Tuesday, May 12, 2015

Por que sou Pato Macho



Acervo do jornal (o verdadeiro) está agora na Internet



Esse blog está completando uma década. Isso é motivo de comemoração entre seus idealizadores, o Er, o Nildo e este que vos escreve ou mais precisamente, entre este que vos escreve e seus cinco ou seis leitores assíduos (nós oito ou, vá lá, nove), já que ele (o blog) vive dessa divertida relação primitiva entre o remanescente que vos fala, aquele (oi) que escreve e os que leem (vocês seis ou sete).

Às vezes o blog tem picos de visualizações de página - que eu considero inexplicáveis, Mesmo singrando longos hiatos, ele tem encontrado mitos incautos leitores que, através de ferramentas de busca, acabam achando alguma coisa postada por nós. Por exemplo, dia 10, o Google me listou 213 acessos que não foram de posts recentes.

Muitos desses "recordes" são, com efeito, relativos à postagens muito antigas - postagens que, confesso, na maioria das vezes, sequer lembro de ter postado. Sim, há muita coisa que escrevi aqui que não lembro de ter escrito.

Como se vê, nosso blog vai na contramão da imprensa moderna: é produzido para não ter recordes de cliques. Em matéria de entropia e hermetismo, por conseguinte, somos um sucesso.

Contudo, a média de visualizações por texto publicado é ínfima, boiando no limiar dos seis ou sete - que são, a meu ver, os leitores do Pato Macho.

Mas por que Pato Macho, você deve se perguntar. É uma singelíssima (como diria o Augusto dos Anjos) homenagem. Isso talvez já tenha sido dirimido em posts anteriores mas (não me lembro) enfim. Quem procura por "Pato Macho" no Google sabe a resposta quando encontra este blog nos resultados. Porque ele procura por outro pato, que é o original.

O original que, segundo os seus editores, não era o original, viveu em Porto Alegre em 1971. O primitivo, no século XIX, era do tempo da imprensa de tipografia.

Descobrimos o Pato Macho gaúcho na faculdade de Comunicação. Nosso professor de Lingua Portuguesa era o Tatata Pimentel, ou Prof. Roberto Pimentel, de saudosa memória. Ele era um dos donos (junto com o estilista Rui Sommer, precocemente falecido) do mitológico Encouraçado Butikin, local onde a publicação nasceu, há mais de quarenta anos. Também se tornaria colaborador do semanário.

Quando cursávamos jornalismo, nos anos 90, descobrimos o Pato. A coleção do tablete porto-alegrense, que durou apenas quinze edições, era difícil de achar. Existe uma coleção no Museu Hipólito da Costa, mas acessível apenas à quem se dispusesse a ler no local. E a dele.

Com o falecimento do Prof Tatata, parte da biblioteca dele passou a integrar o acervo da PUCRS. De posse do seu acervo, o Núcleo de Pesquisas de Ciências de Computação da Universidade teve a feliz ideia de digitalizar em formato PDF todos os exemplares que foram à lume no distante ano de 1971.

O link é esse: http://eusoufamecos.uni5.net/nupecc/conteudo/acervodigital/patomacho/


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O Pato Macho nasceu em 14 de abril de 1971. Era um projeto capitaneado por Luís Fernando Verissimo, Cói Lopes de Almeida, Cláudio Ferlauto e o Pinheiro Machado, vulgo Anonymus Gourmet. Tinha 23 páginas e era, como vocês já sabem, um semanário. Além deles, havia um extenso time de colaboradores que, na época, ainda eram pouco conhecidos, como Moacyr Scliar, Ruy Carlos Ostermann, Assis Hoffmann, Carlos Nobre. Enfim, muita gente que trabalhava em agências de propaganda da capital e já militava na grande imprensa, mas que não podia falar de tudo lá.

Inspirado no Pasquim, o jornal tentou criar, à sua maneira, aquele mesmo espírito irreverente da publicação carioca. Mas o Pato esbarrou em várias frentes de batalha que hoje pareciam risíveis, como a pressão de uma sociedade provinciana (mais do que é hoje, mas nem tanto) e a censura propriamente dita, que não aceitava que uma publicação com essa linha editorial pudesse existir.

Claro que havia outro problema, que era a capacidade de auto-gerenciamento, já que, de certa forma, seus editores não dependiam do jornal para sobreviver - e esse é o grande problema do jornalismo feito por jornalistas. Exemplos de experiências geniais e efêmeras foram protagonizadas por esse modelo, como o Diário do Sul (e o próprio Pasquim, que sobreviveu talvez pelo fato de ser carioca), por exemplo. Mas, como lembro de ter ouvido o Tatata dizer (talvez tentando explicar não explicando) que se ele não fosse efêmero, ele não teria sido o que ele foi.

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A redação do Pato era improvisada, não tinha um número de colaboradores fixo ou pré-determinado, todos eram amigos e frequentavam os mesmos lugares. Luís Fernando, Ostermann e Carlos Nobre trabalhavam na Folha da Manhã, a doidivana da Companhia Jornalística Caldas Júnior. existe uma produção acadêmica recente e interessante sobre o jornal, mas a grande experiência se dá a partir de agora, quando todos podem ter acesso aos jornais e analisar por si mesmos o que foi aquele curioso semanário.

A primeira coisa que chama a atenção é o projeto gráfico. Ainda hoje, aquele tipo de diagramação propositalmente canhestra, cheia de vazamentos e com várias faces de tipo e ligeiramente assimétrica parece original. A outra são os anúncios, a maioria de estabelecimentos que não existem mais. Mas, curioso observar que é incrível imaginar que o Pato não pudesse sobreviver -- ou ter sobrevivido mesmo a despeito da enorme quantidade de anúncios por edição.

A terceira coisa é a qualidade da produção textual (ainda mais se comparada com hoje), tentativas de fazer grandes reportagens, matérias-paródia, artigos a la Pasquim versando sobre cultura, literatura e cinema, um correio sentimental (Odete de Crècy, pseudônimo do proustiano Tatata) e muito cartum (muita coisa que Nobre e Veríssimo ensaiavam na Folha).

Fora a filosofia do Simandol. Essa era a forma hedonista de suportar o que era o sufocante provincianismo de Porto Alegre dos anos 70, talvez tão sufocante ou mais estanque do que a própria censura por si só. O Simandol era aceitar que a única forma de escapar à esse marasmo cultural da cidade era ir embora daqui. O jeito era encher a cara ou literalmente "se mandar". Essa era o protesto, ou a forma de resistência do jornal. Em algumas edições, eles brincam com uma tal "enciclopédia Simandol" que vale a pena a leitura.

Creio que, nas entrelinhas, isso incomodava o estabilishment do nosso burgo açoriano. Até porque os motivos pelos quais a Censura caiu sobre o Pato não foram de cunho político (até porque, na sua origem, o PM não tinha estritamente a intenção de ser político, falando até, mas de forma um tanto pragmática e bem humorada, de futebol, entrevistando os técnicos Oto Glória, do Grêmio e Daltro Menezes, do Inter). O estopim foi uma crítica de Cói Lopes de Almeida a Aline Faraco, então esposa do Reitor da UFRGS, Eduardo Faraco.

Ela não gostou da citação e reclamou com o marido que, por coincidência, era o cardiologista do Presidente da República, Emílio Médici. Imagine...

Por conta disso, desde a sua terceira edição, o Pato começou a sofrer censura prévia. Isso pode se notar pela esparsa objetividade dos textos a partir dali, muitas vezes querendo dizer alguma coisa que não se sabe o que é. Como diz a bailarina do filme Luzes da Ribalta: como é triste ser engraçado...

Por outras, o próprio Simandol é a chave para criticar aquilo que podia ser criticado. O marasmo, o provincianismo podiam ser o sparring dos editores do semanário. Mas, naturalmente, era inaceitável para a inteligencia porto-alegrense que existisse, entre bares e mesas da cidade um politiburo de jovens (quem sabe...de repente... até comunistas?) pensando juntos. Isso sim era inaceitável.

A censura prévia ao Pato Macho mostra o que era a censura a um jornal alternativo, quando interpretamos aquilo que foi publicado. O que foi publicado saiu porque alguma coisa havia sido proibida. é visível que há, a partir da terceira edição (quando ocorre a efeméride com a mulher do Reitor) que existe uma falta de rumo, que muita coisa parece que foi impressa para tapar buraco. E muitos dos editores falam hoje que a censura era pesada. às vezes, era preciso rechear quase a metade de um boneco inteiro pronto à ir para o prelo, esse recheio composto por traduções de contos do Garcia Marquez (como na edição 09), por exemplo.

A censura, do ponto de vista editorial, era uma questão de vida ou morte. O Pato esgotava sucessivas edições, mas ter uma edição impressa censurada matava os alternativos aos poucos, como foi o caso de outro semanário, o Movimento. Ao mesmo tempo, havia a pressão aos anunciantes. Por um lado, ou eram ameaçados por patrocinarem aquelas publicações; por outro, temiam ser associados à jornais que tinham o estigma de "subversivos" mesmo que não fossem, e esse era o caso do PM.

Lendo, hoje, é incrível imaginar que havia um ódio fecundo, por parte de militares e de boa parte da sociedade gaúcha contra isso. enfim, além da censura ideológica, há a censura "econômica".

O Pato original parece aquela conversa de bêbados num bar (no caso, o Butikin, na Indepê dos anos 70, que era um dos "personagens" do pasquim gaúcho) do tipo: "vamos fazer um jornal?" e que acabou sobrevivendo à ressaca do dia seguinte. E virou um "diário coletivo de grupo", sem preocupação com uma linha editorial definida, não como um jornal popular, ou com essa pretensão (assim, de certa forma, como o Pasquim, que vendia a "sua" verdade).

Todavia, como observa a professora Aline Strelow num interessante trabalho *, reinava o caos administrativo. Ou você edita, ou você produz. Nesse meio tempo, sem um departamento de vendas, o jornal empatava na venda em banca. Quando empata, ele ainda se sustenta; quando você começa a pagar para produzir, aí a publicação começa a fazer água.

Por isso, a censura poderia não ter papel capital nesse processo. No máximo ou no mínimo, de broxar a pauta. Mas, como podemos ver nas quinze edições, ele morreu prenhe de (boa) publicidade.

Resta saber no que redundava a caixinha do departamento comercial. Ao mesmo tempo, nessa linha de "diário de grupo"< a pauta fechava-se em si mesmo, a falta de novidade, a falta de contato com o público, esses fatores também apressaram o desaparecimento do Pato.

Porém, a respeito desse hermetismo editorial do "grupo", é importante estabelecer uma comparação com o Pasquim. Este, por sua vez, não tinha dificuldade em promover ou se auto-promover a vida da ipenemia dos tempos do desbunde carioca do começo dos anos 70.

O ipanemismo era produto de exportação. Por sua vez, a auto-promoção à la pasquim do desbunde porto-alegrense era um coice curto: não era promocional e, ao mesmo tempo, desagradava a elite conservadora da cidade, o seu alvo principal.

Ou, evitando cair no clichê fácil, o Pato Macho estava ligeiramente à frente do seu tempo. Ou, aderindo ao clichê fácil, longe demais das capitais.

O que ficou, se pudermos falar numa teoria do Pato Macho, era a roleta russa do jogo do Simandol. O jornal dispunha de um tabuleiro para recortar, que era como o Jogo da Vida: à medida em que você avançava, tinha a oportunidade de vencer e ficar; ou de perder e ir tentar a sorte em outro lugar. Ou seja, no fim, a derrota não era uma derrota de todo, e vice-versa.

E o que eles queriam, como salienta Aline, é que as coisas mudassem por aqui para que eles pudessem permanecer em Porto Alegre.

Olhando pelo retrovisor da história, essa coleção preservada é um inefável documento do que era a vida noturna da boemia bem vestida do começo dos anos 70 em Porto Alegre, numa época em que o "in" na cidade era a avenida Independência e adjacências, com seus bares, boates (Baiúca, Le Locomotive, Whisky a Go Go) e o Teatro Leopoldina que, aliás, ficava na frente do Butikin. O DJ Claudinho Pereira, decano da discotecagem na cidade, lançou um livro, há alguns anos, contando um pouco da história dessa boemia com fumos de neo-belle epoque. Vale a pena a leitura.


No fim, o grupo do Pato, no jogo do Simandol, venceu e perdeu: perdeu o jogo, com o fim do semanário, mas manteve a estética militando na imprensa e no circuito cultural da cidade a partir de então.

Do status de iniciantes e desconhecidos (cabe lembrar que eles não gozavam da fama de hoje. Se não, o jornal talvez sobrevivesse), mesmo que de maneira híbrida (e com o fim do "primeiro" Encouraçado, em 72, e que separou o clã), eles tornaram-se figuras importantes na cena local e nacional.



* Aline Strelow, Pato Macho, Jornal alternativo de humor. PUCRS, Porto Alegre, 2004, 69 p.










Monday, May 04, 2015

Muito além do Cidadão Welles


Cartaz do filme


O mundo comemora esta semana o centenário de Orson Welles. Eu, como muitos dos que assistiram ao seu clássico de 1941, Cidadão Kane, sempre tive a imagem do diretor norte-americano como uma espécie de "Homem da Renascença" da Sétima Arte, como diria Ruy Castro* . O artista total. No seu tempo, só comparável a Chaplin.

Ao mesmo tempo, pegando a mesma ideia do roteiro do filme, imaginei me colocar na pele do repórter que, depois da noticiada a sua morte, designado a tentar recriar, através de depoimentos, o perfil de quem foi Orson Welles.

