Thursday, February 12, 2015

Contra o Próprio Catecismo


Capa do novo disco de Bob Dylan


Dia desses (segunda passada), li uma resenha sobre esse último disco de Bob Dylan, Shadows in the Night. O autor disse que, em seu novo álbum, o cantor e compositor reassassinava Sergei Rachmaninoff, em "Full Moon and Empty Arms", uma das canções do seu recente trabalho. A música em questão é uma paráfrase de um tema do Concerto para Piano No. 2 em Dó Menor, do compositor russo.

Esse artigo (ou post, como os meus seis leitores preferirem) que escrevo aqui não é uma resenha do Shadows in the Night. Ou melhor, é. Mas, de uma forma diferente.

O texto a que me refiro diz que era hábito da música americana dedicar-se à esse tipo de necrofilia de temas clássicos em canções populares à la Tim Pan Alley. E era. Isso fazia parte da indústria do entretenimento da época. Na verdade, isso é uma questão recorrente: quantas músicas que tornaram-se grandes sucessos não são paráfrases de temas clássicos?

A questão de Dylan em Shadows in the Night é crucial. Aqui não o vemos como o bardo, coisa que ele é, e com folga (não sou eu quem digo isso) mas como cantor (coisa que ele não é, e não sou eu quem digo isso). Mas ele, Bob Dylan, mostrou duas coisas ao pessoal do Tim Pan Alley: que um cantor pode fazer as suas próprias canções, assim como um cantor não precisa ser um rouxinol de esporas e penacho, como um Perry Como ou um Johnny Mathis (ambos colegas de Dylan na CBS).

Dylan passou daquela fase em que ele tinha que provar a que veio. Além de não precisar, tem um contrato favorável com sua gravadora onde seu prestígio perante critica e público (e quem o paga) é considerável. Por conta disso ele, hoje, passando os umbrais dos setenta, tem carte blanche gravar o que quiser.

Todo mundo tem a sua vez. Qual não foi o músico que, chegando nos píncaros azulados da carreira, não desejou transcender o seu metiér e fazer algo diferente? Depois de um Rod Stewart, de repente, do alto de sua confissão roqueira, descer do pódio e interpretar "The Way You Look Tonight", tudo é permitido. Na verdade, os críticos e os fãs é que não passam de chatos.

Não existe nada mais terrível do que ser refém do seu próprio catecismo. Carmen Miranda morreu disso. Morreu com um chapéu de bananas na cabeça. Nunca conseguiu sair do seu estereótipo. Dylan, por exemplo, é um sujeito que, como vocês sabem, não tem paciência para ser chamado de menestrel das esquerdas. Nunca se considerou um cantor de protesto. Como a nossa Pequena Notável, ele vai morrer com esse chapéu na cabeça.

Mas vai morrer sendo do contra. Dessa maneira, não é gratuito achar que o compositor de "Blowin' In The Wind" fez algo tão banal e fútil como um disco de Natal (Christmas in The Heart) se não fosse algum tipo de blague. Pegando esse mote, não é gratuito cogitar que Shadows in the Night tenha um fundo falso.

Lógico que não quero insinuar que, nesse fundo falso, Bob Dylan queira trepudiar das músicas que interpreta, muito menos da cara homenagem ao centenário Frank Sinatra - o crooner que transformou o Great American Songbook na trilha sonora do grande sonho ianque.

Uma coisa deve ser levada em consideração é que Dylan leva seu trabalho muito a sério - mesmo quando não parece. Na verdade, seu novo álbum é uma bela homenagem - e o fato dele reassassinar o Concerto para Piano No. 2 é o de menos. Afinal, o Air Supply também fez isso. A questão é que Shadows in the Night é uma singela e pessoalíssima homenagem ao maior cantor de todos os tempos que pisou na Terra. E criticar um trabalho desses, por mais banal e mal interpretado que possa parecer a alguns (ou muitos), não faz sentido criticar isso. É quase um atestado de burrice.

