Saturday, July 23, 2011

Terra dos Homens


Capa do livro


Não resisti.

Fui esta semana na exposição sobre do incensado livro O Pequeno Príncipe, lançado pelo escritor francês Antoine de Saint-Exupéry, em 1943.

A exposição é muito bonita, contudo para cativar ao público infantil. Na verdade, a obra em si não precisa pedir licença para cativar a mais ninguém. Mas fica no ar aquela avoenga e funestíssima eterna questão: o livro foi escrito para o público infantil ou para o público adulto? Mas não se preocupem: não vou responder a essa pergunta.

Às vezes eu tenho a impressão que todos leram a obra do Exupèry e ninguém fez a leitura correta. Outros, por sua vez, muito pelo contrário, ao se depararem com o que eles chamam de vida real, acabam desmistificando a mensagem da história.

É aquela história: você conhece alguém, você cativa ela, vocês se amam, depois vocês se decepcionam, depois vem o desenlace final, ela te trai e o culpado é o Pequeno Príncipe, com aquela lenga sobre cativar, amor e amizade, saudades e etc. Mas também desa vez não se preocupem, não vou escrever aqui nada a respeito de relacionamentos.

Vou falar de um outro livro do Exupèry, chamado Terra dos Homens. Acho que ele é interessante por ser uma espécie de romance de formação, que conta um pouco do começo da história do escritor francês que, além de beletrista, assim como o personagem do Le Petit Prince, era um piloto de avião a serviço do Correio francês.

Outra coisa legal no Terra dos Homens é que, de certa forma, ele recoloca Exupèry dentro de um contexto que explica a gênese da fábula do Pequeno Príncipe.

Como se sabe, a história do princepezinho que viajou do seu pequeno asteróide B-512 até o planeta Terra acabou injustamente se tornando um clichê - ainda mais aqui no Brasil, onde ele é citado por nove entre dez candidatas a Miss. Graças a Deus, como se sabe, já que hoje em dia as nossas candidatas lêem cada vez menos, o livro tem sido naturalmente cada vez menos citado.

....


Saint-Exupèry virou aviador por acidente: fora reprovado na Escola Naval, em 1921. Um ano depois, ele recebe o brevê de piloto de aviação civil em Rabat. No mesmo ano, ele se torna soldado e, mais tarde, subtenente. Com quatro anos de experiência como piloto de caserna, ele é admitido na Sociedade Latècoère de Aviação. Aqui começa a sua carreira de piloto de linha, fazendo o percurso Toulouse-Casablanca-Dacar.

Pois o relato de Terra dos Homens (1939) começa em 1926, quando ele se torna piloto do Correio, e conhece veteranos que o iniciam nas artes do vôo sob o sol do deserto africano. Depois de dormir em cima de mapas e cartas metereológicas ele iria conhecer todo o mistério de uma ciência absurdamente empírica, que ia desde a navegar debaixo de chuva driblando cumes de picos e montanhas até a vida do deserto, com seus oásis, beduínos, jaus e miragens.

A primeira parte do livro é um misto do seu batismo como piloto da Latècoère e as histórias de vida dos seus colegas, como Jean Mermoz
, que inclusive foi o pioneiro da linha Casablanca-Dacar e Paris-Buenos Aires. E Henri Guillaumet(a quem Terra dos Homens é dedicado), que caiu nos Andes e sobreviveu milagrosamente para contar o seu renascimento após um desastre na vertente chilena da cordilheira. O próprio Exupèry, que à época também fazia a linha na América do Sul, foi um dos respionsáveis pelo resgate de seu companheiro.

- Muitos sinais anunciavam o fim - diz Guillaumet. - Por exemplo, era obrigado a parar de duas em duas horas para abrir um pouco mais minhas botinas, esfregar neve nos pés que inchavam ou simplesmente dar um pequeno descanso ao coração. Nos últimos dias comecei a perder a memória. Muito tempo depois de recomeçar a marcha é que me lembrava: havia esquecido alguma coisa. Da primerira vez foi uma luva, e isso era grave, com o frio que me gelava as mãos. Eu a havia apanhado no chão, ao meu lado, e seguira caminho sem apanhá-la. Depois foi o relógio, depois o canivete. Depois a bússola. Em cada parada eu me empobrecia. O que salva é dar um passo. Mais um passo. É sempre o mesmo passo que se recomeça (...) o que eu fiz, palavra que nenhum bicho, só um homem, era capaz de fazer.



Em O Deserto, Exupèry conta as histórias do tempo em que ele chefiou a estação de Cap Juby (Tarfaya, uma vila ao sul do Marrocos) pela Compagnie Générale Aéropostale e de sua relação com os chefes mouros, que então habitavam os territórios não submissos à França ou Espanha.

Através deles o escritor do Pequeno Príncipe conheceu um escravo, chamado Bark. Ele dizia a todos que se chamava Mohammed ben Lhaoussin, que era um rei e que havia se tornado cativo dos mouros por traição. Bark pedia à Antoine para que o escondese no avião e o levasse para Agadir. Exupèry sabia que eles se vingariam.

Então resolveu juntar dinheiro com seus companheiros da Aéropostale e conseguir comprá-lo. Com engenho e arte, nosso herói convenceu o chefe dos beduínos que ele poderia comprar escravos mais jovens com o dinheiro. E assim Bark foi cedido aos franceses. Deram-lhe mil francos a fim de que o jau pudese se sustentar até que conseguisse emprego.

Em Agadir, no entanto, ele não babia dentro de si de tanta alegria. Foi visto fazendo caridade para crianças. Comprava-lhes pequenos regalos. "Guarde o seu dinheiro"", diziam. E Bark não os ouvia. À guisa de conclusão, Exupèry explica: "Acharam que ele tivesse ficado louco de alegria. Mas ele possuía, desde que era livre, os bens essenciais, o direito de se fazer amar, de caminhar para o norte ou para o sul, de ganhar o seu pão pelo trabalho. Para quê o dinheiro? Sentia, como se sente uma fome profunda, a necessidade de ser um homem entre os homens, ligado aos homens (...) Era livre, mas infinitamente livre, a ponto de não sentir o seu peso sobre a terra. Faltava-lhe o peso das relações humanas que entrava a marcha do homem, e as lágrimas, e os adeuses, e as lamentações, e as alegrias, tudo o que um homem acaricia ou ofende sempre que ele esboça um gesto: esses mil laços que o prendem aos outros, que lhe dão gravidade. Mas sobre Bark já pesavam mil esperanças...".

...

O heróico episódio de Henri Guillaumet nos Andes assombra Exupèry novamente quando ele e o co-piloto André Prevot perfazem um trajeto de Benghazi até a Indochina. É o começo de No Deserto, o relato mais impressionante de Terra dos Homens.

Ainda no deserto, seu avião cai e os tripulantes sobrevivem milagrosamente. Perdidos, eles restam vivos para morrerem sob as areias do norte da África. Passam por todas as privações e toda a visão reversa de mundo pela qual passou Guillaumet.


Fenech: a raposa do Exupèry

Sobreviver para quê? Sem bússola, sem provimentos, sem água, sem perspectiva: seria necessário pelo menos duas ou três semanas de busca para encontrar no deserto os destroços de um avião pelo qual nada se sabe a respeito, num raio de mais de 3 mil quilômetros.

Antoine e Prevot em vão tentam caçar algum animal. No entanto, acaba travando conhecimento com uma raposa branca de orelhas de coelho e com o corpo do tamanho de uma ratazana: a fenech. Através do rastro das raposas, ele descobre o esconderijo de comida das fenechs. De cem em cem metros, era possível avistar pequenos arbustos carregados de caracóis.

Exupèry notou que a raposa não devorava todos os moluscos. Claro, a raposa espertamente observava a necessidade de reprodução do pequeno gasterópodo e a sua própria sobrevivência no deserto. A raposinha fenech involuntariamente acabou salvando a vida do escritor e, ao mesmo tempo, assim como o saara, ela acabou se tornando sua personagem: é com a fenech que o princepezinho trava o seu famoso diálogo.

O oitavo e último capítulo de Terra dos Homens, por sua vez, é quase que uma introdução ao tipo de filosofia que Antoine de Saint Exupéry iria transmudar na parábola do Le Petit Prince, cinco anos depois, em 1944. Sua experiência de quase morte lhe franqueou uma outra visão de vida quando, segundo ele, um homem "descobre a si mesmo e se torna seu amigo".

"Não sabemos prever o essencial", diz o escritor. "Cada um de nós conheceu as alegrias mais ardentes onde nada as prometia: elas deixaram em nós uma tal nostalgia, que temos saudades até de nossas misérias, se foram nossas misérias que as permitiram. Nós todos, ao encontrar depois de algum tempo os companheiros, sentimos o encanto de relembrar as horas amargas".

A busca do "essencial" para ele era algo como ter um insight de entender 1) a extrema necessidade do ser humano em encontrar-se em si 2) a necessidade de encontrar-se no outro. Do primeiro apontamento, Exupèry pega o exemplo de um compositor como Mozart ter a sua virtude coberta pela finitude da vida passada em vão pelo espírito de manada das pessoas em moldar-se pela banalidade dos ritos comuns, o desperdício das relações ensimesmadas e pélas convenções, a falta de transcendência em tudo e em todos, da carência da falta dessa experiência sensível que nos ligaria de forma mais substancial com o mundo a nossa volta. Para ele, um talento iria soçobrar diante do convencionalismo do encaixotamento progressivo das relações sociais, como um fenômeno existencial-endêmico.

Por outra, do segundo apontamento, a partir do primeiro, ele pega o exemplo da capacidade de abstração pueril típica das crianças para delimitar a extrema distância da visão poética da vida que perdemos com o tempo e preservada na imagem do Pequeno Príncipe, desde a dedicatória do livro até as crianças "que esmagam seus narizes nos vidros dos rápidos". A visão final de Terra dos Homens é um casal transformado em seres de barro, desgastados pela vida e pela degradação das relações pessoas, trazendo no colo uma criança pura (ou ainda pura) dessa degradação. Diz Exupèry: "certamente que as vocações ajudam o homem a se libertas; mas é igualmente necessário libertar as vocações".

Ou seja, de nada adiantaria a vocação de um futuro compositor se ele for jogado num mundo indiferente. A disparidade de visão de mundo que o escritor francês explica na parábola do principezinho (criança X adulto) é a continuação e a reconstituição alegórica da história que Exupèry encerra o seu Terra dos Homens. Eis o trecho:



Há alguns anos, durante uma longa viagem de estrada de ferro, resolvi visitar aquela pátria em marcha em que ficaria por três dias, prisioneiro, durante os três dias, daquele ruído de seixos rolados pelo mar. Levantei-me. Pela uma hora da madrugada corri os carros, de ponta a ponta. Os dormitórios estavam vazios. Os carros de primeira classe estavam vazios.

Mas os carros de terceira estavam cheios de centenas de operários poloneses despedidos na França, que voltavam para a sua Polônia. Caminhei pelo centro do carro levantando as pernas para não tocar nos corpos adormecidos. Parei para olhar. De pé, sob a lâmpada do carro, contemplei naquele vagão sem divisões que parecia um quarto, que cheirava a caserna e a delegacia, toda uma população confusa, sacudida pelos movimentos do trem. Toda uma população mergulhada em sonhos tristes, que regressava para a sua miséria. Grandes cabeças raspadas rolavam no encosto dos bancos. Homens, mulheres, crianças, todos se viravam da direita para a esquerda, como atacados por todos aqueles ruídos, por todas aquelas sacudidelas que ameaçavam seu sono, seu esquecimento. Não achavam ali a hospitalidade de um bom sono.

E assim eles me pareciam ter perdido um pouco a qualidade humana, sacudidos de um extremo a outro da Europa pelas necessidades econômicas, arrancados à casinha do Norte, ao minúsculo jardim, aos três vasos de gerânio que notei outrora nas janelas dos mineiros poloneses. Nos grandes fardos mal arrumados, mal amarrados, eles haviam juntado apenas seus utensílios de cozinha, suas roupas de cama e cortinas. Mas tudo o que haviam acariciado e amado, tudo a que se haviam afeiçoado em quatro ou cinco anos de vida na França, o gato, o cachorro, os gerânios, tudo tiveram de sacrificar, levando apenas aquelas baterias de cozinha.

Uma criança chupava o seio de sua mãe que de tão cansada parecia dormir. A vida transmitia-se assim no absurdo e na desordem daquela viagem. Olhei o pai. Um crânio pesado e nu como uma pedra. Um corpo dobrado no desconforto do sono, preso nas suas vestimentas de trabalho, um rosto escavado com buracos de sombra e saliências de ossos. Aquele homem parecia um monte de barro. Era como um desses embrulhos sem forma que se deixam ficar à noite nos buracos das feiras. E eu pensei: o problema não reside nessa miséria, nem nessa sujeira, nem nessa fealdade. Mas esse homem e essa mulher sem dúvida se conheceram um dia, e o homem sorriu para a mulher; levou-lhe, sem dúvida, algumas flores depois do trabalho. Tímido e sem jeito, ele temia ser desprezado. Mas a mulher, por fagueirice natural, a mulher, certa de sua graça, talvez se divertisse em inquietá-lo. E ela, que hoje é apenas uma máquina de cavar ou de martelar, sentia assim no coração uma deliciosa angústia. O mistério está nisso: eles se terem tornado esses montes de barro. Por que terrível molde terão passado, por que estranha máquina de entortar homens? Um animal ao envelhecer conserva a sua graça. Porque essa bela argila humana se estraga assim?