Muitos o associavam à imagem de um renascentista. Um biógrafo dele, John Russel Taylor, disparou: "Orson é a sua própria criação, com Deus como produtor associado. A escritora, poetisa, dramaturga e crítica literária Dorothy Parker disse sobre ele: "foi como conhecer Deus sem ter morrido".

A atriz Geraldine Fitzgerald suspirava depois de conhecê-lo: "parecia o Deus de Michelângelo!". Marlene Dietrich, que dispensa apresentações, dizia que olhava para o céu ao ouvir o santo nome de Welles.

Norman Mailer: "a humanidade nunca produziu um homem mais bonito que o jovem Orson welles em Cidadão Kane".

Na verdade, hoje é fácil amá-lo ou odiá-lo. Opiniões pró ou contra elas existem às pencas, escorrem pelas paredes e estantes de bibliotecas. John Simon, da turma do contra, certa feita deu a largada: "Welles passou a vida investindo o seu considerável talento na tarefa de glorificar o seu gênio imaginário".

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O repórter que fosse fazer um perfil sobre Welles teria que montar um quebra-cabeças. Como o incensado gênio precoce de Hollywood se transformou naquele bufão da propaganda dos vinhos Paul Masson (há quem diga que aqueles outtakes da filmagem que aparecem no Youtube são a sua melhor interpretação).

A queda de Welles lembra a queda de outros "gênios" que, depois de darem ao mundo a sua obra-prima, simplesmente pereceram, moral, filosófica ou físicamente: Proust, Kerouac, Capote. A filmografia do diretor norte-americano pós-Kane é uma lista de filmes inconclusos, terminados à sua revelia - além daqueles que nunca saíram do papel.

Nos anos 70, apareceriam teses que buscavam se não derrubar a inexpugnável imagem do renascentista Welles, pelo menos chegar ao paroxismo de emoldurá-lo a um contexto possível, muito além da fama de gênio instantâneo que o notabilizou.

Em sua autobiografia, John Houseman, um dos homens que lançou Orson, explicou que, nos tempos do Federal Theatre Project, tudo começava com uma reunião com o elenco sobre a possível adaptação de um determinado texto, porém, no fim, quem escrevia os roteiros era ele, Houseman. Welles só aparecia no fim, quando os ensaios e a trilha já estava pronta.

Na mesma época, descobriu-se que havia um sujeito por trás da história da Guerra dos Mundos, e esse sujeito era Howard Koch, roteirista do tempo do Mercury Theatre e mais tarde o co-autor do texto de Casablanca.

A maior polêmica, no entanto, foi um ensaio de Pauline Kael na New Yorker, em 1971. Intitulado de "Raising Kane" (mais tarde transformado em livro), ela revela que Welles tem papel capital na direção, mas escondeu o verdadeiro gênio do filme, que é Herman Mankiewicz.

Mankiewicz era um jornalista da costa leste e que foi jovem para Hollywood tentar a sorte como roteirista. Fez sucesso o bastante para tornar-se um dos comensais dos saraus de William Hearst, com quem convivem por dez anos, até um rompimento fatal em 1936.

Fatal porque Mankiewicz era um dissoluto: naquela década, a bebida e o jogo arruinaram sua carreira na Califórnia. Demitido dos grandes estúdios, não conseguia emprego nenhum, até ser contratado por Orson, já sob os auspícios da RKO.

Welles queria fazer um filme sobre a vida de um homem famoso. Mankiewicz conhecia bem Hearst, a ponto de saber detalhes íntimos da vida do clã através de Charles Lederer, sobrinho de Marion Davies, a famosa cortesã do magnata das comunicações.

Hearst era popular na américa (como Roberto Marinho ou Chateaubriand no Brasil) e a forma como ele ergueu seu império eram conhecidas. Contudo, Mankiewicz tinha a chave. Ele era o homem certo, e tinha escrúpulos suficientes para topar a máxima de que "perde-se o amigo mas não a piada".

Basear Kane em Hearst era suicídio, porém a RKO bancou. Hearst odiou o filme e fez de tudo para eliminá-lo. Não tanto pela sua imagem, mas para quem viu o filme, pela interpretação de Dorothy Comingore para Susan Alexander Kane. Para muitos, um retrato sem retoques, embora muito além da paródia, de Marion Davies.

Mais do que isso, o repórter do filme procura decifrar o significado as pretensas derradeiras palavras de Kane ("rosebud"). A palavra, inscrita no trenó do menino Kane e a chave do enigma, era a forma carinhosa pela qual Hearst chamava o clitóris de Marion.

Não apenas a inconfidência da expressão mas a forma obsessiva e possessiva como Kane lida com Susan no filme, tudo aquilo tinha parentesco com a relação Davies-Hearst. E alguém certamente (o roteirista) estava muito bem municiado de informações sobre. E esse alguém só poderia ser Herman Mankiewicz.

Ele foi capaz de "expor" o clitóris de Davies no filme e pagou caro por isso. Hearst o perseguiu até o fim do mundo (não precisou ir tão longe: o homem acabou seus dias não longe dali, dentro de uma garrafa). O mesmo fez com Welles: conseguiu o boicote ao Citzen e quase pôde apoderar-se dos negativos e das cópias.

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A crítica de Pauline Kael a Welles talvez tenha sido um duro golpe não ao talento do diretor, que é observado por ela mas, sim, à imagem moderna do "artista total", o mito do diretor moderno, quase um Wagner. Kael dizia que a ideia de Kane não era original.

O tema já havia sido explorado por Hollywood antes. A diferença é que Mankiewicz soube, com maestria, dourar a pílula. Ninguém poderia ir além de Citzen, principalmente por seus diálogos inesquecíveis. O que deveria ser levado em consideração era o fato de que o autor, desde sempre, era o catalisador, mas sua arte era, em última análise, fruto de um espírito coletivo (nada mais politicamente correto).

Esse é o grande problema: como dissociar nosso herói de sua criação maior, sem dissociar tudo? Parece incrível pensar que tanto a efeméride da Guerra dos Mundos quanto à excelência de uma obra-prima como Citzen Kane consigam sustentar um mito impossível de derrubar. Nem mesmo o próprio diretor que, ao mesmo tempo em que cuidou de auto-promover-se, conseguiu destruir a sua reputação, transformando-se, pela vida afora, numa cópia de si mesmo.

Peter Bogdanovich, diretor e autor de um livro onde ele publica horas de conversações com Orson, parece entender que Welles era um pouco (ou totalmente) Kane. Para ele, a obra de seu entrevistado é uma tentativa de idealizar um passado que "se perdeu antes de ter existido".

A conclusão do diretor de "The Last Picture Show" é a mesma do repórter do filme. Parece que nós já lemos, ouvimos e assistimos à tanta coisa a respeito do biografado que não há por que buscar uma resposta-chave.


* Ruy Castro, Saudades do Século 20, Companhia das Letras, 1994.









Monday, April 27, 2015

O exílio do Conde


Monumento à Marques de Souza, na Matriz



Muita gente insuspeita que passa pela Duque de Caxias, na altura da praça Conde de Porto Alegre não sabe, mas aquela estátua, que rende homenagem ao general Manuel Marques de Souza, foi o primeiro monumento da cidade.

Inaugurada em 1885, ela ficava na Praça da Matriz. Em 1912, o monumento foi transferido para o logradouro a qual ela pertence hoje. De maneira discreta, ela foi substituída para que o antigo local recebesse o fulgurante monumento ao 'patriarca' Júlio de Castilhos.

Interessante notar que essa efeméride fala muito justamente por aquilo que ela deixa de falar. Afinal, não se tratou de uma simples troca. De um lado, havia o líder do ciclo político que então vigorava. De outro lado, havia um dos baluartes militares do movimento de contestação ao movimento farroupilha de 1835. O general Marques, entre outras coisas, entrou para a história por ser o libertador da cidade de Porto Alegre do jugo farrapo, em 1836.

Por detrás daquilo, havia um conflito que envolvia uma história política que ia desde a exaltação do 20 de setembro ao surdo protesto da resistência liberal no Rio Grande do Sul contra o autoritarismo borgista.

Pois em 1912, quando a nova estátua foi colocada na Matriz, a oposição política estava fraturada. Derrotados na Revolução de 93, duas décadas antes, os Federalistas amargavam um ostracismo total: não tinham representantes nas assembleias.

Mesmo com a modificação da Lei eleitoral, em 1913, que permitia a eleição de oposicionistas, a sua respectiva representação era inexpressiva. No período da remoção da desafortunada estátua, era difícil conseguir espaço público para protestar à esse desmando. Mesmo na imprensa, poucos foram os que se aventuraram a comentar o assunto.

Um deles foi Mário Totta, jornalista do Correio do Povo. Numa crônica, ele reclamava da "remoção do conde". Contudo, ele não critica ali a natureza da homenagem à Castilhos, uma estatuária que, segundo Sérgio da Costa Franco, é carregado de alegorias tendentes à exaltação de um líder partidário, de um sistema político e de uma constituição autoritária". Na verdade, Totta media as palavras: o seu "protesto" residia no texto, sobe a forma de oração, feito uma exaltação à memória do Conde de Porto Alegre como que transubstanciado no mármore e pedra lioz.

- Para glorificar o teu desalojamento, o mundo oficial encasacou-se - bramiu Totta. - A Intendência pôs à cabeça o chapéu alto de seda, alinhou-se um colégio militar. Uma escola primária vestiu-se de branco, falou-se de uma tribuna, narrando os feitos do soldado invencido e cantou-se - suprema ironia da sorte - um hino de patriotismo.


Na verdade, mais do que aquelas palavras pudessem expressar, havia um componente simbólico. Imperialista, o Conde representava o passado cujo futuro era o republicanismo castilhista que, a partir dali, entronizava a aventura farroupilha como um movimento proto-republicano. Em pleno ciclo borgista, não havia mais lugar para um oficial que havia derrotado os farrapos. O Conde era a imagem da resistência imperial durante a guerra civil de 1835.

Da mesma forma, e por conta disso mesmo, o sítio de Porto Alegre aos rebeldes nunca foi alvo de grandes estudos. Afinal, toda a historiografia relativa à Revolução Farroupilha é marcada pela devoção à Bento Gonçalves. Com alguma exceção, todos os ensaios se debruçam ao imaginário do 20 de setembro.

A verdade é que, como vemos hoje, o sítio de Porto Alegre foi um fracasso dos farrapos. O responsável pela derrota foi, justamente, o general Marques de Souza que, devido ao seu ato (a reação de 15 de junho de 1836), recebeu o título de Conde, e a capital de "Leal e Valorosa" ao Império, em 1841. Mesmo que com superioridade numérica, terem submetido aos moradores à fome e à toda a sorte de privações (abastecimento de carne, por exemplo) cercassem e criassem escaramuças e tocaias pelos arredores (construíram uma fortificação onde hoje fica a Avenida do Forte, na Zona Norte da cidade), nunca conseguiram retomá-la.

Da mesma forma, para a historiografia, não parecia interessante fazer uma crônica das atrocidades cometidas pelos Farroupilhas em nosso intrépido burgo açoriano. Mas a história é interessantíssima: tanto a reação do Conde quanto à forma que os cidadãos souberam adequar-se à situação adversa - pequenos heróis cuja resistência não ganhou destaque.

Enfim, o Conde era e é, de certa forma, mais do que uma homenagem ao homem, é um símbolo daquela resistência, mesmo que "imperial", é uma resistência do povo da cidade de Porto Alegre. Esse olhar foge ao flanêur que vê o monumento escondido ali, aviltado, subestimado, rechaçado, esquecido, naquela patética trincheira que se transformou a avoenga praça Conde de Porto Alegre - principalmente depois das alterações ocorridas nos últimos anos nas redondezas, o fechamento da Riachuelo, a eliminação da última quadra da Annes Dias e a construção do Viaduto Loureiro da Silva.

Como diz o supracitado Sérgio da Costa Franco:

- Incoerente, a cidade ergueu monumentos e votou homenagens aos sitiadores que a maltrataram, e esqueceu os soldados, marinheiros e paisanos voluntários que garantiram sua integridade em quatro anos de lutas.


Fazendo contraponto à Totta, na ocasião da inauguração do monumento à Júlio de Castilhos, o federalista, Carlos Torelly, mandou publicar um texto com fumos condoreiros, onde critica veementemente a remoção. Achou que a pressa em render homenagem à Castilhos era medo de que outro regime posteriormente mudasse de ideia (como Borges que, desomenageara o Conde): "as estátuas (...) não nascem de um decreto (...) elas nascem do coração do povo, para serem amadas pelo povo". Por fim, diz: "Castilhos, espera! O Conde esperou trinta anos. espera o que dirão aqueles que virão amanhã. Quem sabe se serás transladado também por falta de proporção entre ti e o monumento? O futuro dirá".

Saturday, April 25, 2015

Desomenagens


Cícero


Há duas semanas, entrou em tramitação na Câmara de Vereadores de Porto Alegre um projeto de lei que prevê a extinção e a troca de nome de todas as instituições, equipamentos, logradouros e espaços públicos da Capital que prestem homenagem àqueles que participaram da ditadura militar no Brasil (1964-1985).

Ó, tempos, ó costumes, diria Cícero nas suas verrinas. Lembro de uma curiosa história. À coisa de dez anos atrás, a vereança da cidade de Liverpool queria desomenagear o inglês que é homenageado no ponto de ônibus Penny Lane, no subúrbio da cidade inglesa. Muitos foram contra, na época, alegando que suprimir o nome do lorde inglês, famoso por ser um famoso e truculento traficante de escravos, da história significaria fazer com que justamente não víssemos hoje quem éramos no passado: capazes de lisonjas e panegíricos da pior infâmia.

Ou seja, sim, cada tempo tem o seu modo. Cícero tem razão: nós cometemos gafes históricas pela vida afora, e o que é pior, muitas vezes inscritas em bronze e franqueadas pela pátina do tempo.

