Friday, June 24, 2011

Seguindo os passos de Camilo Mortágua


O Cinema Castelo

Camilo Mortágua, de 1980, é o último grande romance de Josué Guimarães. O livro contra a trágica saga de uma família de estanceiros do Alegrete que vive o fim da aristocracia rural gaúcha durante o primeiro quartel do século passado.

O texto se divide num momento presente, nos primeiros dias da Revolução de 1964, onde o protagonista mora em uma pensão na avenida Azenha, esquina com a Cabo Rocha. A rua, um antigo ponto de meretrício da capital gaúcha, ficava onde hoje existe a Freitas e Castro. Foi um dos mais populares bas-fonds porto-alegrenses, com seus michês e seus cabarés, até o começo dos anos 60, quando a municipalidade desalojou todo o trottoir para longe dali.

A pensão de Dona Consuelo, situada em cima do Café Viseu, fica defronte ao antigo cinema Castelo, que se situava onde hoje fica uma agência bancária. Josué Guimarãees soube retratar com olhos de cronista os últimos dias da boemia de sem culotes daquela região outrora histórica: foi ali, em 1835, que ocorreu o primeiro confronto entre farroupilhas e o Império.


Foi o 'oficial' Cabo Rocha, que comandou o ataque, quem emprestou o nome do logradouro, cujo nome, de tão associado à vetusta zona de meretrício, acabou sendo então alterado pela Prefeitura para Freitas e Castro, nos anos 70.

Ao entrar durante três noites no Castelo, enquanto assiste uma fita barata de uma montagem B de um filme sobre Cleópatra, Mortágua, personagem trágico por excelência, volta no tempo e, sentado numa das poltronas, como num delírio, ele vê a história de sua vida sendo projetada na tela grande.

O patriarca da família, Quirino, se muda para Porto Alegre e constrói um palacete na avenida Independência. Naquele tempo, a avenida vivia o esplendor das grandes mansões de famílias do high life porto-alegrense, como os Greco (donos do primeiro carro da cidade), os Godoy e a família Torelly. Felicíssimo de Azevedo diz que a área era desejada por ser "o mais lindo arrabalde da cidade de onde se goza a mais bela vista".


A Independência, na altura do Colégio Rosário

Algumas daquelas mansões, que representavam a aristocracia da cidade foram demolidas, devido à exploração imobiliária. Em Camilo Mortágua, a mansão da família não foge à regra. Mas como toda regra têm suas exceções, alguns palacetes ainda resistem ao tempo, como a Casa Godoy, em art noveau, que foi tombada pelo Patrimônio Histórico, e a Torelly, onde hoje fica o Secretaria Estadual de Cultura.

Eis a característica primordial da obra de Josué: Porto Alegre antiga é revisitada em dois momentos. Dos anos 10 aos anos 50, quando ele narra a funesta saga dos Mortágua, passando do antigo comércio da cidade até a flanérie dos grandes espaços urbanos da capital.

A loja de Camilo e seu sócio, Edmundo, fica na Andradas, que catalisava quase todo o comércio e a vida cultural da cidade. Existem várias referências à Rua da Praia antiga na obra, desde o restaurante do Palácio do Comércio até o Cinema e Confeitaria Central, dos itmãos Medeiros, que ficava onde hoje é um curso supletivo, na esquina da Andradas com a General Câmara.

Na história, para salvar a reputação de sua família, Camilo funda uma olaria para vender material de construção, e procura terreno onde floresceram casas do tipo, na antiga Cidade Baixa. Uma das olarias remanescentes daquele tempo hoje é um centro comercial, na avenida Lima e Silva.


O Areal da Baronesa, hoje Cidade Baixa

Josué Guimarães escreveu Camilo Mortágua no verão de 1979. Antes de pôr suas mais de 400 páginas no papel, ele sonhou a história toda em seus mínimos detalhes. Contou à Ivan Pinheiro Machado, editor da LPM todo o enredo de memória, como costumava fazer com seus livros aos seus amigos mais chegados. Quando o texto estava claro em sua mente, ele escrevia tudo, do começo ao fim, dispensando originais.

Ao contar a história, ambos pararam diante do casarão da Bordini com a 24 de Outubro. Ali seria a casa do inescrupuloso Comendador, diretor do Banco da Província, pai de Leonor e sogro de Camilo. "Uma hora depois, diante do Parcão (Parque Moinhos de Vento),a história terminou. Ficamos parados num silêncio comovido, consternados com o fim do grande Camilo", diz Pinheiro Machado.

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