislumbra-se uma outra dentição da surf music, como na Austrália, no final dos anos 1970 e começo da década seguinte, podemos dizer que há ali uma atualização daquele mito, embora dentro de um contexto específico. Porém, essa mitificação música-praia-juventude é tão forte que transcendeu inclusive o tempo daquela cena musical – de mais de dez anos depois, quando ela foi ressignificada nas praias brasileiras, quando Ricardo Chantilly relançou a moda no Australian Connection (também foi responsável pelo lançamento de coletâneas de bandas australianas aqui, como o Electric Soup, dos Hoodoo Gurus), nos estertores da Fluminense FM, no começo dos anos 1990. O surf australiano estourou curiosamente como subgênero no Rio e chegou até o Rio Grande do Sul, quando rádios alternativas passaram a tocar Hoodoo Gurus, Australian Crawl e outras bandas que, por sinal, já haviam encerrado suas atividades há anos, e foram obrigadas a voltar, quando viram a grana dos direitos autorais voltarem a pingar (até o Men ar Work voltou).

Seria possível dizer que o próprio ressurgimento do reggae como “música de praia” (já bastante descontextualizado do ponto-de-vista político, religioso e descolonialista dos anos 1970), de certa forma, acompanhou esse movimento, pelo menos no Brasil – depois da década de 1980 que, por seu turno, parece ter feito de tudo para enterrar o reggae de raiz (no livro A Onda Maldita, Luiz Antônio Mello, o criador da “maldita” Fl uminense, fala que seus ouvintes detestavam música jamaicana com todas as forças), ele voltou com tudo anos depois e, ao que parece, para ficar. E pensar que tudo isso começou há quase 60 anos, no sul da Califórnia. O mito californiano seguiu firme, mesmo em suas variações, quando mudou-se para Los Angeles (com a geração Laurel Canyon) com freaks, hippies e luminares da contracultura em San Francisco, mesmo com seus detratores ou com aqueles que retomaram o sonho (e o pesadelo?) californiano, de Hunter Thompson até os Red Hot Chili Peppers.



Sunday, December 22, 2019

Imagens em Desordem

Soldados paraguaios prisioneiros



No âmbito da História Cultural, a pesquisa em imagens é considerada relativamente recente. Como diz Sandra Pesavento num estudo interessante sobre o tema (1), assim como num discurso, a imagem tem o real como referente, não sendo a sua mímesis. Ela pode, porém, ser reconhecível ou não, no sentido de que pretendem representar o real de maneira explícita, ao invés de fazê-lo de forma simbólica. Ela anota que as imagens sempre foram utilizadas como ilustração de alguma coisa.

Assim, ela explica que a redescoberta da imagem pela História Cultural ocorreu pela associação com a ideia de representação, da mesma forma como ocorreu com relaçãoao texto literário, por exemplo. "As imagens estabelecem uma mediação entre o mundo do espectador e o do produtor', diz a autora, "tendo como referente a realidade". Assim como no caso do discurso, o texto em si é o agente mediador entre o mundo da leitura e o da escrita, diz Pesavento. "Afinal, palavras e imagens são formas de representação do mundo que constituem o imaginário".

Pesavento diz que a imagem tem uma função epistêmica , de dar a conhecer algo, uma função simbólica, de dar acessoa um significado, e uma estética, de produzir sensações e emoções no receptor.  Porém, diz ela, se esse espectador é um historiador, ele deve ter uma pergunta a fazer a esta imagem, e vai tomá-la como representação, isto é, como fonte que se coloca no lugar do passado a que se busca chegar.

Aqui, observa a autora, como registro de algo dado na temporalidade, ela é tanto um testemunho da época quanto testemunho de si: é o momento de sua elaboração, e não o registro temporal de seu conteúdo ou tema que cabe atingir. Diz Pesavento: "ver como uma época se retrata ou como retrata o passado, se for o caso, ou ver, na imagem, quais os valores e os sentimentos que se busca transmitir, quais os sonhos ou fantasias de um tempo dado, ou quais os valores e as expectativas do social com relação aos atores".