Indo do geral para o nosso particular, e voltando ao nosso burgo açoriano: todos conhecem uma artéria do Centro chamada Coronel Genuíno. Ela liga a Floriano Peixoto até a Ponte de Pedra, no sul da península da cidade antiga. Pois bem: Floriano teve seus desmandos durante a Revolta da Armada perdoados pelo esquecimento.

O mesmo certamente ocorre com o Coronel Genuíno (Tenente-Coronel Genuíno Olympio de Sampaio), que virou nome de rua depois de massacrar os Muckers no Vale dos Sinos, episódio terrível e que possui cognato com o que ocorreu nos sertões da Bahia, durante a Guerra de Canudos (1896-1897). Pelos mesmos critérios propostos pelo projeto de lei citado acima, não deveríamos desomenageá-lo também, por exemplo?

Ou devemos relativizar, já que o crime foi "há muito tempo atrás"? Ou manter, para que as futuras gerações (como essa) vejam o tipo infame de homenagem a que éramos capazes de prestar (outros tempos, outros costumes)?

Mutatis mutandis, se a palavra de ordem na Câmara de Vereadores é desomenagear em critérios de "crimes da pátria", teríamos mais trabalho em renomear instituições, equipamentos, logradouros e espaços públicos da Capital do que batizar às centenas de ruas de Porto Alegre que, inexplicavelmente, ainda são imberbes servidões pagãs...

Falando em desomenagens e na história do nosso burgo: em 1870 a intendência de Porto Alegre mudou o nome da rua da Bragança para General Silva Tavares. O engraçado é que o preclaríssimo oficial recebeu a homenagem em vida e, em 1893 (quando da guerra Civil entre Maragatos e Pica-Paus, conhecida como a revolta da "degola", por ser a prática comum durante a conflagração), se bandeou para o lado dos revoltosos maragatos na nossa fratricida refrega.

E na época, o intendente da cidade, que era (Intendente Azevedo, que virou nome de rua também) chimango (legalista), vetou e desomenageou o Gen. Silva Tavares para, em seguida, homenagear o supracitado Floriano Peixoto, aquele mesmo, da famosa Revolta da Armada.

Outro caso clássico é o da Cabo Rocha, antiga Sans Souci (por causa de um sítio que tinha esse nome, no começo da rua, no bairro Santana) que foi desomenageada por causa do seu passado ligado ao baixo meretrício. Problema é que a homenagem era mais do que justa, já que a região é um sítio histórico, onde ele foi o comandante da primeira vitória dos farroupilhas. Nos anos 60, mudaram o nome para Freitas e Castro.

Enfim, assunto é complexo e delicado, mas pensei: por que apenas "àqueles" da Revolução de 1964? Ou seja, isso abriria precedente para que a Câmara recebesse, nos próximos anos, pedidos de projetos relativos à desomenagens similares. Afinal de contas, e os outros "crimes da nacionalidade", como diria Euclides da Cunha? Foram perdoados pela falta de memória de um povo que não conhece o seu passado?

Wednesday, April 22, 2015

Orfeu no Refeitório



Encontrei uma doppelganger de uma antiga amiga no restaurante universitário na hora do almoço. Eu sentei e ela vinha do bufê. Olhei, a mesma altura, óculos, se sentou numa mesa mais à frente (não me viu e nem tinha como, eu estava no fundo, atrás de uma janela com sol nas costas). Olhei, era ela, mas não podia ser ela.

Sentou de costas para mim umas três ou quatro mesas adiante. Eu já tinha certeza que era ela. Mas fiquei pensando que não, porque ela não podia ter acesso ao refeitório porque não era vinculada. Mas eu não poderia ter certeza, porque não falo ou vejo ou sei nada dela há uns dois anos.

Pensei que não podia ser ela porque ela não podia estar ali, mas pensei que ela pode ter ido para ali de alguma forma nesse meio tempo, e afinal de contas, tudo pode acontecer nesse espaço de tempo.

Não quis me aproximar porque não nos damos mais e só iria piorar, mas ao mesmo tempo me censurei, achando tudo isso um truque da minha imaginação. Mas conservava os olhos nela, achando tudo muito parecido, todavia meu sexto sentido me dizia que era ela, sim.

Eu não conseguia resolver esse conflito, era ela e não era ela. Não podia ser ela. Pronto. Não era ela. Uma hora, uma outra moça foi falar com ela, achei que fosse sentar com ela (não lembro se sentou) contudo depois se foi, e ela ficou só de novo comendo.

Reparei que ela tinha um copo, e estava tomando água e sabia que a verdadeira não bebia durante as refeições. Isso fez com que eu começasse a pensar que eu estava ficando é louco, mesmo, um tarado com pensamentos obsessivos, e o meu lado que dizia que não era começou a ganhar terreno.

Não era ela, não era ela, e eu fazia o meu repasto com garfadas triunfais de arroz e feijão. Mas o cabelo, os brincos, a altura, eram dela demais, achava muito bizarro, porém aquele copo d'água não fazia o menor sentido. A não ser que ela (a verdadeira ou a doppelganger) de repente, por algum motivo que eu desconheça, resolveu, naquele dia, beber durante a refeição.

Terminei de almoçar e ela estava (olhei de relance, por alto) algo como tentando terminar o melão da sobremesa. Fiquei lá no fundo, com a bandeja vazia, olhando.

Ela demorava mais para devorar o melão do que o tempo que levou para almoçar. E eu com um ponto de exclamação no meio da cabeça e passando mal de ter comido daquele jeito, já sem fome desde a primeira ou segunda garfada.

Aqueles minutos levaram uma hora. De repente, ela se levantou, e foi levar a bandeja.

Eu fui atrás, bem devagar, mas já de volta ao planeta Terra a achando aquilo tudo muito absurdo, contido e tentando entender por que eu tinha tanta certeza que era ela (a partir dali, não vi com clareza mais o rosto), e estava suspenso, pensando que, se realmente fosse ela, aquele reencontro não poderia ser, não deveria acontecer. Como se a inexpugnável mão do deus Marte impedisse Diomedes de seguir além do fado.

Vendo-a de costas, parecia que o corpo não era o mesmo, mas a altura sim. E assim eu a segui (seguir?) até o lugar de deixar as bandejas. Ela deixou, virou-se e não olhou para trás. Eu estava pensando: "não é ela, se a interpelasse e não fosse, iria parecer um galanteio barato ("te conheço de algum lugar?"). Ou ser ela mesmo e, não, nós não poderíamos rever-nos.

Ela se dirigiu ao bebedouro e eu, com aquela lógica do "era não era, não é" já estava achando por certo não interpelar ela, quem quer que fosse.

Deixei a minha bandeja, estaquei, vi ela sumir de costas através da gigantesca fila do bufê e segui até as escadas vazias. sem olhar para trás. Até que, num ponto distante do povaréu, logrei esperar por um minuto - tempo que qualquer um levaria para sair do refeitório depois de largar a bandeja. Olhei para trás. Ela não passou.

Desci as escadas. Olhei mais uma vez para trás, e não era ela, mas ela não vinha. Esperei mais um pouco na calçada, ela não desceu. Àquela altura, eu já estava pensando em esquecer meu orgulho tolo e falar com ela, fosse quem fosse. Mas ela não voltou mais. Os deuses quiseram assim. Então eu fui embora.

Thursday, April 09, 2015

A Variant Verde


Grenal em 1969


Segundo a Wikipedia brasileira, a "mala preta" é o nome dado ao "incentivo em dinheiro fornecido a uma equipe desportiva para perder uma partida contra uma segunda equipe, de modo que o resultado da partida beneficie uma terceira equipe (geralmente a responsável pelo pagamento)".

Não sei qual é a origem da expressão. Mas ela me recorda de uma cena do começo do filme "Moscou Contra 007", onde o armeiro da inteligência britãnica oferece ao agente secreto uma maleta com um truque numa forma apócrifa de abri-la que salvaria o oficial inglês no fim da fita. Aqui, antes da expressão mala preta, havia a "gaveta". O atleta recebia um suborno para "ir para a gaveta", o que dava no mesmo.

A questão é que, a despeito do folclore, essa história de subornar jogador era moeda comum no futebol gaúcho lá pelos anos 50 e 60. Histórias de times inteiros engavetados. Mas, como se sabe, muitas suspeitas, muitos nomes, mas nenhuma comprovação.

alguns casos foram parar na imprensa. Uma foi em 56. O presidente do Internacional, Manoel Tavares da Silva, foi acusado de comprar o juiz Hans Lutzkat pelo próprio, que o denunciou ao Ib Kern, do A Hora. A proposta, de facilitar as derrotas gremistas, tinha como pano de fundo tentativa de Soares de consolidar a gestão colorada no futebol, a fim de melar a oposição de Ítalo Michelin, com vistas à vencer as eleições do clube.

No fim, Hans entregou o suborno ao repórter do A Hora. O presidente do Inter negou tudo. No fim, o Grêmio foi campeão gaúcho daquele ano e Michelin seria eleito presidente alvirrubro.

Problemas como esse obrigavam a Federação gaúcha a recrutar árbitros de fora. Um juiz paulista, um certo Mr. Davis, foi convidado para apitar Renner e Grêmio. Na hora aprazada, desistiu. O boato: ele teria sido subornado a desistir. Outro repórter de A Hora, Roberto Rohnelt, foi à São Paulo e confirmou a gaveta: porém, a grana tinha partido do próprio Grêmio.

Rohnelt voltou com a história toda. Descobriu que o suborno não vinha de um reles comensal, mas do presidente do clube.

Ao saber do "furo", o então prócer gremista, Fernando Kroeff irrompeu na redação do A Hora, na esquina da São Pedro com Roosvelt, para impedir que o editor do jornal, Aníbal Di Prímo Beck, impedisse a publicação da matéria.

Perplexos, repórter e plantonistas assistiram, de longe, a discussão entre Kroeff e Beck. Derpois que aquele deixou a redação, o editor do matutino disparou:

- Vocês vão dar a matéria, mas sem tocar no nome do presidente.

Ao que pareceu à ele, durante a edição, o furo foi parar no Olímpico. Alguém entregou Rohnelt a tempo - se não, A Hora teria dado Kroeff na primeira página. durante a coleta de dados, em são Paulo, ele soube da curiosa vilegiatura do prócer tricolor na capital paulista na semana anterior através de Sarará, ex-jogador gremista. No fim, nunca se soube quem foi o delator da redação do jornal: Kroeff morreu em 1997 sem contar a ninguém.


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Me lembrei disso esses dias. Alguém me relembrou de uma história curiosa, envolvendo o ex-lateral-direito do Inter de Porto Alegre, Édison Madureira. Vindo do Metropol, seu empresário era uma espécie de rábula de porta de vestiário (que inclusive o prejudicaria, tempos depois, envolvendo suspeitas de mala preta, mas isso é outra história).

Na véspera de um Grenal de 1970, apareceram na concentração colorada dois homens (um de mala preta) e foram ter com Daltro Menezes, então o treinador. eles se identificaram como agentes do antigo SNI e, declarando-se colorados, afirmavam (sem prova nenhuma, porém) que o zagueiro-central Valmir Louruz e Madureira, estavam engavetados. Daltro foi pressionado a sacá-los, mas não o fez.

Também não quis tirar os jogadores do Inter dias depois, quando os dois agentes reapareceram no Beira-Rio afirmando que Madureira iria ganhar um carro e Louruz, uma grande soma de dinheiro. Continuou reticente em manter os dois jogadores, quando a misteriosa dupla voltou com detalhes: Édison iria ganhar uma Variant verde.

Daltro não contou nada à eles. Não acreditava naquela embaixada do SNI e achava que era potoca. Durante a semana, porém, Madureira pediu para "passar em casa". Reapareceu na concentração com uma VW 1600 sedan, ou melhor, uma Variant verde, novinha em folha.

Volmir e Édison foram escalados. Agora a pressão era contra o próprio Daltro, que poderia, aos olhos dos cartolas, estar na mesma gaveta dos outros dois. a pressão não durou muito: até o próprio Madureira providenciar o segundo gol do Inter e a vitória alvirrubra. Depois, no vestiário, Menezes quis saber de onde havia aparecido aquela Variant verde:

- Ué, daquela revenda da Azenha, obra — riu Madureira.

Saturday, March 07, 2015

Jornalismo Furão


Pica-pau e seu amigo predador


Foi destaque essa semana (dia 3): A inusitada imagem de um furão agarrado a um pica-pau em pleno voo se tornou "viral" na internet e ganhou inúmeras montagens - chamadas de "meme".

Além dessa, tomou conta da Internet (dia 5) o estado de saúde de Jack Nicholson. De acordo com a notícia, o ator americano, de 77 anos, estaria em “estado avançado” do Mal de Alzheimer e sequer lembrava de seu próprio nome.

Pouco mais de 24 horas depois, soubemos que a notícia sobre Nicholson, cuja fonte era a revista Star, era falsa. Ou melhor, meio verdadeira. A grande repercussão oriunda do episódio foi que, a partir dessa fonte, centenas de portais de informação passaram a endossar a matéria da Star.

Em outras palavas, foi uma enorme e insubmersível "barriga" (jargão jornalistico) pago por inúmeros sites que, por tabela, talvez observando como a (má) notícia (boa notícia é a má notícia, já dizia o meu professor de Introdução do Jornalismo) prometia puxar milhares de cliques de internautas.

Ninguém fez o básico, que seria checar a informação. Em parte talvez porque como se todo mundo estava apregoando isso, pela lógica, só podia ser verdade. Segundo, e talvez justamente por isso, como a tendência hoje é demitir semanalmente jornalistas de carreira em favor de estagiários, que já são a maior parte da mão-de-obra atuante no mercado de trabalho jornalístico, as empresas não tem interesse em ter qualquer tipo de comprometimento com qualidade de informação. A culpa, é lógico, não é dos estagiários.