Mas então voltamos ao começo. Dylan não é cantor, vai contra o seu próprio catecismo (como não-cantor e, principalmente, como compositor contra a música pré-fabricada do Tim Pan Alley) as interpretações estão aquém do bel-canto. Mais divertido é pensar que Shadows in the Night é um disco para desagradar tanto os fãs do bardo Dylan quanto aos apreciadores do inefável bel-canto de Sinatra. Muito menos àqueles críticos de música clássica que detestam os pastiches do Tim Pan Alley (com ou sem razão nenhuma).

Na verdade, o disco não tem o objetivo de agradar a ninguém, muito menos a mim. Mas mais divertido que isso, a questão recai sobre os fãs. Dylan é eclético o suficiente para gostar de coisas que seus fãs odeiam. Ponto para o "menestrel". Afinal de contas, é notório que ele nunca foi discotecário, mas conhece todas as músicas do planeta. Quando o fã quer que Dylan seja o menestrel; Dylan canta "Where Are You". Não, canta "Autumn Leaves".

A grande blague de Bob Dylan é provocar esse crossover: unir dois universos diversos. Nunca, jamais, os meus sete leitores imaginariam Dylan interpretando "Autumn Leaves" (e com a steel fazendo o mesmo arranjo do Nelson Riddle). Diferente do que você pensa, Dylan conhece muito bem os discos de Sinatra. Conhece o profundo Sinatra. Não o Sinatra de "New York, New York": mas o Sinatra profundo, o Sinatra que gravou todas as canções possíveis. Isso está em sua memória afetiva.

Mais do que isso - Dylan, à sua maneira, quis compensar suas limitações. É aí que reside seu valor como intérprete: Shadows in the Night pode ser dispensável se comparado às originais de Sinatra.

Quem conhece Frank sabe que ele tinha o lado big band, mas também possuía (como todos nós) o seu lado sombrio. Dylan pegou esse lado sombrio como seu, em versões sintomáticas de torch songs como "I'm a Fool to Want You" e "The Night We Called It a Day", de discos conceituais (para quem não sabe, muito antes do Sgt. Peppers, Frank Sinatra fazia discos conceituais) como "Where Are You" e "Only the Lonely".

Isso mostra que, assim como grande ouvinte que é, Dylan sabe exatamente qual é o melhor de Frank Sinatra. Não o Sinatra farofa de "My Way", mas o Sinatra da fossa, o Sinatra sublime do "In Wee Small Hours", "Mood Indigo", "One For My Baby". "Angel Eyes", "What's New", o Sinatra sombrio, quase gótico, da melhor extração - o Sinatra que a maioria desconhece.

O Dylan crooner já havia posto à prova no seu curioso álbum de 73, aquele que ele é quem mais o detesta. Em Shadows in the Night, ele não está preocupado com isso (dizem que sua vez melhorou nesse disco, eu não concordo, mas ele também não deve estar preocupado com isso).

No conjunto de canções, "Full Moon and Empty Arms" parece estar deslocada. Na verdade, ela é do tempo do Sinatra na Columbia e, ao contrário de outras tantas, nunca fez parte de seu repertório regular (Dylan não iria cantar as que você conhece, por exemplo). A paráfrase de Rachmaninoff, de fato, é lamentável. Mas acreditamos que Dylan tenha esse buquê de canções (como diziam os locutores de outrora) como lembranças felizes de sua paquidérmica memória afetiva. Mesmo que você não as conheça, elas estão inscritas na história da música popular americana do Século XX, música cujo maior intérprete é o centenário Sinatra.

Existem tantos outros casos (o Tim Pan Alley é pródigo nisso) de música popular inspirada em clássicos, como "I'm Always Chasing Rainbows", que é a Fantasia-Improviso do Chopin (em Dó Sustenido Menor, Op. 66), ou "Take My Love", essa gravada pelo Sinatra (nos anos 40, na fase da Capitol ele não regravou nenhuma das duas), que é o Poco Alegreto da Sinfonia nº 3 (Fá Maior, Op 90) do Brahms.




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