E continuo minha viagem entre uma população de sono turvo e inquieto. Flutua no ar um barulho vago feito de roncos roucos, de queixas obscuras, do raspar das botinas dos que se viram de um lado para outro. E sempre, em surdina, o infatigável acompanhamento dos seixos rolados pelo mar.

Sento-me diante de um casal. Entre o homem e a mulher a criança, bem ou mal, havia se alojado, e dormia. Volta-se, porém, no sono, e seu rosto me aparece sob a luz da lâmpada. Ah, que lindo rosto! Havia nascido daquele casal uma espécie de fruto dourado. Daqueles pesados animais havia nascido um prodígio de graça e encanto. Inclinei-me sobre a testa lisa, a pequena boca ingênua. E disse comigo mesmo: eis a face de um músico, eis Mozart criança, eis uma bela promessa de vida. Não são diferentes dele os belos príncipes das lendas. Protegido, educado, cultivado, que não seria ele? Quando, por mutação, nasce nos jardins uma rosa nova, os jardineiros se alvoroçam. A rosa é isolada, é cultivada, é favorecida. Mas não há jardineiros para os homens. Mozart criança irá para a estranha máquina de entortar homens. Mozart fará suas alegrias mais altas da música podre na sujeira dos cafés-concertos. Mozart está condenado.

Voltei para o meu carro. E pensava: essa gente quase não sofre o seu destino. E o que me atormenta aqui não é a caridade. Não se trata da gente se comover sobre uma ferida eternamente aberta. Os que a levam não a sentem. É alguma coisa como a espécie humana, e não o indivíduo, que está ferida, que está lesada. Não creio na piedade. O que me atormenta é o ponto de vista do jardineiro. O que me atormenta não é essa miséria na qual, afinal de contas, um homem se acostuma, como no ócio. Gerações de orientais vivem na sujeira e gostam de viver assim.

O que me atormenta, as sopas populares não remediam. O que me atormenta não são essas faces escavadas nem essa feiúra. É um pouco, em cada um desses homens, Mozart assassinado.




PS: visitem a exposição, vai até domingo que vem. :)

Thursday, June 30, 2011

Rave on, Buddy Holly!


Capa do CD


Ouvi finalmente o disco-tributo Rave on Buddy Holly, dedicado ao célebre pioneiro do rock. Sou suspeito para falar, já que sou um ardoroso fã do guitarrista texano. Aliás, se eu for parar para ver, ele é um dos poucos (se não o único) daquela geração que eu ainda ouço.

Gosto do Elvis, mas ele não vale. Dos demais, como Chuck Berry, Little Richard, Eddie Cochran, Bill Halley, Carl Perkins, Jerry Lee Lewis e Gene Vincent, por exemplo, eu tenho a sensação de ouvir uma arte datada. Se formos pensar em Buddy Holly, eu entendo como uma arte do futuro.



Eu explico. É que, como a maioria deles, a música dos primórdios do rock estava calcada de forma considerável no boogie-woogie, no hillybilly e no rockabilly, uma espécie de fusão daquela música caipira branca que tentava encontrar a sua identidade.

O começo, em 1955, quando ele formava, com Bob Montgomery, uma dupla de bluegrass que, sob influência da música Bill Haley And The Comets, já flertava com o rockabilly. Essa fase compreende seus primeiros arroubos, em covers de clássicos da época, como Rip It Up, Baby, Let’s Play House, Good Rockin’ Tonight e Changing All Those Changes (no tributo em versão de Nick Lowe).




Holly passou por eles; no entanto, ele devia mesmo saber que aquilo se tratava de uma arte ao mesmo tempo revolucionária e datada, como quase toda a cultura norte-americana dos anos 50. E Buddy, por ser texano, deveria ser o mais caipira de todos eles. Por sinal, o autor de Peggy Sue chegou a flertar com o rockabilly no começo de sua breve carreira. Basta ouvi-lo cantando Blue Days, Black Nights. Ali, suas raízes do country são evidentes.



Mas Buddy evoluiu rapidamente. Cedo conheceu a música de Bo Diddley. A guitarra primal do compositor de Road Runner seria a base do trabalho de guitarra-ritmo de Holly, e que também ia parar na música dos Stones (que também eram fãs de Diddley).

Falando em guitarra, a mudança radical que o distanciou de seus pares dos anos 50 foi adotar uma Fender Stratocaster quanto todos os demais ainda tocavam em semi-acústicas. Além de ser sua marca registrada, a guitarra de Buddy soava moderna.

Quando o rockabilly ameaçava cair no clichê e enquanto Vincent era incensado como uma espécie de novo Elvis, Buddy misturava a crueza do rock com a doçura contidamente piegas de baladas que versavam sobre amores não correspondidos, em parte prenunciando algo que ia se tornar voga no começo da década seguinte em outras vozes, como as de Frankie Avalon, Neil Sedaka e Paul Anka, que iria compor para ele It Doesn't Matter Anymore.



Nas suas últimas gravações, Holly estava longe do rockabilly e procurava o ecletismo em outros gêneros musicais diversos do rock, como o calipso (Heartbeat), o foxtrot (True Love Ways) e o beguine (Moondreams).

Cedo ele descobriu o pop. Esse movimento seria o caminho a ser trilhado pelo rock a partir de então. Nesse aspecto, não poderíamos culpar Elvis por trair o movimento: Buddy teria feito a mesma coisa. E se Holly não tivesse acenado para essa possível evolução, esse tributo não teria razão de ser.

De todos aqueles pioneiros do rock, o líder dos Crickets nos legou uma rescolta de canções que são partituras abertas: mesmo que muitos dos covers do CD constituam um ultraje aos mais puristas, é nessa idéia que reside o valor das canções. Paul McCartney poderia ter feito uma versão igual à original (como ele fez ao se apresentar em Dallas, ano passado), mas ele mostrou que era possível recriá-la.

Quase todos fizeram leituras particulares dos clássicos de Holly. Os que se mantiveram fiéis, no entanto, souberam emprestar a sua virtude autoral à elas. É o caso de Fiona Apple & Jon Brion, Lou Reed, que nunca soou tão Lou Reed, e Graham Nash, que fez uma comovente versão de Raining In My Heart que, embora de autoria da dupla Felix e Bordilaux Bryant, foi imortalizada pelo guitarrista de Lubbock.

Contudo, a maioria dos intérpretes de Rave On são desconhecidos do público brasileiro. Isso se explica em parte. Muitos deles, como Justin Townes Earle, Cee Lo Green ou John Doe são artistas de um gênero que existe hoje por causa do próprio Holly, o Americana.

É uma espécie de subproduto do country pop que nasceu com os Eagles, nos anos 70, e é um country que modernizou o próprio country, sem os clichês típicos do Nashville Sound. Talvez nisso esteja a força de Rave On: Holly é conhecido por todos por modernizar o rock, mas o seu papel como vanguarda da própria canção americana, misturando o hillybily branco com o rhythm'n blues negro é mais importante ainda e essa é a virtude de Buddy Holly; embora subestimado por ser um rockstar, ele é, sem dúvida, um dos músicos mais influentes do século XX.

Saturday, June 25, 2011

Cemitérios de Porto Alegre contam histórias


Mausoléu de Pinheiro Machado, no Cemitério da Santa Casa

A vida nutre-se da morte, e não a morte que nutre-se da vida. Me lembrei dessa frase do Caderno H do Mário Quintana quando fui participar da Caminhada Orientada do Viva o Centro a Pé, que é promovida pela Prefeitura de Porto Alegre.

Dessa vez, o tema do passeio era a arte cemiterial da Santa Casa e do São Miguel e Almas. A orientadora da vista, arquiteta Gicelda Weber Silveira, que trabalha no setor de projetos de restauração e na Secretaria de Obras Públicas do Governo do Estado.

Na entrada da Santa Casa (pegamos um Carris sanfona com gente até no lustre, contra as minhas perspectivas, dado as chuvas dessa semana e o tempo feio de hoje), ela explicou que o primeiro cemitério da cidade se situava onde fica a Praça da Matriz, então um descampado. Com a urbanização, ele passou para a parte posterior da Igreja da Matriz, onde se situa atualmente a Catedral Metropolitana.

Segundo a pesquisadora, no princípio, os mortos eram enterrados junto às irmandades das suas respectivas igrejas. Com o tempo, fez-se necessário que, por uma questão de ordem, o campo santo deveria ficar fora da cidade. O local escolhido, a partir do século XIX, foi a subida da Azenha.

O cemitério da Santa Casa, inaugurado em 1850, foi o primeiro a aglutinar todas as irmandades. Ele foi construído em estilo europeu, com as paredes construídas como catacumbas. No centro, se situariam os mausoléus.

No entanto, nossos aristocratas não exigiam muito luxo em matéria de arte sepulcral. Nossos barões eviscondes eram mais simplistas, em contraste da perspectiva estética da burguesia que a sucedeu. Túmulos como o do Barão de Camaquã se limita ao símbolo heráldico, por exemplo; apenas o brasão, representando o seu respectivo grau nobiliárquico, o diferenciava dos demais ex-viventes.

Foi com a ascenção da burguesia porto-alegrense que surgiu a geração dos grandes mausoléus. Os pequeno-burgueses ficavam com as catacumbas e os sem culotes eram enterrados na terra, mesmo.

Se os nobres destacavam sua nobreza para diferenciá-los, a "burguesia" realçava o seu grau de importância e prestígio amealhados em vida para tranmutá-la em arte funerária: banqueiros, comerciantes, engenheiros, industriais, enfim, todos transformavam seus jazigos em mozaicos onde cinzelavam sua reputação em mármore e bronze para a eternidade.

O castilhismo também teria o seu destaque nos cemitérios. Os exemplos mais notáveis são os dos túmulos dos patriarcas do antigo PRR no Estado. No de Júlio de Castilhos, uma mulher, símbolo da Religião da Humanidade, pranteia o ditador chimango, morto em 1903; no de Pinheiro Machado, a deusa da República e um séquito de moleques vela o cadáver de bronze - coberto de pátina do senador gaúcho, assassinado em 1915. Seu corpo, seminu e mal acomodado sob um dossel, parece que acabou de expirar da facada traiçoeira de Manso de Paiva.


Túmulo do governador Daltro Filho, de Augusto Caringi

As famílias mais tradicionais (da época) e os líderes políticos (idem) são os que nos recepcionam, na entrada da Santa Casa. A ascenção do borgismo veio com uma leva de grandes artistas de escol, de Leoni Lunardi até a família Friedrichs. Da arquitetura à escultura, uma aula de como eles explicavam a morte e a política.

Mais adiante, o túmulo de Plácido de Castro, guerrilheiro gaúcho que conquistou o Acre e morto por traição, em seu leito de morte, quis que seus restos não fossem enterrados lá. No túmulo, a deusa da Justiça abaixa a espada ao lado da balança onde há um saco de moedas, denunciando a perfídia de seus algozes.

O auge da arte funerária em mausoléus vai do começo do século passado até os anos 40. Misturam-se motivos neoclássicos - ligeiramente pagãos - com outros, profundamente católicos, emoldurados em estilos que versam entre o art noveau e o modernismo.

A exaltação ao civismo e ao patriotismo, típicos da política de antanho, estão sintetizados no túmulo de Daltro Filho. O governador, vestido de pala, posa ao lado de um soldado. A grandeza épica do túmulo parece rivalizar com os do Père Lechaise.

Na frente do jazigo do Patriarca, encontro, à direita, outro, todo em mármore. Numa placa, o nome de José Pinheiro Borda, um dos idealizadores do Beira-Rio. Na entrada original do São Miguel e Almas, à esquerda, o do patrono do Grêmio, Fernando Kroeff.

Gicelda Weber explicou que o da Santa Casa, à medida em que avançava, foi mudandoo seu estilo, de muros de catacumbas com o de galerias. Esse é o estilo que seria empregado definitivamente no da irmandade de São Miguel e Almas, que é dissidente da Santa Casa.

Fundado em 1908, foi construído por Armando Boni, oriundo de Parma (Boni, morto em 45, tem um túmulo no local). Mestre do concreto armado, Boni trouxe da Europa o modelo de galerias, projeto pelo qual seria o precursor, no Brasil, a partir de 1930.

Nos mausoléus do São Miguel, a estatuária ganha extrema plasticidade, com anjos, mulheres, querubins, anjos femininos cobertos por mantos diáfanos, tornozelos, pés à mostra e silhuetas de seios, crianças que choram consoladas por madonas inconsoláveis a prantear eternamente por seus mortos, como num eterno carpir que comove a qualquer futuro passante, num amálgama de sensualidade e contrição, escatologia e poesia.

A partir dos anos 30, Boni expandiu o formato de galerias, evoluindo na direção inversa à santa Casa; esta subia a Oscar Pereira, enquando aquela descia, até onde hoje ficam as capelas, a cafeteria e a entrada principal. Hoje, círios de 100w velam os mortos ao som de colherinhas nas xícaras de café...

Da década de 40 em diante, esse paradigma de exuberância entrou em desuso, à medida em que os valores mudavam. A filosofia da arte se rendeu à praticidade e aos princípios religiosos mais elementares: segundo Gicelda Weber, algumas religiões preferiram um estilo mais sóbrio e pastoral, em sintonia com a natureza, como no cado dos cemitérios-parque. Outros, por sua vez, optaram por entronizar o modelo de galerias, como é o caso do João XXIII, situado na descida do morro da Oscar Pereira, nos limites da Azenha com a Glória.