Ou, pior, no fim, vai ser sempre deles. Hoje é fácil entender por que existem tantos deslizes como a barriga do Jack Nicholson, erros de revisão, digitação e banalização da pauta dos portais na Internet.

Quando algum dono de jornal decidiu que, com o advento da convergência digital, era preciso "reinventar-se", ele optou por demitir profisisonais e terceirizar o gilete-press.

A outra epifania do dono do jornal foi franquear à estudantes a mimetização do jornalismo "Buzzfeed" tão caro à linguagem de redes sociais como o Facebook. Essa "nova cara da notícia tornou-se mais importante do que o conteúdo ou a observação das normas do ofício do redator.

Pior do que um jornal publicar uma barriga é perceber o efeito dominó: o Alzheimer terminal de Jack Nicholson era "bom" demais para não ser verdade. Se não for, azar: qualquer coisa, a culpa foi do Star. A gente só repercutiu.

Mas o affair Jack Nicholson-Star é um episódio.

Se o meu caro leitor jogar no Google "grávida diz site", vai encontrar, na primeira página, uma pá de notícias de portal do tipo: "Mulher de George Clooney pode estar grávida, diz site ...", "Apresentadora Fernanda Gentil está grávida, diz site ...", "Mulher diz estar grávida do Príncipe Harry, diz site ...", "Jessica Biel está grávida do primeiro filho, diz site ...", "Jessica Biel está grávida do primeiro filho, diz site ...", "Jessica Biel está grávida de Justin Timberlake, diz site ...", "Cantora Christina Aguilera está grávida, diz site - Notícias ...", "Zoe Saldana está grávida do primeiro filho, diz site ...", "Miley Cirus está grávida e pode ser internada em clínica de reabilitação, diz site", "Mila Kunis está grávida de Ashton Kutcher, diz site".

Enfim, não vou listar mais. Porém, como se pode ver, a fonte é sempre uma revista, um site ou a imprensa um determinado país. É claro que uma triagem quanto à veracidade de tudo o que é divulgado por agências em geral corre contra o dinamismo da publicação de notícias numa realidade tão dinâmica como a da Internet.

Contudo, o furo cegamente pelo furo, terceirizando a fonte em favor do imediatiismo da informação (e atropelando a checagem da informação) é uma vitória pírrica: uma vitória obtida a um preço muito alto, cujo maior dano é a perda da credibilidade.

O caso do Alzheimer do Jack Nicholson é exemplar. Como no episódio do nosso amigo furão da foto acima, toda a imprensa, não só daqui no Brasil como de quase todo o planeta, resolveu voar de carona com o pica-pau. Como aconteceu com o malfadado predador, o passeio foi breve e não acabou bem. .
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Tuesday, March 03, 2015

Surfista Calhorda



Não sou um grande fã do Cidadão Quem (como deveria), mas confesso que fico sempre tocado quando ouço a música "Pinhal".

Acho que quase todo o verão da minha adolescência foi na praia. Na época, não sei por que, a gente gozava de dois meses inteirinhos de férias. Um deles - dependendo das férias de nossos pais, eu ficava em Pinhal, ou entre Pinhal e Tramandaí.

Na verdade, a pré-adolescência em Pinhal e a pós em Tramandaí. De Pinhal, lembro daquela coqueluche engraçada de roupas características de grife de surf, como a Lightining Bolt e a PCH. Na verdade, lá por 1984, surgiu em Porto Alegre uma moda de camisetas de surf. Todo mundo usava estampas Pychulyn, OP, e por aí vai. Nas festas da SAPP, o que mais dava era camisa de surf e bermudinha de veludo.

Até a música "Surfista Calhorda", que eu abominava na época, era uma gozação em cima do pessoal que usava aquele tipo de indumentária. Na verdade, o calhorda era eu, um antipático bostinha de onze anos que usava OP e sequer tinha uma planonda. Ou, melhor, sempre pegava jacaré com aqueles tocos de planonda - que não serviam prá muita coisa, já que era mais produtivo pegar ondinhas sem elas.

Nosso sonho de pré-adolescente era, com efeito, uma planonda de isopor inteira (e com cordinha), daquelas que vendiam em casas de artesanato. Mas nossos pais nunca tinham dinheiro para isso. Prancha de verdade, então, nem pensar. Havia o expediente do body boarding, mas nós éramos relutantes já que era consenso que tratava-se de "prancha de meninas".

Eu nunca sabia quem era o surfista calhorda. Já era difícil vida de surfista num balneário soturno, perdido (e inóspito naqueles verões) como Pinhal e seu folclórico osso da baleia (já então bastante carcomido. A última vez que o vi nem parecia um osso, parecia mais um enorme galho achatado), tão longe das capitais (ia citar Engenheiros, mas melhor não) do surf. Eu, particularmente, nem era do surf: parecia coisa de gurizada mais velha do que eu naquele tempo.

Mesmo assim, achava que só ter uma prancha prá ficar prá lá e prá cá na areia já era lucro. A música dos Replicantes era para eles. Mas quem embarcou na moda de gaiato fomos nós, os moleques de doze anos. A gente invejava a galera do surf - mesmo os calhordas, os que não entravam na água. Mas a banca de grande surfista era uma canastrice inefável, só para querer sentir-se superior diante dos demais mortais, ainda mais sendo surfista de verdade de Cidreira prá baixo (nós, de Pinhal, tínhamos, por nossa vez, um saudável preconceito com o pessoal de Magistério prá baixo, mas aí é outra história).

Pinhal era muito pequena para minha ambição. Meu sonho era mais para cima. Minha família alugava uma casa por um mês (ou quase isso) e o remédio era radicar-se em Pinhal, com meu walkman e um estoque de Disney Especial e Almanaque Disney (que a gente trocava nas bancas da praia). Hoje é impensável cogitar que uma família ficasse um mês no litoral.

O problema foi o advento do microondas. Depois disso, não havia mamãe que suportasse ficar mais de uma semana longe de um. Enfim, a tecnologia acabou tornando aquela vida selvagem na praia insuportável: sem videocassete (ainda, pessoal tinha medo de levar por causa da maresia, etc), um canal de tevê, livros chatos do Círculo do Livro (que minha avó materna assinava) para ler, semanas inteiras de chuva e sapos e bochechas sujas de rolha queimada de tanto jogar dorminhoco. Mas muita praia. E rádio-escuta amadorística de madrugada.

Hoje, por exemplo, é impensável ficar 30 dias jogando canastra e dorminhoco toda as noites (ou indo em algum bingo de sociedade, já que, naquelas priscas eras, não era uma prática interdita).

Os verões em Tramandaí eram melhores. Nós já eramos maiores. Dava para descolar um carro e se mandar para o centro, paquerar meninas e comer sorvete (naquela época, a gente só comia sorvete, mesmo). Além do mais, praia com cinema e centro comercial já era alguma coisa. Em Pinhal, o auge da nossa vida social era a SAPP e, mesmo assim, só mesmo no Carnaval.

Tramandaí naqueles anos 80 era divertidíssima. Capital do mundo, vibrava em seu cosmopolitismo pré-Mercosul. Só dava argentino. Em geral, tudo classe média baixa, com seus Ford Falcon sedan (em geral modelos antiquíssimos, e caindo aos pedaços) por toda a parte. Argentinos e uruguaios.
E já tinha boates (Pinhal só tinha o bingo).

A noite era melhor. Imbé estava começando: acho que só deslanchou quando apareceu o Sherwood, lá por 93. Antes, porém, o agito no Litoral Norte era uma casa em Atlântida, chamada Stereo Moto (que era do Magro Miguel). Ela existia desde o final dos 70, atingiu o auge no final dos anos 80. Naquele tempo, a gente já tinha autonomia para apreciar a vida noturna em Tramandaí mas, Atlântida, não. Era o nosso limite intransponível. Aquela era a boemia bem vestida do verão.

Naquele final dos anos 80, quem comandava o Stereo era o próprio Mago Miguel. Ele tinha arrendado um programa na Litoral FM (hoje a Jovem Pan). A Litoral era da minha fase Tramandaí. A gente era refém da emissora. Naquele tempo, havia apenas uma FM na praia, e ela só tocava Eurodance. Parece incrível, me lembro quando a gente ia prá Tramandaí e só pegava essa rádio. E era 24 horas de Eurodance. Remix musiquinha do Top Gear...
contudo
A gente passeava de carro, ia na sorveteria, em toda a parte era isso no Verão, rádio na Litoral FM, uma rádio só tocando isso. Lembro que um dia, desenterraram surf music oitocentista (que passou batido por aqui na época), anos depois. Hoje finalmente enterraram esse europop groselha e só toca reggae e arredores.

É impossível, não dá prá imaginar ou pensar (ou aceitar) que pista de dança, música de quiosque e toda e qualquer trilha no litoral gaúcho fosse a grande baba radiofônica eram os discos da PWE, Eurobeat. Parecia jabá. Não dava prá acreditar (hoje dá uma saudadezinha gulity pleasure). Era só o que tocava aqui, Sandra Cretu, Kylie Minogue, Jason Donovan, Bananarama e o Rick Astley, essa era a trilha daquele final dos 80, tudo franqueado pela Litoral FM e a gloriosa Stereo Moto.

A nossa saída era trazer de Porto Alegre fitinhas cassete com rock, qualquer coisa, de Dire Straits a Paralamas. Até que alguém apareceu com fitas dos Waillers. Foi bem na época que o PWE sumiu, ao mesmo tempo, relançaram o evangélico Legend em CD - o reggae passou a ser a música do verão (para sempre) e rádios alternativas da grande Porto Alegre, como a saudosa Felusp, passaram a tocar, do nada, rock australiano como Hoodoo Gurus e coisas do tipo.

De repente, bandas que tinham acabado há anos, como o Men at Work e Australian eram a nova onda: tudo a ver. Eu demorei a aderir, mas entrei de cabeça. Não consigo dissociar aqueles CDs (daí apareceram os portáteis digitais para a nossa alegria) de surf music daqueles verões dos anos 90.

Imagine aquele pessoal da Austrália, como o James Reyne, tentando entender como e por que vinham aqueles cheques de direitos autorais do Brasil anos depois que eles haviam se aposentado da carreira artística, e descobrindo um novo filão, uns bichos grilos do Rio, Floripa ou Porto Alegre querendo ouvir "It's a Mistake".

Foi um renascimento o Ano Bom de 1994. De repente, a Litoral FM foi arrendada pela Pan e, na virada, puseram um caminhão de som tocando "is This Love". Nessa época, a gente já passara dos vinte, saíamos de carro. Foi quando finalmente descobrimos Atlântida (mas ali o Stereo já havia fechado). Ali já iria aparecer o Ibiza e o Planeta. Os 90 já eram outra história.


Nossa base em Imbé era na Morada do Sol, longe de Tramandaí à pé (de Dindinho mais longe ainda, naqueles ônibus pré-históricos), longe do mar, mas estrategicamente perto de tudo. O começo era difícil. Houve uma época em que não havia bolichos pelo litoral. O jeito era buscar refrigerante e cerveja por atacado nas distribuidoras. A gurizada, que não bebia, ia prá carregar casco para os adultos. Era injusto: prá cada dez garrafas de cerveja, uma de refri.

O meu auge deve ter sido quando apareceu o Circo Beach (e o centrinho do Imbé, verão de 96 (lembram?)com o Sherwood, depois o Nukanua, o Capitan (sic) Post (de um colega nosso de faculdade que desbundou e resolveu vender cerveja na praia (ótima ideia) e o Crepe da Barra), Imbé passou a competir com Capão em matéria de público jovem e Tramanda virou uma espécie de reduto do pagode - que estava na primeira para a segunda onda do gênero. Virou uma espécie de praia de gente mais adulta. A gurizada atravessava o rio e ia para a barra do Imbé. No verão de 96, por causa de um frila na praia, fiquei entre Pinhal e Imbé.

Um dia tudo mudou. Família vendeu casa da praia. A gente cresceu, arrumou estágio, emprego, ou ficou pobre. E ficou impossível veranear. No máximo no Revellion. Depois, nunca mais.

Nunca mais voltei à Pinhal. Sei que a casa de palhas não existe mais. O Osso da Baleia também. Meus tios morreram. Mas lembro que na rua deles, que dava esquina com a antiga Prefeitura (com a João Guimarães, até a Interpraias), passando a casa de praia deles, à esquerda de quem vai para a faixa, quase no fim da quadra, havia uma casa branca, e uma garagem. Ali seguido havia uma banda que tocava.

Anos depois, falando daquele tempo, e daquela casa, e de "Pinhal" - a música que provocou esse meu dilúvio proustiano, meu primo me disse que aquela banda era o protótipo da Cidadão Quem. Não poderia assegurar (confio na palavra dele) mas, ouvindo e lendo a letra, com uma saudade inacreditável e insuportável, eu lembro daqueles verões em Pinhal.

Lembro da planonda quebrada na areia, futebol de areia com goleira de chinelo, da foto com o retratista da charrete com o pônei, da fila gigantesca para ligar para casa na agência da CRT na rua da Igreja, da Coca batizada com cachaça nas reuniões-dançantes da SAPP ao som de OMD, New Order, e a groselha sonora da Litoral FM, do galo de brinquedo que indicava o tempo, das solas dos pés torradas pelo asfalto e as pedras quando esquecíamos as havaianas na hora de ir para o mar, da perna e da barriga queimada de mãe d'água, das madrugadas insones esperando ver o sol nascer, da ruazinha alagada e cheia de sapos coaxando de noite depois de uma inesperada semana de mau tempo, do vendedor de puxa-puxa (que sempre pegava no nosso pé no prego e a gente sempre acabava estragando os dentes de leite com aquilo), da casa dos meus tios e daquela garagem. Lembro de uma época não por pura e simples nostalgia, mas com saudade de um tempo em que, diferente de hoje, vivíamos em família e vivíamos em segurança.

