Saturday, June 25, 2011

Cemitérios de Porto Alegre contam histórias


Mausoléu de Pinheiro Machado, no Cemitério da Santa Casa

A vida nutre-se da morte, e não a morte que nutre-se da vida. Me lembrei dessa frase do Caderno H do Mário Quintana quando fui participar da Caminhada Orientada do Viva o Centro a Pé, que é promovida pela Prefeitura de Porto Alegre.

Dessa vez, o tema do passeio era a arte cemiterial da Santa Casa e do São Miguel e Almas. A orientadora da vista, arquiteta Gicelda Weber Silveira, que trabalha no setor de projetos de restauração e na Secretaria de Obras Públicas do Governo do Estado.

Na entrada da Santa Casa (pegamos um Carris sanfona com gente até no lustre, contra as minhas perspectivas, dado as chuvas dessa semana e o tempo feio de hoje), ela explicou que o primeiro cemitério da cidade se situava onde fica a Praça da Matriz, então um descampado. Com a urbanização, ele passou para a parte posterior da Igreja da Matriz, onde se situa atualmente a Catedral Metropolitana.

Segundo a pesquisadora, no princípio, os mortos eram enterrados junto às irmandades das suas respectivas igrejas. Com o tempo, fez-se necessário que, por uma questão de ordem, o campo santo deveria ficar fora da cidade. O local escolhido, a partir do século XIX, foi a subida da Azenha.

O cemitério da Santa Casa, inaugurado em 1850, foi o primeiro a aglutinar todas as irmandades. Ele foi construído em estilo europeu, com as paredes construídas como catacumbas. No centro, se situariam os mausoléus.

No entanto, nossos aristocratas não exigiam muito luxo em matéria de arte sepulcral. Nossos barões eviscondes eram mais simplistas, em contraste da perspectiva estética da burguesia que a sucedeu. Túmulos como o do Barão de Camaquã se limita ao símbolo heráldico, por exemplo; apenas o brasão, representando o seu respectivo grau nobiliárquico, o diferenciava dos demais ex-viventes.

Foi com a ascenção da burguesia porto-alegrense que surgiu a geração dos grandes mausoléus. Os pequeno-burgueses ficavam com as catacumbas e os sem culotes eram enterrados na terra, mesmo.

Se os nobres destacavam sua nobreza para diferenciá-los, a "burguesia" realçava o seu grau de importância e prestígio amealhados em vida para tranmutá-la em arte funerária: banqueiros, comerciantes, engenheiros, industriais, enfim, todos transformavam seus jazigos em mozaicos onde cinzelavam sua reputação em mármore e bronze para a eternidade.

O castilhismo também teria o seu destaque nos cemitérios. Os exemplos mais notáveis são os dos túmulos dos patriarcas do antigo PRR no Estado. No de Júlio de Castilhos, uma mulher, símbolo da Religião da Humanidade, pranteia o ditador chimango, morto em 1903; no de Pinheiro Machado, a deusa da República e um séquito de moleques vela o cadáver de bronze - coberto de pátina do senador gaúcho, assassinado em 1915. Seu corpo, seminu e mal acomodado sob um dossel, parece que acabou de expirar da facada traiçoeira de Manso de Paiva.


Túmulo do governador Daltro Filho, de Augusto Caringi

As famílias mais tradicionais (da época) e os líderes políticos (idem) são os que nos recepcionam, na entrada da Santa Casa. A ascenção do borgismo veio com uma leva de grandes artistas de escol, de Leoni Lunardi até a família Friedrichs. Da arquitetura à escultura, uma aula de como eles explicavam a morte e a política.

Mais adiante, o túmulo de Plácido de Castro, guerrilheiro gaúcho que conquistou o Acre e morto por traição, em seu leito de morte, quis que seus restos não fossem enterrados lá. No túmulo, a deusa da Justiça abaixa a espada ao lado da balança onde há um saco de moedas, denunciando a perfídia de seus algozes.

O auge da arte funerária em mausoléus vai do começo do século passado até os anos 40. Misturam-se motivos neoclássicos - ligeiramente pagãos - com outros, profundamente católicos, emoldurados em estilos que versam entre o art noveau e o modernismo.

A exaltação ao civismo e ao patriotismo, típicos da política de antanho, estão sintetizados no túmulo de Daltro Filho. O governador, vestido de pala, posa ao lado de um soldado. A grandeza épica do túmulo parece rivalizar com os do Père Lechaise.

Na frente do jazigo do Patriarca, encontro, à direita, outro, todo em mármore. Numa placa, o nome de José Pinheiro Borda, um dos idealizadores do Beira-Rio. Na entrada original do São Miguel e Almas, à esquerda, o do patrono do Grêmio, Fernando Kroeff.

Gicelda Weber explicou que o da Santa Casa, à medida em que avançava, foi mudandoo seu estilo, de muros de catacumbas com o de galerias. Esse é o estilo que seria empregado definitivamente no da irmandade de São Miguel e Almas, que é dissidente da Santa Casa.

Fundado em 1908, foi construído por Armando Boni, oriundo de Parma (Boni, morto em 45, tem um túmulo no local). Mestre do concreto armado, Boni trouxe da Europa o modelo de galerias, projeto pelo qual seria o precursor, no Brasil, a partir de 1930.

Nos mausoléus do São Miguel, a estatuária ganha extrema plasticidade, com anjos, mulheres, querubins, anjos femininos cobertos por mantos diáfanos, tornozelos, pés à mostra e silhuetas de seios, crianças que choram consoladas por madonas inconsoláveis a prantear eternamente por seus mortos, como num eterno carpir que comove a qualquer futuro passante, num amálgama de sensualidade e contrição, escatologia e poesia.

A partir dos anos 30, Boni expandiu o formato de galerias, evoluindo na direção inversa à santa Casa; esta subia a Oscar Pereira, enquando aquela descia, até onde hoje ficam as capelas, a cafeteria e a entrada principal. Hoje, círios de 100w velam os mortos ao som de colherinhas nas xícaras de café...

Da década de 40 em diante, esse paradigma de exuberância entrou em desuso, à medida em que os valores mudavam. A filosofia da arte se rendeu à praticidade e aos princípios religiosos mais elementares: segundo Gicelda Weber, algumas religiões preferiram um estilo mais sóbrio e pastoral, em sintonia com a natureza, como no cado dos cemitérios-parque. Outros, por sua vez, optaram por entronizar o modelo de galerias, como é o caso do João XXIII, situado na descida do morro da Oscar Pereira, nos limites da Azenha com a Glória.

Quando todos voltávamos para o Centro, no Carris (o passeio acabou cinco para o meio-dia), me lembrando da estátua do Pinheiro Machado ganhando uma coroa de flores de uma criança, me lembrei de outra citação, dessa vez do Tio Bicho, personagem do Erico Verissimo (que está sepultado no São Miguel, embora não tivesse tempo de vê-lo), no O Arquipélago, última parte de O Tempo e o Vento: "a morte é uma preocupação exclusiva dos vivos".

PS: funcionários do São Miguel à princípio tinham ordens de proibir filmagens e fotos. O pessoal foi salvo por algum telefonema excuso da equipe da TV Record, que nos acompanhou durante o passeio.

PS2: Não pude anotar mais detalhes porque minha caneta emperrou na metade de nossa incursão peripatética.

1 comment:

Leonardo Rossatto Queiroz said...

Pena que seus posts não são mais frequentes. Você escreve absurdamente bem, ótimas histórias.