A imagem tem, dessa forma, na ótica do historiador, diz ela, um valor documental, de época. Porém, o que importa é ver como os homens se representavam, tanto a si quanto ao mundo. E o que importaria é saber quais valores e ou conceitos que experimentaram e queriam demonstrar, "com o que se atinge a dimensão simbólica da representação". ao falar sobre a expectativa do receptor,

Pesavento salienta também que o receptor de cada época é que faz a imagem. citando E. Gombrich, diz que existe uma espécie de sistema de expectativas no âmbito do social. não sendo o olhar fortuito ou neutro, diz ela, esse receptor supriria o não revelado, atinge ou "distorce o insinuado, chegando mesmo a inventar significados". Para ela, trata-se de um campo que se abre ao historiador, a "pensar na recepção das imagens e seu tempo de produção".

Um trabalho muito interessante que li nessa abordagem é a tese de André Toral, Adiós, xamigo brasileiro: um estudo sobre a iconografia da guerra da Tríplice Aliança com o Paraguai (1864-1870) (2), aprovada pelo Departamento de História. A tese está cindida em duas partes: a primeira, em forma de história em quadrinhos. A segunda, por seu turno, é um estudo a respeito das imagens do conflito, é um incrível inventário da iconografia produzida sobre o conflito. Essa parte,que virou o livro Imagens em desordem, está dividido em fotografia, pintura, desenho e gravuras, e tem por objetivo construir, a partindo dessa rescolta de imagens, a construção de uma reflexão sobre a Guerra.

Total fala a respeito da criação da Academia de Belas Artes no Brasil, no sentido da elaboração de um imaginário pictórico a respeito das origens e formação do país. Ao mesmo tempo, ao se criar uma versão da Guerra do Paraguai, existe a intenção de fazer com que essa produção chegue até um público. Também era uma tentativa de dar sentido ao que estava acontecendo naquele momento histórico.

A Academia trabalha com pintura. Porém, diz ele, quanto mais nós nos aproximamos do século 20, mais é possível vislumbrar a crise da produção pictórica. E é interessante que o conflito ocorre justamente nesse contexto em que a pintura como representação da realidade vai se tornando "obsoleta" pelo fato de não conseguir apreender a chegada do moderno. Nessa questão da reprodução da 'realidade possível', diz ele, os pintores têm "uma péssima notícia com a chegada da fotografia".

Toral diz que essa perspectiva atávica da pintura no sentido de ser descritiva e histórica acontece em cima da guerra, e ele mostra os dois sistemas de produção de imagens, transformação do sistema de produção e do sistema de reflexão: a incapacidade da pintura em oferecer uma imagem democrática daquilo que estava acontecendo.

Os pintores acadêmicos de então conviviam com a estética e os princípios do Neoclassicismo e, num segundo momento, do Romantismo. Para o autor, o neoclassicismo seria como ver o presente "como uma réplica empobrecida de um passado que se perdeu". A demanda do neoclassicismo reside no retorno ao passado,à uma busca imaginária pela Idade do Ouro: Roma, Grécia e Egito (importante ressaltar que o neoclassicismo nasce com a descoberta das ruínas de Herculano e Pompeia, no século 18). O progresso implica aqui, curiosamente, numa "ideia de retorno".

O neoclassicismo surfa na onda do republicanismo e do ideal republicano: todos somos iguais, não existe mais diferenciação racial, fala-se em povo e não raça, existe o sonho de uma humanidade única, de homens que vivem em igualdade, diz Toral. Porém, com a queda de Napoleão e a Restauração, em 1815, o neoclacissimo passa a ser perseguido pelo terror branco (como os republicanos perseguiram o rococó dos tempos de Watteau com a Revolução Francesa), os monarquistas derrubados retornam ao poder com uma sede de vingança. Esse ódio, por sua vez, se volta contra os neoclássicos acadêmicos, que desempenharam forte papel ideológico na era napoleônica, quando Napoleão cai, Jacques-Louis David se auto-exila em Bruxelas, onde morre.

Outros autores identificados com a ordem neoclássica buscam o exílio, como Debret em Portugal, perseguidos pelo novo regime, e acabam parando no Brasil e formam a chamada Missão Francesa. Dessa forma, então, foi assim que o modelo de inspiração estética da Missão em terras brasileiras foi baseada no Neoclássico, justamente o modelo estético napoleônico e que fora posto para correr da Europa no começo do século 19.