Prá quem não conhece a música:




Mesmo que não seja verdade, que a banda da casa branca não seja a garagem do Cidadão Quem, tudo o que diz ali na letra de "Pinhal" nos resume, e faz todo o sentido. Às vezes, eu também volto prá lembrar que a gente cresceu na beira do mar.

Thursday, February 12, 2015

Contra o Próprio Catecismo


Capa do novo disco de Bob Dylan


Dia desses (segunda passada), li uma resenha sobre esse último disco de Bob Dylan, Shadows in the Night. O autor disse que, em seu novo álbum, o cantor e compositor reassassinava Sergei Rachmaninoff, em "Full Moon and Empty Arms", uma das canções do seu recente trabalho. A música em questão é uma paráfrase de um tema do Concerto para Piano No. 2 em Dó Menor, do compositor russo.

Esse artigo (ou post, como os meus seis leitores preferirem) que escrevo aqui não é uma resenha do Shadows in the Night. Ou melhor, é. Mas, de uma forma diferente.

O texto a que me refiro diz que era hábito da música americana dedicar-se à esse tipo de necrofilia de temas clássicos em canções populares à la Tim Pan Alley. E era. Isso fazia parte da indústria do entretenimento da época. Na verdade, isso é uma questão recorrente: quantas músicas que tornaram-se grandes sucessos não são paráfrases de temas clássicos?

A questão de Dylan em Shadows in the Night é crucial. Aqui não o vemos como o bardo, coisa que ele é, e com folga (não sou eu quem digo isso) mas como cantor (coisa que ele não é, e não sou eu quem digo isso). Mas ele, Bob Dylan, mostrou duas coisas ao pessoal do Tim Pan Alley: que um cantor pode fazer as suas próprias canções, assim como um cantor não precisa ser um rouxinol de esporas e penacho, como um Perry Como ou um Johnny Mathis (ambos colegas de Dylan na CBS).

Dylan passou daquela fase em que ele tinha que provar a que veio. Além de não precisar, tem um contrato favorável com sua gravadora onde seu prestígio perante critica e público (e quem o paga) é considerável. Por conta disso ele, hoje, passando os umbrais dos setenta, tem carte blanche gravar o que quiser.

Todo mundo tem a sua vez. Qual não foi o músico que, chegando nos píncaros azulados da carreira, não desejou transcender o seu metiér e fazer algo diferente? Depois de um Rod Stewart, de repente, do alto de sua confissão roqueira, descer do pódio e interpretar "The Way You Look Tonight", tudo é permitido. Na verdade, os críticos e os fãs é que não passam de chatos.

Não existe nada mais terrível do que ser refém do seu próprio catecismo. Carmen Miranda morreu disso. Morreu com um chapéu de bananas na cabeça. Nunca conseguiu sair do seu estereótipo. Dylan, por exemplo, é um sujeito que, como vocês sabem, não tem paciência para ser chamado de menestrel das esquerdas. Nunca se considerou um cantor de protesto. Como a nossa Pequena Notável, ele vai morrer com esse chapéu na cabeça.

Mas vai morrer sendo do contra. Dessa maneira, não é gratuito achar que o compositor de "Blowin' In The Wind" fez algo tão banal e fútil como um disco de Natal (Christmas in The Heart) se não fosse algum tipo de blague. Pegando esse mote, não é gratuito cogitar que Shadows in the Night tenha um fundo falso.

Lógico que não quero insinuar que, nesse fundo falso, Bob Dylan queira trepudiar das músicas que interpreta, muito menos da cara homenagem ao centenário Frank Sinatra - o crooner que transformou o Great American Songbook na trilha sonora do grande sonho ianque.

Uma coisa deve ser levada em consideração é que Dylan leva seu trabalho muito a sério - mesmo quando não parece. Na verdade, seu novo álbum é uma bela homenagem - e o fato dele reassassinar o Concerto para Piano No. 2 é o de menos. Afinal, o Air Supply também fez isso. A questão é que Shadows in the Night é uma singela e pessoalíssima homenagem ao maior cantor de todos os tempos que pisou na Terra. E criticar um trabalho desses, por mais banal e mal interpretado que possa parecer a alguns (ou muitos), não faz sentido criticar isso. É quase um atestado de burrice.

Mas então voltamos ao começo. Dylan não é cantor, vai contra o seu próprio catecismo (como não-cantor e, principalmente, como compositor contra a música pré-fabricada do Tim Pan Alley) as interpretações estão aquém do bel-canto. Mais divertido é pensar que Shadows in the Night é um disco para desagradar tanto os fãs do bardo Dylan quanto aos apreciadores do inefável bel-canto de Sinatra. Muito menos àqueles críticos de música clássica que detestam os pastiches do Tim Pan Alley (com ou sem razão nenhuma).

Na verdade, o disco não tem o objetivo de agradar a ninguém, muito menos a mim. Mas mais divertido que isso, a questão recai sobre os fãs. Dylan é eclético o suficiente para gostar de coisas que seus fãs odeiam. Ponto para o "menestrel". Afinal de contas, é notório que ele nunca foi discotecário, mas conhece todas as músicas do planeta. Quando o fã quer que Dylan seja o menestrel; Dylan canta "Where Are You". Não, canta "Autumn Leaves".

A grande blague de Bob Dylan é provocar esse crossover: unir dois universos diversos. Nunca, jamais, os meus sete leitores imaginariam Dylan interpretando "Autumn Leaves" (e com a steel fazendo o mesmo arranjo do Nelson Riddle). Diferente do que você pensa, Dylan conhece muito bem os discos de Sinatra. Conhece o profundo Sinatra. Não o Sinatra de "New York, New York": mas o Sinatra profundo, o Sinatra que gravou todas as canções possíveis. Isso está em sua memória afetiva.

Mais do que isso - Dylan, à sua maneira, quis compensar suas limitações. É aí que reside seu valor como intérprete: Shadows in the Night pode ser dispensável se comparado às originais de Sinatra.

Quem conhece Frank sabe que ele tinha o lado big band, mas também possuía (como todos nós) o seu lado sombrio. Dylan pegou esse lado sombrio como seu, em versões sintomáticas de torch songs como "I'm a Fool to Want You" e "The Night We Called It a Day", de discos conceituais (para quem não sabe, muito antes do Sgt. Peppers, Frank Sinatra fazia discos conceituais) como "Where Are You" e "Only the Lonely".

Isso mostra que, assim como grande ouvinte que é, Dylan sabe exatamente qual é o melhor de Frank Sinatra. Não o Sinatra farofa de "My Way", mas o Sinatra da fossa, o Sinatra sublime do "In Wee Small Hours", "Mood Indigo", "One For My Baby". "Angel Eyes", "What's New", o Sinatra sombrio, quase gótico, da melhor extração - o Sinatra que a maioria desconhece.

O Dylan crooner já havia posto à prova no seu curioso álbum de 73, aquele que ele é quem mais o detesta. Em Shadows in the Night, ele não está preocupado com isso (dizem que sua vez melhorou nesse disco, eu não concordo, mas ele também não deve estar preocupado com isso).

No conjunto de canções, "Full Moon and Empty Arms" parece estar deslocada. Na verdade, ela é do tempo do Sinatra na Columbia e, ao contrário de outras tantas, nunca fez parte de seu repertório regular (Dylan não iria cantar as que você conhece, por exemplo). A paráfrase de Rachmaninoff, de fato, é lamentável. Mas acreditamos que Dylan tenha esse buquê de canções (como diziam os locutores de outrora) como lembranças felizes de sua paquidérmica memória afetiva. Mesmo que você não as conheça, elas estão inscritas na história da música popular americana do Século XX, música cujo maior intérprete é o centenário Sinatra.

Existem tantos outros casos (o Tim Pan Alley é pródigo nisso) de música popular inspirada em clássicos, como "I'm Always Chasing Rainbows", que é a Fantasia-Improviso do Chopin (em Dó Sustenido Menor, Op. 66), ou "Take My Love", essa gravada pelo Sinatra (nos anos 40, na fase da Capitol ele não regravou nenhuma das duas), que é o Poco Alegreto da Sinfonia nº 3 (Fá Maior, Op 90) do Brahms.




Wednesday, February 11, 2015

A Guerra Fria do Mp3



Meme rindo do Macartismo virual


Deu no Globo: O RapidShare será fechado em 31 de março. De acordo com o site, o conteúdo armazenado na plataforma será "apagado automaticamente".

A empresa não especifica qual é o motivo da decisão, mas é óbvio que vai acabar certamente por conta de processos judiciais e, principalmente, por causa da concorrência de outras páginas especializadas em upload de arquivos de forma virtual.

Um exemplo é o WeTransfer. Sediado em Amasterdã, um serviço online que possibilita aos usuários compartilharem arquivos de até 2 Gb, gratuitamente ou 10 Gb, isso na versão Plus. Num único link com o arquivo zipado, por exemplo, você pode passar todo o BWV do Bach para um amigo.

Processos judiciais à mão cheia também devem ter matado o Rapidshare aos poucos. Não era o único site, mas era o mais visado pelos tubarões da indústria fonográfica em geral.

De certa forma, ele indiretamente matou o Orkut. Lembro-me que, no começo, quando entrei na comunidade Acervo Brega da extinta rede social do Google, a única forma de trocar música por lá era através de comunidade de e-mail, graças ao advento do Gmail. Agora, ao invés de inscrever uma lista interminável de membros para mandar um Mp3, bastava fazer o upload e passar o link num tópico da comunidade.

O Rapidshare mudou o Orkut. A possibilidade de troca de arquivos de música remoldou as comunidades, possibilitando o surgimento da maior delas, a Discografias, que foi a corrida do ouro do download ilegal na Internet.

A Discografias foi o ápice do Rapidshare. A maior parte dos links usados para transferência na comunidade era deles. Depois viria o Megaupload que, além de gratuito, foi um dos primeiros a possibilitar ao usuário o armazenamento virtual gratuito.

Os blogs também mudaram com o Rapidshare e o compartilhamento de música. Até 2003, a ferramente era desacreditada, tida como um diário sentimental e as pessoas logo iriam enjoar da novidade. Com o Rapidshare, proliferaram os blogs musicais.

Curioso é que, em 2010, a indústria fonográfica caiu em cima do Megaupload, e não do Rapidshare. Foi uma espécie de macartismo da Internet. De repente, como no tempo da Guerra Fria, havia os bons e os maus e, bem, os maus a gente sabe quem eram (ou não?).

A Caça às Bruxas virtual cortou cabeças, fechou blogs, acabou com o Megaupload. Mas houve o refluxo. Nesse meio tempo, apareceram os genéricos do Rapidshare. E, junto com a guerra fria do Mp3, o Orkut, que catalizava aquela corrida do ouro do download, também passou a ser visado.

Da mesma forma que o Orkut, o Rapidshare morreu. Foi morrendo aos poucos. Mostraram um caminho, e perderam-se nesse mesmo caminho. Abriram a caixa de pandora. Criaram uma solução que criou um problema. Pagaram o preço por serem precursores de algo que, se formos pensar em matéria de produção e difusão musical, não sabemos como vai acabar.

Tudo o que é sólido... O Rapidshare vai acabar dia 31 de março. Podiam ter deixado para o dia seguinte, o dia dos bobos. Seria uma forma de cair de pé, rindo da cara da turma do macartismo.



Sunday, February 08, 2015

A Graça do Vinil


Bom mesmo é disco velho

Há quem diga que o retorno ao vinil deixou de ser moda e veio para ficar. Os defensoras dessa tese pegam dados, como os da Digital Music News. De acordo com eles, mais de 6 milhões de discos nesse formato foram vendidos nos Estados Unidos em 2014 - uma tendência crescente com relação ao ano anterior em, pelo menos 50%.

Já segundo a Teamrock, artistas e donos de gravadoras em geral acreditam que, a despeito dos números expressivos, tudo não passa de moda. Para isso, alegam que a marca de 1 milhão de vinis vendidos ano passado na Inglaterra se deve, sobretudo, a lançamentos específicos, como o Endless River (2014), último disco do Pink Floyd, por exemplo.

A Nielsen SoundScan, sistema de informação que realiza levantamentos de vendas de música e vídeo na América do Norte, contudo, estima que as vendas de bolachões correspondem a apenas 6% do total da comercialização de música. Esses dados indicam que, para as grandes gravadoras em geral, o propalado sucesso da velha nova mídia não é grande o suficiente para que haja qualquer efeito positivo sobre seus negócios.

Por 6%, muitos executivos sequer levantam da cadeira para dedicar-se ao formato. Tom Corson, responsável pela RCA, revelou que as vendas de vinil são bem vindas, mas o selo sequer possui um departamento específico sobre. "É uma pequena porcentagem dos nossos negócios", diz. "não vai fazer ou salvar o nosso ano".

A matéria da Teamrock cita o empresário da Fall Out Boy, Jonathan Daneil, que compartilha da mesma opinião de Corson. Ele admite que grupos gostam do formato (a própria banda lança bolachões de seus CDs).

"Do nosso ponto-de-vista mercadológico, não significa nada", conclui. Claro que toda esse discussão do vinil - se ele voltou ou não, deveria ser apresentada de forma contextualizada. Prá mim, a graça do vinil passa pelo viés arqueológico.