Quando todos voltávamos para o Centro, no Carris (o passeio acabou cinco para o meio-dia), me lembrando da estátua do Pinheiro Machado ganhando uma coroa de flores de uma criança, me lembrei de outra citação, dessa vez do Tio Bicho, personagem do Erico Verissimo (que está sepultado no São Miguel, embora não tivesse tempo de vê-lo), no O Arquipélago, última parte de O Tempo e o Vento: "a morte é uma preocupação exclusiva dos vivos".

PS: funcionários do São Miguel à princípio tinham ordens de proibir filmagens e fotos. O pessoal foi salvo por algum telefonema excuso da equipe da TV Record, que nos acompanhou durante o passeio.

PS2: Não pude anotar mais detalhes porque minha caneta emperrou na metade de nossa incursão peripatética.

Friday, June 24, 2011

Seguindo os passos de Camilo Mortágua


O Cinema Castelo

Camilo Mortágua, de 1980, é o último grande romance de Josué Guimarães. O livro contra a trágica saga de uma família de estanceiros do Alegrete que vive o fim da aristocracia rural gaúcha durante o primeiro quartel do século passado.

O texto se divide num momento presente, nos primeiros dias da Revolução de 1964, onde o protagonista mora em uma pensão na avenida Azenha, esquina com a Cabo Rocha. A rua, um antigo ponto de meretrício da capital gaúcha, ficava onde hoje existe a Freitas e Castro. Foi um dos mais populares bas-fonds porto-alegrenses, com seus michês e seus cabarés, até o começo dos anos 60, quando a municipalidade desalojou todo o trottoir para longe dali.

A pensão de Dona Consuelo, situada em cima do Café Viseu, fica defronte ao antigo cinema Castelo, que se situava onde hoje fica uma agência bancária. Josué Guimarãees soube retratar com olhos de cronista os últimos dias da boemia de sem culotes daquela região outrora histórica: foi ali, em 1835, que ocorreu o primeiro confronto entre farroupilhas e o Império.


Foi o 'oficial' Cabo Rocha, que comandou o ataque, quem emprestou o nome do logradouro, cujo nome, de tão associado à vetusta zona de meretrício, acabou sendo então alterado pela Prefeitura para Freitas e Castro, nos anos 70.

Ao entrar durante três noites no Castelo, enquanto assiste uma fita barata de uma montagem B de um filme sobre Cleópatra, Mortágua, personagem trágico por excelência, volta no tempo e, sentado numa das poltronas, como num delírio, ele vê a história de sua vida sendo projetada na tela grande.

O patriarca da família, Quirino, se muda para Porto Alegre e constrói um palacete na avenida Independência. Naquele tempo, a avenida vivia o esplendor das grandes mansões de famílias do high life porto-alegrense, como os Greco (donos do primeiro carro da cidade), os Godoy e a família Torelly. Felicíssimo de Azevedo diz que a área era desejada por ser "o mais lindo arrabalde da cidade de onde se goza a mais bela vista".


A Independência, na altura do Colégio Rosário

Algumas daquelas mansões, que representavam a aristocracia da cidade foram demolidas, devido à exploração imobiliária. Em Camilo Mortágua, a mansão da família não foge à regra. Mas como toda regra têm suas exceções, alguns palacetes ainda resistem ao tempo, como a Casa Godoy, em art noveau, que foi tombada pelo Patrimônio Histórico, e a Torelly, onde hoje fica o Secretaria Estadual de Cultura.

Eis a característica primordial da obra de Josué: Porto Alegre antiga é revisitada em dois momentos. Dos anos 10 aos anos 50, quando ele narra a funesta saga dos Mortágua, passando do antigo comércio da cidade até a flanérie dos grandes espaços urbanos da capital.

A loja de Camilo e seu sócio, Edmundo, fica na Andradas, que catalisava quase todo o comércio e a vida cultural da cidade. Existem várias referências à Rua da Praia antiga na obra, desde o restaurante do Palácio do Comércio até o Cinema e Confeitaria Central, dos itmãos Medeiros, que ficava onde hoje é um curso supletivo, na esquina da Andradas com a General Câmara.

Na história, para salvar a reputação de sua família, Camilo funda uma olaria para vender material de construção, e procura terreno onde floresceram casas do tipo, na antiga Cidade Baixa. Uma das olarias remanescentes daquele tempo hoje é um centro comercial, na avenida Lima e Silva.


O Areal da Baronesa, hoje Cidade Baixa

Josué Guimarães escreveu Camilo Mortágua no verão de 1979. Antes de pôr suas mais de 400 páginas no papel, ele sonhou a história toda em seus mínimos detalhes. Contou à Ivan Pinheiro Machado, editor da LPM todo o enredo de memória, como costumava fazer com seus livros aos seus amigos mais chegados. Quando o texto estava claro em sua mente, ele escrevia tudo, do começo ao fim, dispensando originais.

Ao contar a história, ambos pararam diante do casarão da Bordini com a 24 de Outubro. Ali seria a casa do inescrupuloso Comendador, diretor do Banco da Província, pai de Leonor e sogro de Camilo. "Uma hora depois, diante do Parcão (Parque Moinhos de Vento),a história terminou. Ficamos parados num silêncio comovido, consternados com o fim do grande Camilo", diz Pinheiro Machado.

Thursday, June 23, 2011

Borges de Medeiros e a bailarina


Carlos Reverbel

Em suas Memórias, João Neves da Fontoura (1889-1963) dedicou o primeiro volume — "Borges de Medeiros e seu Tempo" — ao líder republicano, que é o seu principal personagem. Discípulo do líder positivista, João Neves resgata em sua obra alguns dos principais episódios da vida pública do então presidente do Estado do Rio Grande do Sul, com farta documentação. Também reconta os fatos que tiveram desfecho na formação da Aliança Liberal e os antecedentes da Revolução de 30.

Nas Memórias, o político cachoeirense revela, com indisfarçável convicção, que foi o correligionário mais próximo de Borges, "Suas conversas eram sinceras e abertas comigo", revela. Mas ressalta: "Contudo, ele jamais ultrapassava os limites de conversação que ele próprio demarcava".

João Neves entendia que tal atitude se evidenciava mais por uma questão de virtude do que de educação. Em outras palavras: como diziam alguns, menos chegados: "o Velho Borges é mais fechado que baú de solteirona". À respeito do caráter confessional do livro com relação ao perfil do antigo presidente do Estado, o escritor e ensaísta Carlos Reverbel escreveu que, na carência da bibliografia sobre Borges de Medeiros, as Memórias de João Neves da Fontoura talvez reúnam as melhores páginas já escritas a respeito do poderoso chefe republicano, em que pese a relação da dependência partidária e a afeição pessoal que os vinculava.

"Borges foi um solitário no poder", diz o memorialista. "Assessores mesmo, nunca os teve". Mesmo assim, não é raro encontrarmos histórias e curiosas sobre o caudilho positivista. Uma delas é bastante ilustrativa.

Em fins de 1925, quando entrava no penúltimo ano de mandato, Borges de Medeiros convidou o engenheiro Sérgio Ulrich de Oliveira para secretário de Obras Públicas. Na época, a escolha foi interpretada como sinal quase estratégico de que este seria o seu substituto na presidência do Estado.

Para João Neves, Sérgio era um homem “correto”, impoluto e, além do mais, seu confidente. Um bravo sem bravatas, estando sempre na frente quando surgissem perigos: "um cavalheiro inclusive na despreocupada elegância pessoal com que se trajava".

O memorialista diz que era natural que a escolha de Oliveira para aquela pasta parecesse, sem exagero, uma das melhores expressões, de conjunto, no seio do Partido Republicano. "insigne advogado, exercia a profissão com os rigores de uma ética exemplar".

Ou seja: tratava-se de um homem público de estirpe, bem ao estilo borgiano de viver “às claras”. Ou nas palavras de Carlos Reverbel, tanto pela pessoa quanto pela firmeza de caráter, ele reunia todas as condições para empunhar as rédeas do governo, estando assim, perfeitamente à altura de recebê-las das mãos de Borges de Medeiros, na sua “austeridade e na sua intransigência”.

Era inclusive quase certo — para não dizer verdade inapelável — que Sérgio de Oliveira seria o futuro presidente do Estado do Rio Grande do Sul, mesmo que o velho Borges mantivesse a boca fechada à respeito do assunto, como era de seu feitio de “baú de solteirona”.


Um dia, aconteceu a desdita. Em fins de 1926, bem na época em que a chapa republicana para a Câmara dos Deputados estava sendo organizada, Borges de Medeiros mandou chamar Oliveira, informando que ele estaria incluído na respectiva nominata. “Para surpresa geral, no dia seguinte, Sérgio exonerou-se da secretaria de Obras, recolhendo-se na sua casa, em Uruguaiana”, diz João Neves.

Nunca foi possível saber exatamente quais eram as esperanças que Borges depositava em seu ex-secretário. Mas para o memorialista, grande foi a decepção do presidente gaúcho. Mais: logo depois, começou a correr um boato de que Sérgio de Oliveira havia perdido a oportunidade de chegar ao Governo do Estado porque teria se enfeitiçado por uma bailarina espanhola, que fazia ruidoso êxito no Clube dos Caçadores, o conhecido grande cabaré da época, que ficava na rua Nova, beco que virou zona de meretrício, e que, anos mais tarde, foi aberto e passou a se denominar rua Andrade Neves, no centro de Porto Alegre.

Mesmo que o ex-secretário fosse viúvo e tudo tivesse ocorrido na mais esmagadora discrição, foi o que bastou para que Borges de Medeiros optasse por outro nome para substituí-lo. E este nome não foi outro senão Getúlio Vargas, então Ministro da Fazenda de Arthur Bernardes.

Na opinião de João Neves, a história pode ser explicada de outra forma, sem cor de pilhéria que lhe pintaram. Para ele, o que faltou a Sérgio de Oliveira para galgar o posto mais alto do estado não foi o Clube dos Caçadores e suas bailarinas espanholas; o que faltou mesmo foi ambição política.

Uma coisa é certa, porém: feitiço ou não, o episódio mostra que, por um detalhe, a história de 1930 para cá poderia ter sido um pouco (ou muito) diferente. “De tudo o que acabo de narrar, decorre uma inevitável filosofia”, conclui João Neves da Fontoura, no fim do capítulo 25. “Como teria sido diferente a história contemporânea do Brasil se, em lugar de Vargas, o senhor Borges de Medeiros houvesse dotado, em 1927, a candidatura de Sérgio de Oliveira para a Presidência do Rio Grande!”...

Thursday, June 16, 2011

Paixões de Fla-Flu


O livro

À primeira vista, um livro tratando da discussão bizantina a respeito da rivalidade entre Beatles e Rolling Stones é algo que não vai trazer nada de novo. Além do mais, nenhum fã ardoroso de cada uma das bandas não vai ceder um milímetro sequer de sua devoção em favor do grupo arqui-rival.

O problema é que essa eterno debate ganha essa dimensão porque os respectivos fanáticos de cada um dos dois conjuntos nutre uma cega paixão de fla-flu, muito embora existam aqueles que gostam tanto do quarteto de Liverpool quanto do quinteto londrino.

Já que o assunto soa batido, os editores do livro The Beatles vs. The Rolling Stones - A Grande Rivalidade do Rock'n'roll (Globo, 192 páginas) tiveram uma idéia diferente: repassar toda a trajetória dos cavaleiros de Sua Majestade Britânica e a do séquito de Sua Majestade Satânica e repassá-la, em detalhes, no ponto de vista de dois jornalistas musicais sob a forma de um diálogo contínuo.


A idéia de fazer um livro nesse estilo também não é lá muito nova. Afinal de contas, os diálogos de Sócrates, lá na Grécia Antiga, foram compilados por Platão, sob a mesma natureza.

É daí que surge o diferencial do livro: ao lermos suas páginas, Greg Kot (beatlemaníaco e stonemaníaco enrustido) e Jim Derogatis (Stonemaníaco e beatlemaníaco idem) contam como descobriram as duas bandas, cada um tem uma preferência clubística e o livro é todo um debate continuo, um diálogo corrido, tipo uma entrevista gravada ou um bate-papo ode boteco.


A diferença é que, nutridos de vasta informação complementar com relação à citações de outros livros de referência no assunto e contando cada um com seu respectivo vasto conhecimento musical, Jim e Kot travam um duelo inteligente, falando desde as influências das duas bandas, passando pela estética dos Beatles com relação aos Stones, o apeeal promocional. O estilo de cada integrante de cada banda é comparado: Paul e Bill, Ringo e Charlie, George e Keith, e por aí vai.


Os dois mandam muito bem e graças a Deus, não levam nenhuma das duas bandas prá compadre e mostram que gostam e sabem apontar coisas que eles consideram baixos na carreira das duas bandas. Ou seja, se não sobram polêmicas entre si (ambos concordam e discordam m tempo todo, ao mesmo tempo em que o leitor ri e concorda e discorda da mesma maneira, numa divertida esgrima a três, onde a vontade de meter o dedo na conversa é inevitável.

Ambos acreditam, na comparação entre os seus respectivos discos duplos, Exile e White Album, por exemplo, que, ao contrário do segundo, o álbum de 1972 possui um feixe, uma coesão textual e um conceito sólido cinzelado pela maestria de Keith Richards. Ao mesmo tempo, o Álbum Branco, na ótica deles, mais parece uma colcha de retalhos, tentando fazer um rescolta de canções sem um vetor comum.