André Toral explica que o neoclássico possui uma estética essencialmente 'idealizante', ou seja, recusa-se a ver o presente e estabelece o futuro como um retorno. Já o  Romantismo,a partir do século 19, surge com o objetivo de estabelecer uma ideia de nação e coloca o particular em oposição à ideia de humanidade.A partir daí, ao longo do século, esse movimento é o combustível que provoca, tanto em política quanto em estética, um forte desejo de nacionalidade, que se apóia no elogio dessa visão, a partir da primeira metade do século 19, a busca particular de um povo, de uma nação e de uma história particular.

Porém, ao analisar a produção acadêmica, Toral pega o exemplo de Pedro Américo. Para ele, o Grito do Ipiranga (1888) representa uma imagem idealizada que não tem nada a ver com a história. A declaração, segundo ele,  foi feita em região distante do Ipiranga, onde não havia casas ou junta de bois, a guarda era uma milícia civil e todos estavam montados em mulas, que eram mais apropriadas para viagens. E, por fim, os trajes da guarda do famoso quadro foram criadas por volta de 1840, justamente por Debret. Porém, diz o autor, esta pintura idealizada cumpre o seu papel estético e quando pensamos na Independência, pensamos neste quadro.

Quando se inicia a Guerra do Paraguai, contudo, em 1865, as recomendações de pinturas de estilo romântico-neoclássicas já estavam esgotadas. A respeito de A Primeira Missa (Vítor Meireles, 1860), que versa sobre a  fundação do Brasil, André Toral observa que a cruz, as guardas de Cabral, com os índios como meras testemunhas, mostra que quem faz a história são os brancos. Para ele, esse quadro que retrata a 'fundação' é, na verdade, uma representação de divisão de poderes. Importante ressaltar que Meireles torna-se artista sob os auspícios da Coroa (é o pintor preferido de D. Pedro II) e é comissionado para ser justamente o artista plástico oficial da Corte. Os mais bem sucedidos eram os bolsistas do imperador, que iam estudar no exterior, como o foram Meireles e Pedro Américo. Com o mecenato, observa-se aqui a ligação contígua entre Academia e Estado: ela é patrocinada pelo Imperador, e defende politicamente as ações do governo. Enfim, como nas palavras de Toral,  é uma agência ideológica do estado e que trabalha na produção de imagens.

Para que se possa ter por conta do anacronismo a qual a produção brasileira se encontrava naquele momento, a Academia brasileira organiza-se à partir da Academia Francesa de 1648, por Luís XIV, cujo objetivo era administrar a "glória do rei'. É um sistema, uma ideologia e uma prática eminentemente política. Como nos moldes da Grécia clássica, a academia, como instrumento do estado, se insere na cultura procurando refletir o que seria bom, numa perspectiva pedagógica de estabelecer um sentido moral, e que forneça exemplos pontuais de comportamento e de  educação das pessoas.

Grito do Ipiranga, de Pedro Américo



Toral também revela que essa produção tem como característica um diálogo com a literatura, ilustrando aquilo que está na obra. Até o final do século 19, a boa obra de arte, segundo ele, era aquela que apresentava, sem interferências, o conteúdo que está nos livros. Cita Clement Greenberg, que diz que a arte visual está em posição subserviente á Literatura.

A respeito dessa produção "pedagógica", o Toral diz que quadros de exemplo-modelo, com uma moral, um exemplo de moral, o espectador não vê, ele entende uma pintura, por isso que ela aqui serve como exemplo moral e é essa arte modelar que coloca uma moral e essa moral que serve para a educação das pessoas, a arte educa sobre aquilo que é considerado cultura e cultura é sempre aquilo que é visto como tal por parte das elites dominantes. De acordo com o autor, quem trouxe isso para a pintura do foi Da Vinci, embora Delacroix também pensasse da mesma maneira, mesmo falando em liberdade de imaginação. A imaginação não seria a exposição deliberada dos sentimentos, porque isso não teria, enfim, nenhum sentido moral. A imaginação do artista, a possibilidade da qual ele é investido de molhar os pés na história a fim de  escolher aquelas partes que, para ele, tem um sentido moral e pintá-las, ele busca, numa pintura que lida com sentimentos, temas que sejam moralmente importantes.