Quem não tem um gosto muito ortodoxo pode descobrir maravilhas em sebos. Discos que hoje, pelo menos, na minha opinião, são interessantes justamente pela sua irrelevância total.

Lançamentos que foram jogados na lata do lixo da história mas que ainda existem e estão esperando por nós. Discos de coletâneas, de novelas, de artistas esquecidos e suas capas mirabolantes, discos de jazz, clássico, sambão.

Existe pelo menos meio século de história em vinil para que o ser humano possa redescobrir. Á guisa de conclusão, cita a mesma Teamrock, referindo-se à uma curiosa declaração do Neil Young. Ali, ele detona os novos lançamentos de bolachões. O cantor diz que todo lançamento de vinil, hoje, não passa de uma versão masterizada em formato digital.

Claro que note-se aqui a crítica de alguém que sabe a diferença entre um disco original e algo que tenha saído de fábrica hoje. "É CD gravado em vinil", diz. E finaliza: "Nossa sociedade é muito prática e convencional e vinil não é uma coisa convencional".

Quando o CD surgiu por aqui, lá por 1988, aos poucos, o vinil passou a ser uma mídia desinteressante. Mesmo assim, os sebos inflacionavam álbuns mais procurados (não existia Mp3 nem Mercado Livre, então pela raridade em quastão, eles podiam pôr o preço que quisessem, porque havia quem comprasse), rock em geral.

Nessa época, lojas ganharam muito dinheiro com isso. O CD tinha o componente libertador para aqueles que não encontravam certos títulos em vinil, justamente porque ou o disco estava fora de catálogo ou sequer fora lançado no Brasil. Assim, era possível achar algo do Hendrix em formato digital, já que o vinil brasileiro era raridade total.

Mesmo assim, os CDs eram, na sua maioria, importados e solenemente inflacionados pela lei da oferta e da procura. E, com o formato digital, houve a moda de se desfazer dos vinis em favor dos disquinhos.

O problema é que hoje, por incrível que pareça, depois do advento do que seria o paraíso na terra em matéria de mídia de áudio, o compact-disc entrou em decadência e o vinil, naqueles mesmos moldes do cedê no começo, passou a ganhar a mesma aura de excelência.

Ora, para quem, como eu, viu gente jogar discotecas fora para comprar um aparelho de CD, é incrível observar essa atração pelos velhos bolachões.
Pelo que eu vejo, o atrativo são lançamentos de rock de álbuns que sequer saíram no Brasil, como a discografia do Leonard Cohen.Velvet, Mobi Grape, Neil Young, coisas assim.

Porém, é óbvio que ninguém vai relançar o catálogo farofa da CID, por exemplo, com aqueles covers sinistros de Elvis e Glenn Miller, e o Peru da Festa do Costinha, por exemplo.

Enfim, essa volta do vinil é relativa, não é a volta da tecnologia. A despeito da relativa qualidade do seu característico som, a intenção primordial não deveria residir na mimetização da qualidade do som do vinil, mas uma fidelidade do que seria aquilo que foi captado pelos microfones, como se nossa audição fosse "ao vivo".

Condicionar a experiência da audição ao som do vinil é fetiche. O objetivo do formato digital era suplantar qualquer 'entropia' na audição, de forma a que pudéssemos ter uma experiência completa ao ouvir os discos. A verdade é que, trinta anos depois, vemos que muitos daqueles lançamentos em AAD eram extremamente (uso o advérbio porque se faz preciso) falhos. Ruins.

A verdade é que o vinil nunca voltou. A venda expressiva do formato segundo a Digital Music News se refere à ela mesmo, na forma em que isso tem sido proposto como moda. Muito da produção hoje é baseada em lançamentos específicos e em relançamentos de discos clássicos.

É preciso salientar que, ao contrário do que era a realidade da tecnologia e do mercado nos anos 70, por exemplo, a difusão de arquivos de áudio (vamos chamar assim, seja qual for), na época do Mp3, passa à revelia do vinil. Há quarenta anos atrás, tudo passava pelo vinil. Até mesmo gravadoras não especializadas em rock faziam caixa com um catálogo nada ortodoxo: sambão, coletâneas, disco infantil, é por aí vai.

Guardadas as devidas proporções, o catálogo que havia à disposição do público, toda a produção de décadas de música em seus respectivos e variados gêneros, ele não passa pelo vinil, nem vai passar. Isso ficará relevado à colecionadores e pela restrita comercialização de discos usados - esse sim um mercado interessante mas que, naturalmente, não passa por estatísticas de sistemas de medição e de informação de venda de música.

Mais do que isso, a discussão descrita acima refere-se à viabilidade de o formato ser economicamente rentável. Como os números mostram, é, mas não é. O que se pode afirmar, de certa forma, é que eles estão aprendendo a lidar com isso que ainda se discute - se é uma moda passageira ou não, mas que, como pode se notar, é um nicho de mercado.

Se é ou não um modismo, pelo menos podemos afirmar que é um fetiche. E fetiche é um negócio que, com efeito, não sai de moda e nem depende de estatística para provar nada. Poderia-se, no entanto, até acusar a própria indústria fonográfica de mistificação ao tentar vender essa "moda" do vinil mas, ao que parece, nem ela sabe muito bem lidar com isso.

Bandas como o supracitado Fall Out Boy comprazem-se em ver seus álbuns no formato antigo, mas isso pode se explicar, do ponto-de-vista do público consumidor, como viver uma época que eles não conheceram, e desfrutar dos pretensos benefícios do som riscante de uma agulha num bolachão. Muitos fazem isso, inclusive aqui, no Brasil. No entanto, são poucos no sentido de uma reabilitação da mídia vinil.

Eu já fui/sou colecionador e, como testemunha ocular de história, sempre apreciei disco usado. Vi o ocaso de uma época desaparecer com o advento do malfadado compact-disc (no futuro, lembrado como um inefável pesadelo humorístico do final do século XX) e acompanho, não sem um divertido sadismo, a volta do vinil sobre os destroços dos CDs - esses cada vez mais desvalorizados nas lojas de música.

Hoje é possível tirar dos rolos dos tapes analógicos algo próximo do apreciável. Porém, como disse o Neil Young, a gravação constante nesses discos é um AAD passado para o vinil. Porém, não há nada de novo nisso: os discos da Deutsche Grammofon dos anos 80 já eram elepês com áudio digital.

O mesmo aconteceria com o catálogo dos Beatles a partir de 1988, vinil digital. Na verdade, a vanguarda era a digitalização do analógico.

O fim do CD foi um acidente de percurso, o ressurgimento do vinil, outro. Enfim, se parece pejorativo chamar isso de fetiche, vamos usar a expressão do Chris Anderson, sobre o a "Cauda longa"; mercado de nicho.

Thursday, January 22, 2015

No Tempo da Mundial



Propaganda da emissora em 1970


Quando era estudante, fui fazer pesquisa sobre a rádio Guaíba de Porto Alegre. Para ilustrar meu trabalho, fui até aos estúdios a fim de conseguir algum áudio preservado de programas antigos. Qual não foi o balde d'água que eu levei quando soube que não só a Guaíba mas, em geral, nenhuma rádio, pelo menos aqui, no Brasil, tem qualquer preocupação em guardar isso.

Na ocasião, um funcionário (isso foi em 1999) me disse que o pouco que eles tinham (e era disponibilizado no site) havia sido preservado pelo Flávio Alcaraz Gomes, como o áudio da inauguração da Guaíba, em 1957. Tempos depois, achei alguma coisa não muito longe dali, no setor de Imagem e do Som do Museu Hipólito da Costa.

Muitas das fitas do acervo do Museu eram provenientes de doações de ouvintes que, por algum motivo útil, preservaram trechos de programas de rádio, como o Discorama, do Osmar Meletti. Eu mesmo sempre tive o hábito de gravar o broadcasting de emissoras de rádio. Porém, como não tinha interesse em guardar e catalogar, por falta de espaço, acabava apagando e regravando coisas em cima dos cassetes.

O estudo da memória do rádio, ainda mais do rádio brasileiro, que é um rádio de (vá lá) mentalidade terceiro mundista, é algo que se ressente da falta de preservação desse tipo de registro. Como saber como era o tipo de transmissão, o modelo de rádio de tempos passados, se não tivermos pelo menos uma amostragem? Como diria alguém, tudo o que propaga no éter, morre no ar; não fica registrado, como no caso da mídia impressa, por exemplo (o mesmo acontece com a nossa TV).

Naquele tempo eu imaginava que era possível que algum ouvinte de rádio, mesmo que sem interesse "acadêmico", teria guardado material em áudio - justamente a partir da popularização de gravadores portáteis, a partir de meados dos anos 70. Mesmo assim, seria algo improvável, empírico, sem método algum.

Fiquei surpreso quando, há pouco tempo, com o surgimento do Youtube e o consequente desenvolvimento do site com vista a disponibilizar um espaço cada vez menos limitado de streaming, muitos usuários (rádio-escutas amadores ou quase isso) passaram a postar áudio convertido de cassetes gravados e guardados por décadas a fio - na Internet.

Pego como exemplo duas gravações da rádio Mundial do Rio de Janeiro. Adquirida pelo Sistema Globo de Rádio em 1966, teve o seu auge durante os anos 70, sob o comando de Newton Duarte, o disc-jockey Big Boy. Há cerca de dois ou três anos, é possível acessar áudio de trechos de programas da emissora, registrados há mais de trinta anos, e disponíveis em streaming.

No Youtube, entre outros registros, pude encontrar dois arquivos interessantes: amos são trechos do programa Show dos Bairros (que era apresentado por Oduvaldo Silva, de segunda a sexta, das 9 da manhã até o meio-dia) respectivamente gravados em agosto de 1972 e em fevereiro de 1981.



O que é possível depreender desse áudio: a Mundial ainda tinha um o atavismo do rádio do speaker; locução empostada. A despeito de ser um programa popularesco - locução com notícias breves e bloco musical feito por votos de ouvintes, cujo pedido era associado ao seu respectivo bairro ("a música do Arpoador"), o que naturalmente explica o nome do programa.

Outra: a gravação é de agosto de 1972. Era o auge da Mundial. Líder de audiência entre o público jovem, no ano anterior a 860 foi eleita a emissora do ano pela Revista Propaganda. Também era o auge do Regime Militar, é possível, logo de largada, ouvir o spot governamental do Centenário da Independência.

Nos reclames, nota-se que a Mundial fazia parte do esquema da Globo na divulgação do (malfadado e polêmico, como se sabe hoje) VII Festival Internacional da Canção. Não seria à toa que várias músicas na programação são do certame ("22 Andar", Edison e Aloísio e "Diálogo", Cláudia Regina e Tobias), e propaganda massiva do Festival (de citação de participantes até o jabá do disco com as canções, à venda, em elepê).

Quem lembra do Oduvaldo dos anos 80 certamente vai estranhar algo que era notável: apesar da sisudez da locução, provavelmente por conta da direção artística do Big Boy, ele faça uso, como pedras-de-toque, de gíria ("é isso aí, amizade", "uma jóia"), com objetivo nítido de imprimir mais coloquialidade - era a mudança do modelo de rádio popular, cujo paroxismo eram, com efeito, os programas do Big Boy. Ao mesmo tempo, é possível notar como o AM daquele tempo lembra um pouco o que viria a ser o FM nos anos 80.

A programação é basicamente de MPB e pop internacional (Oduvaldo chega a anunciar Eddie Kendricks!), e os blocos de notícias são quase inexistentes. Uma, por exemplo (aos 17:00), refere-se à Chico Buarque, sobre "pregar a MPB à universidades do interior". Na verdade, tratava-se de uma caravana patrocinada pela sua gravadora, a Phonogram.

Não entendo por que a informação saiu pela metade. Ou, de certa forma, pelo contexto, entende-se: era melhor para um canhão como a Mundial que fosse apenas um vitrolão. Numa época de uma outra realidade da indústria fonográfica, o esquema (legal ou ilegal) entre gravadoras e rádios era algo muito rentável.

Por fim, nota-se a propaganda do Baile da Pesada, do Big Boy e depois do Furacão 2000 - basicamente a peça de resistência da Mundial nos anos 70, até o seu desaparecimento, em 1977. O esquema dos bailes pelo subúrbio carioca e interior fluminense continuou, mas, com a morte do Big Boy, toda uma época desapareceu com ele.

Para tanto, basta comparar o vídeo acima com este. Outro broadcast do Show dos Bairros, dez anos depois.



Em 1981, a Mundial já havia perdido muito do seu brilho perante o público do segmento jovem, que ora crescera ou migrava progressivamente para a Frequência Modulada. Aquele tipo de programação também faria o mesmo percurso. Nesse novo contexto, nota-se que o Show dos Bairros já atendia a um segmento bem popular.

Isso se reflete tanto na programação musical, quanto na pauta de notícias, com a precípua finalidade de prestadora de serviços, e outro fator primordial, que é - como podemos "ouvir" na gravação, é o contato com o público. Agora, os ouvintes não são "citados" por seus respectivos bairros, mas agora falam no ar.

A sequência musical reflete essa mudança. A seleção vai do udigrúdi (Abba) sambão (Beth Carvalho, que fazia bastante sucesso naquele tempo) até trilha sonora das novelas da Globo ("Noturno", com Fagner). Aqui, também, nota-se a parada ligeiramente orientada pelos sucessos dos mais vendidos franqueados por lojas de discos do Rio: algo que hoje inexiste no rádio FM, o que dizer do AM?

Segue a propaganda massiva de bailões, contudo, não mais o funk americano dos finados tempos do Big Boy e Ademir, mas samba (fora a propaganda dos bailes de pré-Carnaval) e o funk romântico pós-discoteca, e que é, justamente, o que nós mais lembramos (o auge dos "melôs") - charm típico dos anos 80 e começo dos anos 90, quando a Mundial, tal qual conhecíamos, finalmente acabou.