Ao mesmo tempo, os dois autores entendem que o trabalho acústico tanto da pré-proodução do disco dos Beatles quanto de vários momentos do trabalho são o ponto alto. Ao mesmo tempo, Derogatis entende que a falta de coesão no acabamento final do White Album é análogo à alegada inconsistência dos projetos stonianos posteriores ao próprio Exile (nesse ponto, eu é que discordo dele com relação a isso).

No meio de críticas, eles defendem, com unhas e dentes, a excelência dos dois bateristas na ótica de musicisistas, Charlie e Ringo, com argumentos interessantíssimos. Tanto pelo estilo cool de Watts como uma espécie de falso pusilânime, em tocar como um jazzmen, sem saliências, sem ergueras baquetas além dos pulsos, mas se impor na banda, tanto ao enfrentar Jagger ao ser chamado por seu frontman de "o baterista da banda" quanto pela própria afirmação deste, de que "sem Charlie os stones acabarão".

E também não faltam elogios ao subestimado (como músico) Ringo, de ser vigoroso em dar a energia necessária em determinados momentos de certas canções, com seu ritmo ligeiramente sujo nos címbalos. Ou a sua técnica primal em Tomorrow Never Knows e as viradas cerebrais de Rain, da fase Revolver, a preferida de Greg.

O divertido de The Beatles vs. The Rolling Stones - A Grande Rivalidade do Rock'n'roll é, a despeito do assunto batido, justamente isso: o fato de que são duas paixões que movem multidões. E que, como acontece em qualquer grande rivalidade clubística, ela não termina quando o juiz apita o fim do jogo. O livro termina mas, para o leitor, o debate certamente continua.

Wednesday, June 15, 2011

Meme e Mímese

De acordo com a Wikipédia, meme é termo cunhado em 1976 por Richard Dawkins no livro O Gene Egoísta. Ele é, segundo o verbete, para a memória o equivalente ao gene na genética, a sua unidade mínima. É considerado como uma unidade de informação que se multiplica de cérebro em cérebro, ou entre locais onde a informação é armazenada (como livros) e outros locais de armazenamento ou cérebros.

Cito esse conceito porque podemos entender a Memética é uma espécie de protociência (inspirada da genética) que analisa como uma unidade de informação é disseminada de forma exponencial.

Seria uma ciência moderna que estuda a dinâmica dos processos linguísticos e a sua cognição e reelaboração pelos receptores.

Chomsky dizia que a linguagem "errada" é fértil e tende à perpetuidade e a sua propagação (ou algo assim) e a recíproca seria verdadeira. Claro que ele se refere a isso como linguísta. A gramática é normativa e deve ser observada; a linguagem é dinâmica. Essa seria a diferença ífundamental, para que não se discuta a diferença de níveis de linguagem, língua formal e a gíria, o falado e o escrito.

Afinal, todos lembram que, no começo da Internet, havia uma forte resistência ao chamado "miguxês", que er aum misto de escrever com apuro (já que amaioria das pessoas se viu diante de um teclado sem ter noções de datilografia) ou criar um código particular, entronizada pelo uso contínuo da conversação virtual.

Glosando o mote do Chomsky, a afirmação dele pode ser alicerçada pela memética, que é uma protociência que analisa como signos ou linguagem escrita acaba sofrendo uma clivagem e uma mutação crítica (fazendo uso da intertextualidade como ironia ou deboche à clichês ou frases feitas, que, a rigor, são memes em potencial) e criativa dentro do meio virtual.

Isso se dá ou se daria misturando neologismos, níveis de linguagem diversos utilizados de maneira humorística ou até mesmo intertextualidade “empírica” onde boa parte dos receptores-emissores criam um código internético comum disseminada de maneira viral como unidades informativas, motivos condutores de informação que são processados, reprocessados e disseminados em escala exponencial pela rede afora.

Um exemplo é o uso da expressão TODOS CHORA em caixa alta e escrita sem a devida concordância. Ela foi disseminada viralmente causando um efeito de chiste e sendo imitado por centenas de usuários da internet que sequer conseguiriam conceber qual foi a origem desse meme. incluindo as suas possíveis variações ou inclusões em textos de internet. O erro, à guisa de chiste, é plenamente aceito, no ãmbito da imitação e da comicidade. Isso daria uma tese aristotélica sobre a mímese, por isso eu paro aqui.

Chomsky dizia que a linguagem "errada" é fértil e tende à perpetuidade e a sua propagação (ou algo assim) e a recíproca seria verdadeira.

Para a maioria das pessoas, "Meme" parece uma expressão vinculado à internet e a linguagem escrita e icônica da rede, mas é não é ou não seria.

"Nem só de pão viverá o homem". é um versículo do Evengelho de São Mateus mas...também é um meme, propagado como um provérbio, sendo este entronizado também pelo tempo e pela cultura ocidental. O próprio uso de intertexto pode remeter à memética. "A alegria é a prova dos nove a a tristeza o teu porto seguro". O verso de Torquato Neto em Geléia Geral se remete à uma expressão intertextualizada no poema, remetendo a outro poema - este, por sua vez, do poeta modernista Oswald de Andrade.

Por isso que essa tese é compreensível, embora o conceito pareça anacrônico. A memética, como ciência do vir a ser, apenas tenta instrumentalizar a geléia geral da linguagem humana num "novo" campo de estudo, como aconteceu com a semiologia, há um século atrás, com Pierce e saussire.

E afinal de contas, tudo cai nessa mesma geléia geral, já até o conceito de meme é um meme.

Tuesday, June 14, 2011

Convite para Enterro

Não contei aqui do dia em que a minha vizinha morreu? Foi tão engraçado! Ela leu no jornal uma mulher com o mesmo nome e sobrenome dela — menos o último, que era a diferença entre as duas, não foi publicado no necrológio. A coitada da mulher fazia o buço no espelhinho do bidê, no recesso do seu lar. Bate a campainha. Era a vizinha de cima. Disse: "Ai amiga! Que bom que estás viva, fiquei tão aflita!". "Como assim?", quis saber. Aí a outra mostrou o jornal. É aquele tipo de coisa que é raro, mas sempre acontece, principalmente para quem se chama João da Silva, por exemplo. As duas olhavam para a página onde estava escrito "CONVITE PARA ENTERRO. A família de...".

Súbito, as duas se abraçaram, num uivo grosso, uma emocionada, a outra apavorada. Olhei a porta entreaberta da casa da vizinha, esbugalhado: "O que está acontecendo, mas que raios?". Não resisti, e arrisquei: "Quem morreu?".

Aí elas me explicaram tudo. Mas o mais engraçado estava por vir. Horas depois, um distante parente de Florianópolis queria saber quando era o enterro, aos prantos. Ligava para todo mundo, já que ninguém tinha o telefone da dona Margarete. No dia seguinte, familiares de São Borja já preparavam a viagem (ela não falava com eles há anos). Passou-se dois, três dias. Hirta, a vizinha tentava desmentir a desdita para todos, mas já era tarde. Era tanto conhecido para convencer, que ele capitulou. Disse: "Já sei. Vou à missa de Sétimo Dia, e explico tudo!". A outra apoiou a amiga, nesta hora “difícil”. Acontece.


Dias depois, mais pêsames: da gerente do spa, do oculista e do pediatra do filho. E ela contava os viúvos: o amigo do primo, o rapazote dos tempos dos bailes da Reitoria, os colegas do curso de Belas Artes, que debandaram para o Rio de Janeiro. Amigos de parentes que moravam no Espírito Santo, a secular tia de Minas e a tia-avó, de Santa Maria. A notícia se espalhava com lenta velocidade. Todos mugiam, compungidos de dor:

— Como, mas como ela pôde morrer? Me deixar assim, sem nem ao menos me dizer adeus? Nós, que éramos tão amigas, tão unidas, meu Deus, que jogamos bingo juntas, no verão passado! Ela ia tão bem, tão disposta e cheia de vida, Deus meu!

E com o pensamento distante, como se buscasse entender o que estava acontecendo:

— E ela me confidenciava que ia comprar um apartamento na Cavalhada com o dinheiro que tava prá receber, do Governo!

No dia do enterro, um costureiro amigo dela foi ao velório. Era um magrão e cabeludo, parecido com. Pois o cara chegou completamente bêbado, visivelmente fora da casinha, vestindo um pulôver de gola rolê e com o pescoço enrolado numa echarpe cor-de-rosa aos berros (ele é muito espalhafatoso. Assim são os cabelereiros). Entrou numa das câmaras do Cemitério, e cavalgou de desespero em cima do caixão, aos berros:

— Que vá tudo para a puta que pariu! Essa vida é uma merda, mesmo! Margarete, minha querida, tu não podes ter morrido assim! Ai! Me larguem! AAAAAAi! Laaarguem! Ai!

Um senhor lhe explicou, muito constrangido:

— Meu senhor — interpela com voz sumida, ao colocar a mão no braço do rapaz inconsolável, como se precisasse um esforço hercúleo para proferir palavra numa hora daquelas — Aqui é o enterro de um menino. Quem sabe o senhor não tenta na outra capela?

As notícias chegavam, numa velocidade esmagadora! O primo espírita dela, o Serginho Borboleta (saudoso Borboleta, por onde anda aquele santo senhor do Ateneu?), disse que já havia contatado com ela no plano astral. Disse: "Ela está muito bem, lá no Céu, com a santa paz de Deus". A dona Margarete não sabia onde se meter. "Eu falei com ela do além. Está tudo bem, lá". Depois, disse que ela sempre foi uma santa, etc e tal. Que agora, depois de tantos argúrios por este vale de lágrimas, ela iria descansar em paz. A bisneta foi consolada, dizendo que sua “bisa Marga” agora era um estrela, que ia tricotar para Deus lá no Céu, etc, etc, etc.

No Sétimo Dia, ela tomou coragem — teve que ser convencida pela outra vizinha, pela vendedora de Avon do 512, a costureira do bairro e pelo zelador - e foi à sua missa...
Sugeri que fosse com algodão nas narinas, para "dar mais realismo à cena". Quase fui apedrejado, como uma adúltera bíblica. Entrou na Igreja. Lá dentro, familiares, amigos, parentes distantes, todos (os que não sabiam) e os parentes da verdadeira Margarete, reunidos. Um padre que suspirava por ela desde os tempos do catecismo, compareceu. Coitado, morria de amores ao vê-la a tocar “Manhã de Carnaval” no violão, lá em Cidreira, e ele, um padre. Todos sabiam que ele amava a defunta, em sua plena juventude, quando ela se parecia com uma Anita Eckberg (em tempo: faz tempo). Era um longo e cristão amor antigo e docemente platônico, no seu enlevo de celibatário apaixonado. A missa estava cheia. Gente de toda a parte. Na verdade, já estava antes. Foi enchendo, enchendo. Parece que ia ter ainda um casamento, depois.
Tinha gente até no lustre — como dizia o profeta. Eis que, inesperadamente ela se insurge no meio dos bancos, e grita, entre confusa, aturdida e emocionada:

— Gente, gente, eu não morri, eu não morri, eu estou aqui! Foi um engano! O nome era igual, mas eu....

Foi uma debandada geral. Um medo pânico se instaurou naquela casa santa. O estouro da boiada dos pobres presentes, que pareciam se deparar com o Gasparzinho ou coisa parecida. Mulheres sapateavam em surto histérico, como bailarinas flamencas. O padre se jogou dentro do confessionário, como se visse o próprio Judas. Coroinhas corriam em todas as direções, como se fosse uma visão do diacho. Uns não entendiam nada, nada.


— Mas que porra tá havendo??— berrou uma velhinha, coçando a cabeça, entre intrigada e divertida.

Senhoras cavalgavam de horror nos bancos. Diante do pânico, um menino saiu correndo, tropeçando em tudo: “é a loira do banheiro, é a loira do banheiro, é a loira do banheiro!’. Dona Arlinda, coitada, urinou-se. Outros tropeçavam em tudo o que viam — santeiros, freiras, mesas (um se jogou de bico na pia batismal), pilares. Um horror apocalíptico.

Isso ela me contava, com um sorriso amarelo. "Você ainda ri, seu sem-vergonha?", perguntou. Eu disse: "E você queria afinal que eu fizesse o quê, você deveria Ter explicado antes, né. E olha só, além do mais, a senhora está aí, viva e chutando!". Enquanto ouvia, ela dava um suspiro e carinha de “eu mereço!”. E fui embora. Antes de sair, ela se lembra: me segura pelo braço, e segreda: "Olha aqui, Marcelo, não conte isso prá ninguém, prá ninguém, hein, menino, senão eu vou morrer de vergonha! Vão pensar que eu sou maluca". Sem escolha, fiz o juramento, colocando a minha mão esquerda sobre uma Bíblia imaginária, e bradei:


— Dou minha palavra.

Friday, June 10, 2011

O ovo de Colombo do Coojornal


Oito anos de experiência

Meados dos anos 70. Durante os anos de chumbo do regime militar, um grupo de jornalistas decidiu mudar o status quo da imprensa brasileira - em parte amordaçada pela censura prévia e em parte transmutada em imprensa oficial compulsória. Ou, para quem se lembra, era abre aspas e tome declaração de ministro e press-release.

Foi quando surgiu o Coorjornal, em 1975. A publicação, um marco na história da imprensa no Brasil, virou livro: “Coojornal – um Jornal de Jornalistas sob o Regime Militar (Libretos, 272 páginas)”. Em 33 reportagens, ele redimensiona a importância dessa experiência pioneira no país.



