Monday, May 04, 2015

Muito além do Cidadão Welles


Cartaz do filme


O mundo comemora esta semana o centenário de Orson Welles. Eu, como muitos dos que assistiram ao seu clássico de 1941, Cidadão Kane, sempre tive a imagem do diretor norte-americano como uma espécie de "Homem da Renascença" da Sétima Arte, como diria Ruy Castro* . O artista total. No seu tempo, só comparável a Chaplin.

Ao mesmo tempo, pegando a mesma ideia do roteiro do filme, imaginei me colocar na pele do repórter que, depois da noticiada a sua morte, designado a tentar recriar, através de depoimentos, o perfil de quem foi Orson Welles.

Muitos o associavam à imagem de um renascentista. Um biógrafo dele, John Russel Taylor, disparou: "Orson é a sua própria criação, com Deus como produtor associado. A escritora, poetisa, dramaturga e crítica literária Dorothy Parker disse sobre ele: "foi como conhecer Deus sem ter morrido".

A atriz Geraldine Fitzgerald suspirava depois de conhecê-lo: "parecia o Deus de Michelângelo!". Marlene Dietrich, que dispensa apresentações, dizia que olhava para o céu ao ouvir o santo nome de Welles.

Norman Mailer: "a humanidade nunca produziu um homem mais bonito que o jovem Orson welles em Cidadão Kane".

Na verdade, hoje é fácil amá-lo ou odiá-lo. Opiniões pró ou contra elas existem às pencas, escorrem pelas paredes e estantes de bibliotecas. John Simon, da turma do contra, certa feita deu a largada: "Welles passou a vida investindo o seu considerável talento na tarefa de glorificar o seu gênio imaginário".

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O repórter que fosse fazer um perfil sobre Welles teria que montar um quebra-cabeças. Como o incensado gênio precoce de Hollywood se transformou naquele bufão da propaganda dos vinhos Paul Masson (há quem diga que aqueles outtakes da filmagem que aparecem no Youtube são a sua melhor interpretação).

A queda de Welles lembra a queda de outros "gênios" que, depois de darem ao mundo a sua obra-prima, simplesmente pereceram, moral, filosófica ou físicamente: Proust, Kerouac, Capote. A filmografia do diretor norte-americano pós-Kane é uma lista de filmes inconclusos, terminados à sua revelia - além daqueles que nunca saíram do papel.

Nos anos 70, apareceriam teses que buscavam se não derrubar a inexpugnável imagem do renascentista Welles, pelo menos chegar ao paroxismo de emoldurá-lo a um contexto possível, muito além da fama de gênio instantâneo que o notabilizou.

Em sua autobiografia, John Houseman, um dos homens que lançou Orson, explicou que, nos tempos do Federal Theatre Project, tudo começava com uma reunião com o elenco sobre a possível adaptação de um determinado texto, porém, no fim, quem escrevia os roteiros era ele, Houseman. Welles só aparecia no fim, quando os ensaios e a trilha já estava pronta.

Na mesma época, descobriu-se que havia um sujeito por trás da história da Guerra dos Mundos, e esse sujeito era Howard Koch, roteirista do tempo do Mercury Theatre e mais tarde o co-autor do texto de Casablanca.

A maior polêmica, no entanto, foi um ensaio de Pauline Kael na New Yorker, em 1971. Intitulado de "Raising Kane" (mais tarde transformado em livro), ela revela que Welles tem papel capital na direção, mas escondeu o verdadeiro gênio do filme, que é Herman Mankiewicz.

Mankiewicz era um jornalista da costa leste e que foi jovem para Hollywood tentar a sorte como roteirista. Fez sucesso o bastante para tornar-se um dos comensais dos saraus de William Hearst, com quem convivem por dez anos, até um rompimento fatal em 1936.

Fatal porque Mankiewicz era um dissoluto: naquela década, a bebida e o jogo arruinaram sua carreira na Califórnia. Demitido dos grandes estúdios, não conseguia emprego nenhum, até ser contratado por Orson, já sob os auspícios da RKO.

Welles queria fazer um filme sobre a vida de um homem famoso. Mankiewicz conhecia bem Hearst, a ponto de saber detalhes íntimos da vida do clã através de Charles Lederer, sobrinho de Marion Davies, a famosa cortesã do magnata das comunicações.

Hearst era popular na américa (como Roberto Marinho ou Chateaubriand no Brasil) e a forma como ele ergueu seu império eram conhecidas. Contudo, Mankiewicz tinha a chave. Ele era o homem certo, e tinha escrúpulos suficientes para topar a máxima de que "perde-se o amigo mas não a piada".

Basear Kane em Hearst era suicídio, porém a RKO bancou. Hearst odiou o filme e fez de tudo para eliminá-lo. Não tanto pela sua imagem, mas para quem viu o filme, pela interpretação de Dorothy Comingore para Susan Alexander Kane. Para muitos, um retrato sem retoques, embora muito além da paródia, de Marion Davies.

Mais do que isso, o repórter do filme procura decifrar o significado as pretensas derradeiras palavras de Kane ("rosebud"). A palavra, inscrita no trenó do menino Kane e a chave do enigma, era a forma carinhosa pela qual Hearst chamava o clitóris de Marion.

Não apenas a inconfidência da expressão mas a forma obsessiva e possessiva como Kane lida com Susan no filme, tudo aquilo tinha parentesco com a relação Davies-Hearst. E alguém certamente (o roteirista) estava muito bem municiado de informações sobre. E esse alguém só poderia ser Herman Mankiewicz.

Ele foi capaz de "expor" o clitóris de Davies no filme e pagou caro por isso. Hearst o perseguiu até o fim do mundo (não precisou ir tão longe: o homem acabou seus dias não longe dali, dentro de uma garrafa). O mesmo fez com Welles: conseguiu o boicote ao Citzen e quase pôde apoderar-se dos negativos e das cópias.

*****

A crítica de Pauline Kael a Welles talvez tenha sido um duro golpe não ao talento do diretor, que é observado por ela mas, sim, à imagem moderna do "artista total", o mito do diretor moderno, quase um Wagner. Kael dizia que a ideia de Kane não era original.

O tema já havia sido explorado por Hollywood antes. A diferença é que Mankiewicz soube, com maestria, dourar a pílula. Ninguém poderia ir além de Citzen, principalmente por seus diálogos inesquecíveis. O que deveria ser levado em consideração era o fato de que o autor, desde sempre, era o catalisador, mas sua arte era, em última análise, fruto de um espírito coletivo (nada mais politicamente correto).

Esse é o grande problema: como dissociar nosso herói de sua criação maior, sem dissociar tudo? Parece incrível pensar que tanto a efeméride da Guerra dos Mundos quanto à excelência de uma obra-prima como Citzen Kane consigam sustentar um mito impossível de derrubar. Nem mesmo o próprio diretor que, ao mesmo tempo em que cuidou de auto-promover-se, conseguiu destruir a sua reputação, transformando-se, pela vida afora, numa cópia de si mesmo.

Peter Bogdanovich, diretor e autor de um livro onde ele publica horas de conversações com Orson, parece entender que Welles era um pouco (ou totalmente) Kane. Para ele, a obra de seu entrevistado é uma tentativa de idealizar um passado que "se perdeu antes de ter existido".

A conclusão do diretor de "The Last Picture Show" é a mesma do repórter do filme. Parece que nós já lemos, ouvimos e assistimos à tanta coisa a respeito do biografado que não há por que buscar uma resposta-chave.


* Ruy Castro, Saudades do Século 20, Companhia das Letras, 1994.









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