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A contribuição pode ser pequena ainda (não se sabe o que é possível de se obter colaborativamente, a partir desses usuários), mas demonstra que, a partir desses rádio-escutas, é possível fazer uma base de dados de valor inestimável, não em termos de nostalgia - o que é válido, mas pela inefável contribuição desse material que, dia a dia, está a ser descoberto, para um maior aprofundamento dos estudos da história do rádio no Brasil.




Wednesday, January 21, 2015

Canções do Exílio *



Gonçalves Dias


Composto em 1843, na cidade de Coimbra, Portugal, o poema “Canção do Exílio” é hoje sinônimo de seu criador, o poeta maranhense Antônio de Gonçalves Dias (1823-1864). Seus versos se confundem com o “inconsciente coletivo” de nossa cultura e alguns deles aparecem na segunda parte do Hino Nacional. A importância deste célebre texto é seminal: não existe antologia escolar que não o tenha escolhido ou que não o cite, fato que demonstra o seu papel de referência dentro da tradição literária brasileira. É fruto típico do Romantismo da primeira fase, quando nossa literatura ainda engatinhava. O crítico Agripino Grieco disse: “ninguém lê os poetas, mas raros são os brasileiros que não conhecem a ‘Canção do Exílio’”.

Se o tempo transformou a “Canção do Exílio” num poema emblemático, o tempo cuidou de banalizá-lo pela insistência em sua repetição. Da mesma maneira, autores que vieram após Gonçalves Dias se puseram a recriá-lo ou a conceber sua própria versão do texto. Em 1860, Casimiro de Abreu, representante da segunda fase, também criou a sua canção. No século passado, tivemos Drummond (“Nova Canção do Exílio”), Oswald de Andrade (“Canção de Regresso à Pátria”), Cassiano Ricardo (“Ainda Irei a Portugal”), Murilo Mendes (“Canção do Exílio”), Vinícius de Moraes (“Não Seja Já”) e Torquato Neto (“Marginalia II”), entre outros.

Saindo um pouco da distante admiração ao poema, a “Canção do Exílio” representou a Gonçalves Dias um momento de profunda dor e nostalgia. Em 1838, o maranhense havia partido para Portugal, decidido a se matricular na Universidade de Coimbra. Estava há quase cinco anos distante do Brasil e quase adaptado à flora e à fauna européia. Quase, porque a distância começou a lhe corroer a alma. Certo dia, ao se reportar à balada Mignon, de Goethe, encontrou ali algo como “conheces o país das laranjeiras? Para lá quisera eu ir!”. Retornaria em 1846, ano em que publicaria seu poema em sua obra de estréia, Primeiros Cantos, publicado a partir do ano seguinte.

Sobre a “Canção do Exílio”, eis que, misturando saudade e nacionalismo — duas das características do Romantismo, estilo literário então vigente — de sua pena brotaram os seguintes versos:

Minha terra tem palmeiras
Onde canta o sabiá
As aves que aqui gorjeiam
Não gorjeiam como lá

Nosso céu tem mais estrelas
Nossas várzeas têm mais flores
Nossos bosques têm mais vida
Nossa vida mais amores


Estabelecendo um paralelismo entre os versos, os dois primeiros compõem o primeiro quarteto, que retorna no terceiro quarteto, representando o tema principal. A sugestão geral do poema é estabelecer diferenças entre a terra natal e o lugar do desterro, tanto físicas (“aves”, “nossos bosques têm mais vida”) quanto psicológicas (“nossa vida mais amores”). Os quartetos se encerram com a repetição dos dois primeiros versos, como uma ladainha.

Em cismar, sozinho à noite,
Mais prazer encontro eu lá
Minha terra tem palmeiras
Onde canta o sabiá.


A canção se encaminha para o fim com dois sextetos que desenvolvem e reexpõem o material apresentado na primeira parte do poema:

Minha terra tem primores
Que tais não encontro eu cá
Em cismar, sozinho, à noite
Mais prazer encontro eu lá
Minha terra tem palmeiras
Onde canta o sabiá


E termina com a patética súplica:

Não permita Deus que eu morra
Sem que eu volte para lá
Sem que desfrute dos primores
Que não encontro eu cá
Sem que inda aviste as palmeiras
Onde canta o sabiá


Note-se que o sentido de “exílio” é salientada pela repetição de versos-chaves, cuja sugestão é salientada tanto por versos-chaves quanto pelo formato do poema. Oriundo do primeiro Romantismo, Gonçalves Dias ainda mantinha certo sabor clássico em seus versos, que podem ser percebidos pelo modelo utilizado, comedido nos adjetivos, cuidadoso e emblemático nas imagens, aqui ele soube criar uma visão geral da idéia do desterro com um material poético breve porém marcante. Ou seja, ele é mais romântico na temática do que na forma. O seu texto reflete ainda o aproveitamento da disciplina clássica, diferente dos poetas do ultra-romantismo, que abusavam de imagens e da utilização de versos brancos e versificação diversa.

Há quem afirme que essa mesma contenção poética dos versos da “Canção do Exílio” tenha transformado o poema mais em um texto declamatório e de pretensa objetividade do que um instante de profunda meditação. Isso talvez explique a negligência que as pessoas costumam ter com relação à Gonçalves Dias, menos afeito ao ritmo dissoluto e apaixonado dos melhores momentos do Romantismo da segunda fase. Em última análise, à medida em que o texto foi elevado à estatura de um paradigma do Romantismo, a “canção” foi perdendo um pouco da sua aura original, fazendo com que o desavisado leitor não sinta o que o poeta buscou expressar, em sua totalidade.

Talvez quem soube recriar a tradição instaurada por Gonçalves Dias de forma magistral foi o compositor Chico Buarque de Holanda. Em 1967, ele compôs, em parceria com Tom Jobim a canção “Sabiá”, e que seria a campeã do III Festival da Canção, no ano seguinte. Aqui, a idéia de exílio, porém, tinha uma indisfarçável conotação política e Chico se refere a “uma sabiá” e a uma palmeira “que já não há”

Vou
Voltar
Sei que ainda vou
Voltar
Para o meu lugar
Onde eu hei de ouvir
Cantar
Uma sabiá

Vou
Voltar
Sei que ainda vou
Voltar
Vou deitar à sombra
De uma Palmeira
Que já
Não há

Colher a flor
Que já não dá
E algum amor
Talvez possa espantar
As noites
Que eu não queria
E anunciar
O dia.


Porém, Gonçalves Dias, o rapsodo das saudades de sua terra natal, o eterno autor da “Canção do Exílio”, por incrível que pareça, teve um triste fim: como um Moisés, morreu sem chegar à sua Terra Prometida. Vindo da Europa, o navio Ville de Boulogne naufragou ao cruzar a costa brasileira, num 3 de novembro de 1864. O velho poeta, coberto de glórias como o Timbira, desapareceu sem pisar na terra das palmeiras.



* Texto publicado originalmente no extinto site Rabisco, há coisa de dez anos atrás.

Tuesday, January 20, 2015

A Rhapsody in Blue carioca



Tom Jobim


Verão de 1954. Billy Blanco pegou a condução no Centro e descia placidamente a Princesa Isabel quando, ao dobrar a esquina com a Avenida Atlântica, teve uma epifania. Como um trovão, veio {a sua mente os seguintes versos:

Rio de Janeiro, a montanha, o céu e o mar
Rio de Janeiro, que prá sempre eu hei de amar!


Ficou cantarolando os versos, como um mantra, a fim de não esquecer. Em desespero, acabou descendo do ônibus quadras adiante, já em Copacabana, e correu em busca de um telefone. Achou um, num pé sujo na República do Peru. Ligou imediatamente para Tom Jobim, seu recente parceiro musical em "Teresa da Praia" que, em julho daquele ano, seria sucesso na voz de Lúcio Alves e Dick Farney.

Quando Jobim atendeu, Billy pediu que ele decorasse os versos e anotasse a melodia. Com o bulício dentro do bar, temendo que Tom não o ouvisse direito, tapou o outro ouvido e ficou cantando aqueles mesmos versos, o mais alto que pôde:

Rio de Janeiro, a montanha, o céu e o mar
Rio de Janeiro, que prá sempre eu hei de amar!


- Anote aí, Tom, eu já estou indo para aí! - e bateu o telefone.

Na casa do compositor de "Garota de Ipanema", não muito longe dali, na Nascimento e Silva 107, Billy explicou sua epifania. Há anos que ele não realizava aquela percurso e, ao vislumbrar aquela cena vespertina a se descortinar diante de seus olhos, os versos explodiram em sua mente, e ele imaginou uma suíte histórica, um hino de louvor à então Capital Federal. O disco, intitulado Sinfonia do Rio de Janeiro, foi lançado Lançado no começo de 1955 - há sessenta anos atrás.

Tom Jobim pegou o mote como uma canção sobre a cidade. Porém, concebeu aquilo que seria a Sinfonia do Rio de Janeiro justamente como se fosse uma peça erudita, mas não como uma suíte instrumental. Seu modelo inspirador seria Gershwin, mas não o Gershwin de opereta, mas o da Rhapsody in Blue.

Assim como a peça do autor de "Porgy And Bess", Jobim imaginou, a partir da letra desenvolvida por Blanco, algo como se fosse um dia na vida de um carioca. Da Rhapsody in Blue, ele teve a ideia do tema cardinal - no caso da versão "brasileira", o motivo criado por Billy dentro do ônibus. Tanto cantado quanto em versão instrumental, ele percorre todas as partes da "sinfonia". Porém, ao contrário de Gershwin, a pretensão de Jobim é clássica, mas a intenção, não.

Tom e Billy não levaram muito tempo na composição da "sinfonia". Contudo, do papel para o disco, a composição passou por um parto complicadíssimo. Ambos tinham um bom contrato com a gravadora deles, a Sinter. O problema era o formato da música quem questão. Não havia outra forma de lançar aquilo em outro jeito que não fosse em long-play (ainda antes do vinil, naquelas priscas eras, o LP era um disco de 10 polegadas). No entanto, em 1954, o LP ainda engatinhava no Brasil: poucos tinham aparelhos na rotação adequada e, além disso, ainda era uma tecnologia pouco comercial.

Tanto que, na sua maioria, para lançamentos em LP, as gravadoras faziam uso apenas de sucessos de grandes astistas, como se os discos fossem seleções de sucessos de 78 rotações em formato long-playing. Por conta disso, seria um disparate qualquer selo, em 1954, apostar nesse formato para lançar um disco "conceitual" (?) assinado por dois compositores, e com pouco ou nenhum apelo comercial.

Paulo Serrano, diretor da Sinter, gostou da sinfonia, mas deixou-a na gaveta por meses a fio, até que esquecesse por completo daqueles pentagramas. Quem resolveu exumá-la, em fins de 54, foi Braguinha. Diretor artístico da Continental, ele ouviu partes da sinfonia através de Jobim (que, nessa época, era produtor na sua gravadora), e teve interesse em obter as partituras.

Entusiasmado com a possibilidade de lançar a sinfonia de Tom em disco, negociou os direitos da peça com Serrano. Este daria os originais à Continental, desde que João de Barro lhe "emprestasse" Lúcio Alves para a Sinter. O negócio foi fechado e, em dezembro daquele ano, começaram os ensaios e a gravaçãopara a Sinfonia do Rio de Janeiro.

A cartada de Braguinha era montar o disco usando o cast da gravadora: Lúcio Alves, Dick Farney, os Cariocas, Gilberto Milfont, Nora Ney, e grande elenco. A estimativa era que, com eles e mais os arranjos de Radamés Gnattali, o disco iria emplacar. Era o duelo da intenção contra a pretensão.

A pretensão fez com que a primeira parte, "A Montanha, o Céu e o Mar" extrapolasse o tamanho de um lado de disco de 78 r.p.m. Ao longo de quinze minutos, a faixa, que abre com o leitmotiv de Billy Blanco, em coro ("hino ao sol"), interpretado em pianíssimo por Dick Farney. Em seguida, a música sugere uma marcha que é o day in a life no Centro do Rio ("coisas do dia"), Gilberto Milfont canta o trecho "Matei-me no Trabalho", até que a música vai ganhando fumos de batucada, com Dóris Monteiro, Elizeth Cardoso e Emilinha Borba ("zona sul") e, em tempo de samba-canção ("Arpoador"), sugere uma esticada ao fim de tarde para os lados de Copacabana, já em tom idílico. O tema inicial retorna, de forma ligeiramente pastoral, é retomado por Dick Farney (noites no Rio"), depois por Nora Ney ("O Morro").

Prá não ficar na Zona Sul, a sinfonia sobe e desce o morro (Gilberto Milfont), até o finale, com Dick Farney e o retorno do Hino ao Sol, até a coda, em grande estilo. As demais faixas do disco, são versçoes instrumentais de temas recorrentes (o leitmotiv divertidamente percorre todas as faixas restantes, também) na primeira parte da Sinfonia, todos de Tom Jobim, com o Quinteto Continental (Chiquinho no acordeão, Zé Menezes na guitarra, Vidal no contrabaixo, Luciano Perrone na percussão e Gnattali no piano).

O disco, como era de se esperar, era tão bom que foi um fracasso comercial. Pior do que isso, nenhuma das canções fez sucesso. Nem o grande sucesso de Dick e Lúcio com "Teresa da Praia" conseguiu catapultar o disco.