A idéia era renovar em vários aspectos: o primeiro, sair do esquema "viciado" da grande imprensa. O outro, criar um sistema de auto-gestão participativa, numa época em que uma empresa jornalista era a imagem e semelhança de seu dono - como era o caso da Caldas Júnior, com relação à Breno Caldas. O dinheiro que ficasse para depois: o começo, o meio e o fim seria a informação.

Pois foi justamente dentro da Companhia Jornalística Caldas Júnior que nasceu o Coojornal: inspirados no italiano Il Giornalle, de Milão, um grupo de funcionários da antiga Folha da Manhã decidiu criar uma versão brasileira. As primeiras reuniões se dariam na casa de José Antônio Vieira da Cunha.

Contudo, para consolidar o empreendimento sob o signo de cooperativa, era necessário registrá-la no Incra. O Instituto naturalmente contestaria a viabilidade de um órgão do gênero que não ordenhasse vacas ou não colhesse grãos. Depois de muita burocracia, o Incra permitiu o nascimento da Cooperativa dos Jornalistas de Porto Alegre, pioneira no gênero. Afinal de contas, a sua fonte de lucro era de natureza puramente intelectual.

O segundo passo foi transformar a Verbo, uma pequena empresa, dirigida por Elmar Bones e Jorge Polydoro (que também eram associados), com a transação do seu controle acionário. Através dessa dinamização, a cooperativa iria se desenvolver como uma espécie de prestadora de serviços não apenas de jornalismo, mas de comunicação social, administrando outras publicações, livros e audiovisuais.

A Coojornal também permitia que qualquer jornalista tivesse espaço, desde que dentro dos princípios do novo órgão, que contava com uma assembléia geral. O jornal começou como um boletim; quando ele chegou na sua nova edição, chegou finalmente às bancas. No meio de uma imprensa quase oficialesca, o pequeno grande Coojornal surgiu como uma publicação de oposição ao governo. Ao invés de abre aspas, entrevistas; ao invés de press-releases, reportagens.

Era, pois, um novo nicho de leitura: a imprensa podia pensar. Não tinha o fime propósito de ser um jornal engajado, mas dentro do contexto da práxis do jornalismo brasileiro naqueles anos políticos do Brasil dos anos 70, ele representava a contradição e um caminho a seguir. É imprensável para os jovens calouros de comunicação, nos dias de hoje, lidar com episódios lamentáveis como conviver com censores no meio de uma redação ou receber ligações sugerindo que não se tocasse "em determinado assunto".

Foi nesse contexto que o Coojornal floresceu. Ao adotar uma postura que representava justamente a contradição àquele paradigma. Tanto que ele era chamado de o "Estadão dos nanicos", e viveu seis efêmeros oito anos lutando pela liberdade de expressão. E essa ousadia cobrava o seu preço.

Houve três episódios marcantes no Coojornal no tocante à censura - justamente quando havia um viés político. O primeiro deles foi quando o órgão publicou matéria sobre os profissionais que tiveram seus direitos cassados a partir da Revolução de 1964.

A série de reportagens sobre o Movimento de Libertação Nacional Tupamaro, a famosa guerrilha urbana uruguaia dos anos 70. A pauta fez com que o extinto Serviço Nacional de Informação (SNI), capitaneada pela imaginação fértil do General Golbery do Couto e Silva, passasse a investigar a cooperativa sob a acusação de que o órgão estivesse trabalhando a soldo do MLN-T.

O ápice foi a publicação da matéria sobre a Guerrilha do Araguaia e a morte de Carlos Lamarca, um assunto que para as Forças Armadas era mais do que um tabu: Lamarca era orvelianamente um nome a ser esquecido. Mas esse era o espírito do jornal. Ele iria publicar tudo aquilo que a grande imprensa se recusaria a mandar para o papel. em determinado momento, choviam colaborações na redação. Todos sabiam que se um Correio do Povo não publicasse, o Coojornal publicaria.

Naquela tempo, décadas antes da Internet, eles utilizavam de vários expedientes para conseguir as matérias, que eram transportadas por terceiros. O caso mais curioso foi quando repórteres paulistanos recrutaram um sujeito que iria embarcar para Porto Alegre, e lhe confiaram um envelope pardo que, ao contrário dele, não chegou ao seu destino. Ao chegar, ele disse primeiro que havia extraviado o material. Diante da incredulidade dos editores do Coojornal, ele confessou que havia jogado fora depois de irresistivelmernte passar os olhos nos papéis. Então confessou que tinha medo de ser revistado e preso com a encomenda. Rasgou o envelope em pedacinhos e puxou a descarga do banheiro, como se estivesse fazendo a toalete de um pacote de haxixe...


Claro que essa liberdade iria causar muitos problemas para a cooperativa - e causou. Dois associados, Osmar Trindade e Rafael Guimaraens foram condenados a cinco meses de prisão por divulgarem relatórios do Exército sobre a atuação dos soldados no combate à guerrilha. Além deles, Elmar Bones e Rosvita Sauerssig foram postos no cadafalso.

No entanto, apenas Trindade e Guimaraens foram condenados por "corrupção ativa" (acusados de comprar os documentos de um oficial) e "prevaricação" e publicização de material sigiloso. Caso é que ambos foram para a cadeia por "maus antecedentes"; eles já respondiam por "crimes de imprensa" que sequer tinham sido julgados. Como não havia celas especiais no Presídio Central de Porto Alegre, eles foram encarcerados no Madre Peletier.

A tremenda injustiça imputada à eles causou comoção nacional. O Jornal do Brasil publicou artigo da advogada de defesa de Osmar e Guimaraens, alegando que a população tinha o dever de conhecer a sua própria história. Zero Hora publicou uma série cobrindo o caso e o Globo publicou uma nota de protesto em nome dos partidos de oposição ao governo na Câmara. A nota questionava, por exemplo, que os jornalistas foram enquadrados e condenados, ao passo que os militares envolvidos no caso sairam ilesos.

Além de casos extremos como esse, os profissionais do Coojornal sofriam ameaças, intimidações e eram seguidos e vigiados. A pressão da polícia era ostensivamente diáfana. Até a edição com os relatórios das Forças Armadas, a publicação contava com doze anunciantes. No mês seguinte, restaram apenas dois. Se a pressão não ocorria diretamente contra a redação, os agentes iam acossar os próprios anunciantes, alegando que o Coojornal era "comunista" ou " a soldo de Moscou".

O Coojornal conseguia sobreviver a despeito desse tipo de perseguição, da falta de pessoal (a cooperativa, que chegou a contar com mais de quatrocentos associados, em determinados momentos, não contava com uma redação fixa; menos da metade trabalhava na elaboração do jornal. Ou seja, havia um problema interno que contrastava com a qualidade do material publicado: havia a dificuldade de pensar o Coojornal pragmaticamente como empresa.

Outra razão do começo do fim foi que muitos realmente queriam um órgão engajado politicamente, ao mesmo tempo em que se vislumbrava a realidade da Abertura. Era a luta da arte pela arte pela militância.

Por conta dos veteranos, a tese do jornalismo pelo jornalismo desbancou a segunda. Em 1983, a Assembléia da cooperativa se reuniu pela última vez, proclamando o fim daquela mitológica aventura jornalística. O número de presentes àquela ocasião (apenas vinte membros) já demonstrava o desinteresse geral. Em setembro daquele mesmo ano, o presidente em exercício da cooperativa, envia ao Incra um requerimento, formalizando a liquidação do Coojornal.

Ficou apenas a lição de fazer jornalismo com inteligência, longe de amarras, de modelos desgastados e entronizados de cima para baixo, combativo e inteligente e efêmero, não resistindo ao destino de toda publicação típica da imprensa alternativa: marcar época, apresentar novos paradigmas e influenciar toda uma geração de jornalistas a partir dali. Parece brincadeira, mas jornalismo já foi algo sério. Cabe ousar.

Tuesday, June 07, 2011

As cartas de Rilke


O livro


Cartas a um Jovem Poeta é como um conto do Borges, curto porém denso: exige mais do que uma simples leitura.

Nos anos 60, era o livro de cabeceira da juventude e de nove entre dez meninas que frequentavam a boemia bem vestida do Encouraçado Butikin (as "mininas da Independência", como diria o Luís Fernando Verissimo), só perdendo para o Pequeno Príncipe ou as orelhas do Marcuse. O curioso é que diante da obra poética de Ranier Maria Rilke (1875-1926), esse pequeno volume é quase uma obra "menor" e, num curioso paradoxo, popularmente difundida, desde a sua publicação, há mais de oitenta anos.


O livro (LPM Plus, 96 páginas), compilado por Franz Kappus, é uma rescolta da correspondência do jovem poeta com o célebre autor das Elegias de Duíno entre 1903 a 1908, compreendendo, ao todo, dez cartas.

Como todo iniciante, na flor dos seus dezenove anos, Franz queria mostrar seus versos a Rilke e, naturalmente, granjear algum conselho literário. Em resposta, Ranier disse que, antes de mais nada, ele deveria perguntar a si mesmo sobre a sua missão como artista, e de não se deixar levar por críticas. "A arte é boa quando nasce de uma necessidade", diz ele. "Investigue o motivo que o impele a escrever; comprove se ele se estende às raízes até o ponto mais profundo do seu coração, confesse a si mesmo se o senhor morreria caso fosse proibido de escrever".


Mas o mais sublime em Cartas a um Jovem Poeta é que, a despeito de, a princípio, soar como um mero roteiro para um jovem escritor se iniciar nas belas letras, na verdade, à medida em que os dois se mostram íntimos, o discurso de Rilke alça voo a algo mais transcendente. Dessa forma, o pequeno livro acaba se tornando uma lição de vida.

Rilke tinha menos de 30 anos quando ele começou a trocar cartas com Kappus, mas mesmo assim, sua ótica madura e a sua ética de vida e visão estética são inefáveis. O tempo é necessário, a solidão também. "Ser artista significa não calcular nem contar, amadurecer como uma árvore que não apressa a sua seiva e permanece confiante durante as tempestades da primavera", explica.

Pois a melhor parte das "cartas" são as respostas do velho bardo às angústias do jovem poeta, as incertezas com relação à sua carreira e ao futuro e as vicissitudes da vida. Num dos trechos mais belos do livro, Rilke fala a Kappus sobre a importância da solidão e o aprendizado do amor.

Sobre a solidão, ele diz: "as pessoas (...) resolveram tudo da maneira mais fácil (...) contudo é evidente que precisamos nos aferrar ao que é difícil, tudo na natureza cresce e se defende a seu modo (...) sabemos muito pouco, mas temos que nos aferrar ao difícil é uma certeza que não nos abandonará. É bom ser solitário, pois a solidão é difícil; o fato de uma coisa ser difícil tem de ser mais um motivo para fazê-la".

Na sétima carta, versando sobre o Amor, o autor de O Livro das Horas diz que amar alguém é mais extrema provação, o trabalho para o qual qualquer outro trabalho é apenas uma preparação. "Os jovens precisam aprender a amar", revela Rilke.

E o tempo de aprendizado um longo período de exclusão, de modo que o amor é, por muito tempo, solidão, isolamento, uma oportunidade para amadurecer, "tornar-se algo, tornar-se um mundo". Por fim, ele explica: " a comunhão é o passo final, talvez uma meta para a qual a vida humana quase não seja o bastante". Isso que Rilke escreveu essas palavras contando apenas 29 anos!

Franz Kappus certamente viu que o valor daquelas cartas, escritas entre 1903 e 1908, tinham vida própria - tanto que elas sequer necessitam da correspondência de seu interlocutor. Todas aquelas lições de vida que o velho-jovem bardo escreveu, ao correr da pena, são perenes e dizem à alma de qualquer um. E, 1929, três anos depois da morte de Rilke, o jovem poeta finalmente publicou-as em livro.

Cartas a um Jovem Poeta até poderia ser considerado um livro "menor" diante da obra poética do autor praguense. Mas não é. È tão vital quanto a sua lírica e, de certa, forma, um caminho para conhecer um dos maiores poetas do Século XX - se não o maior.

Friday, June 03, 2011

Pirulito e Sabonete



- Viúva do Frank Sinatra revelou que ele tomava 12 banhos por dia, pode isso?

- Úé, se eu tivesse a Doris Day, a Peggy Lee, a Ava Gardner e mais nove ou dez amantes por dia eu ia fazer o mesmo.

Monday, May 30, 2011

The Revolution Will not be Televised


Gil Scott-Heron


Nem a morte do genial Gil Scott-Heron serviu para que salientassem o papel seminal dele como agitador cultural, crítico voraz da realidade adversa das minorias raciais e do seu papel como contestador de um futuro sombrio deglutido pela geléia geral da cultura instantânea da televisão e dos meios de comunicação modernos. The Revolution Will Not Be Televised hoje choca mais pela sua atualidade do que nas palavras cruentas que Gil versejava, parodiando slogans, frases feitas, clichês, toda a superficialidade da comunicação midiática. Scott-Heron morreu mas a sua voz vulcânica ainda ecoa nos ouvidos surdos de um mundo de neuróticos. E tudo isso quando chegamos a um estado de coisas em que o próprio protesto acabou sendo esvaziado pela liturgia de pessoas que protestam pelo prazer fútil do protesto, e não vêem as suas vidas sendo consumidas pela gratuidade com que suas vidas acabam se transformando em simulacros ambulantes, ou como diria Exupèry, como se o comodismo das nossas vidinhas embaladas a vácuo e guardadas em caixotes e valises, tudo em nome do bom tom e da ordem e do progresso da nação, todos nos tornamos, com o tempo, em seres de barro, com um hedonismo longa vida, una sua patética impotência de ser, no seu cansaço, na sua falência da mente. A revolução não passará na tevê, não será composta por músicos brancos, não será lida pelo presidente da Academia de Letras, não será comentada no artigo de fundo de jornal, não será discutida em programas dominicais de variedade, nem em transmissões de jogos de futebol.



