Thursday, January 22, 2015

No Tempo da Mundial



Propaganda da emissora em 1970


Quando era estudante, fui fazer pesquisa sobre a rádio Guaíba de Porto Alegre. Para ilustrar meu trabalho, fui até aos estúdios a fim de conseguir algum áudio preservado de programas antigos. Qual não foi o balde d'água que eu levei quando soube que não só a Guaíba mas, em geral, nenhuma rádio, pelo menos aqui, no Brasil, tem qualquer preocupação em guardar isso.

Na ocasião, um funcionário (isso foi em 1999) me disse que o pouco que eles tinham (e era disponibilizado no site) havia sido preservado pelo Flávio Alcaraz Gomes, como o áudio da inauguração da Guaíba, em 1957. Tempos depois, achei alguma coisa não muito longe dali, no setor de Imagem e do Som do Museu Hipólito da Costa.

Muitas das fitas do acervo do Museu eram provenientes de doações de ouvintes que, por algum motivo útil, preservaram trechos de programas de rádio, como o Discorama, do Osmar Meletti. Eu mesmo sempre tive o hábito de gravar o broadcasting de emissoras de rádio. Porém, como não tinha interesse em guardar e catalogar, por falta de espaço, acabava apagando e regravando coisas em cima dos cassetes.

O estudo da memória do rádio, ainda mais do rádio brasileiro, que é um rádio de (vá lá) mentalidade terceiro mundista, é algo que se ressente da falta de preservação desse tipo de registro. Como saber como era o tipo de transmissão, o modelo de rádio de tempos passados, se não tivermos pelo menos uma amostragem? Como diria alguém, tudo o que propaga no éter, morre no ar; não fica registrado, como no caso da mídia impressa, por exemplo (o mesmo acontece com a nossa TV).

Naquele tempo eu imaginava que era possível que algum ouvinte de rádio, mesmo que sem interesse "acadêmico", teria guardado material em áudio - justamente a partir da popularização de gravadores portáteis, a partir de meados dos anos 70. Mesmo assim, seria algo improvável, empírico, sem método algum.

Fiquei surpreso quando, há pouco tempo, com o surgimento do Youtube e o consequente desenvolvimento do site com vista a disponibilizar um espaço cada vez menos limitado de streaming, muitos usuários (rádio-escutas amadores ou quase isso) passaram a postar áudio convertido de cassetes gravados e guardados por décadas a fio - na Internet.

Pego como exemplo duas gravações da rádio Mundial do Rio de Janeiro. Adquirida pelo Sistema Globo de Rádio em 1966, teve o seu auge durante os anos 70, sob o comando de Newton Duarte, o disc-jockey Big Boy. Há cerca de dois ou três anos, é possível acessar áudio de trechos de programas da emissora, registrados há mais de trinta anos, e disponíveis em streaming.

No Youtube, entre outros registros, pude encontrar dois arquivos interessantes: amos são trechos do programa Show dos Bairros (que era apresentado por Oduvaldo Silva, de segunda a sexta, das 9 da manhã até o meio-dia) respectivamente gravados em agosto de 1972 e em fevereiro de 1981.



O que é possível depreender desse áudio: a Mundial ainda tinha um o atavismo do rádio do speaker; locução empostada. A despeito de ser um programa popularesco - locução com notícias breves e bloco musical feito por votos de ouvintes, cujo pedido era associado ao seu respectivo bairro ("a música do Arpoador"), o que naturalmente explica o nome do programa.

Outra: a gravação é de agosto de 1972. Era o auge da Mundial. Líder de audiência entre o público jovem, no ano anterior a 860 foi eleita a emissora do ano pela Revista Propaganda. Também era o auge do Regime Militar, é possível, logo de largada, ouvir o spot governamental do Centenário da Independência.