Vitor Meireles, por exemplo, cuja formação está cifrada no romantismo, transforma a história e cria um sentido para a história. O Imperador e a Academia, diz Toral, queriam criar esteticamente uma história e uma memória do Brasil. E a partir de que se estabeleça uma história e se construa um sentido do que era 'cultura'. Ou seja, ao analisar algo como a A Primeira Missa, temos que ter em mente o contexto em que esse quadro foi composto, e não simplesmente entende-lo como mero suporte para ilustrar o que foi a primeira missa, em 1500. Como diz Lila Schwarcz, as pinturas de Pedro Américo e de Vítor Meireles devem estar vinculadas ao estudo da história do Brasil no século 19, e não do século 16.

Toral observa que essa busca de uma linguagem culta na arte, na demanda de um sentido já havia em autores como Debret, no primeiro império. Porém, bolsistas brasileiros, que vinham de um meio provinciano, e que iam para a Europa estudar apenas trocavam figurinhas com artistas acadêmicos do velho continente, mas não estabeleciam qualquer contato com os ultra-românticos ou os impressionistas. Por isso, diz o autor, o Brasil acadêmico vai permanecer por muito tempo atrasado com relação aos movimentos modernos que começam a despontar na Europa da segunda metade do século 19 (a primeira exposição impressionista datava de 1874, mais de uma década antes do Grito do Ipiranga). Com o tempo, a Academia brasileira começa a demonstrar uma defasagem muito grande não apenas com as vanguardas européias quanto com as próprias academias do velho mundo. Pinturas como a Batalha dos Guararapes (Meireles) e a da Campo Grande (idem), por exemplo, eram exibida para milhares de pessoas no museu de Arte Imperial no Rio de Janeiro.

Quem pagaria por uma pintura dessas? Quem disporia de espaço para expor um quadro de tamanhas dimensões?  Só a Academia. Essas pinturas só poderiam ser destinadas á visitação pública em museus; então, naturalmente, o estado é o seu cliente, e isso justifica a proporção da arte acadêmica do estado, onde artistas servem ao estado que, por seu turno, administra o que as pessoas devem aprender. Ou seja, a arte, aqui é, antes de tudo,  uma forma de educar e sensibilizar pedagogicamente essas "massas". E o artista criará somente o que lhe for comissionado: isso quer dizer que ele, na verdade, nesse sistema, não tem liberdade de escolher o que o Estado deve comprar.

No Brasil, diz Toral, além disso ainda não existia um mercado de arte constituído. Na Argentina, na época da Guerra, também não. E, segundo ele, Cândido Lopez, o  maior pintor da Argentina e representante da chamada arte naif ; como artista marginal, ele não é acadêmico, mas sua pintura é adquirida pelo Estado. Como soldado e tenente, Lopez foi responsável por registrar cenas de batalhas a partir do lado argentino. No entanto, o conflito com o Paraguai não fora o primeiro a ser registrado em ilustrações: a primeira havia sido a da Secessão, através da litografia.

Quanto à sua origem, Toral explica que a iconografia da Guerra do Paraguai se divide entre a oficial e a independente, sendo essa desde a não-acadêmica à da imprensa. Do lado oficial, todos os países do conflito já estavam em processo de elaboração de uma arte nacional, com exceção da Argentina, cuja consolidação de um estado nacional se deu após o fim do conflito. Porém, no caso de Brasil e Paraguai, a formação de uma representação do que seria o nacional. A produção começa a partir de suas respectivas independências, com uma progressiva intensificação a partir da segunda metade do século 19. O que todos os países, com exceção de Paraguai e Uruguai, são as artes plásticas tributárias do mecenato estatal.

Detalhe da Passagem do Humaitá, de Vítor Meireles


Ao mesmo tempo, todos os governos tinham em comum a necessidade de empregar asregras da arte "culta" e que plasmasse suas respectivas nacionalidades numalinguagem que fosse aceita pelo mundo "civilizado". Do outro lado, encontravem-se artistas como Cândido Lopez e Domingos Teodoro de Ramos, pintores "malditos", não-acadêmicos, e que sobreviviam sem o beneplácito de um mecenas, como o Estado e as forças armadas. Mesmo assim, anota André Toral, Cândido foi, de longe, o maior cronista da Guerra. Aqui estamos aquém da imagem patriótica que os quadros acadêmicos vendiam ao seu público.