Também não passará no lixo cultural do Twitter, nem no Facebook, não vai passar em nenhuma rede social e, mesmo que passasse, ninguém ia se importar: se uma bomba cai sobre uma cidade, o sangue de gente inocente, de corpos em pedaços, sem braços, sem perna, e com as vísceras rubras saindo ventre afora, como acontece com os cachorros atropelados, de crianças morrendo de fome, de tanta miséria mental, de tanta falta de vergonha, de toda a inversão de valores, de como o inútil é entronizado e o essencial vai para a bacia das almas, a revolução não passará na tevê, caro Gil Scott, ela simplesmente não vai passar.

Tuesday, May 24, 2011

O Mentiroso


Eis o homem


Tem aquela famosa cena no meio do show do Royal Albert Hall em 1966 (que na verdade não é no Albert Hall) onde um sujeito na platéia - escandalizado pela barulheira neurótica que Bob Dylan (que faz hoje 70 anos (de idade) transformara a sua apresentação, colocando uma banda de rock no último volume tocando blues pesado depois de um set acústico - sobe na cadeira e chama o menestrel das esquerdas de "Judas". Ao passo que o compositor, enquanto procura o gozador na platéia, responde: "eu não acredito em você. Você é um mentiroso".


Pois a verdade é essa: você é que é o mentiroso, caro sr. Bob Dylan. Mentiroso e oportunista. Você fez todo mundo de bobos. Seu método foi simples. Você viu que a onda do rock tinha passado junto com a cultura dos anos 50 como um juiz nos seus últimos anos de magistratura. Não foi isso o que você falou no Crônicas, seu picareta??

Você é apenas um rábula que vivia rondando universidades até que descobriu que uma garotada que vivia em Nova Iorque havia redescoberto aquele pessoal de esquerda dos Weavers, que todo mundo agora estava curtindo Paul Anka e você não tinha voz nem físico nem carisma para ser um Pat Boone, leu sobre os vagabundos da América beat e virou uma versão moderna deles.

Então você deve ter pensado MAQUIAVELICAMENTE da seguinte maneira: todo mundo acha que esses rapsodos estilo Woody Guthrie são uns sujeitos que fazem puro proselitismo em letras de um engajamento político de algibeira. Já que todos pensam que esses folk singers não passam de um bando de simplórios que acham que vão matar fascistas com um violão rachado E PREGAR UMA PEÇA NOS FARISEUS.

A fórmula era simples: aproveitar a onda da boemia bem vestida do Village que, depois do ressurgimento da onda folk em Newport (ali por 1960) e do recrudescimento de movimentos pelos Direitos Civis, e entrar nessa nova onda.

"Vou virar um folk singer de 18 anos fazendo cara de cachorrinho abandonado, usando botas de guarda-freios embarradas, um boné, uma gaita, vou ouvir todos os discos possíveis de blues, de folk, vou copiar o Dave Van Ronk, Charlie Patton e todo aquele pessoal do Anthology of American Folk Music, vou aprender dedilhados e acordes de blues, vou aprender harmonica, vou ver Genet, Balzac, Gogol, Victor Hugo, o Metamorfoses do Ovídio, a autobiografia do Davy Crockett, roubar discos dos meus amigos, procurar Clausewitz, Faulkner, Poe, Verlaine, Baudelaire, Elvira, a Morta-Virgem, Longfellow e aquele poeta italiano do século 13 (que não era o Dylan Thomas) e entrar em todas essas transas literárias e não ter nenhuma pose de intelectual. Vou ser um intelectual sem biblioteca. Vão me perguntar de onde eu aprendi a toca violão e vou encolher os ombros e simplesmente dizer que foi através de um sujeito de pés de casco de bode na auto-estrada 61".

Bob Dylan, esse mentiroso. O plano dele é simples, e todos caíram. ele sabia que a cultura imediata do seu tempo estava com os dias contados, o grande golpe era aproveitar que o folk estava na mesma transa dos movimentos de esquerda. E pensou: "Vou ser o queridinho deles, depois vou esnobá-los". Assim, Bob Dylan, na meca das editoras musicais, começou a fazer barulho e marquetear a sua imagem de Werther com um violão no colo e carinha de menor abandonado. Pegou todo repertório possível de blues e folk e estudou todas as possibilidades de arquivar aquilo, graças à sua execrável memória de elefante, do tipo, pra-esse-cara-decorar-A-Hard Rain-ou-é-gênio-ou-é-um-maluco.

E foi simples: Dylan pegava cançonetas tradicionais obscuríssimas, como No Auction Block (ou Lord Randall, ou Pretty Polly, ou Scarborough Fair, ou o diabo), fazia uma paráfrase marota, escrevia algo ordinário e que todos queriam ouvir, como "quantos caminhos um homem precisa trilhar para tornar-se um homem?".

Foi assim que o sr. Zimermann inventou essa mentira, chamada Bob Dylan. Ele plagiava dezenas de temas folk, escrevia letras de protesto inteligentíssimas e que convergiam para todo o movimento de massas que crescia nos Estados Unidos do começo dos anos 60. Só precisava chamar a atenção de algum produtor de discos, arranjar um empresário (de preferência, inescrupuloso) e dar visibilidade àquele fait-divers peripatético do menino menor abandonado e frágil que, de repente abre a voz fanhosa e canta versos intermináveis denunciando injustiças sociais, políticas beligerantes pró-intervenção ianque no Extremo Oriente, assassinatos covardes de líderes sociais e empregadas domésticas, crônicas de desvalidos e sem culotes da vida afora.

Agora basta enlatar e vender para as massas. Dylan ainda caiu nas graças de um certo Albert Grosmann, que juntou a sua inescrupulosidade (?) com e dele (Grosmann tinha uma transa com o pessoal de Newport e com as editoras do Tim Pan Alley e, do Café Wha! para as prateleiras de discos e programas de tevê era um pequeno passo) e, desse conúbio, Dylan inventou a sua reputação. De uma hora para outra, a juventude americana não queria mais Frankie Avalon, Pat Boone, Neil Sedaka e essa estirpe de cantores fabricados para bobbysockers.

Bob Dylan acabou com eles. e paulatinamente ia acabar com o mercado dos cantores-intérpretes: a partir dali, o mercado queria consumir apenas cantores-compositores. Enfim: o crápula Dylan pôr o mercado fonográfico americano em xeque (a soldo de Havana ou Moscou, diziam) e a moda agora era ser fanhoso e talentoso, ou seja, um ultraje à moral e aos bons costumes.


Como se não bastasse, Bob Dylan não parou de mentir. Do nada, viu que a moda agora eram conjuntos musicais eletrificados fazendo música ligeira, como os Beatles. Mesmo que ele não gostasse, ele fez como fez com Patton, Guthrie, Henry Thomas e todos aqueles folk-singers castiços do tempo do gramofone. Resolveu forjar, da maneira mais abjeta e oportunista, a sua própria versão de uma banda de rock.

Foi quando ele cometeu o acinte de abandonar as jornadas de esquerda e escrever letras surrealistas e sem sentido nenhum, com versos ridículos como "o sol não é amarelo, é galinha", para provocar tanto quem caiu no seu conto do vigário quanto quem não gostava dele.

Sabem aquela querela em Newport, em 1965, quando ele trocou o violão pela guitarra? Ele morre dizendo que não, mas aquilo foi uma manobra WTF prá mandar todos aqueles ingênuos úteis às favas. Mandou o velho Pete Seeger pegar o seu avoengo e ingênuo We Shall Overcome e ver se ele está na esquina da 4th Street com um macaquinho e seu realejo e todos aqueles sombrios perdedores mortos-vivos da fila da Desolação. Ele sabe que ninguém vai matar fascistas cantando isso. A verdade é essa: o Mr Jones eram eles, e eram vocês, que achavam que estavam tão certos do que sabiam e de toda a mensagem e estavam todos por fora. Eu não quero mudar o mundo, eu quero infernizar vocês, senhoras e senhores!

Vocês não sabem nada, ficam citando livros e não aprenderam nada, todos são Judas. Dylan não é um Judas, Dylan é um personagem convencendo a VOCÊS a veracidade das mentiras dele, como diria o Paul Klee: os traidores são vocês, que não têm o que fazer. Vocês estão errados, vocês acreditaram num embuste, numa falcatrua. Não adianta reclamar com ele, reclamem com o SAC. Ele é um produto de consumo como tudo nesse mundo debaixo do sol. Querem ouvir Times They Are Changin'? Me esqueçam, me odeiem, vai ser melhor prá vocês.


Pior: depois de forjar aquele acidente de moto, ele voltou, anos depois, e gravou um disco imitando todos aqueles rednecks quadradões de Nashville enquanto gente como o Johnny Cash, o Waylon Jennings e o Willie Nelson quebravam lanças numa guerra cruenta contra o Nashville Sound, e Dylan resolveu adotar a pose de conservador e pai de família, com musiquinhas do tipo: "deita na minha cama, sua linda". Olha o naipe da parada. Menestrel das Esquerdas pai de família, pintando quadros e querendo dar tiros nos fãs chatos em Woodstock. Menestrel das Esquerdas. E a conta bancária? Vai bem?


Dylan: I don't believe you. You're a liar. Parabéns, seu mentiroso.

Monday, May 23, 2011

O Elixir




Quem primeiro percebeu foi o vizinho.

Ele foi até a rua levar o lixo, quando se encontraram. O senhor do 101 olhou para ele de alto a baixo, depois voltou para a testa, e exclamou: ”Você esta fazendo alguma coisa no cabelo?”. “Não”, ele respondeu, meio tímido.. “É que o seu cabelo está vindo, não lhe parece?”. “Pode ser, pode ser”, respondeu, lacônico, ao fechar a porta. Foi correndo até o espelho do banheiro, e ficou analisando a sua careca, como se fosse um jogo dos sete erros. É mesmo, ele exultou! O cabelo estava crescendo. Observava a careca, de alto a baixo. Parecia espantoso. Em pouco tempo, via uma mecha se ensaiar por sobre seus olhos, como se fosse um pequenino pé de feijão plantado num chumaço de algodão, perdido dentro de um pote de Danoninho.

Estava ficando calvo desde a adolescência. Uma prima o viu agachado, e brincou: “olha essa careca, guri! Vais ficar como um frade!”. E riu. Ele fingiu que não era nada e, de fato, não se importou com queda de cabelo, até que chegou a uma certa idade em que, se continuasse a negligenciar a sua progressiva calvície, não haveria nenhum fio de cabelo para contar a história em poucos anos. Pior: sua careca ganhava mais destaque com o rosto escanhoado. Quando cortava o cabelo, se sentia nu. Parecia ouvir o riso das pessoas. Se sentia frágil, em ver que era apenas um careca hediondo. Logo seria reconhecido como “o careca”, ou “bom cabelo”, entre outros apelidos menos depreciativos.

Sempre que ele via alguém com vasta cabeleira, olhava de esguelho, com inveja. Ficava impressionado com o colosso capilar. Imaginava aquele sujeito com um cabelão de maestro tentando pentear aquela melena indomável como o cavalo de Alexandre em frente do mesmo espelho em que ele mirava a sua testa devoluta no banheiro, irremedialmente pelada e rosada, como um porco recém nascido. Ele mesmo, com a calvície avançada e maníaca, devastando o seu crânio como uma seca inexorável, estava cada vez mais achando que era uma caricatura do Gaguinho. O medo aumentava quando estava sozinho em seus pensamentos, imaginando que jamais chamaria a atenção de uma mulher bonita, a não ser, é claro, por causa da sua inexistente cabeleira.

Um dia andava pelo centro quando encontrou um velho pajé. O homem vendia na rua saquinhos com folhas e ervas, e vidrinhos com extratos de raízes de plantas de nomes impronunciáveis. Não resistiu, e perguntou ao velho índio: “o senhor não tem nada para queda de cabelo?”. O ambulante riu: “queda de cabelo, hein? Vamos ver, vamos ver”. Remexeu uma mochila ao lado, no chão, até achar um pequeno frasco. Puxou e colocou na vista do rapaz. “Aqui, isto vai lhe restituir o cabelo que você perdeu”. O jovem careca não pensou duas vezes, pegou o preço e levou o frasco como se fosse um raro tesouro. E foi correndo para casa, se perdendo no meio da multidão, sem ouvir o pajé que, antes que terminasse de contar as moedas, viu que seu cliente sumira da sua vista.

Na frente do espelho, ele pensou em passar o remédio no cabelo. Passou um pouco na testa. Quando acordou, no outro dia, nada. Esperou mais um dia, e nada de novo. Pensou: “e se essa porcaria for uma poção?”. Olhou o vidrinho. Cheirou. O odor era suave, parecia água de melissa com erva doce. Decididamente, aquilo deveria ser alguma beberragem, foi por isso que de nada adiantava passar no cabelo. Entornou o conteúdo goela abaixo. Uah! Horrível! Seus olhos lacrimejavam! Depois, se sentiu culpado. E se fosse um tratamento para passar na cabeça mesmo, e que levasse algum tempo para que desse algum resultado? E se o tal remédio fosse apenas mais um conto do vigário?