Já em formato vinil, o disco foi relançado algumas vezes. Porém, ele está fora de catálogo há anos e permaneceria no ostracismo musical por décadas a fio, até ser relembrado no livro Chega de Saudade, de Ruy Castro, no começo dos anos 90. Só seria resgatado do completo esquecimento com o advento da Internet. A primeira parte da Sinfonia, por exemplo, pode ser acessada no Youtube:






Friday, January 16, 2015

Vamos voltar à Pilantragem?



Wilson Simonal

Confesso que li o livro-tese Simonal Quem Não Tem Swing Morre com a Boca Cheia de Formiga, do historiador Gustavo Alonso, e fiquei assoberbado com o resultado do trabalho empreendido por ele.

Mais do que uma biografia, o que a obra não é, o que me surpreendeu foi a coragem do autor em questionar o mito da resistência ao regime militar brasileiro nos anos 70. No caso específico de Wilson Simonal, como ele se tornou um bode expiatório de uma esquerda que, não podendo contestar frontalmente o governo, optou por bater em seus baluartes.

Sem querer vitimizar o cantor, Alonso contextualiza todo o panorama musical da época e demonstra como o tempo serviu para decantar uma imagem de resistência cultural ao regime que, no fim das contas, serviu para criar arquétipos de heróis e vilões, não se importando com suas consequências.

Também mostra que, não apenas Simonal mas, todo e qualquer artista que não estivese em qualquer trincheira de "resistência" era taxado de "colaboracionista". Muito pagaram na época simplesmente por não serem engajados - ou por serem castiçamente nacionalistas (eis o pecado mortal) naqueles anos de repressão.

Alonso com efeito tem influência de Paulo César Araújo, um dos primeiros autores a tentar reabilitar toda a produção musical do período que, com o tempo, ao não ser alinhado ao pensamento de resistência, foi rotulada de desengajada, alienada, como se não tivesse qualquer valor estético. No caso de Araújo, ele ressalta a forma como a música chamada de "brega" foi rotulada de produção inferior e consequentemente marginalizada do panteão da MPB.

Alonso pega o mote e, mesmo que não desenvolva a fundo, por sua vez, quer reabilitar a "pilantragem", movimento deflagrado por Simonal, a partir dos seus discos "Alegria, Alegria", nos anos 60. Pode parecer um disparate, mas o debate é interessante. A questão é que o autor tenta entender por que o Tropicalismo ganhou fumos de arte conceitual e a Pilantragem não.

Em depoimentos, como do próprio Simonal, à época, ele entende tudo como "a mesma coisa". Outros, como Sérgio Cabral (citado no livro), acha que a Pilantragem é uma grande besteira. Fato é que, desde o começo, a tropicália foi assessorada por uma expertise sem precedentes - muito antes que alguém decidisse levar esse tipo de assunto ao status de tese - como os Campos Brothers ou Décio Pignatari. Eles é que popularizariam a frase "linha evolutiva da MPB" sendo o Tropicalismo a síntese da problemática da música nativa em tempos de Indústria Cultural.

Creio que, além de Simonal Quem Não Tem Swing Morre com a Boca Cheia de Formiga, a análise da Pilantragem renderia mais um livro, muito embora não creia que a tese de Alonso seja aceita. Acho, ao contrário do Cabral, que a Pilantragem foi um episódio estético-musical importante nos anos 60, mas não penso que tropicália e pilantragem sejam a mesma coisa, muito embora ache que, da maneira sintética, a Pilantragem soube se comunicar com o público de forma excepcional.

Aliás, anes de mais nada, Simonal era um grande entretainer, como jamais houve e jamais existirá, em todos os tempos. Mas como movimento, mesmo com toda a má vontade que existe com relação à qualquer coisa que envolvesse Carlos Imperial (nesse sentido, ele será eternamente subestimado), se existe um cérebro por detrás disos, ele é o seu criador.

O que difere os dois movimentos é que o Tropicalismo se valia totalmente pelo carnavalesco, pela paródia, pela intertextualidade, isso é o que atraiu Pignatari e companhia. A Pilantragem era um fenômeno de massa. A tropicália certamente queria deglutir ou parafrasear Simonal mas, pelo seu caráter paródico, ela estivesse mais na linha da metalinguística da pororoca cultural da época do que um gênero musical comercialmente consolidado, como a Pilantragem.

No fim, a Tropicália parece que foi banida por carnavalizar o elemento político (a estampa de Hélio Oticica na Boate Sucata, em 68) e a Pilantragem, por parte de Simonal, ao tentar defender esse mesmo elemento político (canções como "Brasil, eu fico" ou "País Tropical"). Restou aos tropicalistas o exílio político e à Simonal, a crítica das "patrulhas" e o exílio musical.

Simonal acertou quando, em entrevista ao Pasquim, em 69, disse que a Pilantragem estava próxima da produção de gente como Chris Montez e Herb Alpert. Isso numa época em que ou se era contra ou a favor, ou se era pelo imperialismo da guitarra ou pelo nativismo da queixada de burro, um outro entretainer como Sérgio Mendes abandonara o hard bop da Bossa do tempo do Beco das Garrafas para fazer música brasileira prá gringo ouvir. Se formos analisar, não como movimento estético, mas como fenômeno musical, a Pilantragem está no Brasil 66. E, de forma sintomática, não era gratuito que Sérgio Mendes fosse artista da A&M, do próprio Herb Alpert.

Simonal tinha restrições quanto à americanização das crooners do Brasil 66. Porém, o som de ambos se complementa. Simonal potencialmente era um artista de projeção internacional. Poderia ter feito com Mendes nos Estados Unidos o que fez no Maracanazinho. O problema, provavelmente,foi de foco.

A fórmula era simples: pegar toda a modernidade do samba de Bossa Nova e misturar com pop: transformar Day Tripper em sambalanço e vender milhões. Porém, um pop brasileiro com um resultado original, ao contrário do que Imperial fazia com a Jovem Guarda. "Vem Quente que estou Fervendo" é pilantragem. "O Bom" era pilantragem. Só que, como pastiche de iê iê iê, parecia mais do mesmo. Como pilantragem (não apenas por conta da temática, mas nos arranjos a la Cesar Camargo Mariano) soaria como algo "moderno".

Inclusive, apesar dos ruy castros, é possível entender a Pilantragem como o movimento que Gustavo Alonso entende, nem que seja para defender gente como Simonal, Erlon Chaves ou Sergio Mendes da acusação de estelionato musical contra o inefável cânone da Bossa Nova.








Tuesday, December 23, 2014

Outros Dezembros




A Rua da Praia



Eu nunca tinha ido na Fnac aqui antes. Me disseram que era uma livraria. Eu tinha que comprar presente e me vi obrigado a entrar num shopping em véspera de Natal. Pois eu fui lá segunda e fiquei impressionado; achei que fosse uma livraria, como me mentiram, mas me senti no Lojão Oba-Oba, nos altos do Mercado Público.

Loja ruim, só vende bugigangas eletrônicas, livros em pilhas, cestas, gente trêfega transitando feito formigas hipsters doidaças ligadas em benzedrina, um lugar cheiro de gente que te desumaniza, desumaniza os clientes, desumaniza os funcionários, mas ninguém liga. Essa sádica resilência resume bem o espírito de Natal, um altruísmo meio idiota em homenagear aqueles que nem merecem tanto (isso é outra história, prefiro deixar as indiretas para o Facebook, que é o lugar mais apropriado). Enfim, achei uma bela droga.

Mas isso me provocou um efeito curioso. O fantasma do Natal passado roçou minha fronte. De repente, fui raptado à outros dezembros. Me lembrou do tempo das Lojas Americanas da Andradas lá pelos anos 80. Naquele tempo, as Americanas eram, com efeito, o paraíso das gadosas. Minha avó usava muito esse termo, que achava tratar-se de um divertido eufemismo, mais do que um arcaísmo quase obsceno em seu uso e costume.

Naquelas priscas eras, não havia venda pela Internet, Então, essas lojas de departamentos eram gigantescas. A melhor devia ser a que tivesse tudo, e as Lojas Americanas se propuseram a tal artes de Marcúrio, tanto que ela era a maior da cidade, com quatro andares. Você não ia no Centro senão para ir nas Americanas.

O legal das Americanas naquele tempo era isso, um atacadão de quatro andares, com uma baita lancheria nos fundos do piso da Andrade Neves. Isso no o tempo em que o chic no footing da Rua da Praia era conhecer a primeira escada rolante da cidade, imagina, a gente ia nas Americanas para provar aquele sundae proustiano de três andares. Olhava todos os produtos, andava por todos os corredores da loja, mas só tinha o dinheiro contado do sorvete. A Americana nova (como a gente chamava, já que tinha a velha, quase na esquina da Borges) era o frenesi de andar na Rua da Praia no final dos 70 e pelos anos 80 afora.

O calçadão já não tinha aquela poesia de aquarela da commedia del arte das crônicas do Nilo Ruschel, mas reservava lugar para seus derradeiros tipos folclóricos, como o ex-bancário conhecido pelo nome de "gurizada medonha", que era o seu pregão ao vender bilhetes de loteria. Não havia mais nada de bonito no calçadão, mas não era insuportável como hoje, onde metade da flanêrie da esquina da Uruguai se resume a panfleteiros (e a intrépida turma do shake emagrecedor instantãneo).

Porto Alegre era uma cidade provinciana. A rigor todas são. O problema é quando são e querem bancar o status de cosmopolitas, coisa que a capital do estado aqui não é e nunca vai ser. Por exemplo. O programa do porto-alegrense nos 80 era 1) fazer piquenique para ver os aviões decolarem e pousarem no Salgado Filho velho; 2) andar na escada rolante das Lojas Americanas.

A história recente deste triste burgo açoriano pode ser resumido em antes da escada rolante das Lojas Americanas e depois da escada rolante das Lojas Americanas. Aquilo foi um acontecimento socio-antropológico-cultural na vida do habitante da capital dos gaúchos. Era um frenesi, a Era do jazz aplicado ao capitalismo de consumo onde as flappers eram, como dizia minha avó, as gadosas. Ou, empregadinhas, como se diz, de forma corrente (sem preconceitos, embora houvesse 100% de preconceito nisso).

Não havia shopping. A vida era na calçada. Hoje existe um movimento de "ocupação" de espaços urbanos, provavelmente por conta de um atavismo que assiste a cada cidadão, justamente porque nós esvaziamos a calçada. Parece bobagem, mas (nem filosofávamos muito nisso, tão distraídos que estávamos em nossa triste juventude) Juntava a grana da mesada (semanada, no tempo do overnight), mas a grande aventura era o Centro. Chegar até lá só para provar o sundae do Rib's no Largo dos Medeiros (ainda diz isso? Ninguém mais usa esse nome, embora seja oficial) ou das Americanas. A desculpa era sempre alguma fita de cinema (também de calçada (não rende outro post porque é assunto batido, desculpem)).

O porém e que o Rib's (que hoje só existe na memória e na marca de mostarda do tipo "gás lacrimogêneo") da Andradas era povão. Era prá A La Minuta. Não era fast-food como são os fast-foods. Acabou sendo distorcido como um restaurante popular chic, que você almoçava apressado comendo numa mesinha embutida, com a cara virada para a parede.

E não tinha shopping, o Iguatemi é de 82. Havia o João Pessoa, mas ninguém nunca levou ele a sério. O point da azaração antes disso, por incrível que pareça, era a Galeria Malcon, Imagina. Afinal, ficava na parte (um pouco) mais elegante da Andradas, que era entre a Marechal e a Dr. Flores. E tinha a Krahe, naquela altura da Andradas (perto da Ajax) que também tinha uma lanchonete dentro. A moda era loja com snack bar dentro. Aliás, foi concebido como uma mímese de um snack ianque, mesmo. Parecia original e exótico naquelas priscas eras, algo que hoje está arraigado no modelo instituído de lanchonete, inspirada nas suas respectivas matrizes estrangeiras.

A ideia era excelente. Até porque não era só eu que frequentava lojas só com o dinheiro contado do sorvete. Uma lanchonete era a desculpa para chamar clientes. A Renner da Dr. Flores também tinha uma lanchonete no subsolo (antes do incêndio tinha um restaurante no último andar, também). Hoje, se você reparar, isso não faria o menor sentido.

Naquele tempo, estávamos longe do advento dos fast foods na cidade. Alguém chegava de fora e dizia: "bicho, eu fui no Mc Donald's!". Alguém que dissesse que esteve no Rio ou São Paulo e contasse que esteve num Mc Donald's era automaticamente guindado à estatura de uma celebridade, sendo capaz, inclusive, de influenciar opiniões de grupos sociais diversos, principalmente os mais provincianos (brincadeira).

Lembra da Sloper? Só tinha coisa de mulher. Minha mãe me levava amarrado, eu era piá, imagine, uma criança numa loja que não vende brinquedo. Loja de departamentos sem seção de brinquedos é um saco (convenhamos). Quantos filhos foram torturados por suas respectivas mães ao terem que acompanhá-las em suas incursões pelas dependências da Sloper? Ficar horas lá dentro emburrados enquanto elas ficavam experimentando roupa ou maquiagem? Ou aguentá-las em estado catatônico diante da vitrina da Sloper?

Voltando, o chic era ir no Rib's da Indepê, lá na praça Júlio de Castilhos, ou no Joe's, na Ramiro, mas que era e sempre foi um snack meio careiro. O Rib's do Moinhos era mais para frequentar aos finais de semana, quando o titio ou o papai nos levava para passear de carro pela cidade. A gente sempre terminava o domingo no Rib's da praça Júlio. Inclusive, ninguém mais chama a Independência de Indepê, isso é do tempo da Cantina, da Tia Dulce e do Butikin, da Mariam Makeba, do Rui Sommer, do Laurício e do Scala na zaga do Internacional (a ser desenvolvido, fica para o próximo post). Este já está ficando saudosista e, por tanto, ligeiramente chato.