Correndo por fora, poderíamos observar o comércio ainda irregular de fotografias em papel. A imprensa, aos poucos, começava a usar esses registros em suas litografias. Porém, ao invés de retratar os grande luminares e heróis das grandes batalhas, travava-se contato com os sem culotesda pátria, os descamisados, os jovens imberbes, os escravos maltrapilhos que eram mandados para a vanguarda como bucha de canhão. A litografia e a fotografiamostrou a verdadeira cara da guerra, mutilada e sofrida. A imagem agora não exaltava nada; apenas mostrava sem retoques uma guerra cruenta que inspirava mais pena do que orgulho. " A guerra deixava de ser uma causa do governo e passava
a ser um problema de todos, fazendo parte da construção de imagens de cidadania", diz Toral.

A Guerra do Paraguai foi uma guerra que sangrava na imprensa. Como diz o autor, as publicações ilustradas (com charges, litografias, xilogravuras e mapas) serviam como termômetros da opinião pública e como forma de explorar ao máximo possível o assunto (menos o Paraguai, cuja imprensa era oficial ou "oficial").

Toral revela que a imprensa da Tríplice Aliança apoiou o conflito até 1866, após a derrota em Curupaity. A partir dali, a apelo é pela fim da guerra, que vai se tornando, aos olhos da opinião pública, cada vez mais impopular. Contudo, com a viravolta perpretada por Caxias, com a série de vitórias em Humaitá (começos de 1868) e a morte de Solano Lopez, dois anos depois, quando os argentinos já haviam se retirado da frente de batalha, acabaram trazendo o patriotismo nas páginas das publicações ilustradas. Nessa fase, a fotografia, ao mostrar a crueza do conflito em seus estertores, com imagens de crianças mortas e fardadas, tal expediente passou a ser usada como arma de propaganda. Da mesma forma, a ampla cobertura da imprensa parece solapar a construção das visões da guerra através da pintura, tanto durante (a Batalha do Riachuelo, de Vítor Meireles, foi composta entre as batalhas) quando após o fim da Guerra do Paraguai. 

Pois a fotografia pôs a nu, com a guerra, todo o anacronismo que se encontrava tanto a pintura acadêmica quanto a prática do mecenato oficial por parte da Corte, sequer tinha aval de um mercado de arte que pudesse sustentá-la. Como diz Toral, "a limitação do apoio de governos exclusivamente à pintura, como se esta fosse a única iconografia aceitável, consistia, no diversificado repertório técnico da época, uma escolha conservadora numa mídia ultrapassada". Já a fotografia, por aqui, virou um esteio no campo jornalístico, diferente do que ocorria na Europa: lá, o comércio de retratos rendia um bom dinheiro. No âmbito do conflito no Prata, diz o autor, ela "mostrou seu seu valor como documento para a reconstituição da guerra nas mais variadas técnicas. Entre 1864 e 1870, apareceram os primeiros trabalhos fotográficos, reunidos em álbuns, que inauguraram a cobertura de guerra e o desenvolvimento da fotografia como linguagem no continente".

Um exemplo é o álbum confeccionado pelo uruguaio Esteban Garcia, comissionado pela empresa Bate & Cia. de Montevidéu. "A Guerra do Paraguai, como assunto e mercadoria", diz Toral, "teve um lugar importante no desenvolvimento da fotografia nos países envolvidos". Para ele, enquanto a iconografia oficial tendiam a virarem peças de museu, as práticas de fotografia viabilizou as técnicas de fotografia e litografia, permitindo a sua continuidade.

Toral observa que o academicismo perdia terreno num país cuja população média urbana buscava formas de cidadania num país de carne e osso, aquém de idealizações pictóricas. E, nessa demanda para entender os problemas nacionais de forma objetiva, as novas formas de reprodução de imagens eram as que mais se "aproximavam deste pretendido realismo convertido em paradigma de modernidade". Esse processo, diz o autor à guisa de conclusão, se intensifica com o advento da República: destituídos de seu caráter oficialesco, existem, a partir desse ponto,  "concepções plurais, diversificadas e muitas vezes contraditórias do que seria a pátria. Ao invés de imagens oficiais e ordenadas, imagens em desordem".


(1) Sandra Pesavento. História e História Cultural: Autêntica, 2003.

(2) a tese foi adaptada em livro: André Toral. Imagens em desordem: a iconografia da Guerra do Paraguai. São Paulo: USP, 2001.