Monday, April 27, 2015

O exílio do Conde


Monumento à Marques de Souza, na Matriz



Muita gente insuspeita que passa pela Duque de Caxias, na altura da praça Conde de Porto Alegre não sabe, mas aquela estátua, que rende homenagem ao general Manuel Marques de Souza, foi o primeiro monumento da cidade.

Inaugurada em 1885, ela ficava na Praça da Matriz. Em 1912, o monumento foi transferido para o logradouro a qual ela pertence hoje. De maneira discreta, ela foi substituída para que o antigo local recebesse o fulgurante monumento ao 'patriarca' Júlio de Castilhos.

Interessante notar que essa efeméride fala muito justamente por aquilo que ela deixa de falar. Afinal, não se tratou de uma simples troca. De um lado, havia o líder do ciclo político que então vigorava. De outro lado, havia um dos baluartes militares do movimento de contestação ao movimento farroupilha de 1835. O general Marques, entre outras coisas, entrou para a história por ser o libertador da cidade de Porto Alegre do jugo farrapo, em 1836.

Por detrás daquilo, havia um conflito que envolvia uma história política que ia desde a exaltação do 20 de setembro ao surdo protesto da resistência liberal no Rio Grande do Sul contra o autoritarismo borgista.

Pois em 1912, quando a nova estátua foi colocada na Matriz, a oposição política estava fraturada. Derrotados na Revolução de 93, duas décadas antes, os Federalistas amargavam um ostracismo total: não tinham representantes nas assembleias.

Mesmo com a modificação da Lei eleitoral, em 1913, que permitia a eleição de oposicionistas, a sua respectiva representação era inexpressiva. No período da remoção da desafortunada estátua, era difícil conseguir espaço público para protestar à esse desmando. Mesmo na imprensa, poucos foram os que se aventuraram a comentar o assunto.

Um deles foi Mário Totta, jornalista do Correio do Povo. Numa crônica, ele reclamava da "remoção do conde". Contudo, ele não critica ali a natureza da homenagem à Castilhos, uma estatuária que, segundo Sérgio da Costa Franco, é carregado de alegorias tendentes à exaltação de um líder partidário, de um sistema político e de uma constituição autoritária". Na verdade, Totta media as palavras: o seu "protesto" residia no texto, sobe a forma de oração, feito uma exaltação à memória do Conde de Porto Alegre como que transubstanciado no mármore e pedra lioz.

- Para glorificar o teu desalojamento, o mundo oficial encasacou-se - bramiu Totta. - A Intendência pôs à cabeça o chapéu alto de seda, alinhou-se um colégio militar. Uma escola primária vestiu-se de branco, falou-se de uma tribuna, narrando os feitos do soldado invencido e cantou-se - suprema ironia da sorte - um hino de patriotismo.


Na verdade, mais do que aquelas palavras pudessem expressar, havia um componente simbólico. Imperialista, o Conde representava o passado cujo futuro era o republicanismo castilhista que, a partir dali, entronizava a aventura farroupilha como um movimento proto-republicano. Em pleno ciclo borgista, não havia mais lugar para um oficial que havia derrotado os farrapos. O Conde era a imagem da resistência imperial durante a guerra civil de 1835.

Da mesma forma, e por conta disso mesmo, o sítio de Porto Alegre aos rebeldes nunca foi alvo de grandes estudos. Afinal, toda a historiografia relativa à Revolução Farroupilha é marcada pela devoção à Bento Gonçalves. Com alguma exceção, todos os ensaios se debruçam ao imaginário do 20 de setembro.

A verdade é que, como vemos hoje, o sítio de Porto Alegre foi um fracasso dos farrapos. O responsável pela derrota foi, justamente, o general Marques de Souza que, devido ao seu ato (a reação de 15 de junho de 1836), recebeu o título de Conde, e a capital de "Leal e Valorosa" ao Império, em 1841. Mesmo que com superioridade numérica, terem submetido aos moradores à fome e à toda a sorte de privações (abastecimento de carne, por exemplo) cercassem e criassem escaramuças e tocaias pelos arredores (construíram uma fortificação onde hoje fica a Avenida do Forte, na Zona Norte da cidade), nunca conseguiram retomá-la.

Da mesma forma, para a historiografia, não parecia interessante fazer uma crônica das atrocidades cometidas pelos Farroupilhas em nosso intrépido burgo açoriano. Mas a história é interessantíssima: tanto a reação do Conde quanto à forma que os cidadãos souberam adequar-se à situação adversa - pequenos heróis cuja resistência não ganhou destaque.

Enfim, o Conde era e é, de certa forma, mais do que uma homenagem ao homem, é um símbolo daquela resistência, mesmo que "imperial", é uma resistência do povo da cidade de Porto Alegre. Esse olhar foge ao flanêur que vê o monumento escondido ali, aviltado, subestimado, rechaçado, esquecido, naquela patética trincheira que se transformou a avoenga praça Conde de Porto Alegre - principalmente depois das alterações ocorridas nos últimos anos nas redondezas, o fechamento da Riachuelo, a eliminação da última quadra da Annes Dias e a construção do Viaduto Loureiro da Silva.

Como diz o supracitado Sérgio da Costa Franco:

- Incoerente, a cidade ergueu monumentos e votou homenagens aos sitiadores que a maltrataram, e esqueceu os soldados, marinheiros e paisanos voluntários que garantiram sua integridade em quatro anos de lutas.


Fazendo contraponto à Totta, na ocasião da inauguração do monumento à Júlio de Castilhos, o federalista, Carlos Torelly, mandou publicar um texto com fumos condoreiros, onde critica veementemente a remoção. Achou que a pressa em render homenagem à Castilhos era medo de que outro regime posteriormente mudasse de ideia (como Borges que, desomenageara o Conde): "as estátuas (...) não nascem de um decreto (...) elas nascem do coração do povo, para serem amadas pelo povo". Por fim, diz: "Castilhos, espera! O Conde esperou trinta anos. espera o que dirão aqueles que virão amanhã. Quem sabe se serás transladado também por falta de proporção entre ti e o monumento? O futuro dirá".

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