Nos reclames, nota-se que a Mundial fazia parte do esquema da Globo na divulgação do (malfadado e polêmico, como se sabe hoje) VII Festival Internacional da Canção. Não seria à toa que várias músicas na programação são do certame ("22 Andar", Edison e Aloísio e "Diálogo", Cláudia Regina e Tobias), e propaganda massiva do Festival (de citação de participantes até o jabá do disco com as canções, à venda, em elepê).

Quem lembra do Oduvaldo dos anos 80 certamente vai estranhar algo que era notável: apesar da sisudez da locução, provavelmente por conta da direção artística do Big Boy, ele faça uso, como pedras-de-toque, de gíria ("é isso aí, amizade", "uma jóia"), com objetivo nítido de imprimir mais coloquialidade - era a mudança do modelo de rádio popular, cujo paroxismo eram, com efeito, os programas do Big Boy. Ao mesmo tempo, é possível notar como o AM daquele tempo lembra um pouco o que viria a ser o FM nos anos 80.

A programação é basicamente de MPB e pop internacional (Oduvaldo chega a anunciar Eddie Kendricks!), e os blocos de notícias são quase inexistentes. Uma, por exemplo (aos 17:00), refere-se à Chico Buarque, sobre "pregar a MPB à universidades do interior". Na verdade, tratava-se de uma caravana patrocinada pela sua gravadora, a Phonogram.

Não entendo por que a informação saiu pela metade. Ou, de certa forma, pelo contexto, entende-se: era melhor para um canhão como a Mundial que fosse apenas um vitrolão. Numa época de uma outra realidade da indústria fonográfica, o esquema (legal ou ilegal) entre gravadoras e rádios era algo muito rentável.

Por fim, nota-se a propaganda do Baile da Pesada, do Big Boy e depois do Furacão 2000 - basicamente a peça de resistência da Mundial nos anos 70, até o seu desaparecimento, em 1977. O esquema dos bailes pelo subúrbio carioca e interior fluminense continuou, mas, com a morte do Big Boy, toda uma época desapareceu com ele.

Para tanto, basta comparar o vídeo acima com este. Outro broadcast do Show dos Bairros, dez anos depois.



Em 1981, a Mundial já havia perdido muito do seu brilho perante o público do segmento jovem, que ora crescera ou migrava progressivamente para a Frequência Modulada. Aquele tipo de programação também faria o mesmo percurso. Nesse novo contexto, nota-se que o Show dos Bairros já atendia a um segmento bem popular.

Isso se reflete tanto na programação musical, quanto na pauta de notícias, com a precípua finalidade de prestadora de serviços, e outro fator primordial, que é - como podemos "ouvir" na gravação, é o contato com o público. Agora, os ouvintes não são "citados" por seus respectivos bairros, mas agora falam no ar.

A sequência musical reflete essa mudança. A seleção vai do udigrúdi (Abba) sambão (Beth Carvalho, que fazia bastante sucesso naquele tempo) até trilha sonora das novelas da Globo ("Noturno", com Fagner). Aqui, também, nota-se a parada ligeiramente orientada pelos sucessos dos mais vendidos franqueados por lojas de discos do Rio: algo que hoje inexiste no rádio FM, o que dizer do AM?

Segue a propaganda massiva de bailões, contudo, não mais o funk americano dos finados tempos do Big Boy e Ademir, mas samba (fora a propaganda dos bailes de pré-Carnaval) e o funk romântico pós-discoteca, e que é, justamente, o que nós mais lembramos (o auge dos "melôs") - charm típico dos anos 80 e começo dos anos 90, quando a Mundial, tal qual conhecíamos, finalmente acabou.

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A contribuição pode ser pequena ainda (não se sabe o que é possível de se obter colaborativamente, a partir desses usuários), mas demonstra que, a partir desses rádio-escutas, é possível fazer uma base de dados de valor inestimável, não em termos de nostalgia - o que é válido, mas pela inefável contribuição desse material que, dia a dia, está a ser descoberto, para um maior aprofundamento dos estudos da história do rádio no Brasil.




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