Thursday, June 23, 2011

Borges de Medeiros e a bailarina


Carlos Reverbel

Em suas Memórias, João Neves da Fontoura (1889-1963) dedicou o primeiro volume — "Borges de Medeiros e seu Tempo" — ao líder republicano, que é o seu principal personagem. Discípulo do líder positivista, João Neves resgata em sua obra alguns dos principais episódios da vida pública do então presidente do Estado do Rio Grande do Sul, com farta documentação. Também reconta os fatos que tiveram desfecho na formação da Aliança Liberal e os antecedentes da Revolução de 30.

Nas Memórias, o político cachoeirense revela, com indisfarçável convicção, que foi o correligionário mais próximo de Borges, "Suas conversas eram sinceras e abertas comigo", revela. Mas ressalta: "Contudo, ele jamais ultrapassava os limites de conversação que ele próprio demarcava".

João Neves entendia que tal atitude se evidenciava mais por uma questão de virtude do que de educação. Em outras palavras: como diziam alguns, menos chegados: "o Velho Borges é mais fechado que baú de solteirona". À respeito do caráter confessional do livro com relação ao perfil do antigo presidente do Estado, o escritor e ensaísta Carlos Reverbel escreveu que, na carência da bibliografia sobre Borges de Medeiros, as Memórias de João Neves da Fontoura talvez reúnam as melhores páginas já escritas a respeito do poderoso chefe republicano, em que pese a relação da dependência partidária e a afeição pessoal que os vinculava.

"Borges foi um solitário no poder", diz o memorialista. "Assessores mesmo, nunca os teve". Mesmo assim, não é raro encontrarmos histórias e curiosas sobre o caudilho positivista. Uma delas é bastante ilustrativa.

Em fins de 1925, quando entrava no penúltimo ano de mandato, Borges de Medeiros convidou o engenheiro Sérgio Ulrich de Oliveira para secretário de Obras Públicas. Na época, a escolha foi interpretada como sinal quase estratégico de que este seria o seu substituto na presidência do Estado.

Para João Neves, Sérgio era um homem “correto”, impoluto e, além do mais, seu confidente. Um bravo sem bravatas, estando sempre na frente quando surgissem perigos: "um cavalheiro inclusive na despreocupada elegância pessoal com que se trajava".

O memorialista diz que era natural que a escolha de Oliveira para aquela pasta parecesse, sem exagero, uma das melhores expressões, de conjunto, no seio do Partido Republicano. "insigne advogado, exercia a profissão com os rigores de uma ética exemplar".

Ou seja: tratava-se de um homem público de estirpe, bem ao estilo borgiano de viver “às claras”. Ou nas palavras de Carlos Reverbel, tanto pela pessoa quanto pela firmeza de caráter, ele reunia todas as condições para empunhar as rédeas do governo, estando assim, perfeitamente à altura de recebê-las das mãos de Borges de Medeiros, na sua “austeridade e na sua intransigência”.

Era inclusive quase certo — para não dizer verdade inapelável — que Sérgio de Oliveira seria o futuro presidente do Estado do Rio Grande do Sul, mesmo que o velho Borges mantivesse a boca fechada à respeito do assunto, como era de seu feitio de “baú de solteirona”.


Um dia, aconteceu a desdita. Em fins de 1926, bem na época em que a chapa republicana para a Câmara dos Deputados estava sendo organizada, Borges de Medeiros mandou chamar Oliveira, informando que ele estaria incluído na respectiva nominata. “Para surpresa geral, no dia seguinte, Sérgio exonerou-se da secretaria de Obras, recolhendo-se na sua casa, em Uruguaiana”, diz João Neves.

Nunca foi possível saber exatamente quais eram as esperanças que Borges depositava em seu ex-secretário. Mas para o memorialista, grande foi a decepção do presidente gaúcho. Mais: logo depois, começou a correr um boato de que Sérgio de Oliveira havia perdido a oportunidade de chegar ao Governo do Estado porque teria se enfeitiçado por uma bailarina espanhola, que fazia ruidoso êxito no Clube dos Caçadores, o conhecido grande cabaré da época, que ficava na rua Nova, beco que virou zona de meretrício, e que, anos mais tarde, foi aberto e passou a se denominar rua Andrade Neves, no centro de Porto Alegre.

Mesmo que o ex-secretário fosse viúvo e tudo tivesse ocorrido na mais esmagadora discrição, foi o que bastou para que Borges de Medeiros optasse por outro nome para substituí-lo. E este nome não foi outro senão Getúlio Vargas, então Ministro da Fazenda de Arthur Bernardes.

Na opinião de João Neves, a história pode ser explicada de outra forma, sem cor de pilhéria que lhe pintaram. Para ele, o que faltou a Sérgio de Oliveira para galgar o posto mais alto do estado não foi o Clube dos Caçadores e suas bailarinas espanholas; o que faltou mesmo foi ambição política.

Uma coisa é certa, porém: feitiço ou não, o episódio mostra que, por um detalhe, a história de 1930 para cá poderia ter sido um pouco (ou muito) diferente. “De tudo o que acabo de narrar, decorre uma inevitável filosofia”, conclui João Neves da Fontoura, no fim do capítulo 25. “Como teria sido diferente a história contemporânea do Brasil se, em lugar de Vargas, o senhor Borges de Medeiros houvesse dotado, em 1927, a candidatura de Sérgio de Oliveira para a Presidência do Rio Grande!”...

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