Só se lembrou que tinha ingerido o elixir quando o vizinho exclamou ”Você esta fazendo alguma coisa no cabelo?”. Um raio em sua mente lhe recordou do pajé. Ao mesmo tempo em que tentava explicar alguma coisa, se deu conta que havia acontecido alguma coisa diferente. Não sabia o que dizer, só não queria revelar qualquer ponta de vaidade em dizer ao seu colega de andar que estava tratando a sua progressiva calvície. Entrou em case e viu, no espelho. O seu cabelo estava crescendo! Pensou em ir até o centro e agradecer ao pajé. Mas não. Procurou o frasco com o resto do remédio, que ele havia jogado fora. Estava no lixo, o que fazer? Esperou que o vizinho voltasse para casa, e então, revirou a sacola. Lá estava o vidrinho.

Fechou a porta, foi até uma pena e lavou o frasco. Abriu a tampa e, exultante, bebeu todo o resto do elixir. Horas depois, ele começou a sentir um certo torpor nos braços e pernas. Foi deitar-se. Quando acordou, outra surpresa! Tinha todo o seu cabelo redesenhado por sobre a sua antiga careca! Era um milagre! Pensou em ir até o pajé, e lhe pagar mais pelo presente. Mas preferiu passear com a nova melena. Os conhecidos olhavam, e não acreditavam. “Como se explica? É peruca? Interlace?”. Nada, ele respondia. Dizia que tinha uma doença que lhe impedia o crescimento da massa capilar, mas agora, graças à Medicina, estava curado. Baixava a cabeça para que as pessoas vissem. Era cabelo de verdade, não era entrelaçamento, muito menos peruca. Ele sabia que, pior do que arranjar uma garota por não ter cabelo era tentar arrumar mulher de peruca, e passar a vergonha de confessar que ele era um reles Kojak da vida.

Mas agora ele não era mais um careca, tinha cabelo e franja na testa, como um compositor, um poeta. Feliz da vida, foi dormir. Dormiu um sono longo, como se fossem séculos, sonhos lúcidos, ilustrados, cheios de passagens enigmáticas e histórias entrecortadas, mas sem nenhum sentido. Acordou estranho. Foi até o espelho. Não pôde acreditar. O seu cabelo havia crescido consideravelmente em apenas uma noite de sono. Achou que realmente havia dormido durante dias a fio. Olhou para o relógio: não, haviam se passado apenas nove horas. Seu cabelo parecia o de um velho hippie. E via pelos ralos nas mãos e no peito. Não, não era possível. Horas depois, seu cabelo parecia uma longa cabeleira de crente pentecostal. E agora? Não pensou duas vezes: foi procurar o pajé.

Algo lhe dizia que ele adiantou o processo. Alguma coisa indicava que ele fez a coisa errada. Chegou no local, nada do velho pajé. Perguntou a outro ambulante, ao lado. O que aconteceu com o pajé que vendia ervas aqui ao lado?”. O vendedor chegou perto, e disse: “aquele índio maluco? Parece que ele se meteu numa briga, se meteu com uns polícias, e acabou sendo degolado”. A resposta lhe gelou a espinha. Insistiu se era verdade. Era. O índio se chamava Jeremias, era um curandeiro, foi confundido com um traficante, e morreu fulminado com três tiros. A degola ficava por conta da alegoria do outro vendedor. Mas isso não resolvia nada. O que seria dele agora? Seu cabelo estava cada vez maior. Se sentia observado. As pessoas o olhavam como se ele fosse um esquizofrênico, com uma longa cabeleira depressiva. Amedrontado, pegou um táxi.

Chegou em frente ao espelho. Pegou uma máquina e rapou seu cabelo. Em seguida, lavou a cabeça. Estava normal, de novo. Em minutos, o cabelo cresceu, consideravelmente. Cortou, cortou, cortou até que, exausto, dormiu. Aquilo parecia um pesadelo. No outro dia, sua cabeça pesava, se mexeu, e não pôde. Levantou os braços. Era o abominável homem das neves. Correu para o espelho do banheiro. Parecia um velho druida, o cabelo envelhecia 1a media em que crescia. Pior: quanto mais ele rapava, com mais fúria ele voltava. Agora, seu cabelo aumentava em espessura nas costas, braços, pernas e tórax. Estava virando um monstro capilar. Chorou, desesperado. Fechou cortinas e janelas. Ninguém poderia ver aquilo. Ele queria apenas ser atraente, mas virou uma atração de circo. Se sentia mais desesperado do que quanto estava apenas calvo.

Sentiu saudades de quando era apenas um careca simpático. Agoras, não podia sair de casa sem antes passar máquina em todo o corpo; se passasse, ele sabia que seus pelos cresceriam consideravelmente. Não foi mais ao trabalho. Cortou os telefones. A campainha tocava, ele colocou um aviso de que não estava em casa. Na verdade, queria fugir, mas estava fadado àquele trabalho de Sísifo, de se depilar e ver todo o cabelo crescer, na mesma medida. Além disso, a casa toda havia se transformado num enorme tapete de cabelos cortados. Cada vez mais desesperado, ele cortava tudo, incessantemente, enquanto via o cabelo ressurgir ao mesmo tempo. Não queria que ninguém o visse. Não conseguia pensar, não conseguia comer ou se comunicar, queria apenas sumir, não queria sair, se saísse, poderia ser preso como um babuíno de zoológico. Já não sabia mais como aquilo ia parar. Dormia achando que era um pesadelo ambulante. Aquilo não era de verdade. Não podia ser verdade. Acordava cada vez mais cabeludo e peludo.

Acordou sentindo falta de ar. Abriu caminho para as narinas, não conseguia achar o nariz. Enfiou as mãos dentro das narinas, ele tinha pêlos dentro do nariz. Não conseguia respirar, mexeu a língua, ele tinha pêlos enormes, pareciam pêlos de javali, por toda a língua. Tentou se dirigir até o espelho do banheiro, se resvalando na imensa peruca que o seu pequeno quarto havia se transformado, com a sua melena e todo o cabelo cortado pelo corredor. Via apenas os seus olhos inchados, no meio do espelho. Puxou um banco, e ficou sentado ali mesmo, olhando para si mesmo, com o seu cabelo preto com uma mecha branca de metros em fio, caindo ao lado do seu nariz, esperando que o ar lhe faltasse. A sua língua era uma hedionda bola de tricô, respirava alto, olhando para os seus olhos, tentando se lembrar do seu rosto antigo, da sua antiga e saudosa careca. Não pensava mais nele. Ele não era nada. Sabia que iria morrer o que sempre achou que fosse, como uma curiosa atração de circo. Pensou nos olhos castanhos de Marisa, nos seus olhinhos meigos, na sua voz doce e no seu sorrisinho de dentes falhos. Sabia que iria morrer, mas não tinha medo, porque ia morrer pensando em Marisa, que era pequena, meiga, e usava uma bandana preta. A lembrança do sorriso dela lhe deixou alado, leve como uma pluma, por um instante. Mas ela nem ao menos sabia o seu nome. Mas nada mais importava agora, Marisa. Ma-ri-sa. Três sílabas que ele guardava, com todo o seu ardor e paixão, no cofre do seu coração. Ele pensava em Marisa, pensava alto o nome mais lindo que ele jamais ouvira, e se sentia amortalhado de tanto amor por ela. Ele morria feliz. Finalmente feliz. Havia sido salvo pela doçura dos olhos dela e pelo sorriso lindo e tímido de Marisa, o seu mais intenso e derradeiro amor. Marisa.

Monday, May 09, 2011

Crossroads


O rei do Delta Blues


Robert Johnson, cujo centenário é celebrado essa semana, foi entronizado como o maior músico de blues de todos os tempos e definidor de um gênero musical que é a quintessência da alma americana.

No entanto, ele seria apenas uma lenda de um rapsodo do sul dos Estados Unidos e se não fosse por um engenheiro de som visionário chamado H. C. Speir. Como produtor musical numa época em que a Indústria Cultural não se prestava nem como um conceito em sociologia, como diletente, ele saiu à cata de músicos itinerantes que vagueavam pelo Delta do Missisipi.

Speir tinha uma loja de discos em Farnish Street, num bairro negro de Jackson e era uma espécie de descobridor de talentos para selos como a Decca e a Vocalion, numa época em que a virtude de se gravar discos se valia mais pelo exótico do que por um processo ostensivamente ditado pelo mercado.

Para isso, ele usava um equipamento especial para a gravação de demos de artistas que ele achava na rua, registrando tudo em acetato, e mandando para as matrizes dos selos. Foi assim que, sem querer, ele registrou a arte viva e pulsante do blues sulista, de Mississippi Sheiks, Blind Joe Reynolds, Blind Roosevelt Graves, Geeshie Wiley até Charlie Patton, por exemplo.

Muitas dessas gravações foram lançadas em 78 rotações, e mais tarde compiladas em seleções que marcariam época, comono Anthology of American Folk Music, uma seleção desses "acidentes fonográficos" que se tornariam um evangelho para as novas gerações.

O próprio legado musical de Robert Johnson acabou sendo relançado na mesma época do Anthology, porém pela Columbia Records, em 1960, por honra e graça de John Hammond que, assim como Harry Everett Smith, o idelizador da antologia folk que fez a cabeça de gente como Bob Dylan, Dave Van Ronk e o Kingston Trio, se interessou em fazer um revival daqueles discos avoengos.

Talvez Charlie Patton, considerado como o pai de todos os "delta blues singers", seja o maior erxpoente do blues. Contudo, a faustiana lenda em torno da figura de Johnson, como se sabe, é devoradora: o seu carisma viria de sua própria figura transbordante, misteriosa e efêmera, que seria a inspiração de muitos músicos de rock a partir dos anos 60.


Eric Clapton conta que ganhou o King Of Delta Blues Singers de um amigo, e levou tempo para decifrá-lo. No entanto, assim como aconteceu com a maioria daqueles rapsodos do Mississipi, o músico inglês se apaixonou pelo fato de que a genialidade de todos eles era inversamente proporcional à sua reputação. Todos eram subestimadíssimos, e o jovem Clapton se ressentia disso. Por que ninguém dava bola para aqueles gênios do blues?

Robert Johnson, como todos os outros, viveu rápido, foi desassistido, porém misteriosamente aprendeu a tocar violão de forma miraculosa e, graças a um produtor musical maluco, teve suas canções gravadas.

O que seria de Johnson sem H. C. Speir? Depois de ouvi-lo em sua loja, mandou que Robert fosse de mala e cuia para San Antonio, Texas, para uma sessão em San Antonio, no Texas. O contato seria com Ernie Oertle, que o esperaria lá mesmo.

A primeira sessão (de duas) se deu em 23 de novembro de 1936, no quarto 414 daquele hotel, onde a Brunswick (uma subsidiária da Decca) havia improvisado um estúdio. Johnson empunhou seu violão diante do microfone contra a parede e gravou Come On In My Kitchen, Kind Hearted Woman Blues, entre outras.



Um ano depois, ele faria a sua derradeira sessão, já como artista da Bruswick, em Dallas. No total, seriam 12 canções, algumas contando com outtakes (tomadas alternativas da mesma música). Das duas sessões, onze discos foram lançados com Johnson ainda vivo. O material todo só seria relançado, depois de vinte anos de obscuridade, a partir dos anos 60, quando o autor de Crossroad Blues e Me And Devil Blues seria redescoberto.

A Columbia lançou primeiramente dois elepês com parte da produção de Johnson, em 1960 e em 1969. No entanto, uma edição crítica com todas as gravações só viria à lume em 1990, já em formato digital. The Complete Recordings tem as 29 originais, mais 13 outtakes. Junto com aqueles 78 rotações do Hot Five e do Hot seven do Louis Armstrong, dos anos 20, juntos eles compreeendem o evangelho da música negra americana no século XX. O resto é lenda.

Saturday, May 07, 2011

Quando Porto Alegre Virou Rio


Guaíba subiu mais de quatro metros




Quem entra distraidamente no Portão do Largo Glênio Peres do Marcado Público de Porto Alegre talvez nem repare em um marco, situado na parede da entrada, à esquerda, que fica mais ou menos na altura do culote dos transeuntes.

Se ele reparar bem, o marco mostra exatamente onde chegaram as águas do Guaíba há exatos setenta anos, quando as chuvas que caíram no estado, entre abril e maio de 1941 chegou a 791 mílimetros, equivalente à metade da média anual na cidade.

A capital já havia assistido a cheias anteriores, como em 1905, 1912, 1914 e 1928. Mas em 41, as águas fizeram com que o Guaíba, que é o depositário de vários rios, como o Jacuí, o Gravataí, o Sinos e o Caí, subiu mais de quatro metros. Em poucos dias, toda a região ribeirinha de Porto Alegre ficou debaixo d'água: desde Navegantes e São João até a Praia de Belas eas paragens circundadas pelo Arroio Dilúvio, que ainda não havia sido canalizado.

A situação mais funesta se deu no Centro que, ao contrário de hoje, catalisava toda a vida da cidade. Em pouco tempo, as principais ruas da urbe ficariam submersas, obrigando as pessoas a trafegarem pela Rua da Praia e adjacências de barcos, como em Veneza.

As chuvas começaram pouco antes da Páscoa de 41, em meados de abril. As autoriades em geral, no entanto, subestimaram a situação, principalmente quando o mau tempo deu mostras de arrefecimento, no começo de maio. Foi quando, além de mais e mais chuva, o vento minuano sul que soprava tenazmente sobre o estuário do rio acabou represando as águas contra o seu curso natural, rumo à Lagoa dos Patos.

