Saturday, April 25, 2015

Desomenagens


Cícero


Há duas semanas, entrou em tramitação na Câmara de Vereadores de Porto Alegre um projeto de lei que prevê a extinção e a troca de nome de todas as instituições, equipamentos, logradouros e espaços públicos da Capital que prestem homenagem àqueles que participaram da ditadura militar no Brasil (1964-1985).

Ó, tempos, ó costumes, diria Cícero nas suas verrinas. Lembro de uma curiosa história. À coisa de dez anos atrás, a vereança da cidade de Liverpool queria desomenagear o inglês que é homenageado no ponto de ônibus Penny Lane, no subúrbio da cidade inglesa. Muitos foram contra, na época, alegando que suprimir o nome do lorde inglês, famoso por ser um famoso e truculento traficante de escravos, da história significaria fazer com que justamente não víssemos hoje quem éramos no passado: capazes de lisonjas e panegíricos da pior infâmia.

Ou seja, sim, cada tempo tem o seu modo. Cícero tem razão: nós cometemos gafes históricas pela vida afora, e o que é pior, muitas vezes inscritas em bronze e franqueadas pela pátina do tempo.

Indo do geral para o nosso particular, e voltando ao nosso burgo açoriano: todos conhecem uma artéria do Centro chamada Coronel Genuíno. Ela liga a Floriano Peixoto até a Ponte de Pedra, no sul da península da cidade antiga. Pois bem: Floriano teve seus desmandos durante a Revolta da Armada perdoados pelo esquecimento.

O mesmo certamente ocorre com o Coronel Genuíno (Tenente-Coronel Genuíno Olympio de Sampaio), que virou nome de rua depois de massacrar os Muckers no Vale dos Sinos, episódio terrível e que possui cognato com o que ocorreu nos sertões da Bahia, durante a Guerra de Canudos (1896-1897). Pelos mesmos critérios propostos pelo projeto de lei citado acima, não deveríamos desomenageá-lo também, por exemplo?

Ou devemos relativizar, já que o crime foi "há muito tempo atrás"? Ou manter, para que as futuras gerações (como essa) vejam o tipo infame de homenagem a que éramos capazes de prestar (outros tempos, outros costumes)?

Mutatis mutandis, se a palavra de ordem na Câmara de Vereadores é desomenagear em critérios de "crimes da pátria", teríamos mais trabalho em renomear instituições, equipamentos, logradouros e espaços públicos da Capital do que batizar às centenas de ruas de Porto Alegre que, inexplicavelmente, ainda são imberbes servidões pagãs...

Falando em desomenagens e na história do nosso burgo: em 1870 a intendência de Porto Alegre mudou o nome da rua da Bragança para General Silva Tavares. O engraçado é que o preclaríssimo oficial recebeu a homenagem em vida e, em 1893 (quando da guerra Civil entre Maragatos e Pica-Paus, conhecida como a revolta da "degola", por ser a prática comum durante a conflagração), se bandeou para o lado dos revoltosos maragatos na nossa fratricida refrega.

E na época, o intendente da cidade, que era (Intendente Azevedo, que virou nome de rua também) chimango (legalista), vetou e desomenageou o Gen. Silva Tavares para, em seguida, homenagear o supracitado Floriano Peixoto, aquele mesmo, da famosa Revolta da Armada.

Outro caso clássico é o da Cabo Rocha, antiga Sans Souci (por causa de um sítio que tinha esse nome, no começo da rua, no bairro Santana) que foi desomenageada por causa do seu passado ligado ao baixo meretrício. Problema é que a homenagem era mais do que justa, já que a região é um sítio histórico, onde ele foi o comandante da primeira vitória dos farroupilhas. Nos anos 60, mudaram o nome para Freitas e Castro.

Enfim, assunto é complexo e delicado, mas pensei: por que apenas "àqueles" da Revolução de 1964? Ou seja, isso abriria precedente para que a Câmara recebesse, nos próximos anos, pedidos de projetos relativos à desomenagens similares. Afinal de contas, e os outros "crimes da nacionalidade", como diria Euclides da Cunha? Foram perdoados pela falta de memória de um povo que não conhece o seu passado?

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