O auge da tragédia se deu na segunda, 5 de maio: o Guaíba avançou contra a cidade, subiu a rua da Ladeira e ganhou a Rua da Praia. Aquele trecho, embora muitos não saibam hoje, era a Times Square porto-alegrense - um afamado ponto de encontro da boemia bem vestida da cidade, englobando diversas lojas, cafés de estirpe, como o Colombo e a Confeitaria Central, além do respectivo cinema, de mesmo nome.

Nilo Ruschel, no seu livro Rua da Praia, narra a história de um comerciante que precisou de ajuda do famoso Antoninho, garçom da Central, para salvar o seu arquivo de papéis em seu escritório, tendo que nadar debaixo d' água, como um escafandrista.

Ao sul da Andradas, as águas haviam reduzido 90% da capacidade da Usina de eletricidade do Gasômetro, deixando o Centro às escuras. Antes, o Guaíba havia se vingado da construção do Cais, estragando toda a fiação subterrânea dos gundastes, paralisando todo o serviço de carga e descarga do Porto.

Mais: toda a comunicação telefônica e telegráfica com o interior foi interrompida. O caos no Centro também atingiu os seus dois jornais, o Diário de N otícias, que ficava na esquina da Gen. Câmara e a Caldas Júnior, que levou a pior: o estrago nas suas impressoras fez com o que o "róseo" parasse de circular por uma semana.


Na Praia de Belas, o rio avançou ferozmente contra o Colégio Pão dos Pobres, onde consta que um cônego veio a falecer afogado. O antigo Aeroporto São João também ficou submerso, e o tráfego aéreo, ainda incipiente, teve de ser deslocado para o campo de pouso da Air France, em Cachoeirinha.

Quem mais sofreu foi a população mais remediada, e que, na época, vivia na região ribeirinha conhecida como o Areal da Baronesa e a Ilhota, onde hoje fica parte da Cidade Baixa e Menino Deus. A área, que já era alagadiça por natureza, desapareceu porque ali desaguaava o Arroio Dilúvio, quase onde ficava a Ponte de Pedra.

Para ajudar os desabrigados, o prefeito-interventor Loureiro da Silva e o governador Cordeiro de Farias, junto com o Exército e a Brigada Militar, realizaram uma força-terefa, deslocando os atingidos para escolas ou até mesmo para debaixo do Viaduto Otávio Rocha. Ao mesmo tempo, emissoras de rádio arrecadavam fundos junto aos ouvintes, para a aquisição de mantimentos.

Cordeiro de Farias teve que pedir auxílio federal. Não havia mais artigos de primeira necessidade e o que ainda restava era vendido a peso de ouro pelos comerciantes, obrigando a Prefeitura a forçar os comerciantes a tabelarem os preços. As fábricas paravam. Só na Renner, cerca de 2 mil funcionários tiveram que cruzar os braços.

A Viação Férrea, que ficava onde hoje está a Rodoviária, também suspendeu atividades. Os trilhos estavam submersos, a viagem à Santa Maria fora suspensa. Para viajar, os porto-alegrenses eram obrigados a se deslocar de barca até o Vale dos sinos para então retomar o trajeto pelos trilhos.


O ápice da tragédia foi o alagamento do maquinário do Gasômetro. Mesmo depois de reformas para evitar sinostros desse tipo, as águas tomaram a usina de assalto, deixando Porto Alegre toda sem luz. Mesmo que os operários tentassem criar barreiras de tijolos, o Guaíba entrava por todos os lados, até que chegou no estoque de carvão: xeque-mate. A muito custo, os operários conseguiram salvar duas bombas do total de oito.

Na noite de 8 de maio (o primeiro dia de sol), os bondes pararam, os postes apagaram e a luz das residências foi sumindo, até o Centro ficar às escuras e debaixo d´'agua. A Praça XV de Novembro, onde fica o Abrigo dos Bondes e o Chalé, era um lago onde vapores podiam trafegar sem risco de encalhar; as fotos da época são inacreditáveis. Porto Alegre virou rio.


As águas não subiam, mas também não baixavam. O problema agora era outro: o risco de que a força das águas tivesse destruído a rede cloacal, expondo à população à toda a sorte de epidemias, como a de tifo, que aconteceu na enchente de 28, e que atingiu 20 mil pessoas. Logo, a Secretaria da Saúde passou a vacinar a população. Por conta disso, 55 mil porto-alegrenses foram imunizados contra a tifo e varíola.

A partir da segunda quinzena de maio, a cidade começava a contabilizar o estrago. De acordo com a Delegacia Regional de Recenseamento, 15 mil residências foram destruídas, atingindo cerca de 70 mil pessoas (que, segundo o censo de 40, contava 272 mil habitantes). Pelo menos 600 estabelecimentos comerciais tiveram prejuízos materiais. Segundo o livro A Enchente de 41, de Rafael Guimaraens (Editora Libretos, 2009), o prejuízo total foi de 60 mil contos de reis, ou US$ 30 milhões.

No dia 20 de maio, às águas já haviam baixado ao nível da cheia de 1928, algumas empresas retomariam suas atividades; outras, contudo, não abririram mais as portas. a ajuda governamental, transubstanciada em moratória de dívidas e a criação de linhas de crédito para os capitães não ajudaria a todos, já que muitos não tinham nem como recomeçar do nada.

Junho chegou e Porto Alegre ainda contava 4 mil desabrigados pela enchente de 41.

Depois de seis enchentes terríveis, a triste constatação: Porto alegre teria que proteger-se das próximas. Ainda naquele ano, técnicos do Departamento Nacional de Obras e Saneamento (DNOS) sugeriu um sistema de diques e, no Centro, uma cortina de concreto.

No entanto, o projeto só seria concretizado (desculpem o péssimo trocadilho) nos anos 70. A primeira decisão municipal, por sua vez, foi a canalização do Arroio Dilúvio. em seu curso original, ele descia pela Sebastião Leão até desaguar na Ilhota, onde hoje fica o Ginásio Tesourinha, até chegar no Pão dos Pobres. Com a canalização, o Dilúvio foi ligado diretamente ao Guaíba, no atual aterro da Praia de Belas.

Concluído em plena Ditadura Militar, o Muro da Mauá (como é chamado) surgiu numa época em que esse tipo de obra pública era plenamente viável, dado a facilidade em se obter empréstimos internacionais a juros baixos. O muro, por sinal, é a piece de resistence de um sistema de diques e casas de bombas que 68 quilômetros, protegendo a capital do Rio Grande de outro desastre como a que ocorreu há setemta anos, naquele maio de 41.

Inaugurado em 1974, o "muro" tem 2,5 quilômetros de extensão, três de altura e três abaixo do nível do chão. As suas dimensôes são embasadas nos índices de 1941.Porém, como a opbra foi outorgada à população num período discricionário da história recente, como diz Guimarans à guisa de conclusão do livro, "a presença daquele cinzento e ostensivo monumento de concreto armado foi transformado numa espécie de ícone do obscurantismo, um entrave tecnocrático a conspirar contra a saudável relação da cidade com o Guaíba".

Monday, May 02, 2011

MEDÉIA

(CENA ÚNICA)


PERSONAGENS: JASÃO, MEDÉIA E A AMA DE MEDÉIA.



Cenário — Cozinha. Uma mulher lavando os pratos. Seu marido entra, abre a geladeira, e toma água gelada direto do gargalo da garrafa de plástico.



JASÃO (Encontra Medéia na cozinha. Dispara um olhar inquieto para a esposa e, depois de suspira) Querida, o que você acha do Creonte?

MEDÉIA (Admirada) O Creonte? Ué? Por que diabos você quer a minha opinião a respeito dele? Eu, hein?

JASÃO (Sério) Por nada, meu bem. (Confidencial) Então quer dizer que você não acha nada a respeito dele?

MEDÉIA Não (À parte) Acho ele inclusive um chato.

JASÃO (Solene) Acaba de suspirar. Bateu as botas. Morreu!

MEDÉIA (Esbugalhada) Não! (Leva as mãos à cabeça) Meu amor! (tropeçando nas cadeiras) Meu amor! Não!

AMA DE MEDÉIA (Irrompe) O que está acontecendo? Dona Medéia, o que aconteceu?

JASÃO (Sardônico) Nada, foi a minha mulher aqui. O marido dela acabou de bater as botas.

AMA DE MEDÉIA: Mas, seu Jasão!

JASÃO (Com exaltação) Não tem mas seu Jasão coisa alguma! O amante dela, você quer saber quem é o amante dela? É o Creonte, aquele careca e gordo que vem comer aqui em casa de vez em quando!

MEDÉIA (Arremessa a caçarola na parede, derrubando o calendário das Edições Paulinas. Olha para ambos, com o dedo em riste com raiva) Sabem de uma coisa? (em tom desafiador) querem saber? Hein?

JASÃO (Alterado) Fala, desgraçada! Fala bem alto, prá todo mundo, porque a gente quer saber. (olha para todos que se amontoavam para ver a cena). Vocês não querem saber o que ela tem para dizer, pessoal, hein? (virando-se para Medéia) Viu? Todo mundo quer saber.

MEDÉIA (Debochada) Pode rir, filho da mãe! Eu traí você com aquele gordo careca. E daí? Ele era muito melhor do que você! Ele me come melhor! Melhor! Mil vezes melhor! (olhando para a ama) Eu gozava com ele, tá entendendo? Gozava! (para Jasão) Você? Olhe para você! Você nunca chegou aos pés dele! Eu vou ao enterro do Creonte! E ninguém aqui vai me impedir! Eu sou mais viúva do que a mulher dele! Aquela broaca! Uma mulherzinha de nada. Ele gostava era de mim! (com o olhar perdido em algum ponto da parede) Eu sou mais gostosa, sou melhor de cama, ele me dizia isto! Eu sou redondinha! Ela é uma tábua seca! Eu tenho peitos. Peitos!

AMA DE MEDÉIA (Berrando) Ai meu Deus. Ai!

MEDÉIA (Enxugando o rosto) Agora que o meu amor morreu, eu não tenho de mais nada (espetando o dedo para Jasão) Nada!

JASÃO (Farto) Agora chega! A comédia acabou! (olhando para todos) Fora daqui!

AMA DE MEDÉIA (Aos prantos) Pare, seu Jasão, o senhor está descontrolado!

JASÃO (Em tom ameaçador) Descontrolado é o cacete! (os vizinhos saem)

MEDÉIA (Dolorosa) Filho da mãe...

Engole esse choro, vagabunda! Já deu teu espetáculo para todo mundo! Então o Creonte era um sujeitinho insignificante, não é? Era insignificante e comia o teu feijão! Pois saiba que eu menti.

MEDÉIA (espantada) Mentiu o quê?

JASÃO Menti.

MEDÉIA (Intrigada) Mentiu o quê?

JASÃO: (Acendendo um cigarro) Ele não morreu coisa nenhuma. Quis provar você, e caíste bem direitinho, sua adúltera idiota.

MEDÉIA (Esboça um sorriso desconcertado) O quê? Ele está vivo?

JASÃO Está sim (Expelindo nicotina) mais vivo do que eu.

MEDÉIA (Cobre a boca com as mãos) Oh, meu Deus!

JASÃO (Num ímpeto) Deus o cacete, sua cretina! Olha, olha aqui na minha cara, e responde: é o teu machinho, é? (Apertando Medéia) É teu macho, é? Fala, desgraçada!

MEDÉIA (Se desvencilhando de Jasão) Me larga, bruto!

JASÃO: Que foi? Tá com medo agora, a mulher sem medo está com medo, agora?

MEDÉIA (Pendurada pelos cabelos) Frouxo! (Leva um tapa) Frouxo! (Outro) Frouxo! (Mais outro) Frouxo! (Se esgueira, e cai sobre o braço protegendo o rosto, que se parte sobre a ponta da mesa) Ai! Deus sabe a quem cabe toda a culpa!

JASÃO: (Desferindo-lhe outro soco) Sabem também como é tenebrosa é a tua mente! (Novo soco e Medéia cai inerte sobre a mesa, abrindo o móvel em dois)

MEDÉIA (Rilhando os dentes) Pode vir, desgraçado! Vem, me chuta, acaba comigo! Pode vir, me mata! Me mata! Creonte é o meu amor sim, ele é o meu primeiro e único amor, e eu amarei ele na morte, e sei que ele chorará por mim, porque ele me ama mais do que a sua mulher!

JASÃO (Furioso) Toma!

MEDÉIA: Sim, eu amo ele e te odeio, ele é mais homem do que você, e você é um nada perto dele! Você é um nada, nunca foi nada, nunca vai ser nada! (Esconde o rosto para novo ataque de Jasão. O soco lhe faz abrir os braços e derrubar o rádio da estante da cozinha. A queda faz com que o aparelho ligue em alto volume) Meu amor! Ai! (Cai no chão. Jasão chuta Medéia várias vezes, que apanhava calada)

JASÃO (Descontrolado, chuta o rosto de Medéia ) Frouxo, é?
MEDÉIA (Num derradeiro suspiro) Creonte! (morre sob repetidos chutes de Jasão)


CORIFEU (Enquanto o coro se retira) Dos píncaros do Olimpo Zeus dirige
O curso dos eventos incontáveis. E muitas vezes os deuses nos deixam atônitos
Em seus desígnios. Entretanto, se concretiza a expectativa e vemos afinal, o esperado).